Jaime Lerner's Blog, page 22

August 12, 2021

Assunto de Família

Filme de Hirokazu Koreeda – Japão – 2018.

Koreeda é um dos realizadores mais instigantes do atual cinema japonês e Assunto de Família é a culminação de sua obra, tanto no sofisticado manejo dos recursos cinematográficos como no aprofundamento de vários temas recorrentes em seus filmes. A sofisticação se revela já nas diversas possibilidades de leitura do filme. A mais evidente apresenta um drama familiar comovente de trama simples, estrutura linear e personagens cativantes que se tornam conhecidos desde os primeiros minutos de exposição. Abaixo da superfície, espreita uma obra labiríntica de viradas e contraviradas que desacomodam o espectador, tiram o seu chão ao transformá-lo ora em juiz, ora em cúmplice de vários crimes. Oculta por uma bela camada de sutileza e poesia surge uma obra revolucionária, discreta, mas de grande impacto.

Em Assunto de Família (a tradução do título em japonês manbiki kazoku  é Família Furto), Hirokazu questiona os laços sanguíneos e o vínculo familiar, tema que abordou em Ninguém Pode Saber (2004) e Pais e Filhos (2013). No entanto, Assunto de Família estende esse questionamento para códigos civilizatórios e morais arraigados na sociedade e aponta que há inúmeras zonas cinzentas entre o preto da letra fria e o branco da folha que a registra. E essas zonas, por envolverem seres humanos, são repletas de dualidades e de aparências enganosas que embaralham nosso julgamento. Os protagonistas, membros da família furto, revelam-se interesseiros, ardilosos, traiçoeiros, egoístas, mas também solidários, compreensivos, altruístas, ingênuos e românticos. A gramática mágica do filme confere coerência a essas contradições.

Assunto de Família – movimentação magistral em espaços exíguos.

Os movimentos de câmera e personagens nos espaços exíguos da residência dos Shibata e nos locais de trabalho (as lojas abarrotadas de mercadorias onde praticam seus furtos) é magistral. Transmite, mais do que os diálogos e ações, a cumplicidade existente entre eles. A composição, principalmente a opção do que enquadrar e o que deixar fora de quadro, cria joias visuais, como o plano em que o cabelo de Yuri é cortado ou a cena em que Shota, perseguido por  funcionários do mercadinho, pula do elevado. O filme foi rodado em película para atingir a textura levemente granulada almejada por Koreeda que, em Depois da Vida (1998), faz uma brincadeira com a diferença entre o registro em vídeo e em filme.

Assunto de Família foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes, em 2018. Para os assinantes brasileiros da Netflix, ele estará disponível até o fim de agosto na plataforma de streaming. Não dá para perder.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on August 12, 2021 06:55

August 5, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: No Olimpo

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.

Habemus olimpíadas! A pandemia havia arremessado Tóquio 2020 para 2021.  Às vésperas da abertura, um novo recrudescimento ameaçou forçar mais um adiamento dos jogos. O presidente B, esfregando as mãos, cogitou oferecer Brasília como substituta. Já imaginava a si mesmo carregando o fogo olímpico, incendiando a pira. Foi desaconselhado por seus aliados do Gabinete Paralelo dos Empresários de Bens. As olimpíadas não eram a Copa América —  alertaram — ali o buraco é mais em cima. Tudo bem, consolou-se B, igual a CPI entrou em recesso para os senadores assistirem os jogos nas madrugadas. Não era premente fabricar mais um escândalo para desviar a atenção da mídia.

Premente ou não premente, B não aguentou. Tratou de impulsionar seu requentado bordão: a volta do voto impresso. Fez alarde arrotando que apresentaria as provas de fraude nas urnas eletrônicas em sua próxima live, mas foi só um chamariz para tentar reerguer a combalida audiência dos últimos meses. Foi tão eficiente quanto a cloroquina no tratamento da Covid. Ninguém realmente esperava que apresentasse alguma prova, pois a palavra presidencial é à prova de qualquer suspeita, além de ser a prova de que ele não tem provas.

