Jaime Lerner's Blog, page 8
June 20, 2024
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Aborto

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
Qual será a próxima bomba da BBB no congresso? A sigla, neste caso não se refere ao Big Brother Brasil e sim à outra grande irmandade do show da reality brasileira, a das bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia. Esta irmandade ganhou tamanho poder e sintonia nas casas legislativas que chega a dar arrepios.
Para exibir sua musculatura sugaram, feito um aspirador, o poder do ministério do meio ambiente no início do governo L. Um soco no estomago do executivo. Depois resolveram legislar pelo Marco Temporal das terras indígenas, em pleno debate do STF sobre a constitucionalidade dessa tese estapafúrdia. Um tapa na cara do Judiciário.
Excitados, tentaram um pulo mais ousado, criando a lei que equipara aborto a homicídio, inclusive nos casos de estupro. Por este PL, a pena da vítima de estupro que praticar o aborto após 22 semanas da gestação será maior do que a do estuprador. Um chute nos rins das meninas, moças e mulheres de todo o país. Uma bomba no aparato de proteção à mulher.
Para demonstrar mais força ainda, conseguiram colocar o projeto em regime de urgência, evitando que seja debatido nas diversas comissões. E então descobriram que o passo foi maior que a perna.
A grita da sociedade, mulheres e homens, foi tão contundente que uma das deputadas coautoras da PL pediu para retirar sua assinatura após “ter lido o texto da proposta com maior atenção”. O Presidente da Câmara decidiu criar uma comissão que irá debater o projeto, o tempo que for necessário. Não que ele se importe normalmente com a opinião pública, mas este é um ano de eleição. E, portanto, tiveram que dar um recuo estratégico.
Para elevar a moral das tropas abatidas, os BBB já planejam a próxima bomba: a PEC da abolição. Uma emenda à constituição que irá abolir aquela ridícula Lei Aurea que aboliu a escravidão. Hoje é sabido que a Princesa Isabel, que promulgou a maldita Lei em 1888, era comunista. Com uma penada despojou os cidadãos de bem do seu bem mais precioso, a força de trabalho escrava. Cem anos depois, após o fim do regime militar, a Constituição Cidadã (quer nome mais comunista do que este?) foi além e ampliou direitos e proteção aos descendentes dos escravizados.
Nada melhor então do que essa PEC para ser um divisor de águas entre o Brasil atual e aquele país de glorioso passado, onde cada sujeito e sujeita sabiam o seu lugar. É um projeto perfeito para as três bancadas: a do Boi vai enriquecer mais ainda, sem correr o risco de seus membros serem autuados pelo uso de trabalho escravo, como vem acontecendo frequentemente; a da Bíblia poderá combater com mais força as práticas de idolatria importadas pelos escravizados de então e presentes até hoje no tecido social brasileiro; a da Bala poderá meter bala à vontade, sem ter que dar satisfação, no escravo fujão, rebelde ou ladrão.
O projeto está afiado, porém mantido em segredo absoluto. Há que se esperar até após a eleição, porque, infelizmente, pobres, negros, indígenas e mulheres, ainda têm direito de voto.
Conseguirá a BBB devolver a nação aos trilhos do passado? Ou o Brasil conseguirá devolvê-los à condição de uma minoria apenas ruidosa? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
June 13, 2024
ERIC

Série, criação de Abi Morgan, EUA, 2024
Abi Morgan é uma roteirista Galesa, britânica até a medula. Ela usou sua vivência em Nova Iorque nos anos 1980 para criar uma série totalmente americana, mas com um olhar aguçado de quem vem de fora. O resultado é uma obra fascinante que se vê em um, no máximo em dois dias. Com um roteiro cheio de aparências que enganam e várias subtramas que se entrosam, alimentam e nutrem-se da trama central, Eric cria um drama familiar que se entrelaça com o drama social e o gênero policial, tudo isso para refletir sobre a verdadeira natureza dos monstros (ou do que é monstruoso) e a ludibriosa ideia de que estes se escondem embaixo da cama. Em outras palavras, para refletir sobre nossos preconceitos.
