Jaime Lerner's Blog, page 22
September 9, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Brado Redundante.

Há 199 anos ouvia-se, às margens do Ipiranga, um brado retumbante. Partiu do príncipe regente, que viajava com sua comitiva a São Paulo e acabara de receber uma carta urgente de sua querida esposa, informando-o do ultimato da coroa portuguesa. Além da mensagem, havia um documento pronto para o regente assinar. Era a declaração de independência do Brasil. Dom Pedro suspirou: não bastava a dor de barriga que o fizera correr para aliviar-se às margens plácidas, ainda tinha que encarar essa bronca. Assinava a declaração ou se curvava às exigências de Portugal? O brado, que alguns historiadores juram que foi Independência ou Morte! e outros atribuem ao desarranjo intestinal do regente, entrou para a história como o ato formador da nossa pátria e, também, da ideia de que no Brasil se ganha tudo no grito.
Não há, na história da nação, maior adepto dessa doutrina do que o presidente B. Desde que ganhou as eleições de 2018 (que, alega, foram fraudadas), ele avança, de brado em brado, rumo ao projeto ditatorial de governar sozinho. Sonha em fazer o país regredir dois séculos e tornar-se imperador, defensor perpétuo do Brasil, como foi Dom Pedro. Perpétuo tem um som que o agrada demais. Vocifera que só Deus o tirará da presidência, pois foi Ele quem lhe conferiu essa missão, igualzinho aos monarcas de antigamente. Produziu até herdeiros: 01, 02, 03 e 04, criados e preparados para assumir o seu legado, quando Deus o chamar. Ah, como adoraria retornar aos tempos da sociedade escravagista, de maioria analfabeta e miserável, dominada pela religião, onde os homens de bem eram os homens dos bens e ninguém precisava de licença para andar armado. As mulheres (de bem) eram rainhas do lar, os índios não tinham alma e a natureza se oferecia virgem para ser explorada. Veados eram caçados, o ouro era extraído, sem admoestações. Da modernidade manteria consigo apenas o divórcio, o leite condensado e as redes sociais.
A cada avanço nesse projeto de retrocesso, seus gritos soam mais como ruídos de um desarranjo. E cheiram mal. Estão mais para o Tietê atual do que para o Ipiranga de outrora. Grita e blefa, em brados redundantes, a ponto de nem ele saber mais quando está blefando. De quando em vez, um dos poderes paga pra ver. Ele então recua, sente-se acossado, mas sempre escapa de pagar a aposta.
Seu mais recente ato foi o sequestro do 7 de Setembro. Já havia se apropriado da bandeira nacional, da camisa da seleção, por que não da data da Independência? Convocou seu rebanho para manifestações em todo o país e disse (pela enésima vez) que dessa vez chega! Houve quem achou que seria o início de uma guerra civil ou um autogolpe, ou que hordas invadiriam o Congresso e o STF. No entanto, foi mais um blefe. B Bradou em Brasília e depois voou para São Paulo, lá bradou mais forte e mais alto. Atacou governadores e prefeitos, as urnas eletrônicas, o sistema de partidos e a justiça. Clamou seus seguidores a darem a vida pela liberdade. A sua liberdade de jogar o país 200 anos para trás. Não mencionou a alta da inflação e do desemprego, nem o encolhimento do PIB, a educação paralisada e o aprofundamento do abismo social. Não falou da pandemia com seu mais de meio milhão de mortos. No Brasil de B, o único problema é que existem canalhas que não o deixam governar. Anunciou que levaria a imagem da multidão que o apoiava para enquadrar, a partir dessa data histórica, os outros poderes. Foi mais um brado fétido, um balão de ensaio. Mas se não o fizerem pagar a conta e logo, ele ainda consegue completar a viagem no tempo.
Haverá reação concreta ao último ato do presidente, além da multa que levou por não usar máscara em SP? Seguirá o Brasil chafurdando na crise institucional? E a variante Delta, terá feito a festa nas aglomerações do candidato a Imperador? Descubra nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
September 2, 2021
A Chegada + História de Sua vida

Filme de Denis Villeneuve, 2016 + conto de Ted Chiang, 1999 – EUA.
