Jaime Lerner's Blog
October 16, 2025
Do Rio ao Mar

Reflexões sobre o conflito e o antissemitismo
Há dois anos publiquei o post O Espetáculo da Barbárie, após o brutal ataque do Hamas no sul de Israel. Como previsto ali, o ciclo da violência se ampliou, aprofundou-se e se estendeu para outras frentes. Talvez esteja chegando ao fim com o acordo recentemente assinado.
Para assinar esse acordo, o primeiro ministro israelense foi enquadrado por Trump; e o Hamas emparedado por Catar e Turquia, dois países que abrigam os líderes da organização terrorista que há anos vivem fora da faixa de Gaza. Esse não é um indicador muito positivo quanto ao futuro do acordo e o fim, de fato, da guerra, mas ao menos todos os reféns israelenses vivos voltaram para casa, há um cessar fogo, e os palestinos deslocados pelos bombardeios retornam aos seus lares ou aos escombros destes. Já é um alívio para o enorme sofrimento dos dois povos.
Esse alívio pode tornar-se um ponto de virada histórico na tragédia desse conflito, ou pode vir a ser apenas um hiato. Está muito claro que para que seja um ponto de virada, os israelenses têm que despachar Netanyahu e seus ministros ultradireitosos para fora do governo e os palestinos se livrarem do Hamas e outros grupos jihadistas que dominam o território desde 2007. Nenhuma das missões é fácil, mas não há comparação entre as dificuldades de cada uma. O Hamas não largará suas armas e irá embora apenas pela pressão popular. Pressão que quando ameaça surgir é prontamente reprimida com execução sumária.
Um fenômeno preocupante que cresceu imensamente com a guerra foi o antissemitismo. Para dar -lhe um verniz “progressista” cunhou-se o eufemismo de antissionista. Da noite para o dia sionismo e sionista viraram palavrões, frequentemente adjetivados como um câncer que deve ser extirpado, ratazanas sionistas e outros termos que lembram demais a intensa campanha de Goebbels preparando as mentes do povo alemão para a perseguição aos judeus que culminou, como todos sabemos, no holocausto.
Muitos dos que gritam contra o sionismo, nem sabem exatamente o que é. Mas quem condena o sionismo, condena, de fato, o direito de Israel existir, o direito de os judeus terem o seu país que já foi sua pátria histórica e de viverem nele em paz, sem perseguições. Se você nega só aos judeus, de todos os povos, esse direito, é óbvio que se trata de antissemitismo.
Se você sai para se manifestar apenas nesse conflito, demonizando o estado judeu e ignorando (ou pior, justificando) o sete de outubro, e sem protestar ou manifestar-se contra o que aconteceu até recentemente na Síria, está acontecendo no Iêmen, no Sudão do Sul e na Nigéria, só para dar exemplos de outros conflitos atuais que geram enormes tragédias humanitárias, você não está nem aí para o sofrimento dos oprimidos, seu alvo são os judeus.
Não há problema em criticar, a se opor à política do governo israelense, mas se você prega o boicote a artistas, manifestações culturais, produtos e universidades israelenses, você quer tornar Israel um estado pária, colocar seus judeus em um gueto, dentro da comunidade internacional.
Nesse campo de batalha é inegável a vitória do Hamas e seus financiadores. Conseguiram, manejando muito bem a mídia e as redes sociais, criar um exército de agentes ocidentais propagadores de mentiras e do ódio ao estado judeu. Pessoas que bradam Palestina Livre do Rio ao Mar, na prática estão gritando pela aniquilação de Israel. Sabemos aonde pode chegar toda essa manifestação raivosa. Os ataques e assassinatos recentes de judeus nos EUA, Inglaterra, França, Austrália indicam claramente aonde desemboca esse ódio canalizado.
Infelizmente, esse é um fenômeno que não desaparecerá ainda que se atinja a paz entre israelenses e palestinos. Ele pode entrar em hibernação, mas estará, assim como na Alemanha dos anos 1930, pronto para se acender, bastará alguém providenciar a faísca.
October 7, 2025
Dra. Jane Goodall Últimas Palavras

No dia 1 de outubro de 2025 a cientista Jane Goodal partiu para uma aventura desconhecida, como ela própria definiu a morte. Famosa mundialmente por sua pesquisa revolucionária com chimpanzés e seu ativismo para a preservação da vida selvagem e, nas últimas décadas, pela natureza, Jane sempre desafiou dogmas e criou novos paradigmas no eterno processo de tentarmos entender o mundo e nosso papel dentro dele.
