Jaime Lerner's Blog, page 27
September 17, 2020
Casa do Baralho, episódio de hoje: Qué he echo yo?
O general P, após quatro meses como interino da pasta mais importante do país em tempos de pandemia, foi nomeado ministro. Ao receber a notícia deve ter se sentido como o personagem do filme espanhol Qué he echo yo para merecer esto? ou em um idioma que o general entenda: o que fiz para merecer isto? Curiosamente, é a pergunta que o brasileiro vem se fazendo nos últimos anos e tornou a se perguntar, enfaticamente, ao ouvir quem seria o “novo” ministro da saúde.
Quando o general assumiu como interino, em meados de maio, o Brasil tinha 14.800 mortos por Covid-19. Nesses quatro meses saltou para mais de 134.000. Havia pouco mais de 228 mil infectados. Quatro meses depois, são quase quatro milhões e meio. O país assumiu a liderança mundial em vítimas por números de habitantes e por taxa de óbitos entre os contaminados. Bateu o recorde de longevidade da curva. Não é pouca coisa. Em outro país o gestor já teria sido afastado. No Japão, pediria perdão e cometeria Sepukku. No Brasil, foi oficializado no cargo.
O general formou-se nas Agulhas Negras como Oficial de Intendência, responsável, no exército, pelas atividades de suprimentos, transporte, lavanderia e sepultamento. O presidente trocou um médico por um coveiro para cuidar da saúde dos brasileiros. B, é sabido, tem três grandes fetiches: poder, golden shower e a morte (dos outros). No quesito poder, nenhum ministro se mostrou tão subserviente ao senhor presidente. No quesito morte, os números falam por si. Sobre o golden shower…é assunto privado entre o mandatário e o pau mandado. O fato é que o militar performou conforme os ditames da política do atual governo. Ceifou mais vidas que as armas, a polícia, as queimadas, os agrotóxicos e a crise econômica juntos. Só não obteve maior êxito por culpa do STF, prefeitos e governadores. Mesmo assim, chegou onde nenhum outro conseguiu chegar.
Nos últimos dias, porém, os números pararam de crescer, mantendo-se no patamar de mil mortes por dia. O presidente entendeu que seu general precisava de um incentivo e resolveu oficializá-lo como chefe da pasta, antes que a curva despencasse. Na posse, o ministro declarou que ficar em casa comprovadamente não conteve a pandemia. E que o novo normal era conviver ou conmorrer com o vírus.
Logrará B estancar a sangria no número de mortos? Voltarão o norte e nordeste ao hemisfério sul? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho!!!
September 10, 2020
Alien, o Oitavo Passageiro
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Filme de Ridley Scott – Inglaterra/EUA – 1979.
É impressionante como Alien, o Oitavo Passageiro não envelheceu. Após quarenta e um anos segue com a mesma intensidade e qualidade cinematográfica que impactou o espectador no século passado. Seu sucesso gerou uma franquia de seis filmes, dois deles dirigidos pelo próprio Ridley (Prometheus – 2012 e Alien: Covenant – 2017) e um terceiro que, conforme revelou o diretor, está à caminho. Nenhuma dessas sequências ultrapassou o impacto do primeiro filme, lançado em 1979, com argumento de Dan O’Bannon e Ronald Shusett e roteiro de Dan O’Bannon.
Alien é um filme de terror de ficção científica que ultrapassou as fronteiras do gênero e subgênero, graças principalmente ao destacado estilo visual, que virou marca registrada do diretor; à gramática que ele emprega na narrativa; e à trupe de atores que dão vida aos sete membros da tripulação da Nostromo.
O início do filme nos conduz a um passeio pelo interior da nave. Está tudo silencioso, mas os movimentos de câmera sugerem que há algo errado, como se alguém estivesse à espreita ou a nave abandonada. O passeio encerra no dormitório e assistimos a tripulação despertar. A luz, até aquele momento pontuada entre grandes zonas sombrias e penumbra, banha suavemente a nave acompanhando o clima idílico do despertar e da primeira refeição. Até surgir o motivo do alerta que os fez despertar. Scott constrói sua narrativa como uma peça sinfônica, criando movimentos que alternam calmaria, susto, suspense, falsa calmaria e terror até o gran finale. Outra ótima sacada do diretor é empregar a máxima dos filmes B de terror dos anos 1950: oculte ao máximo o monstro do seu filme, pois nada pode ser mais aterrador do que o monstro imaginário de cada um. Ridley Scott explorou magistralmente essa ideia mostrando apenas parcialmente a criatura que ameaça a tripulação e que, para aprofundar o horror, muda de características no decorrer do filme. Os planos em que o alienígena surge em sua plenitude são curtos e raros. E são os menos impactantes. Mas não é só o monstro que o diretor oculta. Nas imagens do planeta e da nave acidentada mostradas pelas câmeras acopladas nos capacetes dos três exploradores – uma imagem de baixa qualidade que ainda sofre várias interferências e ruídos eletrônicos –, Scott acentua a sensação de mistério e ameaça que aguarda a equipe da Nostromo.