Nessa trama intricada a direção de arte tem papel importante. Além de reproduzir com maestria o clima da urbe na década de 1980, cria dois cenários chave. Um é o estúdio onde é gravado o programa de televisão infantil – colorido, artificial, com uma textura plástica que lembra o vídeo (TV) daquela época. Outro, o mais impressionante, é o local da “moradia” dos sem teto, nos subterrâneos do metro nova iorquino. Ali a estética extrapola a fidelidade realista para algo que a mim lembrou o inferno de Dante, pelos olhos de um Hyeronimus Bosch.

Entre esses dois campos: o lúdico, colorido e musical e o abrigo dos infernos, a série transita em alta densidade.
Se na composição das situações em que as aparências enganam e dos personagens principais há sensibilidade e criatividade, a série deixa a desejar na composição dos vilões, bastante estereotipados. Os políticos e policiais corruptos e o ricaço sem coração que foi um pai ausente são quase clichês que decepcionam frente a profundidade na elaboração dos demais elementos.
Ainda assim Eric é uma obra que se destaca. Original em muitos aspectos e inteligente na costura dos vários dramas, mantendo um suspense denso desde o primeiro episódio e lidando com temas importantes e cabeludos. Eric pode ser vista na Netflix.
June 5, 2024
Cem Anos sem Kafka

No dia 3 de junho de 1924 o mundo perdeu Franz Kafka. Ou talvez tenha sido o contrário, o mundo ganhou Franz Kafka. Antes de sua morte havia publicado alguns contos em revistas literárias e em coletâneas, sem chamar atenção. Em seu testamento pediu a seu melhor amigo, Max Brod, queimar todos seus escritos e manuscritos, incluindo cartas, diários e bilhetes que escrevia em profusão. No dilema entre ser fiel à última vontade do amigo ou presentear o mundo com um legado artístico que julgava de valor incalculável, Brod escolheu a segunda opção.
Kafka deixou a vida aos quarenta anos. Era tubercoloso e estava internado em um sanatório, porém morreu de inanição. Chegou a um estágio em que sua garganta fechada tornava muito doloroso se alimentar, e na época não havia ainda a alimentação parenteral. Morreu editando sua última obra O Artista da Fome (que começou a escrever bem antes de não conseguir mais comer).
Em vida o autor parecia pouco se preocupar com fama ou carreira literária. O pouco que publicou foi por insistência e contatos do amigo Brod. Kafka se preocupava em escrever. Escrevia como quem estava em missão, ou como um viciado. E lia seus escritos para seu círculo de amigos.
Brod enfrentou inúmeros desafios na sua “missão” de trazer à luz a obra do amigo. Desde a organização dos textos, vários deles inacabados, passando pela estranheza de estilo e temas abordados que afugentavam as editoras. Mas o primeiro grande desafio foi salvar a obra e a si mesmo das garras dos nazistas. Em 1939 conseguiu fugir da Alemanha para a então Palestina, levando consigo na bagagem o tesouro literário. Viveu em Israel até 1968, dedicando-se à sua missão. É também um dos biógrafos de Kafka.
Kafka virou um ícone da literatura mundial. A estranheza de seus escritos acabou conquistando os leitores. As visões e alucinações e desejos e terrores que lhe habitavam a mente revelavam, vertidas em palavras, um mundo subterrâneo que existia por baixo da superfície de civilização e progresso que marcava o ocidente no início do século XX. Um mundo onde o indivíduo (tão valorizado pelo iluminismo) era insignificante frente ao “sistema” erguido pela mesma civilização, mero joguete de forças poderosas, como sentia-se o mais primitivo homem das cavernas.
Sua obra extrapolou a literatura e influenciou a cultura mundial. Sua maneira de ver o mundo revolucionou o nosso olhar. Basta ver quantos livros, filmes, peças e obras musicais tem o seu nome no título, ou referência ao seu legado. Kafkiano virou verbete de dicionário, usado por muita gente que nada leu do grande escritor. A Metamorfose, O Processo, O Castelo, América, Na Colônia Penal, Diários são algumas de suas obras que devem ser lidas.
May 30, 2024
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Entulhos

O Governados do RS, estado meridional da Casa do Baralho, acordou de sobressalto. Deus, ou alguma outra entidade abstrata, na forma de um imenso corpo de água, inundou seu gabinete e avisou que estava muito descontente com o ser humano. Era um absurdo como tratavam aquela terra abençoada, terra do leite e do melo. Ordenou que usasse o tesouro do estado para construir uma arca e escolhesse um par de cada espécie para nela embarcar, estes, após o dilúvio, povoariam o novo estado a ser reconstruído com dinheiro do Governo Federal.