O encontro entre humanos e alienígenas talvez seja o tema mais recorrente na literatura de ficção científica. E não só nela. Volta e meia, ovnis e extraterrestres aparecem em noticiários e programas investigativos; em Eram os Deuses Austronautas, Erich Von Daniken apresentou a tese de que relatos bíblicos e de outras mitologias descrevem a visita de civilizações mais avançadas ao nosso planeta, causando grande furor. O tema abre espaço ilimitado para a imaginação, mexe com desejos e medos atávicos na busca incessante por um sentido na nossa existência.
Em História de Sua Vida, Ted Chiang, escritor norte-americano, aborda esse encontro com muita originalidade. Há mistério, mas não há pânico nem violência. Quem conduz o contato não é um líder político ou militar, é uma linguista que, junto a uma equipe multidisciplinar, tem a missão de estabelecer comunicação e desvendar o objetivo da visita dos heptapódes à terra. Descobrir isso é de suma importância para as autoridades, mas não é para o livro. Ao tentar se apropriar da linguagem heptapoide, na qual o idioma falado e escrito são muito distintos, Louise começa a pensar como eles, percebendo o tempo de forma não linear e a sucessão de eventos não como causa e consequência. Essa capacidade irá mudar completamente a sua vida, principalmente a comunicação com sua filha.
Louise – Amy Adams – e a escrita circular dos heptapódes.Ao adaptar o conto, o cineasta Denis Villeneuve estabelece para si um desafio e tanto. Há muitas ideias e ciência no texto de Chiang, fáceis de serem desenvolvidas numa narrativa escrita, nem tanto na linguagem audiovisual. O filme toca de leve no paradoxo entre o livre arbítrio e o determinismo, simplifica e abrevia o manejo de Louise na troca de conhecimentos com os alienígenas. Villeneuve adiciona a ameaça iminente de guerra e violência, inexistente no livro, para adensar a carga dramática e revela, ao final, o objetivo da visita dos extraterrestres, propositalmente ignorado no conto. No terreno das ideias explora a hipótese de Sapir-Whorf em que línguas diferentes moldam diferentes percepções de mundo, o que explica a mudança em Louise. Por outro lado, estrutura a não linearidade da narrativa de maneira mais sofisticada que Chiang; dá maior substância à personagem Hannah, filha de Louise, e aos dois alienígenas. E, acima de tudo, cria uma estética muito especial que expressa o tom solene dos encontros entre a dupla de humanos e de heptapódes. Estética construída pela fértil imaginação da direção de arte, pelo trabalho de luz e efeitos especiais, com destaque para a animação da linguagem escrita dos visitantes e, especialmente, pelo desenho de som. Este desempenha, discretamente, uma função dramática muito importante, trazendo à tona o estado emocional dos personagens e pontuando de forma genial as barreiras e avanços na comunicação – o principal conflito da obra. Merecidamente, o filme ganhou o Oscar de melhor edição de som em 2017.
Conto e filme são duas obras interessantes. O conto, acredito eu, fala mais aos corações dos fãs de ficção cientifica; o filme provavelmente agrade um público mais amplo. Ambos usam a visita dos alienígenas para apresentar ideias e dilemas bem terrenos, mas que dão um nó em nossos conceitos e padrões de pensamento. A Chegada pode ser visto na Netflix, no Now e na Globo Play Filmes. O conto pode ser lido na coletânea História de sua Vida e Outros Contos, publicado no Brasil pela editora Intrínseca.
August 26, 2021
The Delivery Boy

Filme de Adekunle (Nodash) Adejuyigbe – Nigéria – 2018.
O que une um jihadista, criado para ser um mártir do islã, e uma prostituta da zona mais empobrecida da cidade? Aparentemente, o acaso de estarem na mesma hora e no mesmo local. Ela, sendo perseguida por um cliente que nocauteou, após o larápio se recusar a pagar; ele, fugindo de uns rapazes que o confundem com um ladrão, e que nem imaginam estar no encalço de uma bomba ambulante. O encontro que surpreende Nkem e Amir numa esquina escura irá revelar que os dois têm em comum muito mais do que a partilha do esconderijo. Surpreender parece ser o grande objetivo do filme, que usa ardilosamente o maniqueísmo, abusa dos estereótipos para despedaçá-los e mostrar que aparências podem ser enganosas. As surpresas se esgueiram no meticuloso jogo de sombras e luz, despontam nas viradas da trama, assaltam os personagens nas esquinas escuras de suas vidas.