[image error]Scott, forte estilo visual, casamento perfeito entre cenário e luz
Scott é um cineasta que pensa com o olho, ou seja, calca a sua narrativa principalmente no visual. Dirigiu o filme operando a câmera, o que é incomum em produções como essa. Seu forte é a forma de iluminar, muitas vezes com as fontes de luz aparecendo em quadro ou a luz sendo desenhada por fumaça ou neblina. A incubadora de ovos é um casamento perfeito entre luz e direção de arte, um cenário criado com raio laser e fumaça.
Alien tem um roteiro típico de filme de terror, com um enredo simples construído em torno de uma situação básica: sete pessoas e um gato presos em uma nave espacial com um terrível predador sobre o qual nada sabem. O conflito é o mais elementar possível: matar ou morrer. Mesmo assim, há elementos de reflexão avançados para a época: duas das tripulantes são mulheres, uma delas, Ripley, é a oficial de máquinas que tem dois marmanjos sob seu comando. Ela acaba se revelando o herói do filme. Outra visão futurista interessante é a de que a nave não pertence a um país e sim a uma empresa, a Weyland Corporation. É a globalização, ou melhor, a universalização já que o globo ficou pequeno para o capitalismo. O oficial cientista Ash declara sua admiração pelo alienígena, por ser um puro sobrevivente, livre de sentimentos de culpa e consciência. Essa visão fascista que liga pureza à falta de escrúpulos casa perfeitamente com a visão utilitária da corporação que prefere preservar o monstro e descartar a tripulação. A obra revisita a questão do homem versus máquina, ou os perigos da inteligência artificial, apresentada em 2001, uma Odisseia no Espaço,de Kubrick e aprofundada depois em Blade Runner, de Scott. Embora não haja complexidade nos personagens de Alien, os atores conseguem criar uma dinâmica e um ambiente repleto de nuances entre os membros da tripulação. Os ingleses Ian Holm, John Hurt e Veronica Cartwright e os americanos Harry Dean Stanton, Tom Skerritt, Yaphet Kotto e Sigourney Weaver compõem o elenco dos tripulantes da Nostromo. O nome da nave é uma homenagem ao escritor Joseph Conrad e seu romance Nostromo, de 1904.
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Alien, o Oitavo Passageiro foi feito para ser visto em tela grande. Ele e outros filmes daqueles anos 1970 foram na contracorrente dos filmes que começaram a trabalhar com enquadramentos de TV para garantirem uma sobrevida na segunda janela. Ao optar pelo impacto da tela grande “salvaram” o cinema da morte anunciada pela acelerada inserção da TV colorida em todos os lares. Alien faturou o Oscar de efeitos visuais e vários outros prêmios. Além dos seis filmes da franquia, deu origem a livros e histórias em quadrinhos.
September 3, 2020
Seven Seconds
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Série – criação de Veena Sud – EUA – 2018.
Nesses tempos em que se debate a violência da polícia e o racismo estrutural, não dá para perder Seven Seconds. A obra ficcional delineia com muita clareza, por meio dos dramas pessoais de seus personagens, como o racismo impregna as instituições e as relações sociais e dali se aloja nos corações e nas mentes dos indivíduos. Mostra também como o racismo, ladeado pelo machismo e homofobia, atuam como ferramentas de imposição de poder nas mais distintas esferas, desde a política, passando pela justiça e pela polícia, até a disputa territorial em bairros empobrecidos.
Brenton Butler, jovem negro de dezesseis anos, é atropelado e abandonado sem socorro em um parque de uma zona pobre em Jersey City, na margem oposta (em relação a NY) do rio Hudson. Dali se vê a estátua da liberdade de costas, ângulo mais do que simbólico para Brenton, sua família e seus amigos. O inverno – o frio, o céu gris e a neve branca que encobre tudo – e o sangue que mancha a neve, também são elementos visuais e simbólicos muito bem explorados na série. Os clichês são utilizados em Seven Seconds de maneira inteligente. Inseridos nas condutas e diálogos dos personagens, a obra mostra como falas e comportamentos prontos, repetidos muitas vezes, engessam o pensamento das pessoas e tornam-se “verdades”. São esses clichês que disseminam os preconceitos. Um exemplo é o raciocínio de que um jovem negro, naquele local e àquela hora, só poderia estar traficando e que sua morte foi fruto de uma disputa entre gangues. Nem mesmo Joe Rinaldi, o policial mente aberta, consegue escapar da armadilha desse clichê.
