C.N. Gil's Blog, page 55

November 6, 2015

Os dias mais estranhos - 26. Distância (extensão, intervalo, separação, diferença)

Embora continuássemos a ver-nos todos os dias, durante a semana, as ocupações que eu tinha com a minha banda levaram a que quase não nos víssemos ao fim-de-semana. Ainda por cima ela foi de férias com ela, algures para o meio do Alentejo, e durante quinze dias não lhe pus a vista em cima. De alguma forma o facto de não a ver deixava-me susceptível e irritadiço. A minha mudança de humor não passou despercebida a ninguém e a minha falta de paciência estava-se a tornar lendária quer entre o pessoal de trabalho, quer no seio da minha banda. Chegaram a perguntar se eu já tinha entrado na menopausa…A ausência dela corroíam-me o espírito. Para ser franco não me lembrava de alguma vez me ter sentido assim por causa de alguém. Aquele tipo de paixão era para mim um admirável mundo novo com o qual eu tinha serias dificuldades em lidar. Ela ligou-me no meio das férias.-Oi, Mónica.-Olá, meu anjo.-Então, onde é que tu paras?-Tou aqui no meio do Alentejo. Consegui fugir por um bocado ao Francisco e aproveitei para matar saudades.-Fizeste bem. Que é que andas fazendo?-Olha, tou aqui no meio de uma estrada sozinha completamente longe de tudo. Não se vê daqui uma luzinha sequer. Devias estar aqui. O céu está lindo…Ouvi uma série de ruídos esquisitos e a chamada caiu. Liguei de volta.-Tou?-Sim, desculpa lá, nem sabes o que se passou…-Então?-Pá, tava aqui no meio da estrada e veio um carro de uma curva aqui atrás, por pouco não me apanhava…-Foram-se… Tás bem?-Sim, mas fogo, apanhei um cagaço…Rimo-nos ambos com a situação. Ainda trocamos mais uns dedos de conversa e, depois de uma despedida anormalmente longa, acabamos por desligar.
Aquela conversa tinha-me suavizado o espírito. O seu simples telefonema havia-me retornado a paz.
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Published on November 06, 2015 04:48

Os dias mais estranhos - 25. Desconforto (incomodo, desconsolo, desalento)