O governador ficou duplamente atordoado: não era a primeira vez que cochilava em pleno horário de expediente na mesa de seu gabinete. Mas era o primeiro cochilo que atingiu a profundidade de um sonho, chegou a babar em cima da agenda. E o sonho, meu Deus, parecia muito real. Ficou até com medo de comentá-lo com seu analista.
Depois ficou pensando em quem escolheria de cada espécie. Adorava fazer listas. Deveria ter um casal de direita e outro de esquerda, um casal do centrão e dois do seu próprio partido, o partido em cima do muro. Haveria que ter alguém das empreiteiras, que seria muito importante na reconstrução, e alguém do Agro para refazer o plantio. Matutou se botava na lista um casal das forças armadas. Eles poderiam ser uteis na contenção do pessoal da classe serviçal, mas também adoravam dar uns golpes. E para a classe serviçal? Não tinha a mínima ideia quem escolher. Ah sim, não podia esquecer do pessoal da Comunicação, os especialistas em redes sociais.
Nesse passatempo ficou até ser lembrado pela secretaria que tinha hora no barbeiro. Naquela altura já estava mais calmo. Estamos no século XXI, refletiu, dilúvio é coisa dos tempos bíblicos. Pelo sim pelo não, encomendou de seu figurinista um par de trajes de capitão e dois modelos de coletes salva-vidas.
Saiu do barbeiro no meio da tarde, que parecia noite. Nuvens negras arrepiaram-lhe o cabelo recém cortado. Chamou para seu gabinete o pessoal da defesa civil e o prefeito da capital. Este lhe garantiu que a cidade tinha um sistema robusto de contenção e bombeamento contra as enchentes.
A água caiu violenta sobre todo o estado por seis dias seguidos, transformado em um mar barrento a terra do leite e do melo. A arca não havia sido construída, o sistema robusto não conteve a enchente. Faltou, nesses últimos anos, manutenção. O caos tomou conta e o governador, na sua primeira declaração, se acusou: não é hora de procurar culpados, disse, é hora de salvar vidas. Ao menos os modelitos de colete ficaram muito bem em sua figura esguia.
O prefeito não fez por menos, revelando-se um verdadeiro líder no momento de crise. Após a primeira enchente, alertou que a cidade iria “colapsar”, recomendando que quem tivesse casa na praia, se mandasse pro litoral. As poucas vias que não foram obstruídas pelas águas ficaram engarrafas pela debandada geral. Orientou, quando a água deu uma baixada, que os moradores botassem nas ruas seus móveis e utensílios estragados para a prefeitura recolher. Mas não recolheu. Conseguiu assim a façanha de alagar, nos parcos dias de sol, ruas que não haviam sido alagadas pela enchente, devido aos bueiros entupidos pelos entulhos não recolhidos.
Os dois líderes, que sempre falavam em enxugar o estado, aprenderam na pele o sentido literal do termo, e a consequência de sua política de “enxugamento”. O governador tirou ainda mais uma lição do sonho premonitório: mandar a conta da reconstrução para o Governo Federal.
Aprenderão os governantes e os governados, a verdadeira lição dessa terrível tragédia? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
May 23, 2024
Veludo Azul

Filme de David Lynch, EUA, 1986
Fascinante e bizarro, o filme que alçou David Lynch para a galeria de diretores cult, segue denso e perturbador, quase quarente anos após seu lançamento. Eu, inclusive, gostei dele mais agora ao revê-lo.
A obra é praticamente um ensaio filosófico/artístico sobre o bem e o mal, ou a inocência e a perversão. Inicia com uma estética de cartão postal: cores fortes beirando o artificial banham o céu, as casas e pátios e da pacata cidade de Lumbertown. Um homem rega seu gramado com uma mangueira, em vias de sofrer um acidente dos mais estranhos. Depois de visitá-lo no hospital, seu filho Jeffrey, passa por um descampado e encontra uma orelha humana no chão.
Essa orelha é o ponto de partida para a trama que revela uma cidade não tão pacata, tendo como pivô a misteriosa cantora Dorothy (primeiro papel de Isabela Rossellini), uma ponte entre o mundo inocente dos jovens Jeffrey e Sandy e do universo de sadismo e violência de Frank (Denis Hopper).
Cabe lembrar que em 1973, ocorreu o sequestro do neto do milionário Paul Getty, no qual a orelha do refém foi enviada para a família, como argumento final para convencê-los a pagar o resgate, cinco meses após o sequestro. A orelha no terreno baldio em Veludo Azul, além do surrealismo da imagem, evoca também a ameaça de um crime cruel.
Quando Jeffrey revela a Sandy que precisa investigar o mistério da orelha humana e para isso quer entrar sorrateiramente no apartamento da cantora, Sandy lhe diz: não sei se você é um detetive ou um tarado. E essa é uma frase chave do filme, que trata da dualidade que habita cada um de nós, como se fossemos nós também a cidadezinha de Lumbertown.
A música ganha papel importante nessa viagem Lynchiana entre inocência e perversão, principalmente na relação de Frank, o vilão mor, com duas canções românticas: Blue Velvet de Bobby Winton e In Dreams de Roy Orbinson. O confronto entre o idílico, o onírico e o “submundo” se manifesta também no sentido das letras frente ao contexto do filme.
O final do filme, ou a “solução” da trama, traz um forte tom satírico, lembrando as cores do cartão postal do mundo idílico apresentadas no início do filme.
Você pode ver (ou rever) esse clássico cult na Amazon Prime ou na Apple TV.
May 16, 2024
A Memória Infinita

Filme de Maite Alberdi, Chile, 2023
Eu pouco sabia sobre A Memória Infinita quando resolvi assistir ao filme. Sabia apenas que era um documentário chileno com uma abordagem diferenciada. Esse pouco conhecimento foi fundamental para que o filme me pagasse de surpresa, revelando-se camada por camada com seus encantos. Por isso sugiro que você interrompa aqui a leitura, veja o filme e depois volte ao post. Você pode vê-lo na Paramount Plus, via Amazon Prime ou Apple TV.
Maite Alberdi, que emplacou dois documentários chilenos à nomeação ao Oscar, achou que iria fazer um filme sobre o Alzheimer quando conheceu o casal Augusto Gongóra e Paulina Urrutia. Augusto já tinha a doença e Paulina o levava ao trabalho dela, os ensaios da peça de teatro em que era atriz. Maite achou isso interessante e os abordou com a proposta de acompanhar a rotina do casal no enfrentamento à doença. Paulina foi reticente, por todos os motivos compreensíveis. Quem a convenceu foi justamente Augusto, que não se importou em expor sua intimidade e fragilidade, talvez percebendo a relevância que a obra iria atingir.
A diretora não imaginava que o caso individual de Augusto iria levar seu filme por uma reflexão sobre a memória de uma nação inteira, e como o apagar dessa memória aniquila a identidade, seja de uma pessoa ou de um povo, deixando marcas profundas. Ela acabou descobrindo este caminho no decorrer das filmagens, ao conhecer melhor a história de Augusto, seu trabalho de repórter durante a ditadura de Pinochet.
Tampouco ela podia imaginar que uma pandemia se aproximava, o que iria impossibilitar o contato da equipe de filmagem com Augusto e Paulina. Como naquela altura já havia sido criada uma relação de confiança entre ela e o casal, a solução foi deixar um equipamento com Paulina, que documentou a rotina do casal isolado enquanto a doença progredia, resultando num material de proximidade e intimidade assombrosas. Paulina então, além de cuidadora e companheira tornou-se co-realizadora do filme, ao menos durante esse longo período de isolamento.
Com a pandemia, o isolamento imposto ao casal causou o agravamento da doença, com a sensação de abandono de Augusto por não poder ver mais seus amigos e filhos. Um sofrimento que Paulina teve que aguentar no peito, o que nem sempre ela conseguia. Todos esses elementos e o fato de os dois serem pessoas muito especiais resultam na exposição de uma história de amor que parece coisa de cinema, mas é a vida real, que conjuga momentos de desesperada agonia e profunda alegria.
Várias vezes no decorrer do filme me lembrei do francês Meu Pai. São obras muito diferentes que abordam o Alzheimer de forma sensível e poética, como eu antes nunca tinha visto. Uma delas é ficção, com roteiro e atores de primeira, o outro é um documentário com personagens sensacionais, que levou sua diretora por caminhos inesperados, como muitas vezes acontece em um documentário. O importante nesses casos é saber se deixar levar pelo material, abandonando, às vezes, ideias pré-concebidas.
Cabe destacar o trabalho da montadora, Carolina Siraqyan, que criou essa estrutura intricada de revelação por camadas, articulando de forma magistral a narrativa entre filmes de arquivo e o material original, a história pregressa e o momento atual. Essa edição primorosa, ao lado dos incríveis personagens é o que torna o filme genial.
Augusto faleceu em 2023, aos 70 anos, quatro meses após a estreia de A Memória Infinita.
O filme foi premiado com o Goya de melhor filme Ibero Americano, O Prêmio de Júri do festival de Sundance, Prêmio Platino de Melhor Documentário Latino Americano e ficou entre os cinco finalistas do Oscar para Melhor Documentário.
May 9, 2024
O Arquipélago
Foto de Alan Mendonça FurtadoUm gênero que fez durante uma época muito sucesso e segue, de vez em quando, tendo um revival é o filme de catástrofe. Poseidon (1972, 2006), Titanic (1912,1958, 1997), Inferno na Torre (1974, 2007), A Sociedade da Neve (2007, 2023) são apenas alguns exemplos de dramas em que um grupo de seres humanos enfrentam as forças da natureza num jogo de gato e rato (o gato sendo a força da natureza). Alguns deles são baseados em fatos reais e os mais recentes incluem uma reflexão sobre o aquecimento global e suas consequências. Dois exemplos desses são as séries: Rojst 97 e A inundação do Milênio que retratam as fortes chuvas e as enormes enchentes no leste da Europa em 1997.
Agora é a vez de nós, gaúchos, irmos dormir em uma noite de chuva e acordarmos num pesadelo ameaçador. Praticamente o estado inteiro foi sacudido por uma semana de chuvas torrenciais e ininterruptas que resultaram em inundações sem precedentes atingindo cerca de quatrocentos municípios e deixando boa parte da capital abaixo d’água, bairros inteiros sem luz e virtualmente todas as moradias sem água chegando em suas caixas.
O Guaíba inundando as ruas de Porto Alegre. Foto de Alan Mendonça FurtadoNo momento em que escrevo há mais de cem mortos, centenas de desaparecidos e dezenas de milhares de pessoas que tiveram que abandonar suas casas, muitas perderam tudo que tinham. Boa parte dos caminhos até essas localidades estão bloqueados, há falta de mantimentos nos supermercados. O estado virou um conjunto de municípios ilhados, um arquipélago. E ainda vem mais chuva por aqui.
Em várias das obras acima mencionadas há um papel para os políticos ou líderes, aqueles que devem zelar pela população e encaminhar o enfretamento da crise. Raramente esse papel é o de heróis. Para não fugir ao roteiro, o governador do estado e o prefeito da capital, que aparecem figurinados com colete de equipe de resgate, como se fossem pessoalmente ao coração das enchentes salvar no muque os flagelados, se pronunciam falando em mudar o paradigma, proclamam que essa calamidade histórica deve ser tratada com excepcionalidade.
Mas essa tragédia foi mais do que anunciada, principalmente com as chuvas fortes no final do ano passado. E quando você os ouve falar em mudança de paradigma, imagina que estão falando que a partir dessa tragédia não dá mais para fechar os olhos para a questão climática, não dá mais para “flexibilizar” na política ambiental. Até descobrir que a “mudança” que eles se referem é na forma e rapidez de receber o dinheiro de auxílio do governo federal. O paradigma que deve mudar é a burocracia da transferência e o controle dos gastos, ou seja, o nível de fiscalização.
O governador fala em Plano Marshal para reconstruir o estado, mas não menciona que essa reconstrução deve ter em mente, em primeiro lugar, a preocupação ambiental. Fala na excepcionalidade de… contratação. Dá para imaginar as empreiteiras lambendo os beiços.
O presidente veio ao estado com uma grande comitiva de ministros e autoridades do legislativo e judiciário. Maravilhoso. Só não dá para entender porque todos falaram, nessa ocasião, como se fosse um palanque, dizendo nada de importante, mas Marina da Silva, a veterana especialista na questão ambiental, não teve a palavra. Era ela, de toda a comitiva presidencial quem deveria falar.
Foto de Alan Mendonça FurtadoEnquanto isso, torna a chover, após uma trégua de dois dias, e a calamidade segue espalhando-se por localidades ainda não atingidas. Vivemos esses dias presos no filme de desastre, e entendendo, desesperados, que nada de fundamental irá mudar. As crises se sucederão, e o planeta se tornará um lugar mais e mais hostil para nós, graças à mentalidade negacionista, terraplanista, do lucro predador.
O que aquece um pouco o coração no meio desse caos é o empenho das pessoas, do povo, para colaborar, para ajudar no salvamento e abrigo de quem mais precisa.
May 2, 2024
4,3,2,1

Livro de Paul Auster, EUA, 2017
O que rege a nossa vida, o quanto o poder da decisão sobre ela é nosso, é da sorte, ou do acaso? O quanto da nossa personalidade é forjada pelas circunstâncias, o quanto trazemos dela em nosso DNA? Somos frutos do que nos acontece na vida, ou nossa vida é fruto de quem somos?
Todas essas questões que ocupavam Paul Auster desde seus primeiros livros, tomam a forma da musa da sua grande obra, 4,3,2,1, publicada após sete anos de silêncio editorial. O título já sugere que há algo de diferente nesse romance do escritor nova iorquino. Diferença que reside na ideia original: contar a história de um personagem, porém com inúmeras variantes de vida. Essa ideia exige também uma estrutura diferente. E uma escrita envolvente que nos faça esquecer a premissa, para nos surpreender na primeira “virada”.
Auster se propõe um processo de criação diferente, em que amplia consideravelmente as liberdades de escolha do autor em relação ao seu protagonista. E para que esse personagem não se perca, no meio de tanta variante, e deixe de ser um personagem para tornar-se quatro, ele usa muito de si, pinta um autorretrato, não para produzir uma biografia, mas para ter um modelo, uma bússola sólida neste processo criativo.
Archie Ferguson nasceu em 1947, o ano de nascimento do autor, mas o romance começa muitos anos antes, com a chegada de seu avô aos Estados Unidos e a hilária história que originou seu nome. O romance acompanha essa pré-história do protagonista e depois, pouco mais de duas décadas de sua vida: infância, estudos, as escolhas profissionais e as escolhas amorosas. E de quebra acompanha essa época rica e tumultuada dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial até a Guerra do Vietnam, a luta contra o racismo, os assassinatos de lideranças importantes, as revoltas nos bairros negros e nas universidades.
Os primeiros capítulos seguem à risca a condição de escrita envolvente que surpreende o leitor com a primeira virada, no estilo vibrante do autor de Trilogia de Nova Iorque, Invisível e Desvarios no Brooklyn. No entanto, na medida que avança torna-se, em vários momentos, repetitivo e prolixo demais, o que resulta num livro de mais de oitocentas páginas. Ao final, Auster volta ao seu melhor na amarração da(s) história(s), o que compensa pelo longo caminho percorrido.
4,3,2,1 que começa praticamente com uma anedota sobre um imigrante judeu, é uma grandiosa declaração à arte da escrita, à criação de modo geral. E ao mesmo tempo um mergulho nostálgico numa época de nossas vidas em que tudo é intenso, tudo é novo, instigante e às vezes ameaçador, como o próprio destino.
Quis o destino, ou o acaso, que no exato momento em que escrevo a resenha, recebo a notícia do falecimento de Auster, aos 77 anos, vítima de um câncer no pulmão. Deixa um legado sensacional de obras, as favoritas entre as que li estão citadas acima.
4,3,2,1 foi finalista do prestigioso Man Booker Prize de 2017 e foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Se você quer saber mais sobre o autor, 4,3,2,1, embora não seja uma autobiografia, pode ser uma ótima fonte.
April 25, 2024
A Conferência

Filme de Matti Geschonneck, Alemanha, 2022
Muitos filmes são baseados em livros – romances ou não ficção – alguns em peças de teatro. É a primeira vez que vejo um filme baseado em uma ata, ou no protocolo de uma reunião. Não se pode pensar em peça inspiratória mais burocrática ou menos dramática.
No entanto, depende da reunião.
E, principalmente, da forma como ela é adaptada para a tela.
No gelado mês de janeiro de 1942, várias autoridades do regime nazista reuniram-se em Wannsee para tratar de uma solução definitiva para a “questão judaica”. Wannsee é um lago no subúrbio de Berlim, onde a SS instaurou sua sede campestre, um cenário idílico para a mais macabra das reuniões, na qual se alinhavou o mecanismo de extermínio dos judeus da Europa.
O filme só trata dessa reunião, não sai da mansão (confiscada em 1941 pelos nazistas), não usa música ou outros elementos dramáticos não diegéticos e, no entanto, deixa o espectador grudado na tela. O roteiro é uma das peças chave nesse sucesso, a outra é o trabalho de atores, principalmente o de Philipp Hochmair na pele de Reinhard Heindrich. A câmera nos conduz pelos sinistros corredores do poder da Alemanha nazista e pela “ideologia” que sustentava esse poder. Ali a banalidade do mal, termo que a filósofa Hannah Ardent cunhou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, se revela em plenitude no grande Écran.
Não há como não comparar esse filme Alemão, à produção norte americana Zona de Interesse, que faturou o Oscar de melhor filme Internacional, neste ano. Os dois acontecem em locais icônicos e foram filmados nas próprias locações; os dois evitam mostrar as atrocidades de forma explícita (A Conferência é mais radical nesse conceito); e ambos focam nos algozes, ou em tentar expor a mentalidade dos algozes. A Conferência, ao meu ver, atinge esse objetivo, com maior sucesso.
Hoje, na mansão que abrigou o histórico encontro, existe o Museu da Conferência de Wannsee que visitei em 1994. E que tem uma exposição arrepiante, no tom aparentemente seco do filme, em contraste com a vista ao redor.
A Conferência pode ser visto na Amazon Prime e na Google Play, Filmes e TV.
April 12, 2024
RIPLEY

Série de Steven Zaillian, EUA, 2024
Há muito tempo não via uma série de encher os olhos como Ripley. Talvez desde Carnivale de 2005. Seu criador, roteirista e diretor é mais conhecido (e premiado) por seus trabalhos com roteiro. Foi oscarizado pelo roteiro adaptado de A Lista de Schindler, e assina o roteiro de várias outras obras de peso.
No entanto, Ripley não tem cara de obra de roteirista. Desde o primeiro fotograma fica claro que a trama é secundária e o visual é o carro chefe. Zaillian e o diretor de fotografia, Robert Elswit, trabalham a série toda em preto e branco (com a exceção de um plano em que o detalhe da pegada de um gato em uma mancha de sangue aparece colorida, homenagem clara à A Lista de Schindler). É um preto e branco de alto contraste, com luzes bem marcadas, sombras densas e proeminentes.
O primoroso trabalho de luz remete ao cinema noir, mas também tem muito a ver com o pintor Caravaggio (1571-1610), pelo qual o protagonista cria uma verdadeira obsessão. Além da iluminação, a composição de cada enquadramento é magistral. Ângulos de câmera radicais e objetos em primeiro plano que muitas vezes emolduram os sujeitos são amplamente utilizados. E texturas das mais variadas como grades, escadarias etc., desenham perspectivas interessantes.
Texturas, enquadramento magistral, reflexos e Preto e Branco compõem a estética de RipleyCom todos esses elementos a série cria uma narrativa visual espetacular em todos os sentidos. O quadro acima, por exemplo, fala muito sobre o protagonista e seu “multipersonalismo” camaleônico.
Se a trama é secundária, a composição dos personagens, não é. E o trabalho de atores, repleto de silêncios significativos e diálogos precisos dá as mãos ao impressionante impacto visual. O arco do protagonista é o que mais impressiona nessa construção, não tanto pelas mudanças no personagem, mas pela mudança na aversão/empatia do espectador por ele. A partir de certo momento, a vontade de que pague pelos seus crimes torna-se uma torcida para que consiga se safar.
O elenco que forma o triângulo de protagonistas tem Andrew Scott como Ripley, Johnny Flynn como Dickie e Dakota Fanning como Marge. John Malkovich faz uma participação especial no último episódio, ele que já foi Ripley no filme O Retorno do Talentoso Ripley de 2002.
A série é adaptação do romance O Talentoso Ripley (1955) de Patricia Highsmith que gerou outros 4 livros com o mesmo personagem.
A série, bem como o filme O Talentoso Ripley (1999) de Anthony Minghella, estão disponíveis na Netflix. É interessante assistir as duas obras em sequencia (comece pela série) para ver como é possível criar adaptações absolutamente diferentes da mesma história.
Veja abaixo o trailer (dublado, infelizmente).