The Delivery Boy – alto contraste e espaços monocromáticos.Mas não é só no conteúdo que o filme surpreende. No jargão profissional, low-budget é um filme de baixo orçamento e no-budget é uma produção ainda mais pobre. The Delivery Boy é um desses filmes sem verba, bancado pelo próprio diretor. Para economizar, o filme precisou ser rodado em seis noites e o diretor atuou também como produtor, diretor de fotografia, roteirista, editor e colorista. É difícil não pasmar diante do apuro técnico, da estética e do estilo que o filme ostenta, apesar das parcas condições.
Amir e Nkem – Jammal Ibrahim e Jemima Osunde.The Delivery Boy marca a estreia de Adekunle na direção, mas Nodash, como é conhecido em Nollywwod (apelido dado à indústria cinematográfica nigeriana) é diretor de fotografia de vários filmes e clipes musicais. Seus enquadramentos e movimentos de câmera conduzem magistralmente o olho do espectador pelos conflitos de Amir e Nkem, numa gramática que remete à novela gráfica. Na luz, cria zonas cromáticas, quase monocromáticas, diferenciando espaços e climas, mas mantendo o espírito sombrio que impera na tela. O impacto visual é tão forte quanto a história e os temas que interliga (pedofilia, religião, pobreza, abuso e fanatismo), desconcertando o espectador. Nessa orquestração de elementos, o naipe que desafina é o dos diálogos, aqueles que revelam boa parte da história egressa dos protagonistas. Estão mais para duelos do que diálogos, expelidos quase sempre em situação de conflito, mas esse não é o problema, ao contrário, essa condição é orgânica ao filme e aos personagens. O problema está na ingenuidade das falas, que resultam na quebra da densidade dramática, da identificação, do quanto a gente acredita no filme e em seus personagens.
Apesar do mau uso dos diálogos informativos (os outros diálogos funcionam bem), The Delivery Boy é uma obra instigante, que se comunica cinematograficamente de maneira exemplar, em estilo e ritmo afiados como um machete. O filme pode ser visto na Netflix e na Amazon Prime Vídeo.
August 19, 2021
Aura

Livro de Carlos Fuentes – México – 1962.
Aura é uma novela curta ou um conto longo que Fuentes escreveu em cinco dias a partir de um lampejo. Estava em um encontro com uma jovem em Paris e, ao se movimentar, a moça passou por uma luz que a transformou, num átimo, em uma anciã. Essa súbita mudança acendeu a imaginação do escritor. Como dizia Fellini, luz é tudo. Mas ele se referia ao cinema, não à literatura.
Desse fenômeno metafísico chamado inspiração nasceu uma obra estranha e enigmática, identificada por muitos como precursora do realismo mágico, o movimento que gerou o boom da literatura latino-americana nos anos 1960 e 70. De fato, Fuentes foi um dos autores agenciados pela lendária Carmen Balcells, mentora empresarial desse boom, formando o quarteto fantástico ao lado de García Márquez (Colômbia), Vargas Llosa (Peru) e Cortazar (Argentina).
“Você lê esse anúncio: uma oferta assim não é feita todos os dias. Lê e relê o anúncio. Parece dirigido diretamente a você, a ninguém mais. Distraído, deixa cair a cinza do cigarro dentro da xícara de chá que estava bebendo neste café sujo e barato…” Desde as primeiras linhas surge um estranhamento, fruto da escolha inusitada por um narrador em segunda pessoa. O tempo verbal da narração reforça esse estranhamento, alternando presente e futuro do indicativo. “… Você viverá esse dia como os demais dias, e não voltará a se lembrar dele senão no dia seguinte, quando senta-se novamente na mesa do bar, pede o café da manhã e abre o jornal.” Essas duas escolhas criam, de cara, uma relação peculiar entre narrador e personagem, narrador e leitor e, por consequência, leitor e personagem. A natureza dessa relação sugere várias interpretações, assim como os fenômenos desencadeados com a entrada de Felipe no antigo casarão do centro da cidade para responder ao anúncio. Ele entra e dali não sai mais.