-Tenho um pedido para te fazer.Esta frase apareceu no meio de um dos nossos pequenos-almoços que eram agora desfrutados ao minuto, sendo o tempo que tínhamos sempre para nós todos os dias. -Diz.-Sabes que a Raquel vai entrar agora para a escola, e resolvemos pôr Internet lá em casa. Importavas-te de ir lá ligar aquilo?-Não, não me importo nada.-Podias lá ir hoje…-Não dá… não trouxe carro, nem nada…-Não te preocupes com isso. Só se estiveres ocupado depois, com alguma catraia, ou isso…Lancei-lhe um olhar indignado, como que a perguntar “onde é que queres chegar com isso?”. Ela riu-se. Fizera de propósito para me “picar”.-Não, não tenho nenhuma catraia à minha espera.-Então podes. Tá feito.Fiquei sem argumentos. Era mais uma oportunidade de ficar com ela um pouco. Acedi.Quando estava pronto para sair dei-lhe um telefonema. Ela veio ter comigo e saímos juntos do prédio. Prontamente apareceu o Mercedes do Francisco. Entrei para o banco de trás e cumprimentei -o. Ela entrou, deu-lhe um beijo nos lábios, e encetaram uma conversa perfeitamente banal acerca do dia de ambos.Admito que o beijo que deram me transtornou. Estava ali numa posição altamente desconfortável. Tentei alhear-me de tudo, focando-me só na paisagem e na música que saia das colunas atrás da minha cabeça.A viagem até Cascais foi rápida e confortável. Antes de nos dirigirmos a casa deles o Francisco perguntou-me se eu me importava que ele fizesse um desvio. Disse-lhe que não. Ele parou num clube de vídeo no centro de Cascais.Saíram os dois. Eu deixei-me ficar a curtir a música. Quando voltaram traziam várias cassetes, uma delas com uma comédia, outra com um filme de desenhos animados, e mais duas ou três enroladas dentro de um saco de plástico. Era óbvio o que eram.Fomos para casa deles e eu resolvi o problema da ligação do computador em dez minutos. Posto isto pedi para me levarem de volta. Ambos insistiram para que eu jantasse com eles, mas a situação era realmente desconfortável para mim. Talvez pressentindo isto, a Mónica foi a primeira a aceder e a dizer que me levava. O Francisco disse-lhe que não valia a pena, que me levava ele e para ela ir tratando do jantar. Sem ter como contestar, a Mónica assentiu.O Francisco levou-me directamente ao meu carro, na margem sul. Garanti-lhe que não valia a pena mas ele insistiu, dizendo que era o mínimo que poderia fazer. Ainda insistiu para que eu aceitasse algum dinheiro, coisa que recusei.Já depois do jantar, estava eu no meu hábito de estar refastelado a ver um filme quando a Mónica ligou.-Oi Mónica.-Olá. Foi pena não teres ficado.-Foi melhor assim.-Estavas constrangido?-Bastante. Onde é que paras para me estares a ligar agora.-Tou na lavandaria a carregar a máquina com roupa.-E ele?-Está para lá para cima a ver os filmes dele…Não comentei. Sabia a que filmes ela se referia.-Reparaste, não foi?-Era só um tudo-nada óbvio…-Pois. Não é que eu não goste de ver um filme daqueles de quando em quando, mas ele vê aquilo quase todos os dias.-Todos os dias?-É. Depois só quer é fazer sexo enquanto vê os filmes… – ora aí estava um pedaço de informação que eu nem queria nem desejava – e ainda por cima começa com ideias malucas…-Ideias malucas?-Esquece. – Disse, apercebendo-se que tinha falado de mais – Um dia destes conto-te. Só liguei para saber se estas bem, meu querido.-Tou, piquena. Tou bem.-Ainda bem. Vou desligar que não posso demorar.-Ok. Tem uma boa noite, piquinina.-Tu também, meu anjo.-Tchau…-Tchau…E desligou.
Não foi aquilo que foi dito que me ficou a remoer no espírito, mas antes o que não foi dito. “Ideias malucas”?
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Published on November 06, 2015 00:16

November 5, 2015

A minha alma tá parva!

Atão não é que assim de repentemente isto começou a ser frequentado por malta dos Emiratos Árabes Unidos?

E não serem tão poucos quanto isso...


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Published on November 05, 2015 08:36

