Jaime Lerner's Blog, page 8
May 30, 2024
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Entulhos

O Governados do RS, estado meridional da Casa do Baralho, acordou de sobressalto. Deus, ou alguma outra entidade abstrata, na forma de um imenso corpo de água, inundou seu gabinete e avisou que estava muito descontente com o ser humano. Era um absurdo como tratavam aquela terra abençoada, terra do leite e do melo. Ordenou que usasse o tesouro do estado para construir uma arca e escolhesse um par de cada espécie para nela embarcar, estes, após o dilúvio, povoariam o novo estado a ser reconstruído com dinheiro do Governo Federal.
O governador ficou duplamente atordoado: não era a primeira vez que cochilava em pleno horário de expediente na mesa de seu gabinete. Mas era o primeiro cochilo que atingiu a profundidade de um sonho, chegou a babar em cima da agenda. E o sonho, meu Deus, parecia muito real. Ficou até com medo de comentá-lo com seu analista.
Depois ficou pensando em quem escolheria de cada espécie. Adorava fazer listas. Deveria ter um casal de direita e outro de esquerda, um casal do centrão e dois do seu próprio partido, o partido em cima do muro. Haveria que ter alguém das empreiteiras, que seria muito importante na reconstrução, e alguém do Agro para refazer o plantio. Matutou se botava na lista um casal das forças armadas. Eles poderiam ser uteis na contenção do pessoal da classe serviçal, mas também adoravam dar uns golpes. E para a classe serviçal? Não tinha a mínima ideia quem escolher. Ah sim, não podia esquecer do pessoal da Comunicação, os especialistas em redes sociais.
Nesse passatempo ficou até ser lembrado pela secretaria que tinha hora no barbeiro. Naquela altura já estava mais calmo. Estamos no século XXI, refletiu, dilúvio é coisa dos tempos bíblicos. Pelo sim pelo não, encomendou de seu figurinista um par de trajes de capitão e dois modelos de coletes salva-vidas.
Saiu do barbeiro no meio da tarde, que parecia noite. Nuvens negras arrepiaram-lhe o cabelo recém cortado. Chamou para seu gabinete o pessoal da defesa civil e o prefeito da capital. Este lhe garantiu que a cidade tinha um sistema robusto de contenção e bombeamento contra as enchentes.
A água caiu violenta sobre todo o estado por seis dias seguidos, transformado em um mar barrento a terra do leite e do melo. A arca não havia sido construída, o sistema robusto não conteve a enchente. Faltou, nesses últimos anos, manutenção. O caos tomou conta e o governador, na sua primeira declaração, se acusou: não é hora de procurar culpados, disse, é hora de salvar vidas. Ao menos os modelitos de colete ficaram muito bem em sua figura esguia.
O prefeito não fez por menos, revelando-se um verdadeiro líder no momento de crise. Após a primeira enchente, alertou que a cidade iria “colapsar”, recomendando que quem tivesse casa na praia, se mandasse pro litoral. As poucas vias que não foram obstruídas pelas águas ficaram engarrafas pela debandada geral. Orientou, quando a água deu uma baixada, que os moradores botassem nas ruas seus móveis e utensílios estragados para a prefeitura recolher. Mas não recolheu. Conseguiu assim a façanha de alagar, nos parcos dias de sol, ruas que não haviam sido alagadas pela enchente, devido aos bueiros entupidos pelos entulhos não recolhidos.
Os dois líderes, que sempre falavam em enxugar o estado, aprenderam na pele o sentido literal do termo, e a consequência de sua política de “enxugamento”. O governador tirou ainda mais uma lição do sonho premonitório: mandar a conta da reconstrução para o Governo Federal.
Aprenderão os governantes e os governados, a verdadeira lição dessa terrível tragédia? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
May 23, 2024
Veludo Azul

Filme de David Lynch, EUA, 1986
Fascinante e bizarro, o filme que alçou David Lynch para a galeria de diretores cult, segue denso e perturbador, quase quarente anos após seu lançamento. Eu, inclusive, gostei dele mais agora ao revê-lo.