A trama se desenrola em três dias e, embora o fio condutor seja o mistério, não há desfecho com a sua solução. As chaves dos enigmas que se apresentam apenas abrem portas para novos enigmas. O suspense é uma armadilha para seduzir o leitor, como o anúncio para atrair Felipe. Aura, mais que uma história de amor, é uma história de desejo, que confronta e amalgama morte e vida, juventude e decadência, sensualidade e abandono. Cria um impossível triangulo amoroso entre quatro personagens e, de quebra, fala de identidade ou de como essa identidade se transmuta no tempo. O tempo, em Aura, é o ponto de luz que criou o lampejo no mundo real. Não é de se admirar que a luz tenha um papel tão importante no texto, na construção do clima barroco e na simbologia do contraste entre o oculto e o visível.
Em 2001, quase quarenta anos após a sua publicação, a novela ganhou novo sopro de vida editorial. O então ministro do trabalho, Carlos Abascal, decidiu que Aura era inadequada para sua filha de quinze anos e protestou junto à escola que afastou a professora responsável pela leitura em aula. O motivo apontado: o parágrafo que descreve Felipe e Aura fazendo amor sob uma imagem de Cristo. A polêmica inflamou detratores e defensores, mas principalmente reacendeu o interesse pelo livro. Ao ser questionado, Fuentes evitou entrar na disputa, apenas observou que transar, tendo uma imagem de cristo acima da cama, era bem corriqueiro nos lares mexicanos e agradeceu a Abascal por ter impulsionado as vendas de Aura. “Foram mais de vinte mil cópias vendidas em apenas uma semana. Eu e meu editores adoramos”, brincou.
Sexagenária, Aura permanece uma obra jovem, de olhos verdes fulgurantes, e cheia de mistérios. Carlos Fuentes faleceu em 2012, aos 83 anos, deixando uma obra profícua. A jovem professora demitida, Georgina Rábago, é atriz e segue fazendo leituras dramáticas de textos literários entre seus trabalhos.
Leia uma amostra em
August 12, 2021
Assunto de Família

Filme de Hirokazu Koreeda – Japão – 2018.
Koreeda é um dos realizadores mais instigantes do atual cinema japonês e Assunto de Família é a culminação de sua obra, tanto no sofisticado manejo dos recursos cinematográficos como no aprofundamento de vários temas recorrentes em seus filmes. A sofisticação se revela já nas diversas possibilidades de leitura do filme. A mais evidente apresenta um drama familiar comovente de trama simples, estrutura linear e personagens cativantes que se tornam conhecidos desde os primeiros minutos de exposição. Abaixo da superfície, espreita uma obra labiríntica de viradas e contraviradas que desacomodam o espectador, tiram o seu chão ao transformá-lo ora em juiz, ora em cúmplice de vários crimes. Oculta por uma bela camada de sutileza e poesia surge uma obra revolucionária, discreta, mas de grande impacto.
Em Assunto de Família (a tradução do título em japonês manbiki kazoku é Família Furto), Hirokazu questiona os laços sanguíneos e o vínculo familiar, tema que abordou em Ninguém Pode Saber (2004) e Pais e Filhos (2013). No entanto, Assunto de Família estende esse questionamento para códigos civilizatórios e morais arraigados na sociedade e aponta que há inúmeras zonas cinzentas entre o preto da letra fria e o branco da folha que a registra. E essas zonas, por envolverem seres humanos, são repletas de dualidades e de aparências enganosas que embaralham nosso julgamento. Os protagonistas, membros da família furto, revelam-se interesseiros, ardilosos, traiçoeiros, egoístas, mas também solidários, compreensivos, altruístas, ingênuos e românticos. A gramática mágica do filme confere coerência a essas contradições.
Assunto de Família – movimentação magistral em espaços exíguos.Os movimentos de câmera e personagens nos espaços exíguos da residência dos Shibata e nos locais de trabalho (as lojas abarrotadas de mercadorias onde praticam seus furtos) é magistral. Transmite, mais do que os diálogos e ações, a cumplicidade existente entre eles. A composição, principalmente a opção do que enquadrar e o que deixar fora de quadro, cria joias visuais, como o plano em que o cabelo de Yuri é cortado ou a cena em que Shota, perseguido por funcionários do mercadinho, pula do elevado. O filme foi rodado em película para atingir a textura levemente granulada almejada por Koreeda que, em Depois da Vida (1998), faz uma brincadeira com a diferença entre o registro em vídeo e em filme.
Assunto de Família foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes, em 2018. Para os assinantes brasileiros da Netflix, ele estará disponível até o fim de agosto na plataforma de streaming. Não dá para perder.
August 5, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: No Olimpo

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.