Os dias mais estranhos - 24. Francisco

Nos tempos seguintes passava cada momento livre que tinha com ela, sempre que o Francisco estava fora. Falávamos imenso, na ânsia que tínhamos de obtermos um profundo conhecimento mutuo. Era assim que passávamos os pedaços de tempo que tínhamos.À medida que a confiança ia crescendo as conversas tornavam-se mais íntimas e as confidências mútuas mais profundas.Foi assim que soube que ela já tinha sido casada antes do Francisco. Casara-se jovem, com 18 anos, bastante influenciada pelos pais. Era-me particularmente difícil imaginar esta mulher, tão segura de si, a ser influenciada por alguém. Os pais achavam que o homem que tinham escolhido para a filha era o ideal. Era alguém com posição, financeiramente estável. Ela, que o via apenas raramente durante o namoro, deixara-se iludir pelo que ele parecia ser.Algum tempo depois do casamento veio a desilusão e a traição. Veio também a Raquel. O casamento tinha-se desfeito logo no começo, praticamente. No princípio ela ficou com a Raquel, mas depois, vivendo apenas num quarto, estava sem condições para a ter consigo. A Raquel ficou com o pai, enquanto ela tentava reorganizar a vida. Foi o que foi fazendo, até conhecer o Francisco. Conhecera-o através de amigos mútuos, numa altura em que ele estava numa situação precária, quer a nível financeiro, quer pessoal. Com as suas empresas à beira da falência, ele dispersava-se. Estava deprimido e sem saber o que fazer. Ela tinha-o ajudado o melhor que podia, oferecendo-lhe a sua amizade. Ajudou a recuperar a sua auto-estima. Ajudou-o com alguns contactos que tinha. Criaram uma amizade especialA medida que as empresas dele começaram a dar melhores resultados, ele foi nutrindo uma paixão por ela. Apaixonou-se completamente.Ela, julgando conhece-lo e pensando na sua filha, acabou por ceder.A Raquel começou a passar cada vez mais tempo junto com a mãe, embora nem a Mónica nem o pai quisessem que a mudança fosse repentina. Mas estava para breve a mudança definitiva, com a chegada do fim do ano lectivo.Entretanto, Francisco percebera já que a Mónica não o amava, embora soubesse o quanto era inabalável a sua amizade e dedicação. Mas isso amargurou-o de alguma forma, e ele começou a trata-la de maneira diferente, exibindo-a como um troféu, como se ela fosse sua propriedade. Um verdadeiro símbolo do seu sucesso. Testando cada vez mais os limites da sua relação, e intuindo que Mónica nada faria por causa do desejo que nutria de ter consigo a sua filha, começou a fazer jogos com ela, a todos os níveis.A Mónica nunca quis entrar em pormenores acerca do que se passava na sua vida conjugal, e eu sempre respeitei isso. Mas era notório que havia cada vez mais problemas entre os dois. Com uma maior frequência foram aflorando às nossas conversas algumas atitudes que ele ia tomando, mas eu sempre me escusei a comenta-las. No entanto ela sabia que tinha sempre em mim um bom ouvinte, e creio que isso lhe chegava.Entretanto eu fazia tudo para não a pressionar e ela apreciava isso. A maior parte do nosso tempo era perdido em conversas sem fim que tinham lugar em locais públicos onde aparecia sempre alguém conhecido por algum de nós. Raramente nos dávamos sequer à liberdade de um beijo, apesar de os olhares que trocávamos frequentemente expressarem o desejo que sentíamos. Creio que em parte foi isso que foi fazendo com que a paixão se fosse tornando cada vez mais intensa. O fruto proibido…
Mas no meio de tudo isto foi o Francisco que acabou por precipitar uma série de situações, sem sequer o saber.
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Published on November 05, 2015 06:43

Os dias mais estranhos - 23. Complicações (enredos, implicâncias, dificuldades)