Dois dias depois de sua morte protagonizou mais um pioneirismo, o de inaugurar um novo formato na Netflix, uma entrevista a ser lançada após a sua morte. O formato não é exatamente novo. Foi criado para a TV2 dinamarquesa por Mikael Bertelsen. A Netflix adquiriu a licença para usá-lo internacionalmente. A produção e entrevista ficaram a cargo de Brad Falchuk.
É algo estranho, conversar com alguém como se ele já estivesse morto, embora ainda esteja vivo. Estranho para o entrevistador, mais ainda para o entrevistado, e essa estranheza passa para o espectador. Há momentos que parece haver um roteiro, há momentos que se atinge a espontaneidade e emoção almejadas nessa última conversa. Está claro que Jane entendeu a importância de participar, para que seus projetos e lutas ganhem força e sigam firmes depois de sua partida.
Sua lucidez é inspiradora, num mundo cada vez mais obscuro, como ela mesmo descreve, em que estamos caminhando para uma sexta grande extinção, temos as ferramentas para evitar, mas não há vontade política por parte de líderes e das grandes empresas. A maneira como ela enxerga a si mesma e sua história pessoal é também edificante.
No entanto, o momento mais genuíno e tocante para mim foi quando ela terminou de falar e uma breve mudança no olhar mostrou que caiu a ficha, o fim de sua vida está logo ali, dobrando a esquina.
O material bruto da conversa encontra-se arquivado no John Kennedy Center for The Performing Arts. Eu gostaria muito de assistir, curioso, entre outras coisas, para ver se fala sobre sua opção pelo veganismo e sua doença rara, a prosopagnosia, ou cegueira facial.
Jane faleceu sete meses após a gravação, aos 91 anos e ainda trabalhando, em um tour de palestras no Estados Unidos.
October 2, 2025
História da China – O Retrato de uma Civilização e de seu Povo

Livro de Michael Wood, Inglaterra, 2022
Michael Wood é um historiador britânico, e também um grande comunicador. Isso torna sua extensa obra sobre a história do estado mais longevo do planeta numa leitura fascinante. Além da escrita dinâmica e fluente, no estilo de roteiros cinematográficos (em que se visualiza o descrito em cada página), o texto apresenta duas grandes qualidades:
Faz a ponte entre as culturas e mentalidades do leste asiático e as do mundo ocidental, trazendo ao leitor múltiplas visões e muitas vezes comparando, traçando paralelos e contrapontos entre uma cultura e outra.
Mescla fatos históricos “grandiosos” com testemunhos de pessoas comuns, tornando a história viva, e expondo seu impacto nas mais distintas camadas da sociedade, muitas vezes com um olhar quase antropológico. E gerando identificação com as histórias individuais dentro dos processos políticos.
Com isso o livro desmancha preconceitos e estereótipos formados desde o século XIX, principalmente durante as Guerras do Ópio, e que permanecem no imaginário ocidental até os dias atuais. E o mais importante para mim – explica, ou traça um desenho lógico nesse enigma fascinante e repleto de contradições que é a China contemporânea, quimera de cabeça comunista e corpo capitalista com um espirito imbuído de sabedoria milenar.
Além desse e outros livros, Michael é apresentador e realizador de documentários. Sendo realmente um historiador/comunicador multimídia.
No Brasil , História da China – O Retrato de uma Civilização e de seu Povo é publicado pela editora Crítica.
Leia uma amostra e /ou adquira clicando abaixo:
September 25, 2025
Casa do Baralho, episódio de hoje: Paixão Fulminante

Finalmente o presidente L e o Trumpete encontraram-se no mesmo recinto. L fez o discurso da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas e Trumpete, o seguinte. Seus olhares cruzaram-se quando um se dirigia ao púlpito de onde o outro descera, e logo trocaram um fraternal abraço.
Logo depois Trumpete interrompeu seu discurso escrito no teleprompter achincalhando o Brasil e falou da química que rolou entre ele e L no contato fugaz que tiveram, em que marcaram um encontro verdadeiro, só os dois, para a próxima semana.
L aparentemente estava ouvindo no radinho o jogo do Corinthians e sua comitiva o cutucou rapidamente para sintonizar no discurso do Trumpete. Ele sintonizou e lançou um olhar apaixonado. Trumpete admitiu perante o planeta inteiro que gostou de L e L gostou dele e quando ele gosta de alguém ele gosta e voltou ao texto do teletromper atacando o Brasil e exortando o país que corrija seus caminhos ao lado dos EUA.