Há duas personagens femininas muito fortes: a promotora do caso (Clare-Hope Ashitey) e a mãe do rapaz atropelado (Regina King, premiada com o Emy por sua interpretação). A dinâmica entre a dupla que investiga o caso é muito bem construída: KJ, promotora negra, e Rinaldi (Michael Mosley), policial branco, são loosers de primeira, cometem inúmeros erros pessoais e profissionais (principalmente KJ) e mesmo assim emanam força, calcada na dignidade e nas próprias fragilidades. A relação entre eles começa tensa e evolui, sofisticadamente, para uma ligação muito especial.
[image error]KJ e Rinaldi no pântano do racismo estrutural.
Vale mencionar que o nome da vítima, Brenton Butler, é homenagem ao jovem negro acusado injustamente de assassinato no ano 2000 na Flórida. Caso que ganhou notoriedade e foi retratado no documentário oscarizado Assassinato numa Manhã de Domingo do diretor francês Jean-Xavier de Lestrade. Seven Seconds também leva emprestados do caso real o ambiente religioso da família Butler e a integridade da dupla de defensores públicos que cuidou do caso.
Seven Seconds é uma série original da Netflix, baseada no filme russo The Major, de Yuri Bykov. Foi criada como um seriado para várias temporadas e cancelada após a primeira, provavelmente pelos números modestos de audiência. Acredito que se fosse lançada nos dias de hoje, após os casos de violência policial de racismo explícito que incendiaram protestos e suscitaram o debate sobre o racismo estrutural, teria merecidamente maior repercussão.
August 28, 2020
Trainspotting
Livro – Irvine Welsh – Escócia – 1993.
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Romance de estreia do escritor escocês, que retrata o universo de uma turma de jovens dos bairros operários de Leith (hoje subúrbio da grande Edimburgo) nos meados de 1980. São jovens que gravitam em torno de uma vida sem perspectiva, sustentada pelo seguro desemprego, nos anos de recessão que viram surgir os movimentos punk e skinhead. Mark Renton é o personagem principal, mas a protagonista é a heroína. O álcool e outras drogas são suas coadjuvantes. O sexo, as bandas de rock e o futebol são os figurantes. Um pseudoniilismo tenta dar um verniz de sofisticação ao vazio existencial dessa turma, vazio que em alguns momentos parece derivado do vício, em outros é preenchido por ele.
A obra tem uma estrutura original, raramente utilizada em romances. Construída como uma colcha de retalhos, a narrativa ganha forma a partir de relatos curtos que ora se cruzam, ora se complementam, ora têm enredos autônomos. Os narradores também se alternam entre personagens que narram em primeira pessoa, um narrador/observador e um observador onisciente. Essa construção fragmentada, essa estrutura “desestruturada”, não é meramente um exercício de estilo, é um elemento importante para desacomodar e confundir o leitor, colocá-lo no interior das mentes e corações dos jovens junkies de Leith. Renton, Sick Boy, Spud, Stevie e Begbie são personagens caóticos, como a estrutura que narra suas histórias. A linguagem utilizada – uma mistura de gíria com o jargão local do inglês e forte sotaque escocês proletário – fortalece a autenticidade do texto, transporta-nos para as ruas, pubbs e muquifos frequentados por essa turma. Parte dessa riqueza se perde na tradução, é inevitável, mesmo assim, o trabalho de Daniel Galera e Daniel Pelizarri para a edição brasileira (Companhia das Letras) encara com louvor o desafio rítmico e de estilo na tradução de Trainspotting.
[image error]Mark Renton e seus amigos na adaptação de Trainspotting para o cinema.
O nome do livro tem alguns sentidos. Trainspotting é um passatempo britânico que consiste em observar os trens numa estação ferroviária, registrar seus horários, série do motor e outros detalhes que parecem relevantes apenas para quem é um adepto da prática. Por isso virou uma expressão (entre os não adeptos) que indica uma atividade inútil ou sem sentido. O termo aparece apenas uma vez no texto quando, em uma noite fria, Renton e Begbie param para mijar no muro de uma central de trem desativada e um bêbado, atirado no local, pergunta com deboche: “o que estão fazendo aí, trainspotting?” O termo, na gíria junkie de Edimburgo daqueles anos, também se referia a injetar heroína.