A obra é praticamente um ensaio filosófico/artístico sobre o bem e o mal, ou a inocência e a perversão. Inicia com uma estética de cartão postal: cores fortes beirando o artificial banham o céu, as casas e pátios e da pacata cidade de Lumbertown. Um homem rega seu gramado com uma mangueira, em vias de sofrer um acidente dos mais estranhos. Depois de visitá-lo no hospital, seu filho Jeffrey, passa por um descampado e encontra uma orelha humana no chão.
Essa orelha é o ponto de partida para a trama que revela uma cidade não tão pacata, tendo como pivô a misteriosa cantora Dorothy (primeiro papel de Isabela Rossellini), uma ponte entre o mundo inocente dos jovens Jeffrey e Sandy e do universo de sadismo e violência de Frank (Denis Hopper).
Cabe lembrar que em 1973, ocorreu o sequestro do neto do milionário Paul Getty, no qual a orelha do refém foi enviada para a família, como argumento final para convencê-los a pagar o resgate, cinco meses após o sequestro. A orelha no terreno baldio em Veludo Azul, além do surrealismo da imagem, evoca também a ameaça de um crime cruel.
Quando Jeffrey revela a Sandy que precisa investigar o mistério da orelha humana e para isso quer entrar sorrateiramente no apartamento da cantora, Sandy lhe diz: não sei se você é um detetive ou um tarado. E essa é uma frase chave do filme, que trata da dualidade que habita cada um de nós, como se fossemos nós também a cidadezinha de Lumbertown.
A música ganha papel importante nessa viagem Lynchiana entre inocência e perversão, principalmente na relação de Frank, o vilão mor, com duas canções românticas: Blue Velvet de Bobby Winton e In Dreams de Roy Orbinson. O confronto entre o idílico, o onírico e o “submundo” se manifesta também no sentido das letras frente ao contexto do filme.
O final do filme, ou a “solução” da trama, traz um forte tom satírico, lembrando as cores do cartão postal do mundo idílico apresentadas no início do filme.
Você pode ver (ou rever) esse clássico cult na Amazon Prime ou na Apple TV.
May 16, 2024
A Memória Infinita

Filme de Maite Alberdi, Chile, 2023
Eu pouco sabia sobre A Memória Infinita quando resolvi assistir ao filme. Sabia apenas que era um documentário chileno com uma abordagem diferenciada. Esse pouco conhecimento foi fundamental para que o filme me pagasse de surpresa, revelando-se camada por camada com seus encantos. Por isso sugiro que você interrompa aqui a leitura, veja o filme e depois volte ao post. Você pode vê-lo na Paramount Plus, via Amazon Prime ou Apple TV.
Maite Alberdi, que emplacou dois documentários chilenos à nomeação ao Oscar, achou que iria fazer um filme sobre o Alzheimer quando conheceu o casal Augusto Gongóra e Paulina Urrutia. Augusto já tinha a doença e Paulina o levava ao trabalho dela, os ensaios da peça de teatro em que era atriz. Maite achou isso interessante e os abordou com a proposta de acompanhar a rotina do casal no enfrentamento à doença. Paulina foi reticente, por todos os motivos compreensíveis. Quem a convenceu foi justamente Augusto, que não se importou em expor sua intimidade e fragilidade, talvez percebendo a relevância que a obra iria atingir.
A diretora não imaginava que o caso individual de Augusto iria levar seu filme por uma reflexão sobre a memória de uma nação inteira, e como o apagar dessa memória aniquila a identidade, seja de uma pessoa ou de um povo, deixando marcas profundas. Ela acabou descobrindo este caminho no decorrer das filmagens, ao conhecer melhor a história de Augusto, seu trabalho de repórter durante a ditadura de Pinochet.
Tampouco ela podia imaginar que uma pandemia se aproximava, o que iria impossibilitar o contato da equipe de filmagem com Augusto e Paulina. Como naquela altura já havia sido criada uma relação de confiança entre ela e o casal, a solução foi deixar um equipamento com Paulina, que documentou a rotina do casal isolado enquanto a doença progredia, resultando num material de proximidade e intimidade assombrosas. Paulina então, além de cuidadora e companheira tornou-se co-realizadora do filme, ao menos durante esse longo período de isolamento.