Foi amor à primeira vista, regozijou-se a esquerda brasileira, enquanto que os aliados do ex-presidente B, que inclusive municiaram o discurso teletrumpeteado, ficaram boquiabertos no primeiro momento. Em seguida tentaram disfarçar, elogiando a astúcia do líder norte americano como negociador, dizendo que estava armando uma cilada para L.
Cilada ou não cilada, o mercado brasileiro festejou. O dólar despencou e a bolsa teve uma forte ereção. Finalmente os dois líderes estavam namorando, após semanas de tensão diplomática, o que sinalizava a possibilidade de um alívio no tarifaço norte americano.
Trumpete bateu um novo recorde de autocontradição, enfiando de improviso uma declaração de amor no meio de um discurso agressivo, mas o mundo já se acostumou com essa conduta bipolar. E L prepara-se para o encontro como uma debutante, ciente de que este é o presidente grab them by the pussy.
Conseguirá o Brasil se livrar das sanções norte americanas? Perderá Dudu Bananinha seu status de lobista do pai? Virará Trumpete o herói da esquerda casabaralhense, e comunista aos olhos dos Bolsominions? Não perca nos próximos episódios de Casa do Baralho.
September 18, 2025
Complô Contra a América

Livro de Philip Roth, 2004 + série de David Simon, 2020 — EUA
Complô Contra a América é uma obra diferente na literatura de Roth, não nos temas abordados, mas no gênero; é uma distopia a partir de um fato histórico que não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Não é, portanto, imaginada em um futuro, como 1984 ou O Conto da Aia, mas no passado.
Abordando a real disputa entre Charles Lindbergh e o presidente Franklin Roosevelt visando as eleições de 1940, o romance alterna o rumo da história dando a vitória ao famoso aviador (o primeiro piloto a atravessar o Atlântico em voo contínuo), sobre o experiente político que buscava a reeleição.
O grande debate daquela disputa girava em torno da questão se os EUA deveriam participar da guerra contra os nazistas. Lindbergh pregava a neutralidade dos EUA no conflito, porém era simpatizante de Hitler e de seu regime. E com ele se tornando presidente, os sentimentos mais abjetos de uma América racista e autocrática começam a aflorar.
David Simon, criador da revolucionária série The Wire, (A Escuta) e The Deuce, explora em sua adaptação do texto de Roth para minissérie esse processo distópico de forma brilhante. Principalmente por a série ter sido filmada no primeiro mandato de Trump, as conexões da História imaginada com a realidade atual são óbvias e o título, falando de complô contra os valores de liberdade e diversidade cultural ganha mais força.
Curiosamente, as obras têm movimentos contrários: o livro começa muito promissor, narrando as reações da família protagonista e de todo um bairro judaico frente à um entorno que começa a tornar-se ameaçador, mas empaca no meio e decepciona no final, desperdiçando o potencial dramático do argumento original. A série começa devagar, mas vai crescendo em densidade e termina em alta voltagem.
É brilhante como ela adapta a ferramenta literária do relato em primeira pessoa do menino Philip, o caçula da família. A série abre mão da voice over, tão usada em adaptações literárias para o audiovisual e, incialmente, nem dá destaque para o menino. No entanto, no avanço da trama, o olhar do garoto descobrindo o mundo, um mundo em crise em que os adultos tentam esconder das crianças a insegurança que os assola, conduz e acrescenta profundidade à situação dramática.
E esse contraponto entre a inocência que se perde e a compreensão (muitas vezes dolorosa) que se adquire sobre as coisas, enriquece radicalmente a obra.
Vale destacar que na História real, quem acabou com o debate sobre a participação ou não dos americanos na guerra foram os japoneses, atacando Pearl Harbour e lançando os EUA definitivamente no conflito armado.
Complô Contra a América, a série, pode ser vista na plataforma HBO/MAX. Você pode ler uma amostra do livro clicando abaixo.
September 11, 2025
A História da Minha Família

Série de Filippo Gravino – Itália, 2025
Muitos livros, filmes e séries foram feitos sobre o tema família. Essa Instituição que existe para nos proteger e preparar para o mundo lá fora, enquanto ainda somos seres completamente indefesos. Muitos enaltecem os laços familiares, outros criticam a instituição, principalmente quando ela trai sua vocação. My Happy Family, Totem, Roma, Assunto de Família, O Castelo de Vidro, Louças de Família, Mais Uma Chance, Família, Os Caminhos do Senhor são algumas dessas obras comentadas aqui no blog.