O mandatário, ocupado que estava em torcer pelo Brasil, receber a líder do partido neonazista alemão, incitar manifestações pelo voto impresso e andar de moto em Presidente Prudente, não conseguiu ir à reinauguração do Museu da Língua Portuguesa. De fato, foi prudente o presidente não ter ido, pois corria o risco de ser acusado de assassinar também o idioma de Camões. No entanto, deixou o governador Calcinha Apertada brilhar sozinho ao lado dos presidentes de Portugal e do Cabo Verde, e de dois ex-presidentes do Brasil.

Informaram ao presidente que o museu estava sendo reaberto seis anos após ter sido destruído por um incêndio. Este, pensou ele, não podem colocar na minha conta. Mas o incêndio na Cinemateca Brasileira, ocorrido dois dias antes – uma tragédia mais do que anunciada –, era outra história. Havia ainda outra razão para ignorar o evento: B não é muito chegado em museus. O mais perto que esteve disso daí foi ter inaugurado a exposição dos trajes usados por ele e pela Micheque na cerimônia de posse. Esse sim foi um evento importante.

Na torcida pelo Brasil, B enfrenta um dilema: por um lado, quer que o país conquiste o maior número de medalhas. Isso com certeza irá ajudar no tocante ao seu terrível índice de rejeição. Por outro, torce que nenhum atleta consiga mais do que uma medalha individual, no máximo duas. Isso porque está enfrentando outro tipo de rejeição…  a da primeira-dama.

O poder, dizem as más línguas, é afrodisíaco. Não para B. Nos últimos tempos, o mais perto que chegou de algum prazer sexual foi montado em uma Honda cilindrada, com o Véiodavan coladinho na garupa. Sua relação conjugal atingiu um patamar mais baixo que a sua popularidade. Para tentar agradar a esposa, B a presenteia com medalhas. Enquanto os atletas suavam em Tóquio, ela recebeu a Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, na categoria Ouro. Essa honraria é conferida a personalidades que se destacam em atividades relacionadas à saúde pública nos campos da ciência, educação ou cultura. Tudo a ver com a Micheque. É a sua terceira medalha. Em maio, foi condecorada com a Medalha da Vitória, dada a quem contribuiu para a difusão das ações dos ex-combatentes durante a Segunda Guerra Mundial, participou de conflitos internacionais na defesa dos interesses do país ou integrou missões de paz. Em junho, faturou a Ordem do Mérito da Defesa que homenageia quem prestou relevantes serviços ao Ministério da Defesa ou às Forças Armadas. Quando os roteiristas de A Casa do Baralho indagaram o que ela fez para merecer cada medalha, o Planalto decretou cem anos de sigilo sobre as atividades da família presidencial.

A primeira dama se contentará com a terceira medalha? Continuará em silêncio no tocante ao dinheiro depositado em sua conta? A CPI da Covid retornará turbinada após o recesso olímpico? E qual será a próxima vítima do governo incendiário? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on August 05, 2021 07:51

July 29, 2021

Tokyo Trial

Minissérie – Criação de Toru Takagi – Japão, Holanda e Canadá – 2016.

Finda a Segunda Guerra Mundial, as nações vencedoras se depararam com uma questão: como lidar com as atrocidades cometidas pelos nazistas. Um tribunal para responsabilizar os líderes e operadores da escravização e extermínio planificado de eslavos, ciganos e judeus foi instalado na cidade de Nuremberg, outrora palco dos grandes comícios do partido Nazi e do surgimento das primeiras leis raciais.

Na esteira do processo que levou 315 dias, outro tribunal, menos marcante e famoso, foi constituído pelos aliados para julgar os crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos pelos japoneses no Pacífico e na Ásia. Onze juízes de onze países se reuniram na  Tóquio semidestruída para decidir os destinos dos acusados, seguindo o precedente de Nuremberg. O julgamento que estava previsto para durar seis meses, durou dois anos e meio.

A NHK, emissora pública japonesa, uniu forças com a produtora holandesa FATT para criar uma minissérie de quatro episódios sobre esse acontecimento. Juntaram-se a elas, no decorrer do projeto, a canadense DCT e a Netflix. O argumento original é do japonês Toru Takagi, a direção foi compartilhada entre o holandês Pieter Verhoeff e o norte-americano Rob W. King. A maior parte das filmagens, tanto das internas do tribunal como dos escombros da capital japonesa, foi realizada na Lituânia. Os atores são da Alemanha, Escócia, Índia, Holanda, China, Filipinas, Japão, Rússia, França, Austrália, entre outros países. Em outras palavras, a série (que tem uma versão de longa-metragem) foi tão internacional quanto o próprio julgamento.

Tokio Trial – imagens documentais dialogam com cenas de ficção.

A direção de arte (cenários, objetos e figurinos) e a direção de fotografia apresentam um trabalho meticuloso na recriação do clima da época e do local. As sessões do julgamento são apresentadas em preto e branco, integrando imagens de arquivo com imagens ficcionais numa edição que coloca os juízes atores contracenado com os réus e advogados reais. Fora do tribunal a vida acontece em cores, porém imagens de arquivo em P&B das atrocidades e a situação dos japoneses no pós-guerra são inseridas, muitas vezes como filmes (newsreel) que os juízes assistem na pequena sala de projeção montada no hotel.

Inicialmente, Tokyo Trial parece ser um docudrama, formato que utiliza ferramentas de ficção (atores e cenários) para reconstituir eventos reais. No entanto, no avançar da série, o foco se fecha nos bastidores do julgamento, na relação dos juízes entre si e com o entorno (os interesses dos governos de seus países e a realidade do Japão pós-guerra) e nas grandes questões e diferentes visões de mundo que emergem nesse processo. Essa abordagem semeia situações dramáticas que vão além de recriações de eventos, gera personagens pluridimensionais e debates cuja complexidade e interesse extrapolam o mero informativo histórico. Nessa trupe de pesos pesados, o protagonista é o juiz holandês Bert Roling. O livro The Tokyo Trial and Beyond (1993), no qual Roling revela ao jurista Antonio Cassese muito dos bastidores desse julgamento, foi provavelmente um grande inspirador para os roteiristas da série se aventurarem pelos meandros de personagens e debates. Tokyo Trial fala de colonialismo, imperialismo, racismo, política e da intricada tarefa de ter um tribunal internacional permanente como o de Haia.

A série desperta interesse pela questão histórica e pelos temas que aborda, mas também pelas opções narrativas e estéticas na tessitura dessa obra dramática sobre um evento real. Tokyo Trial pode ser vista na Netflix.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 29, 2021 07:17

July 22, 2021

O Estrangeiro

Livro de Albert Camus – França – 1942.

A primeira vez que li O Estrangeiro eu era adolescente, vivia intensamente a fase de grandes descobertas. Desde as primeiras linhas do texto percebi que estava diante de uma dessas revelações. Percebi que era possível ser profundo mesmo num texto curto, abrir comportas que se estendiam acima e abaixo das frases lacônicas, do perímetro das poucas páginas, pouquíssimos personagens e quase nada de trama. Entendi que era possível trabalhar a identificação através do distanciamento, tocar acordes dramáticos por meio de um protagonista apático que, antes de conduzir a história, parece ser conduzido por ela (será?). Descobri que é factível, usando frases curtas e secas que descrevem principalmente a ação, enveredar pela psicologia e filosofia de uma vida banal, atropelada por um evento que embora extremo, é cercado, antes e depois, pela trivialidade. E que o sujeito que conseguiu amalgamar tudo isso, em seu primeiro livro, era um gênio.

Infelizmente, o gênio morreu aos 47 anos. Desde jovem, sofria de tuberculose e, não raro, sentia sua vida ameaçada nas crises. No entanto, ele a perdeu num acidente de automóvel, numa viagem que pretendia fazer de trem. Havia inclusive comprado as passagens, mas foi convencido pelo amigo Michel Gallimard a ir de carro com ele e a família. Camus, que refletia muito sobre a existência e o absurdo, disse certa vez que morrer por acidente automobilístico era a morte mais absurda. Seu personagem Meursault passa a ocupar-se de uma única tarefa a partir de sua sentença: pensar sobre a morte. E chega a conclusão de que não há nada lá fora. Não há um sentido para a vida, qualquer vida, não há nenhuma força que se importe com qualquer coisa que aconteça no mundo. E essa indiferença, essa apatia do destino afinal o consola, por identificação.

Ao reler esse clássico, décadas após a primeira revelação, mais uma descoberta: o texto nada perdeu em vigor ou atualidade.

O Estrangeiro foi adaptado para o cinema pelo mestre italiano Luchino Visconti (1970), inspirou a música Killing an Arab, do The Cure (1978) e, provavelmente, a letra de Rapsódia Boemia, de Queen (1975).

Camus, que não gostava de se enquadrar em nenhuma escola, grupo ou movimento, tanto nas artes como na filosofia, ganhou o Nobel de literatura em 1957. Escreveu peças de teatro, ensaios filosóficos e outras novelas. O Estrangeiro, no entanto, permanece sua obra-prima.

Leia uma amostra em:

https://amzn.to/3eL9uMO

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 22, 2021 07:31

July 15, 2021

ROJST’97

Série – criação e direção de Jan Holoubek – Polônia – 2021 – segunda temporada.

O corpo de um adolescente de doze anos é encontrado na floresta de Gronty após a enchente que assolou a Polônia em 1997. Esse é o gatilho da trama na sequência da série Rojst, intitulada Rojst’97. A primeira temporada, lançada em 2018, também iniciou com a descoberta de dois cadáveres na mesma floresta (para ler sobre a primeira temporada, clique aqui).  O ano era 1984 e o país ainda estava sob o regime comunista. Rojst’97 dá um pulo de 13 anos para uma Polônia pós-queda do muro, inserida na economia de mercado. O Império Soviético não existe mais e, no entanto, pouca coisa parece ter mudado na pequena cidade ladeada pela floresta. O clima sombrio, ocre e pesado transitou para um tom cinzento e decadente, reforçado pelo cenário pós-dilúvio. O jornal local não sofre mais a censura do Partido Comunista, mas enfrenta a ameaça de falência. A polícia e os repórteres investigativos ainda mantêm uma relação complexamente delicada ou delicadamente complexa.

A policial Anna no cenário de guerra após a enchente do século.

A sombra do passado segue pairando sobre a vida da cidade. A enchente, além de desenterrar um cadáver recente, desencavou um cemitério clandestino no coração da floresta. O que ocorreu ali, ao final da Segunda Guerra Mundial, é aprofundado e detalhado em Rojst’97. E Witold não é o único que sente o peso dessa sombra. O terreno pantanoso que engole os desavisados é literal e simbólico, metáfora perfeita para a Polônia atual e seu governo negacionista.

Witold enfrenta as sombras do passado no pântano de Rojst.

A segunda temporada apresenta uma nova protagonista, Anna Jass, sargento-detetive que vem de fora e é muito diferente dos policiais locais. Os dois protagonistas da temporada inicial não saem de cena, apenas cedem o centro do palco. Forma-se um triângulo interessante entre a forasteira, o jornalista Piotr, que retorna à cidade onde começou sua carreira, e Witold, que nunca saiu (embora siga tentando). Parece que o equilíbrio entre os dramas político, intimista e criminal da primeira temporada se rompe para dar mais ênfase à trama policial, mas essa aparência se revela enganosa no último episódio, quando todos os pontos se ligam de forma magistral e surpreendente.

Diferente da primeira temporada, Rojst’97 termina com um gancho para uma sequência, gancho que é um enorme pega-ratão. Resta saber se haverá uma terceira temporada e, se houver, qual época ela abordará.

Rojst e Rojst’97 podem ser vistas na Netflix.

Teaser (em polonês):

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 15, 2021 07:32

July 8, 2021

A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Ex-cunhada.

“Você pode deixar o baixo clero, mas o baixo clero nunca deixa você.” Severino Claudicante.

O presidente B teve mais uma noite de sobressaltos. Sonhou com um castelo de cartas. Era uma peça composta de dois baralhos que alguém montara em sua mesa e, ao mesmo tempo, era o palácio de onde governava. Olhava admirado para aquela construção imponente e se surpreendia com a fragilidade do equilíbrio que a sustentava. Uma coceirinha, um desejo angustiante de dar um peteleco e ver a casa desmoronar começou a crescer dentro dele.  Sabia que precisava se controlar. Afinal, era ele quem estava no topo. Se aquilo dali ruísse… Virou-se de costas para a pirâmide que deu tanto trabalho montar e ouviu uma voz rouca bafejando em sua nuca: não adianta, companheiro, a casa caiu!

Esse era também o sonho de muitos brasileiros, mas no caso de B, tratava-se de um pesadelo. Acordou assustado, tentando identificar a voz que lhe parecia ser ora do ex-presidente L, ora do seu ministro da fazenda, o Posto Ipiranga. Era uma profecia? Um aviso? Uma ameaça? Chamou o general EstouaquiParaObedecê-lo, pediu um copo d’água com açúcar. Este prontamente apareceu com uma latinha de leite condensado, com dois furinhos milimetricamente opostos. Ele gostava de seu ex-ministro da saúde. Era um pau-mandado com iniciativa. Uma combinação rara de se encontrar num indivíduo. Deu a primeira sorvida na lata e desabafou para seu assessor, não sem antes revistá-lo como prevenção de um possível grampo.

ParaObedecê-lo se retorcia todo durante a revista, sensível as cócegas do presidente. Cuidava para não fazer barulho e acordar a Micheque que dormia ao lado, sonhando com o Feiroz depositando em sua conta corrente.

— Caralho — sussurrou o mandatário — e eu pensei que maio foi um mês ruim. A CPI tá nadando de braçada, parece que abriu a porteira pra boiada das denúncias. Os protestos nas ruas tão cada vez piores. Ninguém mais quer andar comigo de moto. E já é a terceira noite que eu sonho que tudo isso daqui é uma casa de baralho e que a casa cai.

— Que é isso, Presidente? Só Deus tira o senhor daqui. É só dar mais uns pixulé pro Centrão, outro pra nós milicos, que o senhor tá seguro.

— Que pixulé o quê, os caras querem é o filé. Tive que me livrar de ti, do Amazon is for Salles, do Desonesto Sabujo, pra liberar esses ministérios pros sanguessuga. E em vez de largarem do meu pé, a coisa só tá apertando mais.

— O senhor tira de letra, Presidente. Como fez quando pegaram o Feiroz, quando calaram a Sara Inferno, quando queriam apreender seu celular, quando liquidaram o cabeça do Escritório do Crime, quando o Moro num País Tropical denunciou o aparelhamento da PF, quando o STF liberou o vídeo da reunião ministerial, quando a Amazônia queimou, quando o Brasil passou de 500 mil mortos, quando investigaram a rachadinha do Zero à esquerda Um…

— É isso!!! – saca o presidente. – A rachadinha. Essa é a causa do pesadelo! Que humilhação eu cair desse jeito.

— Como assim?

— Isso aqui é o Brasil, correto?

— Positivo, Presidente. Hemisfério Sul.

— E o Brasil é a Casa do Baralho, tô certo?

— Sempre, Presidente.

— Só no Brasil um presidente que resistiu a tudo que tu falou, mais a propina da Covaxin, a insistência na Cloroquina, a queda do Trampo, a renúncia dos comandantes militares, a acusação dos irmãos Ciranda, o ataque da imprensa-lixo, o super pedido de impeachment, o mimimi pro tribunal de Haia, sem falar da fakeada no aparelho abdominal, vai acabar caindo por causa da… cunhada.

— Ex, Presidente.

— Como assim ex-presidente? Ainda não caí!!!

— Deus nos livre. O ex era pra cunhada, Presidente.

Realizar-se-á o pesadelo de B (e sonho de tantos brasileiros)? Será antecipado o fim da atual temporada da série mais caótica do século? Não perca, nos próximos (e derradeiros?) episódios da Casa do Baralho!

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 08, 2021 07:24

July 1, 2021

Depois da Vida

Filme de Hirokazu Koreeda – Japão – 1998.

Há vários filmes ótimos que homenageiam a sétima arte. Alguns o fazem a partir das salas de cinema, pelo olhar do espectador, como o italiano Cinema Paradiso, de Tornatore; outros a partir do set, do ponto de vista do realizador, como o francês A Noite Americana, de Truffaut; outros ainda com um olhar crítico, como o americano Crepúsculo dos Deuses, de Wilder; ou como uma metáfora existencial ácida em O Substituto, de Rush.

Depois da Vida é a declaração de amor ao cinema com a proposta mais original entre os filmes que vi (ao menos entre os que lembro). A ideia de um limbo, onde pessoas recém-falecidas passam uma semana e ali devem escolher uma única lembrança que levarão para a eternidade (todas as outras memórias se apagarão), já é muito interessante. A ideia de dar forma a essa reminiscência por meio de um filme, feito por uma equipe semi-especializada, com recursos limitados, e que proporcione ao dono da lembrança a sensação de estar revivendo aquele momento único, é genial. Une a mágica que acontece em um set de filmagem com a que se revela na tela de cinema e, de quebra, fala na imortalização de um momento, de uma sensação, por meio do registro audiovisual. Há inclusive uma piada interna: nas leis que regem esse limbo a caminho do além há uma diferenciação entre os registros em celuloide (a memória filmada) e os feitos em vídeo (a realidade banal). Vale lembrar que na época já se prenunciava a morte da película com um debate apaixonado entre os cineastas se o vídeo, algum dia, chegaria à mesma qualidade de imagem.

A estrutura dramática do filme também é peculiar, surpreende ao mudar o foco do protagonismo das histórias dos recém-chegados para a equipe que os recebe no mundo dos mortos e os guia na difícil escolha que têm pela frente. A visão do limbo como espaço cênico é também muito bem construída, lembra uma repartição pública decadente, mas… as aparências enganam.

Depois da Vida é um filme japonês. Não tem o tom exacerbadamente dramático dos italianos, nem o ritmo envolvente dos norte-americanos, tampouco se leva demasiadamente a sério como os franceses. Discreto, tece com delicadeza origâmica diferentes fragmentos de vida numa história única, comovente e universal. É uma obra repleta de sutilezas, de uma qualidade contemplativa e provocadora nas reflexões que desperta.

O filme pode ser assistido no YouTube ou em DVD.

E você, que lembrança escolheria para levar para a eternidade?

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on July 01, 2021 07:59

June 23, 2021

Quinhentos Mil

“Da terra, o sangue do teu irmão clama a mim”. Genesis 4

No dia 19 de junho de 2021, o Brasil chegou a quinhentos mil mortos pela Covid-19. Se seguir no atual ritmo de casos e óbitos, em breve, passará os EUA, recordista mundial nessa macabra marca. A grande diferença (além do tamanho da população) é que, nesse dia, os EUA registraram 169 mortes e o Brasil 2300. Os americanos se aproximam rapidamente da luz no fim do túnel; aqui chegamos a quinhentos mil mortos e seguimos no olho do furacão ou, como dizem os especialistas, estáveis num alto patamar de contágios e mortes.

Desde os tempos antigos, o ser humano usa histórias e símbolos para tentar entender o mundo. E para expressar o que entende e sente busca marcas, imagens, metáforas e figuras de linguagem. Cria livros, filmes, coreografias, músicas, desenhos e esculturas. 500 mil é uma marca. Que representa toda a tragédia de perdas, sequelas, confinamento, paralisação, incertezas e medo. Nossa porção diária nos últimos 15 meses. 500 mil é um número astronômico. Tão grande que o torna, de certa maneira, abstrato.

É como se Florianópolis, a capital de Santa Catarina, desaparecesse do mapa com todos seus habitantes.

É o equivalente à queda de 1000 aeronaves Boeing 747 lotadas, duas por dia; ou quatro tragédias de Brumadinho acontecendo diariamente, nesses 450 dias de pandemia. É maior que os números de mortos na guerra civil da Síria, que dura 10 anos.

Se fizéssemos um minuto de silêncio para cada vítima, teríamos que ficar mudos por 347 dias, ou quase um ano.

Outra maneira de tentar mensurar o tamanho da tragédia é fugir dos números e contar as histórias de vida que foram interrompidas. Dar nome, cara e voz às vítimas. Essa é uma forma de partilhar o luto que cada uma dessas famílias enfrenta, muitas delas com mais de um óbito. Se fossemos produzir uma série com um episódio diário sobre cada uma das vítimas, essa série ficaria no ar por mais de 1370 anos. Um milênio e três séculos. 

Para mim, a grande homenagem às vítimas, a maneira mais impactante de dimensionar a calamidade dos 500 mil até o momento, foi a grande manifestação no dia em que a terrível marca foi atingida. Centenas de milhares de vivos marcharam pelas centenas de milhares de mortos em todos os estados do Brasil, em todas as capitais e grandes cidades, num protesto massivo. Gente que não saia às ruas, contrária à aglomeração, percebeu que deveria correr o risco para clamar, para expressar o tamanho da tragédia e, principalmente, para exigir um basta. Foram espetáculos lindos, pacíficos e poderosos, de luto e de luta.

Nos Estados Unidos, a troca do governo negacionista por uma gestão que respeita a ciência e a vida foi a causa da mudança radical no enfrentamento à pandemia. O resultado é patente na diminuição de contágios, de mortos e, também (para quem só se preocupa com isso), na recuperação da  economia. Por aqui estamos muito distantes ainda da eleição. Por isso, o grito chefe que ecoou nas ruas órfãs de quinhentos mil brasileiros foi: fora genocida! Não é um grito simbólico, nem uma demanda para o futuro. É uma urgência de vida ou morte.

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 23, 2021 08:14

June 17, 2021

Os Últimos Dias

Filme de James Moll – EUA – 1998.

Em 1994, um ano após finalizar A Lista de Schindler, o cineasta Steven Spielberg criou a Fundação Shoah (Survivors of the Shoah Visual History Foundation), que tinha como objetivo gravar depoimentos de testemunhas e, principalmente, de sobreviventes do holocausto. Nessa época, meio século após o fim da Segunda Guerra Mundial, já despontava um movimento de negação da grande barbárie perpetrada pelos nazistas. Esse movimento provavelmente ganharia mais força, quando não houvesse mais pessoas vivas que sofreram, perpetraram ou testemunharam a perseguição e extermínio de judeus na Europa.

Em 1998, a Fundação Shoah produziu o documentário Os Últimos Dias, que acompanha cinco judeus de origem húngara sobreviventes do holocausto.  Renée Firestone, Irene Zisblatt, Tom Lantos, Bill Basch e Alice Lok Cahana contam suas histórias e revisitam os campos de concentração para onde foram deportados e os locais onde moravam antes da deportação. Após a guerra, todos eles emigraram para os Estados Unidos. Há também depoimentos de Dario Gabbai, um dos poucos sonderkommando sobreviventes (judeus que operavam as câmeras de gás e levavam os corpos aos crematórios); de um médico nazista que fazia experimentos em humanos; do historiador (e sobrevivente) Randolph Braham; do soldado negro norte-americano, Paul Parks, que participou da liberação de Dachau, entre outros.  O filme, vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 1999, foi remasterizado recentemente e licenciado pela Netflix.

A deportação para o extermínio dos judeus húngaros ocorreu em 1944, quando já se delineava a derrota nazista. A Hungria, que lutava desde 1941 ao lado dos países do Eixo, começou a negociar secretamente um armistício com a Inglaterra e a União Soviética. Hitler, ao saber disso, ocupou o país, derrubou o governo e colocou um fascista no poder. A comunidade judaica, poupada até então dos guetos e campos de extermínio, teve o mesmo destino dos judeus dos países ocupados pela Alemanha. É incrível como, mesmo na iminência de uma derrota, os nazistas se concentraram em acelerar a solução final, tirando recursos do esforço de guerra para reunir, deportar e aniquilar judeus. O engenheiro da solução final, Adolf Eichmann, foi à Hungria supervisionar pessoalmente essa operação. Entre 15 de maio e 9 de julho, mais de 400 mil judeus foram levados em 147 trens para os campos de extermínio. A grande maioria foi conduzida diretamente dos vagões para as câmaras de gás.

Os Últimos Dias – superação e homenagem.

Além de retratar o fim trágico da comunidade judaica na Hungria, através das epopeias individuais de seus protagonistas, o filme apresenta cinco admiráveis histórias de superação. Muito jovens no período da Guerra, os cinco sobreviventes foram vítimas de uma máquina construída para triturar sua humanidade e depois os exterminar. Viveram as piores atrocidades, foram despojados de qualquer direito, perderam pais, mães, irmãs e conheceram o lado monstro do ser humano. No entanto, reconstruíram suas vidas, e embora não tenham saído ilesos, não foram contaminados pelo ódio. Ressuscitaram como resposta aos que não conseguiram lhes tirar a dignidade e como homenagem aos que não sobreviveram. Esse para mim é o ponto alto do filme, a história mais incrível.

Os Últimos Dias faz conexão entre o holocausto e todas as atrocidades produzidas com o combustível do racismo e da xenofobia, como a escravização de africanos. O ódio patológico a um grupo ou indivíduo em função de cor, etnia ou credo parece ter atingido o ápice do horror no regime nazista. Mas segue sendo um combustível poderoso e altamente inflamável no mundo atual. Por isso, a Fundação passou a gravar testemunhos de outros massacres (contemporâneos) e de ações antissemitas na Europa. Associou-se à Universidade do Sul da Califórnia e deslocou sua sede para o campus.

Em entrevista, Spielberg conta que sua avó ensinava inglês para os húngaros sobreviventes do holocausto em Cincinnati: “Eu devia ter uns dois, três anos, e me sentava à mesa com eles. Foi aí que conheci os números – graças àqueles que todos que passaram por Auschwitz têm no antebraço. Essa foi minha versão de Vila Sésamo. Foi assim que aprendi a contar.”

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 17, 2021 08:22

June 10, 2021

O Deus das Pequenas Coisas

Livro de Arundhati Roy – Índia – 1997.

Romance de estreia que, após ter sido agraciado com o International Booker Prize (prêmio britânico para obras traduzidas para o inglês), tornou-se um sucesso mundial, rendendo críticas entusiasmadas (ou furiosas),  muitas vendas e polêmica. O livro e a autora foram alvo de um processo por obscenidade no estado de Kerala (palco da trama principal), ação arquivada após dez anos de contenda.

O Deus das Pequenas Coisas é uma obra singular que cria um universo, ou um micro/macrocosmo, através de sua escrita mágica, muitas vezes hiperbólica e repleta de imaginação. Esse universo especial é a Índia com suas tradições e contradições, e também a família de Estha e Rahel, gêmeos bivitelinos, siameses na alma. A forma como as grandes questões (castas, política, história) estão encapsuladas nas pequenas coisas (o drama familiar) é absolutamente hipnótica. Há tons muito fortes de realismo mágico na escrita de Roy, mas ela vai além desse formato, usando cheiros, cores, jogos de palavras e repetições poético-musicais na construção de seu universo bivitelino de pequenas e grandes coisas. Parece mais um hiper-realismo lírico do que o realismo fantástico que colocou em evidência a literatura latino-americana no século passado.

A autora mergulha profundamente no interior de personagens muito diversos para trazer a tona os seus distintos olhares. O ponto de vista infantil é o jardim onde floreiam as invencionices fonéticas e metafóricas, um jardim de plantas ingênuas e tóxicas. A estrutura é arqueológica, uma escavação feita vinte e cinco anos depois da hecatombe que marcou a vida dos dois irmãos quando ainda eram crianças. O clima que permeia a obra é de decadência, de sonhos frustrados e oportunidades perdidas. Seus eventos cardeais são duas mortes, dois abusos e um caso de amor. Curiosamente, foi o caso de amor que provocou a denúncia de obscenidade.

O romance tem outra qualidade rara que descobri graças à intuição que devia recomeçá-lo, tão logo cheguei ao fim. A segunda leitura apresenta uma experiência diferente, não menos impactante do que a primeira. No lugar do mistério semeado por fragmentos expostos aos poucos na escavação arqueológica há a compreensão dos significados de cada destroço encontrado nos escombros. Isto, aliado à familiaridade já adquirida com o universo estilístico do livro e seus personagens, dá outra dimensão à fruição do texto. São duas leituras gêmeas, porém bivitelinas. Vale destacar a tradução de José Rubens Siqueira, que enfrentou com louvor (e criatividade) os desafios das invenções linguísticas e transições entre inglês, hindi e malayalam – (idioma que se fala em Kerala).

Após o sucesso de sua obra-prima, a autora passou a escrever artigos e ensaios, tornando-se uma ativista política. Voltou a publicar ficção somente em 2017, duas décadas após a sua estreia. Seus dois romances, O Deus das Pequenas Coisas e O Ministério da Felicidade, foram editados no Brasil pela Companhia das Letras.

Leia uma amostra:

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on June 10, 2021 07:30