Com a pandemia, o isolamento imposto ao casal causou o agravamento da doença, com a sensação de abandono de Augusto por não poder ver mais seus amigos e filhos. Um sofrimento que Paulina teve que aguentar no peito, o que nem sempre ela conseguia. Todos esses elementos e o fato de os dois serem pessoas muito especiais resultam na exposição de uma história de amor que parece coisa de cinema, mas é a vida real, que conjuga momentos de desesperada agonia e profunda alegria.
Várias vezes no decorrer do filme me lembrei do francês Meu Pai. São obras muito diferentes que abordam o Alzheimer de forma sensível e poética, como eu antes nunca tinha visto. Uma delas é ficção, com roteiro e atores de primeira, o outro é um documentário com personagens sensacionais, que levou sua diretora por caminhos inesperados, como muitas vezes acontece em um documentário. O importante nesses casos é saber se deixar levar pelo material, abandonando, às vezes, ideias pré-concebidas.
Cabe destacar o trabalho da montadora, Carolina Siraqyan, que criou essa estrutura intricada de revelação por camadas, articulando de forma magistral a narrativa entre filmes de arquivo e o material original, a história pregressa e o momento atual. Essa edição primorosa, ao lado dos incríveis personagens é o que torna o filme genial.
Augusto faleceu em 2023, aos 70 anos, quatro meses após a estreia de A Memória Infinita.
O filme foi premiado com o Goya de melhor filme Ibero Americano, O Prêmio de Júri do festival de Sundance, Prêmio Platino de Melhor Documentário Latino Americano e ficou entre os cinco finalistas do Oscar para Melhor Documentário.
May 9, 2024
O Arquipélago

Um gênero que fez durante uma época muito sucesso e segue, de vez em quando, tendo um revival é o filme de catástrofe. Poseidon (1972, 2006), Titanic (1912,1958, 1997), Inferno na Torre (1974, 2007), A Sociedade da Neve (2007, 2023) são apenas alguns exemplos de dramas em que um grupo de seres humanos enfrentam as forças da natureza num jogo de gato e rato (o gato sendo a força da natureza). Alguns deles são baseados em fatos reais e os mais recentes incluem uma reflexão sobre o aquecimento global e suas consequências. Dois exemplos desses são as séries: Rojst 97 e A inundação do Milênio que retratam as fortes chuvas e as enormes enchentes no leste da Europa em 1997.
Agora é a vez de nós, gaúchos, irmos dormir em uma noite de chuva e acordarmos num pesadelo ameaçador. Praticamente o estado inteiro foi sacudido por uma semana de chuvas torrenciais e ininterruptas que resultaram em inundações sem precedentes atingindo cerca de quatrocentos municípios e deixando boa parte da capital abaixo d’água, bairros inteiros sem luz e virtualmente todas as moradias sem água chegando em suas caixas.

No momento em que escrevo há mais de cem mortos, centenas de desaparecidos e dezenas de milhares de pessoas que tiveram que abandonar suas casas, muitas perderam tudo que tinham. Boa parte dos caminhos até essas localidades estão bloqueados, há falta de mantimentos nos supermercados. O estado virou um conjunto de municípios ilhados, um arquipélago. E ainda vem mais chuva por aqui.
Em várias das obras acima mencionadas há um papel para os políticos ou líderes, aqueles que devem zelar pela população e encaminhar o enfretamento da crise. Raramente esse papel é o de heróis. Para não fugir ao roteiro, o governador do estado e o prefeito da capital, que aparecem figurinados com colete de equipe de resgate, como se fossem pessoalmente ao coração das enchentes salvar no muque os flagelados, se pronunciam falando em mudar o paradigma, proclamam que essa calamidade histórica deve ser tratada com excepcionalidade.
Mas essa tragédia foi mais do que anunciada, principalmente com as chuvas fortes no final do ano passado. E quando você os ouve falar em mudança de paradigma, imagina que estão falando que a partir dessa tragédia não dá mais para fechar os olhos para a questão climática, não dá mais para “flexibilizar” na política ambiental. Até descobrir que a “mudança” que eles se referem é na forma e rapidez de receber o dinheiro de auxílio do governo federal. O paradigma que deve mudar é a burocracia da transferência e o controle dos gastos, ou seja, o nível de fiscalização.