Habemus olimpíadas! A pandemia havia arremessado Tóquio 2020 para 2021. Às vésperas da abertura, um novo recrudescimento ameaçou forçar mais um adiamento dos jogos. O presidente B, esfregando as mãos, cogitou oferecer Brasília como substituta. Já imaginava a si mesmo carregando o fogo olímpico, incendiando a pira. Foi desaconselhado por seus aliados do Gabinete Paralelo dos Empresários de Bens. As olimpíadas não eram a Copa América — alertaram — ali o buraco é mais em cima. Tudo bem, consolou-se B, igual a CPI entrou em recesso para os senadores assistirem os jogos nas madrugadas. Não era premente fabricar mais um escândalo para desviar a atenção da mídia.
Premente ou não premente, B não aguentou. Tratou de impulsionar seu requentado bordão: a volta do voto impresso. Fez alarde arrotando que apresentaria as provas de fraude nas urnas eletrônicas em sua próxima live, mas foi só um chamariz para tentar reerguer a combalida audiência dos últimos meses. Foi tão eficiente quanto a cloroquina no tratamento da Covid. Ninguém realmente esperava que apresentasse alguma prova, pois a palavra presidencial é à prova de qualquer suspeita, além de ser a prova de que ele não tem provas.
O mandatário, ocupado que estava em torcer pelo Brasil, receber a líder do partido neonazista alemão, incitar manifestações pelo voto impresso e andar de moto em Presidente Prudente, não conseguiu ir à reinauguração do Museu da Língua Portuguesa. De fato, foi prudente o presidente não ter ido, pois corria o risco de ser acusado de assassinar também o idioma de Camões. No entanto, deixou o governador Calcinha Apertada brilhar sozinho ao lado dos presidentes de Portugal e do Cabo Verde, e de dois ex-presidentes do Brasil.
Informaram ao presidente que o museu estava sendo reaberto seis anos após ter sido destruído por um incêndio. Este, pensou ele, não podem colocar na minha conta. Mas o incêndio na Cinemateca Brasileira, ocorrido dois dias antes – uma tragédia mais do que anunciada –, era outra história. Havia ainda outra razão para ignorar o evento: B não é muito chegado em museus. O mais perto que esteve disso daí foi ter inaugurado a exposição dos trajes usados por ele e pela Micheque na cerimônia de posse. Esse sim foi um evento importante.
Na torcida pelo Brasil, B enfrenta um dilema: por um lado, quer que o país conquiste o maior número de medalhas. Isso com certeza irá ajudar no tocante ao seu terrível índice de rejeição. Por outro, torce que nenhum atleta consiga mais do que uma medalha individual, no máximo duas. Isso porque está enfrentando outro tipo de rejeição… a da primeira-dama.
O poder, dizem as más línguas, é afrodisíaco. Não para B. Nos últimos tempos, o mais perto que chegou de algum prazer sexual foi montado em uma Honda cilindrada, com o Véiodavan coladinho na garupa. Sua relação conjugal atingiu um patamar mais baixo que a sua popularidade. Para tentar agradar a esposa, B a presenteia com medalhas. Enquanto os atletas suavam em Tóquio, ela recebeu a Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, na categoria Ouro. Essa honraria é conferida a personalidades que se destacam em atividades relacionadas à saúde pública nos campos da ciência, educação ou cultura. Tudo a ver com a Micheque. É a sua terceira medalha. Em maio, foi condecorada com a Medalha da Vitória, dada a quem contribuiu para a difusão das ações dos ex-combatentes durante a Segunda Guerra Mundial, participou de conflitos internacionais na defesa dos interesses do país ou integrou missões de paz. Em junho, faturou a Ordem do Mérito da Defesa que homenageia quem prestou relevantes serviços ao Ministério da Defesa ou às Forças Armadas. Quando os roteiristas de A Casa do Baralho indagaram o que ela fez para merecer cada medalha, o Planalto decretou cem anos de sigilo sobre as atividades da família presidencial.
A primeira dama se contentará com a terceira medalha? Continuará em silêncio no tocante ao dinheiro depositado em sua conta? A CPI da Covid retornará turbinada após o recesso olímpico? E qual será a próxima vítima do governo incendiário? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!
July 29, 2021
Tokyo Trial

Minissérie – Criação de Toru Takagi – Japão, Holanda e Canadá – 2016.