…mas a muito custo a noite chegou, e com ela uma viagem para Cascais. Embora o tempo estivesse lento, o meu carro voou na auto-estrada. Liguei-lhe e ela desligou a chamada. Esperei. Vi-a a sair de casa, pela primeira vez vestida em roupas casuais, umas calças de ganga e uma camisa simples. Entrou no carro. -Oi. – Disse.-Oi.-Onde queres ir? – Perguntou ela.-Não sei, não conheço bem a zona…-Então ‘bora. Sabes ir para a praia do Guincho?-Sei.-Tá lá um restaurante fixe.Fomos ouvindo música no caminho e fazendo conversa de circunstância. Tendo chegado, sentamo-nos numa mesa e pedimos ambos um Irish coffee. Ainda que quiséssemos conversar, não poderíamos. A música estava um pouco alta. Quando acabamos o café ela voltou-se para mim.-Quero-te mostrar um sítio.Segui-a incondicionalmente. Entramos ambos no carro e segui com ela dando-me indicações. Seguimos na direcção de Sintra, mas assim a linha das praias acabou ela pediu-me para virar à esquerda  numa pequena entrada. Seguimos a estrada que rapidamente deixou de ser alcatrão até uma altura em que a estrada abriu e estávamos numa arriba junto ao mar. Parei e ela saiu. Segui-a. Fomos até à beira dos rochedos. O cenário era verdadeiramente idílico, com o luar a bater sobre um mar que não acabava. Só então reparei que à minha direita havia uma minúscula baia escavada na rocha, com uma pequena praia ao fundo.-Não é lindo, isto? – Perguntou ela quebrando o silêncio.Achei que ela não precisava da minha resposta. -Anda até lá baixo… - disse ela arrancando.Descemos a ladeira íngreme que dava acesso à pequena praia. Lá chegados, ela sentou-se numa rocha. Eu sentei-me ao seu lado.Ela ficou ali, contemplativa. Eu resolvi quebrar o silêncio.-Porque é que me trouxeste para aqui?-Porque não me apetecia estar com ninguém… – senti-me menos de nada - …mas não queria vir para aqui sozinha…Fiquei novamente em silêncio.-Porque é que te foste embora naquela noite?A pergunta. E a resposta?Foi a minha vez de ficar em silêncio, a matutar no que dizer. Valia a pena eu desculpar-me?-É complicado para mim…O seu silêncio perante esta resposta era uma afirmação de que eu teria de dizer o que se passou comigo. Continuei.-Naquela altura cheguei a uma conclusão que eu não queria.-Que não querias?-Sim!-E a conclusão foi?...E era chegado o momento.-À conclusão de que estava a gostar de ti e não da Andreia. Afastei-me porque quis ser justo e não me magoar ou acabar por magoar a Andreia.-Gostavas de mim? – Perguntou ela com surpresa.-Parece-te assim tão descabido?Foi ela que caiu no silêncio.-Desde aquele beijo que demos no escritório nunca mais te consegui tirar da cabeça. A Andreia é uma grande mulher. Mas eu pensava era em ti …O silêncio dela continuou. O meu chegou  também, tendo acabado de despejar o que sentia. Esperava pela sua reacção. Um gesto redentor ou castigador. Neste momento para mim tanto fazia.Ela voltou de nova a contemplar a paisagem em silêncio. Encolheu-se devido a uma brisa fria, sentindo um arrepio. Eu tirei o meu blusão e pus-lho pelas costas, num gesto que parecia quase um abraço e ela encostou-se contra mim para se proteger da brisa.-Não fazia ideia... – disse ela tentando ainda racionalizar o que eu lhe havia dito.À medida que o fazia encostava-se mais contra mim, apanhando o calor do meu corpo. Pegou-me na mão e brincou com ela por uns instantes.-Estás com alguém neste momento? – Perguntou-me.-Não.-Porquê?-Pelo mesmo motivo. Ela levantou a cabeça e olhou-me nos olhos. Os seus olhos reflectiram o luar, dando-lhe um ar quase felino. Deixei-me ficar absolutamente sossegado.Ela depositou um suave beijo nos meus lábios. Abracei-a, ela fez o mesmo. O beijo seguinte foi completamente carregado de paixão, a mesma que me apertava desde há meses. Foi um beijo longo como só a paz daquele sítio podia permitir, sem tempo, em que as nossas línguas se tocaram e digladiaram. Neste momento nada nem ninguém nos poderia separar. Sentia nela a minha paixão. Se dúvidas restavam em mim acerca do que eu sentia elas dissiparam-se ali.Quando o beijo finalmente acabou, líamos nos olhos um do outro a vontade de repetir, mas contivemo-nos, como se soubéssemos que tínhamos o tempo todo do mundo.Fomos conversando, trocando palavras que fluíam como a paixão. Só ao fim de duas horas nos permitimos a liberdade de nos abandonarmos a outro beijo, brincando como adolescentes.A temperatura descia e acabamos por voltar para o carro onde ficámos curtindo um do outro e um com o outro.A proximidade dos nosso corpos deitados sobre o banco direito do carro completamente reclinado deu-me a ousadia para, enquanto nos beijávamos, passar a mão por baixo da sua camisa e repousa-la sobre o seu seio. Ela respondeu com mais força ao meu beijo. Depois o beijo quebrou-se e ela ficou a olhar para mim ternamente. -Vamos ficar por aqui…Eu retirei a mão com uma tristeza nítida.-Não me interpretes mal. – Disse – Eu neste momento queria muito fazer amor contigo…Eu olhei para ela com um ar de aceitação.-…mas não é o momento, e há complicações.Eu assenti.Ficamos ainda na companhia um do outro por mais uma hora até ao regresso. Antes de sair do carro despediu-se de mim com um beijo apaixonado. Acompanhei-a com o olhar enquanto ela se dirigia a casa. Não entrou sem antes me brindar com um olhar doce e um beijo soprado. Segui para casa com um sentimento de paz que não me lembrava nunca ter sentido antes.Mas, como é claro, havia o Francisco…
… e a Raquel…
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Published on November 05, 2015 04:08