O governador fala em Plano Marshal para reconstruir o estado, mas não menciona que essa reconstrução deve ter em mente, em primeiro lugar, a preocupação ambiental. Fala na excepcionalidade de… contratação. Dá para imaginar as empreiteiras lambendo os beiços.
O presidente veio ao estado com uma grande comitiva de ministros e autoridades do legislativo e judiciário. Maravilhoso. Só não dá para entender porque todos falaram, nessa ocasião, como se fosse um palanque, dizendo nada de importante, mas Marina da Silva, a veterana especialista na questão ambiental, não teve a palavra. Era ela, de toda a comitiva presidencial quem deveria falar.

Enquanto isso, torna a chover, após uma trégua de dois dias, e a calamidade segue espalhando-se por localidades ainda não atingidas. Vivemos esses dias presos no filme de desastre, e entendendo, desesperados, que nada de fundamental irá mudar. As crises se sucederão, e o planeta se tornará um lugar mais e mais hostil para nós, graças à mentalidade negacionista, terraplanista, do lucro predador.
O que aquece um pouco o coração no meio desse caos é o empenho das pessoas, do povo, para colaborar, para ajudar no salvamento e abrigo de quem mais precisa.
May 2, 2024
4,3,2,1

Livro de Paul Auster, EUA, 2017
O que rege a nossa vida, o quanto o poder da decisão sobre ela é nosso, é da sorte, ou do acaso? O quanto da nossa personalidade é forjada pelas circunstâncias, o quanto trazemos dela em nosso DNA? Somos frutos do que nos acontece na vida, ou nossa vida é fruto de quem somos?
Todas essas questões que ocupavam Paul Auster desde seus primeiros livros, tomam a forma da musa da sua grande obra, 4,3,2,1, publicada após sete anos de silêncio editorial. O título já sugere que há algo de diferente nesse romance do escritor nova iorquino. Diferença que reside na ideia original: contar a história de um personagem, porém com inúmeras variantes de vida. Essa ideia exige também uma estrutura diferente. E uma escrita envolvente que nos faça esquecer a premissa, para nos surpreender na primeira “virada”.
Auster se propõe um processo de criação diferente, em que amplia consideravelmente as liberdades de escolha do autor em relação ao seu protagonista. E para que esse personagem não se perca, no meio de tanta variante, e deixe de ser um personagem para tornar-se quatro, ele usa muito de si, pinta um autorretrato, não para produzir uma biografia, mas para ter um modelo, uma bússola sólida neste processo criativo.
Archie Ferguson nasceu em 1947, o ano de nascimento do autor, mas o romance começa muitos anos antes, com a chegada de seu avô aos Estados Unidos e a hilária história que originou seu nome. O romance acompanha essa pré-história do protagonista e depois, pouco mais de duas décadas de sua vida: infância, estudos, as escolhas profissionais e as escolhas amorosas. E de quebra acompanha essa época rica e tumultuada dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a Guerra do Vietnam, a luta contra o racismo, os assassinatos de lideranças importantes, as revoltas nos bairros negros e nas universidades.
Os primeiros capítulos seguem à risca a condição de escrita envolvente que surpreende o leitor com a primeira virada, no estilo vibrante do autor de Trilogia de Nova Iorque, Invisível e Desvarios no Brooklyn. No entanto, na medida que avança torna-se, em vários momentos, repetitivo e prolixo demais, o que resulta num livro de mais de oitocentas páginas. Ao final, Auster volta ao seu melhor na amarração da(s) história(s), o que compensa pelo longo caminho percorrido.
4,3,2,1 que começa praticamente com uma anedota sobre um imigrante judeu, é uma grandiosa declaração à arte da escrita, à criação de modo geral. E ao mesmo tempo um mergulho nostálgico numa época de nossas vidas em que tudo é intenso, tudo é novo, instigante e às vezes ameaçador, como o próprio destino.
