Os dias mais estranhos - 21. Raquel
Batem à porta da minha sala, no trabalho. Levantei-me e abri a porta. À minha frente uma miúda com sete ou oito anos, morena, com um sorriso tímido e desdentado, e um livro nas mãos demasiado grande para o seu tamanho.-Sim?-A minha mãe pergunta se podes passar as fotografias do livro para o computador?... – Disparou timidamente.O seu ar divertiu-me.-E quem é a tua mãe? - Atrevi-me a perguntar. O meu ar deve-lhe ter parecido de gozo, pelo que o seu sorriso se desvaneceu um pouco e me tenha respondido com um ar ainda mais tímido.-É a “Ni”.Nunca tinha ouvido falar na “Ni” a ninguém por aqui. Não que me lembrasse pelo menos. -Posso ver as fotos?Ela passou-me o livro onde algumas páginas estavam marcadas. Era um Atlas e as fotografias eram de paisagens diversas.-Tá bem. -Disse eu virando-me em direcção ao meu scanner. Naquela altura um scanner era uma coisa que era raro alguém ter. Daí ser frequente que colegas de trabalho recorressem ao meu. Ela entrou atrás de mim e sentou-se numa cadeira da secretária em frente que estava naquela altura desocupada. Eu scannerizeias fotos, acompanhado pelo seu silêncio tímido, e depois gravei tudo em disquete, entregando-lhe em seguida as mesmas junto com o livro.Ela pegou-lhes dirigindo-se à porta e murmurando um “Obrigado” quase inaudível. Depois voltou atrás de repente.-A minha mãe disse para lhe ligares.-A “Ni”?-Sim.-Tá bem… eu ligo-lhe.E ela arrancou.Dei alguns segundos a mim próprio tentando lembrar-me de alguém chamado “Ni”, e depois, não tendo uma conclusão favorável, voltei a mergulhar no trabalho.O dia passou-se.À noite, depois do jantar encostei-me, como era por vezes meu costume, na minha cama a ver um filme. A meio do filme o telemóvel tocou. No visor um nome que me fez evocar as mil desculpas que arranjei mas que nunca tinha dito. “MONICA”. Em letras capitais.Atendi.-Oi!-Olá. – disse uma voz bem disposta – Não chegaste a ligar…-e eu estava para te ligar?-Eu disse-lhe para te dizer… -A quem?-À Raquel.-Quem é a Raquel?-A miúda que foi lá pedir-te para scannerizaresumas fotos. Ela não te disse para me ligares?-Tu é que és a “Ni”? – Estava estupefacto com a conclusão a que chegara. Ela riu-se.-Pois, tou a ver a confusão. Isso é o que ela me costuma chamar. Mas bem… Era só para te agradecer.-Não precisavas. Eu fiz sem saber quem era a “Ni”. Achei piada à miúda.-Obrigada na mesma.-Tudo bem…Fez-se um pequeno silêncio. Como se ela procurasse as palavras. Depois disse simplesmente:-Gostei de te ouvir.-Eu também.-Devíamos conversar…-Quando quiseres.Mais um pequeno silêncio.-Tchau.-Tchau, até amanhã.E desligamos.
A partir daquele momento ela invadiu-me a noite. Acabei de ver o filme sem lhe prestar atenção. O que iria dizer-lhe numa conversa? A esta distância de tempo talvez o melhor fosse a verdade. Quem sabe, talvez ela entendesse…
A partir daquele momento ela invadiu-me a noite. Acabei de ver o filme sem lhe prestar atenção. O que iria dizer-lhe numa conversa? A esta distância de tempo talvez o melhor fosse a verdade. Quem sabe, talvez ela entendesse…
Published on November 04, 2015 08:11
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