Os dias mais estranhos - 22. Sexta-Feira

Na manhã seguinte, e pela primeira vez em meses estou no café à hora a que habitualmente o Mercedes do Francisco a deixa à esquina. Este dia não é excepção. Vejo-a quando olho pela montra enquanto ela sai do carro. É aos meus olhos uma mulher absolutamente intemporal. Temia o que sentiria quando a voltasse a ver. Ela entrou, viu-me e dirigiu-se à minha mesa. Levantei-me para a receber e cumprimentar. -Mas estamos tão formais hoje… - Disse ela.Não respondi. Estava sem palavras.O empregado veio solícito, como sempre o fazia quando ela chegava. Ela pediu e ele afastou-se com o pedido renitentemente. Não trocamos palavras além das que já tinha sido ditas. Acabamos o pequeno-almoço e saímos, seguindo para o edifício onde trabalhávamos, apenas desfrutando a companhia. Ao chegarmos ela voltou-se para mim.-É sexta-feira e vou estar sozinha. Não queres ir beber um café comigo, mais logo?-Tá bem, por mim tudo bem.-Liga-me quando chegares a minha casa.-Ok.
Ela seguiu e o dia tornou-se, a partir daquele momento, uma sucessão interminável de segundos que demorariam uma vida a ser contados. O tempo abrandou…
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Published on November 05, 2015 00:24

November 4, 2015

Um dia um engenheiro morreu!


Acontece!
Deu consigo de repente junto ao São Pedro, mesmo em frente aos portões dourados. O São Pedro consultou a lista e voltou-se para ele:
-Páh, tás no sítio errado! Tens de ir para o inferno!
E ele, coitado, lá foi!
Assim que lá chegou começou a ficar bastante descontente com as condições! Primeiro desenhou um ar condicionado, mas depois foi avançando, fez escadas rolantes entre os níveis, fez canalizações para as casas de banho…
…não tardou e era o gajo mais popular de lá do sítio!

Uns tempos depois Deus ligou ao Diabo.
-Atão, páh, cumé que tão as cenas por aí?
E responde o Diabo:
-Olha, para te ser franco, tão memo altamente. Desde que veio para cá um engenheiro temos ar condicionado, escadas rolantes, canalizações a funcionar…
-Tu tens aí um engenheiro? Caneco, isso foi engano! Manda o gaijo cá pra cima!
-Mas é que nem penses. O gajo dá um jeitão do caneco!
-Pá manda-me o gaijo!
-Não!
-Pá, se não o mandas, eu processo-te.
-Há, há! E onde é que vais arranjar um advogado? Heim?

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Published on November 04, 2015 08:28