Quis o destino, ou o acaso, que no exato momento em que escrevo a resenha, recebo a notícia do falecimento de Auster, aos 77 anos, vítima de um câncer no pulmão. Deixa um legado sensacional de obras, as favoritas entre as que li estão citadas acima.
4,3,2,1 foi finalista do prestigioso Man Booker Prize de 2017 e foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Se você quer saber mais sobre o autor, 4,3,2,1, embora não seja uma autobiografia, pode ser uma ótima fonte.
April 25, 2024
A Conferência

Filme de Matti Geschonneck, Alemanha, 2022
Muitos filmes são baseados em livros – romances ou não ficção – alguns em peças de teatro. É a primeira vez que vejo um filme baseado em uma ata, ou no protocolo de uma reunião. Não se pode pensar em peça inspiratória mais burocrática ou menos dramática.
No entanto, depende da reunião.
E, principalmente, da forma como ela é adaptada para a tela.
No gelado mês de janeiro de 1942, várias autoridades do regime nazista reuniram-se em Wannsee para tratar de uma solução definitiva para a “questão judaica”. Wannsee é um lago no subúrbio de Berlim, onde a SS instaurou sua sede campestre, um cenário idílico para a mais macabra das reuniões, na qual se alinhavou o mecanismo de extermínio dos judeus da Europa.
O filme só trata dessa reunião, não sai da mansão (confiscada em 1941 pelos nazistas), não usa música ou outros elementos dramáticos não diegéticos e, no entanto, deixa o espectador grudado na tela. O roteiro é uma das peças chave nesse sucesso, a outra é o trabalho de atores, principalmente o de Philipp Hochmair na pele de Reinhard Heindrich. A câmera nos conduz pelos sinistros corredores do poder da Alemanha nazista e pela “ideologia” que sustentava esse poder. Ali a banalidade do mal, termo que a filósofa Hannah Ardent cunhou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, se revela em plenitude no grande Écran.
Não há como não comparar esse filme Alemão, à produção norte americana Zona de Interesse, que faturou o Oscar de melhor filme Internacional, neste ano. Os dois acontecem em locais icônicos e foram filmados nas próprias locações; os dois evitam mostrar as atrocidades de forma explícita (A Conferência é mais radical nesse conceito); e ambos focam nos algozes, ou em tentar expor a mentalidade dos algozes. A Conferência, ao meu ver, atinge esse objetivo, com maior sucesso.
Hoje, na mansão que abrigou o histórico encontro, existe o Museu da Conferência de Wannsee que visitei em 1994. E que tem uma exposição arrepiante, no tom aparentemente seco do filme, em contraste com a vista ao redor.
A Conferência pode ser visto na Amazon Prime e na Google Play, Filmes e TV.
April 12, 2024
RIPLEY

Série de Steven Zaillian, EUA, 2024
Há muito tempo não via uma série de encher os olhos como Ripley. Talvez desde Carnivale de 2005. Seu criador, roteirista e diretor é mais conhecido (e premiado) por seus trabalhos com roteiro. Foi oscarizado pelo roteiro adaptado de A Lista de Schindler, e assina o roteiro de várias outras obras de peso.
No entanto, Ripley não tem cara de obra de roteirista. Desde o primeiro fotograma fica claro que a trama é secundária e o visual é o carro chefe. Zaillian e o diretor de fotografia, Robert Elswit, trabalham a série toda em preto e branco (com a exceção de um plano em que o detalhe da pegada de um gato em uma mancha de sangue aparece colorida, homenagem clara à A Lista de Schindler). É um preto e branco de alto contraste, com luzes bem marcadas, sombras densas e proeminentes.
O primoroso trabalho de luz remete ao cinema noir, mas também tem muito a ver com o pintor Caravaggio (1571-1610), pelo qual o protagonista cria uma verdadeira obsessão. Além da iluminação, a composição de cada enquadramento é magistral. Ângulos de câmera radicais e objetos em primeiro plano que muitas vezes emolduram os sujeitos são amplamente utilizados. E texturas das mais variadas como grades, escadarias etc., desenham perspectivas interessantes.