O livro, apesar do humor, da linguagem cativante e do ritmo alucinante, tem vários momentos barra pesada. A enganosa leveza na forma de tratar o mundo cão também causa desconcerto, sacode o leitor do conforto do sofá para as latrinas de um mundo amoral, em alternância contínua entre desespero e êxtase.
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Apesar dos desafios que apresenta aos leitores, o livro foi um sucesso. Foi adaptado para o cinema por Danny Boyle, o que aumentou a sua notoriedade. Gerou uma sequência, Pornô (2002) e, uma pré-sequência, Skagboys (2012). Pornô também virou filme: T2 Trainspotting (para ler a resenha, clique aqui), com o mesmo diretor e atores. Irvine Welsh escreveu vários outros romances, contos, peças de teatro e roteiros. Também dirigiu curtas e codirigiu um longa-metragem.
Leia uma amostra, ou adquira o livro
August 20, 2020
Casa do Baralho, episódio de hoje: Emas e Avestruzes
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O presidente capitão paraquedista, obstinado em testar limites, enfrentou, neste inverno, uma impressionante maratona de obstáculos. Em junho, seu velho ex-amigo Feiroz foi preso e o presidente sentiu um frio nas hemorroidas. O abalo foi tão grande que sua imunidade despencou ao nível da aprovação de seu governo. Deixou de bater papo no cercadinho do palácio e foi trabalhar arregimentando o Centrão, a turma sexo explícito do toma-lá-dá-cá no congresso. Contratou, a preço de ouro, um seguro contra impeachment. Com a imunidade baixa, contraiu Covid-19, também conhecida nos círculos presidenciais, como gripezinha. Febril, acompanhou inerte as ações do STF contra as fake news e o fechamento das contas de seus colaboradores nas redes sociais. Como se não bastasse, fundos internacionais de investimento ameaçaram cancelar o Brasil, em função das queimadas na Amazônia. Não adiantou o vice explicar que os números estão errados, que a culpa é dos radares que não enxergam bem. A quebra de sigilo bancário do Feiroz jogou mais queirosene na fogueira, identificando novos depósitos feitos na conta da primeira-dama. E para coroar, o Brasil ultrapassou a terrível marca de cem mil mortos pela doença, que o presidente chamou de gripezinha.
Nos dias de aperto e ócio do isolamento imposto pela gripezinha, o presidente buscou se amigar com as emas que habitam os jardins do Alvorada. Ensaiou o toma-lá-dá-cá oferecendo uma banana. Tomou uma bicada.
— Caralho! Fui alimentar as avestruz e elas me morderam a mão — Comentou, chateado, com um assessor.
— Não é avestruz, presidente, é ema. E elas não mordem, bicam. Mas normalmente são seres muito dóceis, não atacam seres humanos.
— Me disseram que elas comem de tudo. Até pedra.
— Isso é avestruz, presidente. Mas as emas adoram bananas. Acho que o problema não foi o alimento…
Ema é a mãe, pensou o mandatário. Vou mostrar pra esses bichos quem come na mão de quem. Depois de erguer uma caixa de cloroquina para seus admiradores, como Moisés ergueu as Tábuas da Lei para os hebreus, e ser fortemente ovacionado, teve a ideia de como se vingar. Muito matreiro, ofereceu a droga às aves. Elas o mandaram plantar bananas.
— Essas avestruz vão se haver comigo. Vão virar churrasco.
— Não são avestruzes, são emas — esclareceu novamente o assessor.
— E qual é a porra da diferença?
— Avestruz é aquele bicho que na hora do perigo enfia a cabeça no buraco, achando que se ela não vê o perigo, ele não existe. A Ema, como o senhor já sabe, contra-ataca quando sente cheiro de um predador.
— Ai, ai, a coisa tá feia. Não vejo a hora do pico passar.
— Da pandemia?
— Não. Desse inverno astral que tá me perseguindo.
E o pico passou. Feiroz progrediu para prisão domiciliar. O filho investigado ganhou foro privilegiado e a mais incrível das boas notícias: a avaliação de seu governo na pesquisa melhorou, pela primeira vez desde o início do governo. Como logrou essa façanha com a pandemia batendo recordes, ceifando vidas e arruinando a economia? Ele não tem dúvidas, foi o auxilio emergencial de 600 reais que “distribuiu” ao povo. Se realmente for isso, surge uma conta fácil de fazer (e difícil de aceitar): no Brasil, cem mil vidas valem menos do que seiscentos reais.
Até quando o país seguirá incorporando o espírito da avestruz? Não perca nos próximos episódios da Casa do Baralho!