Os dias mais estranhos - 21. Raquel

Batem à porta da minha sala, no trabalho. Levantei-me e abri a porta. À minha frente uma miúda com sete ou oito anos, morena, com um sorriso tímido e desdentado, e um livro nas mãos demasiado grande para o seu tamanho.-Sim?-A minha mãe pergunta se podes passar as fotografias do livro para o computador?... – Disparou timidamente.O seu ar divertiu-me.-E quem é a tua mãe? - Atrevi-me a perguntar. O meu ar deve-lhe ter parecido de gozo, pelo que o seu sorriso se desvaneceu um pouco e me tenha respondido com um ar ainda mais tímido.-É a “Ni”.Nunca tinha ouvido falar na “Ni” a ninguém por aqui. Não que me lembrasse pelo menos. -Posso ver as fotos?Ela passou-me o livro onde algumas páginas estavam marcadas. Era um Atlas e as fotografias eram de paisagens diversas.-Tá bem. -Disse eu virando-me em direcção ao meu scanner. Naquela altura um scanner era uma coisa que era raro alguém ter. Daí ser frequente que colegas de trabalho recorressem ao meu. Ela entrou atrás de mim e sentou-se numa cadeira da secretária em frente que estava naquela altura desocupada. Eu scannerizeias fotos, acompanhado pelo seu silêncio tímido, e depois gravei tudo em disquete, entregando-lhe em seguida as mesmas junto com o livro.Ela pegou-lhes dirigindo-se à porta e murmurando um “Obrigado” quase inaudível. Depois voltou atrás de repente.-A minha mãe disse para lhe ligares.-A “Ni”?-Sim.-Tá bem… eu ligo-lhe.E ela arrancou.Dei alguns segundos a mim próprio tentando lembrar-me de alguém chamado “Ni”, e depois, não tendo uma conclusão favorável, voltei a mergulhar no trabalho.O dia passou-se.À noite, depois do jantar encostei-me, como era por vezes meu costume, na minha cama a ver um filme. A meio do filme o telemóvel tocou. No visor um nome que me fez evocar as mil desculpas que arranjei mas que nunca tinha dito. “MONICA”. Em letras capitais.Atendi.-Oi!-Olá. – disse uma voz bem disposta – Não chegaste a ligar…-e eu estava para te ligar?-Eu disse-lhe para te dizer… -A quem?-À Raquel.-Quem é a Raquel?-A miúda que foi lá pedir-te para scannerizaresumas fotos. Ela não te disse para me ligares?-Tu é que és a “Ni”? – Estava estupefacto com a conclusão a que chegara. Ela riu-se.-Pois, tou a ver a confusão. Isso é o que ela me costuma chamar. Mas bem… Era só para te agradecer.-Não precisavas. Eu fiz sem saber quem era a “Ni”. Achei piada à miúda.-Obrigada na mesma.-Tudo bem…Fez-se um pequeno silêncio. Como se ela procurasse as palavras. Depois disse simplesmente:-Gostei de te ouvir.-Eu também.-Devíamos conversar…-Quando quiseres.Mais um pequeno silêncio.-Tchau.-Tchau, até amanhã.E desligamos.
A partir daquele momento ela invadiu-me a noite. Acabei de ver o filme sem lhe prestar atenção. O que iria dizer-lhe numa conversa? A esta distância de tempo talvez o melhor fosse a verdade. Quem sabe, talvez ela entendesse…
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Published on November 04, 2015 08:11

Os dias mais estranhos - 20. Deusa (divindade, diva, beldade, deia)

Houve alguns motivos para deixar o meu apartamento e voltar para casa materna. Embora a coisa que eu mais prezasse fosse a minha independência, o facto de eu saber que ela não a comprometeria e que se encontrava e sentia algo sozinha pesou de sobremaneira na minha decisão. Claro que houve também considerações monetárias que forçaram esta situação, mas a decisão não me desagradou. O facto de o estúdio onde ensaiava a minha banda se encontrar num barracão anexo à moradia que ela tinha na Quinta do Conde e a deslocação quase diária para lá começava a tornar-se penosa, sendo que as visitas esporádicas que fazia a casa já não justificavam a sua manutenção.Além disso, fiquei também com tempo livre para começar a dar mais atenção à minha música, sendo que foi por esta altura que comecei a fazer algumas composições originais.Por vezes saía à noite com a Magdalena para bebermos um copo e uma boa conversa. Nunca passamos daí. Não o queríamos. Tínhamos o que tínhamos, a amizade um do outro, e chegava.A Magdalena começou a tornar-se “casamenteira” convidando-me para tudo quanto é jantar ou festa para me puder apresentar às amigas, convite que sempre recusei. Na verdade, estava ocupado em muitas ocasiões sendo que noutras não contrariava a minha vontade de estar só, como direito que me assistia.A minha vida tinha dado uma volta, mas nos meus pensamentos a Mónica continuava viva, agora posta num pedestal, intocável como uma Deusa grega.
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Published on November 04, 2015 05:41