Com todos esses elementos a série cria uma narrativa visual espetacular em todos os sentidos. O quadro acima, por exemplo, fala muito sobre o protagonista e seu “multipersonalismo” camaleônico.
Se a trama é secundária, a composição dos personagens, não é. E o trabalho de atores, repleto de silêncios significativos e diálogos precisos dá as mãos ao impressionante impacto visual. O arco do protagonista é o que mais impressiona nessa construção, não tanto pelas mudanças no personagem, mas pela mudança na aversão/empatia do espectador por ele. A partir de certo momento, a vontade de que pague pelos seus crimes torna-se uma torcida para que consiga se safar.
O elenco que forma o triângulo de protagonistas tem Andrew Scott como Ripley, Johnny Flynn como Dickie e Dakota Fanning como Marge. John Malkovich faz uma participação especial no último episódio, ele que já foi Ripley no filme O Retorno do Talentoso Ripley de 2002.
A série é adaptação do romance O Talentoso Ripley (1955) de Patricia Highsmith que gerou outros 4 livros com o mesmo personagem.
A série, bem como o filme O Talentoso Ripley (1999) de Anthony Minghella, estão disponíveis na Netflix. É interessante assistir as duas obras em sequencia (comece pela série) para ver como é possível criar adaptações absolutamente diferentes da mesma história.
Veja abaixo o trailer (dublado, infelizmente).
March 28, 2024
O Problema dos Três Corpos

Livro de Cixin Liu, China, 2008 + Série, criadores D & D, EUA, 2024
Tão logo publicado no Brasil, o livro de Cixin Liu me chamou a atenção de cara, pela capa e pelo nome. Não havia ouvido nada sobre o romance nem sobre o autor, mas aquela capa, incluído o título, transmitia algo irresistível.
O romance inicia com narrativa impactante centrada no auge da revolução cultural na China, mostrando o quanto a política, aliada à ignorância, destroçou a comunidade científica.
Após uma elipse no tempo vai revelando personagens interessantes e fragmentos de uma trama que oculta mais do que revela, tecendo um suspense denso. Junta a isso um cabedal de ideias muito interessantes sobre a aparente ordem do universo que pode ser apenas uma ilusão de ótica e como, sobre essa ilusão, é construída toda nossa história de civilização.
A partir da metade do livro o estilo, a qualidade da trama e dos personagens cai rapidamente e o texto lembra a literatura pulp norte-americana sobre ataques de civilizações alienígenas mais avançadas e maléficas.
A sociedade do planeta trisolar, tão bem descrita através do jogo na primeira metade do livro, perde em densidade. O protagonismo se transfere de uma cientista obstinada para um policial grosseiro (e também obstinado). É difícil entender como uma narrativa inicial arrebatadora se perde tão radicalmente no meio do caminho. Em outras palavras, é um livro bipolar sobre um planeta trisolar.
Independente da minha opinião, o romance de ficção científica virou uma trilogia, rompeu as barreiras do gênero e da distância entre oriente e ocidente e tornou-se cult após a tradução para o inglês. Na China ele já havia estourado, pouco depois de sua publicação. O presidente Obama elogiou o livro e isso impulsionou-o ainda mais.
A Netflix comprou então os direitos de adaptação para uma série e contratou os showrunners de The Games of Thrones David Benioff e D.B Weiss, conhecidos como a dupla D &D. Vale mencionar que Benioff foi o roteirista também do inteligentíssimo, A Última Noite de Spike Lee. A eles juntou-se o roteirista Alexander Woo.
A Netflix investiu alto, não apenas na produção, mas na divulgação pré-lançamento, gerando enorme expectativa. A primeira temporada, com 8 episódios, acabou de estrear. A série inicia fiel ao livro, não apenas na trama mas na qualidade narrativa e da construção dos personagens. O primeiro episódio é absolutamente cativante e também o melhor. O que significa, que assim como no livro, a qualidade narrativa cai, mas por motivos diferentes.