A História da Minha Família junta-se a essa trupe, abordando o tema de maneira muito peculiar, unindo enaltecimento e crítica ferina. Joga de forma interessante com os subgêneros tragédia e feel-good movie, transitando entre um e outro como transita entre passado e presente. A estrutura não linear do tempo é um recurso muito importante para prender a atenção do espectador e expor aos poucos o que há por trás das aparências iniciais.
Além de trabalhar magistralmente com dois gêneros conflitantes, a série apresenta um arco dramático muito interessante de seus personagens, principalmente o da mãe do protagonista e da grande amiga Maria. Arcos que destroem julgamentos precipitados e preconceitos. O desenvolvimento desses arcos, ou seja, como os personagens mudam, ou como muda a percepção sobre eles ao longo dos seis episódios, é uma das maiores qualidades da série.
A História da Minha Família parte de uma situação para lá de dramática: Fausto está doente e sabe que morrerá em breve. Tem pouco tempo para resolver quem cuidará de seus dois filhos pequenos quando ele partir. A epopeia de Fausto para atingir seu objetivo, e a tentativa da “nova família” de honrar essa missão são os dois grandes conflitos da série, apresentados em paralelo, ainda que um surja como sequência (e consequência) do outro.
Eduardo Scarpetta interpreta Fausto. Cristiana Dellana interpreta Maria. Gaia Weiss interpreta Sara, a mãe de seus filhos, e Vanessa Scalera interpreta sua sogra, mãe de Fausto.
A série de seis episódios pode ser vista na Netflix.
September 4, 2025
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Bruxa tá Solta

No creo en las brujas pero que las hay, las hay/ ditado popular galego
Essa semana marcou o início de um evento histórico na Casa do Baralho. No país que virou república por um golpe de estado e teve mais presidentes “empossados” do que eleitos em eleições diretas e universais (inclusive um que deu dois golpes, foi tirado do poder pelos militares e depois ainda voltou eleito pelo povo), está sendo julgado, pela primeira vez, um ex-chefe de estado por… tentativa de golpe.
As peripécias de B, no tocante a minar a democracia e atacar o STF, podem ser vistas em toda a segunda temporada de A Casa do Baralho e em alguns episódios da temporada atual. Apesar desse robusto cabedal probatório, ele afirma que é vítima de uma caça às bruxas.
Dessa declaração pode se inferir que a bruxa, no caso, é ele.
Desde 2016 o mundo democrático vem sendo assolado pela sensação de que algo está profundamente errado nos resultados eleitorais. “A bruxa está solta”, vaticinaram analistas após o BREXIT e a eleição do fanfarrão Trumpete ocorridas naquele ano. Com o passar do tempo, outros episódios pelo planeta, incluindo a eleição de B na Casa do Baralho, ratificaram a impressão. A democracia corria perigo.
O julgamento inédito no Brasil traz esperança de que as coisas comecem a voltar ao normal, por isso sua repercussão internacional. É curioso que nenhum dos advogados dos oito réus negue a tentativa de golpe, apenas descartam, cada um, o envolvimento de seu cliente. Um deles chegou a apontar que seu cliente não só não participou, como tentou demover o então presidente B da ideia, o que comprovaria a culpa de B.
B, no entanto, aliado à bruxa grande do norte, segue aprontando. Pressões econômicas sobre o Brasil e sobre os juízes vindas dos EUA, atestados de estado de saúde debilitado, projeto de Lei de Anistia para ele e os golpistas de 8 de janeiro no Congresso, manifestações convocadas e tumultos por parte de seus deputados, pululam diariamente tentando desestabilizar o processo, ou ao menos livrar o chefe da cadeia. E no próximo ano haverá eleições presidenciais. B, inelegível no momento, tem em seu currículo uma longa folha de escapadas inexplicáveis das garras da justiça.
Em outras palavras: mesmo que de tornozeleira e em prisão domiciliar, a bruxa ainda está solta.
Será o ex-capitão, finalmente, condenado? E em condenado, cumprirá realmente sua pena? Não perca, nos próximos episódios de Casa do Baralho.
August 28, 2025
O Brutalista

Filme de Brady Corbet – EUA, Inglaterra e Hungria, 2024
Um filme super impactante do século XXI traz novamente aos holofotes um movimento arquitetônico que causou grande impacto na metade do século XX. O Brutalista impacta principalmente na maneira como une forma e conteúdo, ou a estética com a narrativa, provocando grandes questões e infinitas reflexões.