Finda a Segunda Guerra Mundial, as nações vencedoras se depararam com uma questão: como lidar com as atrocidades cometidas pelos nazistas. Um tribunal para responsabilizar os líderes e operadores da escravização e extermínio planificado de eslavos, ciganos e judeus foi instalado na cidade de Nuremberg, outrora palco dos grandes comícios do partido Nazi e do surgimento das primeiras leis raciais.
Na esteira do processo que levou 315 dias, outro tribunal, menos marcante e famoso, foi constituído pelos aliados para julgar os crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos pelos japoneses no Pacífico e na Ásia. Onze juízes de onze países se reuniram na Tóquio semidestruída para decidir os destinos dos acusados, seguindo o precedente de Nuremberg. O julgamento que estava previsto para durar seis meses, durou dois anos e meio.
A NHK, emissora pública japonesa, uniu forças com a produtora holandesa FATT para criar uma minissérie de quatro episódios sobre esse acontecimento. Juntaram-se a elas, no decorrer do projeto, a canadense DCT e a Netflix. O argumento original é do japonês Toru Takagi, a direção foi compartilhada entre o holandês Pieter Verhoeff e o norte-americano Rob W. King. A maior parte das filmagens, tanto das internas do tribunal como dos escombros da capital japonesa, foi realizada na Lituânia. Os atores são da Alemanha, Escócia, Índia, Holanda, China, Filipinas, Japão, Rússia, França, Austrália, entre outros países. Em outras palavras, a série (que tem uma versão de longa-metragem) foi tão internacional quanto o próprio julgamento.
Tokio Trial – imagens documentais dialogam com cenas de ficção.A direção de arte (cenários, objetos e figurinos) e a direção de fotografia apresentam um trabalho meticuloso na recriação do clima da época e do local. As sessões do julgamento são apresentadas em preto e branco, integrando imagens de arquivo com imagens ficcionais numa edição que coloca os juízes atores contracenado com os réus e advogados reais. Fora do tribunal a vida acontece em cores, porém imagens de arquivo em P&B das atrocidades e a situação dos japoneses no pós-guerra são inseridas, muitas vezes como filmes (newsreel) que os juízes assistem na pequena sala de projeção montada no hotel.
Inicialmente, Tokyo Trial parece ser um docudrama, formato que utiliza ferramentas de ficção (atores e cenários) para reconstituir eventos reais. No entanto, no avançar da série, o foco se fecha nos bastidores do julgamento, na relação dos juízes entre si e com o entorno (os interesses dos governos de seus países e a realidade do Japão pós-guerra) e nas grandes questões e diferentes visões de mundo que emergem nesse processo. Essa abordagem semeia situações dramáticas que vão além de recriações de eventos, gera personagens pluridimensionais e debates cuja complexidade e interesse extrapolam o mero informativo histórico. Nessa trupe de pesos pesados, o protagonista é o juiz holandês Bert Roling. O livro The Tokyo Trial and Beyond (1993), no qual Roling revela ao jurista Antonio Cassese muito dos bastidores desse julgamento, foi provavelmente um grande inspirador para os roteiristas da série se aventurarem pelos meandros de personagens e debates. Tokyo Trial fala de colonialismo, imperialismo, racismo, política e da intricada tarefa de ter um tribunal internacional permanente como o de Haia.
A série desperta interesse pela questão histórica e pelos temas que aborda, mas também pelas opções narrativas e estéticas na tessitura dessa obra dramática sobre um evento real. Tokyo Trial pode ser vista na Netflix.
July 22, 2021
O Estrangeiro

Livro de Albert Camus – França – 1942.
A primeira vez que li O Estrangeiro eu era adolescente, vivia intensamente a fase de grandes descobertas. Desde as primeiras linhas do texto percebi que estava diante de uma dessas revelações. Percebi que era possível ser profundo mesmo num texto curto, abrir comportas que se estendiam acima e abaixo das frases lacônicas, do perímetro das poucas páginas, pouquíssimos personagens e quase nada de trama. Entendi que era possível trabalhar a identificação através do distanciamento, tocar acordes dramáticos por meio de um protagonista apático que, antes de conduzir a história, parece ser conduzido por ela (será?). Descobri que é factível, usando frases curtas e secas que descrevem principalmente a ação, enveredar pela psicologia e filosofia de uma vida banal, atropelada por um evento que embora extremo, é cercado, antes e depois, pela trivialidade. E que o sujeito que conseguiu amalgamar tudo isso, em seu primeiro livro, era um gênio.
Infelizmente, o gênio morreu aos 47 anos. Desde jovem, sofria de tuberculose e, não raro, sentia sua vida ameaçada nas crises. No entanto, ele a perdeu num acidente de automóvel, numa viagem que pretendia fazer de trem. Havia inclusive comprado as passagens, mas foi convencido pelo amigo Michel Gallimard a ir de carro com ele e a família. Camus, que refletia muito sobre a existência e o absurdo, disse certa vez que morrer por acidente automobilístico era a morte mais absurda. Seu personagem Meursault passa a ocupar-se de uma única tarefa a partir de sua sentença: pensar sobre a morte. E chega a conclusão de que não há nada lá fora. Não há um sentido para a vida, qualquer vida, não há nenhuma força que se importe com qualquer coisa que aconteça no mundo. E essa indiferença, essa apatia do destino afinal o consola, por identificação.
Ao reler esse clássico, décadas após a primeira revelação, mais uma descoberta: o texto nada perdeu em vigor ou atualidade.
O Estrangeiro foi adaptado para o cinema pelo mestre italiano Luchino Visconti (1970), inspirou a música Killing an Arab, do The Cure (1978) e, provavelmente, a letra de Rapsódia Boemia, de Queen (1975).
Camus, que não gostava de se enquadrar em nenhuma escola, grupo ou movimento, tanto nas artes como na filosofia, ganhou o Nobel de literatura em 1957. Escreveu peças de teatro, ensaios filosóficos e outras novelas. O Estrangeiro, no entanto, permanece sua obra-prima.
Leia uma amostra em:
July 15, 2021
ROJST’97

Série – criação e direção de Jan Holoubek – Polônia – 2021 – segunda temporada.
O corpo de um adolescente de doze anos é encontrado na floresta de Gronty após a enchente que assolou a Polônia em 1997. Esse é o gatilho da trama na sequência da série Rojst, intitulada Rojst’97. A primeira temporada, lançada em 2018, também iniciou com a descoberta de dois cadáveres na mesma floresta (para ler sobre a primeira temporada, clique aqui). O ano era 1984 e o país ainda estava sob o regime comunista. Rojst’97 dá um pulo de 13 anos para uma Polônia pós-queda do muro, inserida na economia de mercado. O Império Soviético não existe mais e, no entanto, pouca coisa parece ter mudado na pequena cidade ladeada pela floresta. O clima sombrio, ocre e pesado transitou para um tom cinzento e decadente, reforçado pelo cenário pós-dilúvio. O jornal local não sofre mais a censura do Partido Comunista, mas enfrenta a ameaça de falência. A polícia e os repórteres investigativos ainda mantêm uma relação complexamente delicada ou delicadamente complexa.
A policial Anna no cenário de guerra após a enchente do século.A sombra do passado segue pairando sobre a vida da cidade. A enchente, além de desenterrar um cadáver recente, desencavou um cemitério clandestino no coração da floresta. O que ocorreu ali, ao final da Segunda Guerra Mundial, é aprofundado e detalhado em Rojst’97. E Witold não é o único que sente o peso dessa sombra. O terreno pantanoso que engole os desavisados é literal e simbólico, metáfora perfeita para a Polônia atual e seu governo negacionista.
Witold enfrenta as sombras do passado no pântano de Rojst.A segunda temporada apresenta uma nova protagonista, Anna Jass, sargento-detetive que vem de fora e é muito diferente dos policiais locais. Os dois protagonistas da temporada inicial não saem de cena, apenas cedem o centro do palco. Forma-se um triângulo interessante entre a forasteira, o jornalista Piotr, que retorna à cidade onde começou sua carreira, e Witold, que nunca saiu (embora siga tentando). Parece que o equilíbrio entre os dramas político, intimista e criminal da primeira temporada se rompe para dar mais ênfase à trama policial, mas essa aparência se revela enganosa no último episódio, quando todos os pontos se ligam de forma magistral e surpreendente.
Diferente da primeira temporada, Rojst’97 termina com um gancho para uma sequência, gancho que é um enorme pega-ratão. Resta saber se haverá uma terceira temporada e, se houver, qual época ela abordará.
Rojst e Rojst’97 podem ser vistas na Netflix.
Teaser (em polonês):
July 8, 2021
A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Ex-cunhada.

“Você pode deixar o baixo clero, mas o baixo clero nunca deixa você.” Severino Claudicante.
O presidente B teve mais uma noite de sobressaltos. Sonhou com um castelo de cartas. Era uma peça composta de dois baralhos que alguém montara em sua mesa e, ao mesmo tempo, era o palácio de onde governava. Olhava admirado para aquela construção imponente e se surpreendia com a fragilidade do equilíbrio que a sustentava. Uma coceirinha, um desejo angustiante de dar um peteleco e ver a casa desmoronar começou a crescer dentro dele. Sabia que precisava se controlar. Afinal, era ele quem estava no topo. Se aquilo dali ruísse… Virou-se de costas para a pirâmide que deu tanto trabalho montar e ouviu uma voz rouca bafejando em sua nuca: não adianta, companheiro, a casa caiu!
Esse era também o sonho de muitos brasileiros, mas no caso de B, tratava-se de um pesadelo. Acordou assustado, tentando identificar a voz que lhe parecia ser ora do ex-presidente L, ora do seu ministro da fazenda, o Posto Ipiranga. Era uma profecia? Um aviso? Uma ameaça? Chamou o general EstouaquiParaObedecê-lo, pediu um copo d’água com açúcar. Este prontamente apareceu com uma latinha de leite condensado, com dois furinhos milimetricamente opostos. Ele gostava de seu ex-ministro da saúde. Era um pau-mandado com iniciativa. Uma combinação rara de se encontrar num indivíduo. Deu a primeira sorvida na lata e desabafou para seu assessor, não sem antes revistá-lo como prevenção de um possível grampo.
ParaObedecê-lo se retorcia todo durante a revista, sensível as cócegas do presidente. Cuidava para não fazer barulho e acordar a Micheque que dormia ao lado, sonhando com o Feiroz depositando em sua conta corrente.
— Caralho — sussurrou o mandatário — e eu pensei que maio foi um mês ruim. A CPI tá nadando de braçada, parece que abriu a porteira pra boiada das denúncias. Os protestos nas ruas tão cada vez piores. Ninguém mais quer andar comigo de moto. E já é a terceira noite que eu sonho que tudo isso daqui é uma casa de baralho e que a casa cai.
— Que é isso, Presidente? Só Deus tira o senhor daqui. É só dar mais uns pixulé pro Centrão, outro pra nós milicos, que o senhor tá seguro.
— Que pixulé o quê, os caras querem é o filé. Tive que me livrar de ti, do Amazon is for Salles, do Desonesto Sabujo, pra liberar esses ministérios pros sanguessuga. E em vez de largarem do meu pé, a coisa só tá apertando mais.
— O senhor tira de letra, Presidente. Como fez quando pegaram o Feiroz, quando calaram a Sara Inferno, quando queriam apreender seu celular, quando liquidaram o cabeça do Escritório do Crime, quando o Moro num País Tropical denunciou o aparelhamento da PF, quando o STF liberou o vídeo da reunião ministerial, quando a Amazônia queimou, quando o Brasil passou de 500 mil mortos, quando investigaram a rachadinha do Zero à esquerda Um…
— É isso!!! – saca o presidente. – A rachadinha. Essa é a causa do pesadelo! Que humilhação eu cair desse jeito.
— Como assim?
— Isso aqui é o Brasil, correto?
— Positivo, Presidente. Hemisfério Sul.
— E o Brasil é a Casa do Baralho, tô certo?
— Sempre, Presidente.
— Só no Brasil um presidente que resistiu a tudo que tu falou, mais a propina da Covaxin, a insistência na Cloroquina, a queda do Trampo, a renúncia dos comandantes militares, a acusação dos irmãos Ciranda, o ataque da imprensa-lixo, o super pedido de impeachment, o mimimi pro tribunal de Haia, sem falar da fakeada no aparelho abdominal, vai acabar caindo por causa da… cunhada.
— Ex, Presidente.
— Como assim ex-presidente? Ainda não caí!!!
— Deus nos livre. O ex era pra cunhada, Presidente.
Realizar-se-á o pesadelo de B (e sonho de tantos brasileiros)? Será antecipado o fim da atual temporada da série mais caótica do século? Não perca, nos próximos (e derradeiros?) episódios da Casa do Baralho!