O conflito principal é exposto bem cedo, no segundo ou terceiro episódio. O mistério da morte de cientistas sai de cena após a sua exposição e dá lugar a como lidar com a ameaça iminente (o iminente, no caso, significa daqui a uns 400 anos). O problema dos três corpos do planeta trisolar não é tão bem explorado como no romance, e a partir da metade, a série empurra a ficção científica para o pano de fundo e vira uma espécie de Friends. Ou seja, foca na relação entre cinco amigos, todos cientistas, que acabam se envolvendo na luta contra a ameaça iminente.

Como em Friends, os personagens são queridos, geram empatia, assim como os relacionamentos que os envolvem, mas a série perde em profundidade. Inclusive os elementos visuais seguem essa pegada: a direção de fotografia e os efeitos especiais se apresentam muito interessantes no início da série, e vão perdendo a originalidade do meio para a frente. A direção de arte se mantém impecável ao longo de toda a temporada.
Em resumo, a obra não corresponde às altas expectativas criadas em seu entorno, mas igual, é uma série boa de assistir que promove, ao lado de elementos de entretenimento, ideias interessantes e algumas reflexões.
Uma curiosidade: Obama foi convidado para uma participação especial na série, mas recusou. Sua resposta: “Caso haja uma verdadeira invasão alienígena, prefiro resguardar a minha participação para essa crise.”
Os oito episódios já estão disponíveis na Netflix. Caso queria dar uma olhada no livro, clique abaixo.
March 21, 2024
Rojst Milênio

Série, criação de Jan Holoubek – Polônia – 2024 – terceira temporada.
Rojst Milênio é a continuação de Rojst e Rojst 97. As tramas entre as temporadas são independentes, porém interligadas, assim que vale a pena ver as três na sequência para um usufruto melhor. Se você já viu as duas anteriores faz um tempo, é bom rever e depois partir para a terceira temporada. Para ler as resenhas sobre as duas primeiras temporadas basta clicar no nome delas acima, na primeira linha do parágrafo.
Milênio, assim como as suas precedentes, trabalha com duas linhas de tempo: o passado e o presente (quando as consequências do passado vêm à luz). O passado são os anos pós-guerra, quando a Polônia começa a se recuperar da ocupação nazista e o regime comunista se instala sob os auspícios da União Soviética. O presente, ou o tempo atual, é justamente as últimas semanas de 1999, ou o fim do segundo milênio. A Polônia já deu adeus ao regime comunista (que é o presente em Rojst), já completou o período de transição para o capitalismo (Rojst 97) e começa a entrar na onda nacional negacionista de extrema direita que tomará oficialmente o poder através do PIS (Partido Lei e Justiça) em 2015. Entretanto, pouco parece ter mudado na aldeia ao lado do pântano que segue chafurdando nas sombras do passado, gênese dos crimes do presente.
A sensação que perpassa durante a série toda é justamente essa: as personagens tentam avançar com suas vidas, mas se movimentam numa areia movediça – a herança de um passado que alguns querem ocultar, outros tentam encarar, mas tanto para uns como para outros, ele não larga do pé.
Rojst Milênio segue a mesma toada das temporadas passadas, mas não têm o mesmo impacto, a mesma pegada dramática e originalidade narrativa. O roteiro segue competente, as tramas e mistérios são bem conduzidos, mas aquele clima de terror sombrio que encobre crimes impronunciáveis nas primeiras temporadas perde muita a força, assim como o jornalista Witek, perde o seu protagonismo. E quando jornalistas cedem protagonismo para a polícia, a obra perde em profundidade, torna-se mais uma série policial, justamente quando o tema do negacionismo, da alteração da narrativa pelo poder oficial, sobe ao palco.
Ainda assim, quem viu e gostou das duas primeiras temporadas, não vai deixar de assistir a terceira, e curtir seus bons momentos. Rojst Milênio, assim como as outras temporadas, pode ser vista na Netflix.
March 14, 2024
Casa de Baralho, episódio de hoje: Chinelos

O naipe mais forte na Casa do Baralho é o Paus, ou melhor, o cara de paus. É assim desde que os portugueses descobriram o pau Brasil. O recorde de ultrapassagem dos limites da cara de pau foi batido em recente sessão do Superior Tribunal Militar, que julgou recurso do Caso Guadalupe de 2019.