O Brutalismo foi um estilo arquitetônico que surgiu na esteira da Segunda Guerra Mundial, contrapondo-se ao modernismo que exalava otimismo em relação à evolução do ethos humano. Ao fim da Primeira Guerra Mundial – o conflito que terminaria com todas as outras guerras –, se imaginou um mundo melhor, sem praticamente mais conflitos armados.
Com essa visão pacifista/otimista soterrada pelo nazismo e as atrocidades bélicas da Segunda Guerra, surgiram novos movimentos artísticos e correntes filosóficas. Curiosamente, o nome não vem de brutalidade e sim do béton brute, ou concreto cru, em francês. Le Corbusier, um dos precursores do estilo o caracterizava assim: estruturas maciças, concreto aparente, funcionalidade acima de ornamentação e impacto visual poderoso.
Brady Corbet aplica essas diretrizes, principalmente as da crueza dos materiais e do poderoso impacto visual, em seu filme sobre um arquiteto judeu húngaro sobrevivente do holocausto que tenta reconstruir sua vida nos Estados Unidos. A Aspereza da textura, os altos contrastes com grandes zonas escuras e movimentos de câmera turbulentos, contrapostos com planos grandiosos e esplendidamente iluminados nos momentos de esperança no filme, unem a obra audiovisual com a alma artística do protagonista. A trilha sonora acompanha à risca esse conceito estético.
Um dos momentos mais geniais (e há muitos) é a cena em que os personagens passeiam pela obra, quando só há um grande buraco. E nessa escavação Toth vai descrevendo o que haverá em cada sítio por onde caminham. O movimento de câmera e enquadramentos, os diálogos, as interpretações e a luz nos fazem visualizar uma construção que não existe e escancara a diferença abismal entre o artista judeu do leste europeu e seus anfitriões cristãos, norte-americanos.
Além da estética ousada, principalmente na direção de fotografia, o trabalho de Adrien Brody como Laslo Toth é pedra fundamental no impacto do filme. Para Brody o filme é tipo uma sequencia de O Pianista de 2002, dirigido por Roman Polanski. Lá ele interpretou um artista judeu polonês numa saga insana para sobreviver à perseguição nazista desde a ocupação de Varsóvia. O Brutalista começa onde termina O Pianista. E Brody conduz seu artista judeu sofrido com a mesma maestria em ambos os filmes.
A reconstrução da vida no país que lhe dá abrigo acaba tornando-se brutal. E Laslo logo entende que nessa terra de oportunidades infinitas é visto como estrangeiro. Seu talento é usado, mas sua pessoa não é aceita. Em um diálogo com o filho levemente alcoolizado de seu “cliente” ele ouve que é apenas tolerado. Isso confirma o que já estava sentindo.
O filme também aborda a relação criador versus financiador, problemática existente desde que inventaram a arte (e o dinheiro). No filme esse conflito chega ao ápice numa das cenas mais violentas. Vale destacar também o papel importante de Erszébet Toth, a esposa de Laslo (Felicity Jones) e do benfeitor/admirador/antagonista Van Buren (Guy Pearce).
Embora longo, com mais de três horas de duração, e com uma estética e eventos pra lá de pesados, O Brutalista agarra o espectador pelo pescoço e o mantém preso, imerso na experiência. O filme teve dez indicações ao Oscar de 2025, faturou as de melhor ator para Brody, melhor direção de fotografia para Laurie Crawley, e melhor trilha sonora para Daniel Blumberg. Foi muito premiado no Festival de Veneza, no Globo de Ouro e BAFTA. Para Brody este foi o segundo Oscar, o primeiro ganhou com… O Pianista.
Você pode ver o filme na Amazon Prime Vídeo. Sugiro ler e ver alguns exemplos da arquitetura brutalista antes de assistir ao filme, para enriquecer ainda mais a fruição.
August 21, 2025
Precisamos Falar sobre o Kevin

Filme de Lynne Ramsay, Inglaterra, 2011
Buñol é uma cidadezinha espanhola de nove mil habitantes. Todos os anos, na última quarta feira de agosto, é invadida por dezenas de milhares de turistas para participarem de La Tomatina, uma celebração pra lá de bizarra, a maior guerra de tomates do mundo.
O que isso tem a ver com um filme britânico sobre uma família norte americana que tem um filho mais bizarro do que a festa mencionada? É nesse cenário de corpos e lama tomatina que Lynne Ramsay escolheu abrir seu filme, destacando de cara como domina magistralmente a metáfora visual.
O filme todo é estruturado como um gigantesco fluxo de consciência da protagonista, com fragmentos de memórias, pensamentos e sensações. As cenas de Eva, ainda jovem e solteira, curtindo a Tomatina em Buñol, é vibrante e tensa ao mesmo tempo, como será o filme todo. E a metáfora de banho de sangue, evocada nessas cenas e que envolverá Eva durante toda a obra, se estabelece com um motivo imagético desde os primeiros fotogramas. Sangue do qual ela tenta se limpar, sem sucesso.
Tilda Swinton como Eva, no “banho de sangue” em La Tomatina.Precisamos Falar sobre o Kevin é adaptação de um romance, porém diferente da maioria das adaptações da literatura, o filme foge do texto e constrói sua narrativa principal na imagem, na montagem e no sensacional trabalho de atores de Tilda Swinton como Eva e dos guris que fazem o papel de Kevin, os meninos Jasper Newel e Rock Duer e o jovem Ezra Miller. John C. Reily como Frank e a Ashley Gerasimovich como Celia completam a família, também com atuações primorosas.
Essa arrepiante experiência audiovisual aborda um tema para lá de sensível, quase um tabu, mas como diz o título (do livro e do filme), um tema que não pode ser varrido para baixo do tapete.
Kevin é um psicopata por nascimento, ou as circunstâncias em que foi gerado e criado, tem a ver com o que se tornou? Eva, sua mãe, tem razão de sentir-se culpada pela monstruosidade do filho, ou por ter ignorado os sinais durante a infância dele?
A obra lança um olhar questionador sobre a maternidade e a pureza infantil, ou sobre os padrões que a sociedade determina para esses dois conceitos. Mas não oferece respostas. E nem pretende oferecer.
O foco da autora é na mente de Eva – um turbilhão de dúvidas e arrependimentos – e como ela tenta atravessar a tragédia e sobreviver a cada dia, às vezes como um zumbi, uma morta viva, às vezes, em raros momentos, tentando esquecer para logo ser lembrada.
Precisamos Falar sobre o Kevin é um filme que precisa ser visto. Você pode vê-lo na Amazon Prime Vídeo.
August 14, 2025
Pátria – A Série

Série – Criação de Aitor Gabilondo – Espanha – 2020.
Pátria, a série, é adaptação de um dos melhores romances que li nessas primeiras décadas do terceiro milênio. Fernando Aramburu, o autor, conseguiu a façanha de criar alta literatura e um best seller na mesma canetada. Para ler a resenha sobre o romance clique aqui.
Tão logo foi publicado em 2016, o braço europeu da HBO adquiriu o direito de adaptação do livro para as telas. E o texto de mais de quinhentas páginas virou uma série de oito episódios. Se por um lado o romance já oferecia um enredo genial, nove personagens complexos, uma gama de conflitos dramáticos de alta densidade e uma estrutura ousada, meio caminho andando para o sucesso da adaptação, apresentava também um desafio: transpor o alto nível da literatura de Aramburu para a linguagem audiovisual.
A série, infelizmente, não atinge a mesma excelência artística que o livro. Ela é bem filmada, mantém a estrutura de ir e voltar no tempo, e cria tons e texturas muito adequadas para diferenciar os anos 1970 dos outros períodos, utilizando principalmente a chuva constante como elemento dramático de um passado sombrio. É também ousada no uso do espanhol e o euskara, idioma do país basco, como as duas línguas da obra, o que confere autenticidade.
No entanto, não logra aprofundar como o livro nos temas do fanatismo e a transformação que ele opera nas pessoas; da violência intrínseca ao ser humano e dos diferentes olhares sobre os mesmos fatos. Os atores tampouco conseguem nos colocar na cabeça de personagens tão profundos e distintos, como acontece no romance, ainda que os avanços e retrocesso nas relações entre eles envolvam e cativem o espectador.
Se você já leu o livro, tente assistir o seriado evitando a comparação entre os dois meios. É possível que isso permita um desfrute melhor. Afinal, tanto a obra literária como a da TV conseguem emocionar, e lançar luz universal sobre uma guerra muito local, um conflito que já nem existe mais, mas seus elementos, lições e impactos sobre as pessoas comuns, seguem muito atuais.
Pátria pode ser vista na HBO/MAX.