Em uma tarde de domingo, um carro rumava a um chá de bebê em Guadalupe, no Rio de Janeiro. Eram cinco pessoas no veículo. O motorista, músico de profissão, a esposa, o filho de sete anos, o sogro e uma amiga. Passaram por um veículo do exército que estava em ação de patrulhamento perto da vila militar. O comandante da patrulha achou tratar-se de um carro roubado por traficantes, ou assaltantes, ou coisa parecida. Pelo sim pelo não, atiraram no carro da família e atingiram o motorista. O carro andou mais um pouco e parou na frente de um prédio. As duas mulheres com a criança saíram do banco de trás desesperadas em busca de socorro. Um cidadão que passava no local, catador de latinhas por ocupação, correu para ajudar o motorista ferido. Nesse momento, os militares resolveram metralhar o carro.
No total, duzentos e cinquenta e sete tiros foram disparados. Sessenta e dois projeteis perfuraram o veículo, nove atingiram o motorista que morreu na hora. O catador de latinhas ficou gravemente ferido e faleceu onze dias depois. O sogro também foi ferido, mas sobreviveu.
Os soldados foram julgados em primeira instância do tribunal militar. Foi o primeiro caso na história da Casa do Baralho em que soldados foram condenados pela justiça militar por matar civis. Parecia que a gravidade do crime ultrapassava a cara de paus do corporativismo. Mas então a defesa recorreu ao STM.
O emérito ministro relator, general da aeronáutica, votou pela absolvição dos militares pelo assassinato do músico, e a troca de doloso para culposo no homicídio do catador, recorrendo a um malabarismo retórico que entortaria até a Nadia Comanesci.
Desprezando a perícia, que não encontrou nenhum projetil que não fosse dos militares e nenhum furo de bala na camionete dos soldados, disse que o primeiro tiro atingiu o músico num contexto de confronto dos soldados com traficantes. E que não há certeza de que o músico não morreu desse primeiro tiro, enquanto o carro estava andando. Se ele morreu desse tiro, não há como condenar os militares por assassinar alguém que já estava morto, quando deram a segunda rajada contra o carro parado. Seria um crime impossível, vaticinou o Juiz Militar. E como não há certeza de que tiro morreu a vítima (mais uma vez desprezando a perícia), in dubio, pro réu.
Mas o catador de latinhas estava vivo na segunda rajada. Ali o ilustre general contorcionista recorreu à legítima defesa imaginária, termo que só poderia ser inventado na Casa do Baralho. “É notório que os apelantes estavam sob forte tensão no dia do ocorrido” concordou o ministro com a tese da defesa. O fato de o catador de latinhas estar sem camisa e de chinelos acentuou a ameaça, esclareceu o juiz, e também: “reforçava a tese de que o catador representava uma ameaça imaginária aos apelantes ao se proteger por trás da porta do veículo, o qual possuía insulfilm nos vidros, podendo gerar a conclusão de que tornaria a usar a arma.”
Só tinha um detalhe: o catador estava desarmado. Mas isso os militares não podiam imaginar.
Já é uma tremenda cara de pau soldados serem julgados por crimes contra civis por um tribunal específico da corporação. Mas como até um passado recente os tribunais militares julgavam inclusive civis, ainda dá para dar um desconto. Outro absurdo é o exército fazer papel de polícia, mas essa também é uma tradição secular brasileira. O absurdo que não dá para aceitar é a pena de morte pra quem está de chinelos e sem camisa, ainda mais se ele se esconde atrás de um carro quando é alvejado por uma patrulha. Se o carro tem insulfilm nas janelas, aí danou-se, é um agravante que permite execução sumária.
O relator comutou a pena de 31 anos de prisão do oficial que comandava a patrulha para três anos e meio em regime aberto, e as penas de 28 anos dos outros sete soldados para 3 anos e dois meses em regime aberto. O ministro revisor seguiu o voto do relator. Há ainda 13 ministros a votar.
Seguirá a maioria o voto do contorcionista relator? Quanto tempo permanecerá inquebrável este novo recorde de cara de Paus? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho.