Jaime Lerner's Blog, page 21

October 14, 2021

Atos Humanos

Livro de Han Kang – Coreia do Sul – 2014

Han Kang é um ser de outro mundo. Ao menos é o que parece de sua escrita. Ela viaja por lugares que julgamos conhecer, mas revela com seu olhar paisagens muito diferentes – grotas,  crateras e cumes –, de arrepiar.

Este é o segundo livro que a Editora Todavia publica dela aqui no Brasil. O primeiro foi o premiado A Vegetariana, lançado em 2018. Três anos depois é traduzido Atos Humanos. Os dois livros são estruturados como um enfeixe de relatos.  Diferente de A Vegetariana, Atos Humanos não é centrado em uma protagonista e seu processo interno frente a uma inadequação, mas  cria um mosaico de personagens ligados a um episódio que marcou a história do país. Todas as personagens, menos uma, são vítimas diretas desse evento.

O terrível massacre na cidade de Gwangju, ordenado pelo governo sul-coreano contra seu próprio povo é o pivô de Atos Humanos. A manifestação fazia parte de uma série de protestos contra o regime ditatorial do general Duwhan Jeon que havia tomado o poder com um golpe. O movimento, iniciado por estudantes e professores,  exigia o fim da lei marcial, a reabertura das universidades e liberdade de imprensa. As manifestações em Gwangju duraram de 18 a 27 de março de 1980. A repressão violenta das forças policiais contra os estudantes nos primeiros dias provocou uma reação popular e a cidade toda foi tomada pelos protestos,  chegando a declarar um governo autônomo. O ditador então enviou o exército, com forças de elite e tropas que haviam lutado na Guerra do Vietnam em apoio aos EUA. O resultado foi um banho de sangue. Os manifestantes foram assassinados, presos, torturados e rotulados de comunistas. Esse rótulo (que na história coreana tem peso significativo) se manteve até o final da ditadura (1988), quando o movimento foi reconhecido como pró-democracia. Em 1996, Duwhan Jeon foi julgado pelo massacre e condenado à morte. Porém foi perdoado pelo presidente Kim Young-sam.

Soldados contra estudantes em Gwangju (AP Photo/Sadayuki Mikami)

Atos Humanos não apresenta um panorama do massacre. Ao contrário, perambula pelo terreno acidentado do conflito recriando o caos, a tensão e os detalhes das atrocidades perpetradas, sempre pelos olhos das vítimas. Juntando os cacos, ligando esses fragmentos emerge um questionamento doído, uma espécie de tratado sobre a crueldade. Quem começa a desfiar esse novelo é Dongho, um rapaz que ainda cursa o segundo grau e entra quase de gaiato no movimento. À procura do corpo de um amigo, ele chega ao auditório da universidade e acaba ficando por lá para ajudar a receber, limpar, e tentar identificar os mortos trazidos em profusão. A partir de Dongho a narrativa aborda outros seis personagens, como uma borboleta que flutua entre os vários cenários e histórias que conduzem à outras histórias e cenários, todos interligados. A força do texto de Kang, falando pelas vítimas, traz a dimensão das barbaridades que sofreram. Uma prosa linda de morrer e triste de matar, repleta de delicadeza e brutalidade, solidariedade e selvageria, todas fruto de atos humanos.

A sétima personagem, a única que não sofreu diretamente na pele as consequências da massacre, é a própria autora, que nos revela o seu caminho até Dongho, sua conexão com o menino e com o tema. O romance, portanto, é também sobre criação, sobre a importância de contar, de não deixar esquecer. Sobre escrever. O que é, por excelência, um ato humano.  

Leia uma amostra

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Published on October 14, 2021 07:36

October 7, 2021

Boy Erased – Uma Verdade Anulada

Filme de Joel Edgerton – EUA – 2018.

Boy Erased não é uma obra que apresenta inovação de linguagem ou ousadia narrativa/estética. O que a torna um grande filme é a sensibilidade com que aborda um drama íntimo e intricado, a partir de  um roteiro sólido e um esplêndido trabalho de atores.

O filme é baseado no livro de Garrard Conley, que relata sua experiência com a cura gay em uma instituição religiosa especializada no assunto. Garrard, com dezenove anos, filho de um pastor da igreja Batista, acreditava que a atração que sentia por homens era um problema e queria resolvê-lo antes de ir para a universidade. Concordou, ainda que com alguns temores, em ingressar no programa de tratamento a pedido do pai. O que vivenciou nesse tratamento e, depois, na universidade, acabou mudando radicalmente a visão que tinha sobre a sua sexualidade. Mas não no sentido esperado por sua família.

O grande desafio do filme é expressar na tela a intensa provação do jovem, os inúmeros conflitos internos e externos que encara nessa jornada; e manter a autenticidade de seu relato, sem escorregar em maniqueísmos. O elenco que conduz essa missão é composto por Lucas Hedges, como Jared (nome de Garrard na adaptação cinematográfica), Nicole Kidman, como sua mãe e Russel Crowe, como seu pai. Estes dois personagens parecem estereotipados no início, mas no avançar da obra se entende que é uma impressão enganosa. O que figura como estereótipo é um modelo rígido de comportamento que o casal segue religiosamente, nos papeis de pais, marido e esposa, cidadãos, etc. Assim como o filho, pai e mãe também passam por um abalo sísmico e, em consequência, por mudanças importantes. As viradas fazem esses personagens crescerem de forma excepcional, revelando ainda mais o excelente trabalho de Nicole e Russel na construção do arco dramático de seus personagens. Ao lado do trio protagonista, o elenco de apoio mantém o mesmo nível de atuação, com destaque para o diretor do filme, Joel Edgerton, que faz também o papel de Victor Sykes, o terapeuta de conversão sexual.

Sublime trabalho de Lucas Hedges, Nicole Kidman e Russel Crowe.

O filme causou polêmica no Brasil, após o cancelamento da  estreia, prevista para fevereiro de 2019. Era o início do governo Bolsonaro com sua cartilha meninos usam azul e meninas, rosa o que suscitou suspeita de censura. A Universal Pictures (distribuidora do filme, nada a ver com a Universal do bispo) negou que isso tenha influenciado o cancelamento, explicou que o motivo foi puramente comercial: projeções apontavam que o investimento na divulgação do filme acabaria sendo maior do que o retorno nos cinemas. E deu exemplo de outro filme, cuja estreia brasileira foi cancelada naquele período pelo mesmo motivo, Bem-vindos a Marwen, de Robert Zemeckis. Coincidência ou não, este filme (também baseado em fatos reais) aborda o caso de Mark Hogancamp, que foi brutalmente espancado em um bar após admitir que gostava de andar com sapatos de salto alto. É evidente que as estreias não foram canceladas por qualquer pedido ou iniciativa do governo recém-empossado, mas é provável que o clima no Brasil levou a distribuidora a uma autocensura para evitar boicotes e consequente prejuízo financeiro.

Apesar do cancelamento da estreia nos cinemas, o  livro de Conley (2016) foi traduzido para o português e lançado no Brasil no início de 2019. Atualmente, os dois filmes,  Boy Erased e Bem-vindos a Marwen podem ser vistos na Netflix.

Assista ao trailer:

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Published on October 07, 2021 08:24

September 30, 2021

Nordic Noir e mybest Brasil

Saga Noren e Martin Rohde – personagens ícone em A Ponte

No último 21 de setembro, a série A Ponte comemorou dez anos de sua estreia. Coprodução inédita entre as TVs da Suécia e da Dinamarca, seu tremendo sucesso colocou em foco a dramaturgia audiovisual da Escandinávia e cunhou um novo termo, Nordic Noir, referindo-se a séries de países escandinavos com tramas de crimes macabros e uma estética do frio singular. O termo noir ganha outro sentido em uma região geográfica que mergulha a cada ano no escuro prolongado do inverno polar.

A Ponte não foi a pioneira. Antes dela, a série The Killing (2007) havia atravessado fronteiras, inclusive gerou um spin-off americano. A brecha aberta por The Killing foi escancarada por A Ponte, que rendeu inúmeros spin-offs em função do argumento: um corpo encontrado na  divisão entre dois países, a metade superior em um país e a inferior em outro. Na esteira desse sucesso, as programadoras, principalmente, as plataformas de streaming, foram atrás de conteúdo da Escandinávia, tanto para aquisição como para produção. E não apenas séries policiais do Nordic Noir, como outros gêneros. O sucesso no audiovisual movimentou também outros setores, como o turismo. Em Copenhagen existe uma agência, a Nordicnoirtour, especializada em passeios por locações dessas séries, sendo o maior destaque, obviamente, a ponte de Oresund.

Nordic Noir – crimes macabros e tons frios. Cena de O Assassino de Valhalla.

As obras de países como Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia, trazem normalmente tramas inusitadas, personagens que fogem dos estereótipos de heróis ou de detetives durões, mulheres em posições de liderança, e um visual gelado, quase monocromático de tons cinza e azul. Uma personagem que se tornou ícone é Saga Norén, policial dinamarquesa de A Ponte. No roteiro original, Saga seria morta no nono episódio da primeira temporada. A empatia que criou junto ao público salvou a vida da personagem, “obrigando” produtores e roteiristas a repensarem a trama e mudar o destino de Saga, para felicidade geral.

Em homenagem ao audiovisual da Escandinávia e aos dez anos de A Ponte, eis uma lista com séries disponíveis no Brasil. Algumas foram resenhadas pelo blog, basta clicar sobre os nomes para linkar ao post.

The Killing (Dinamarca); A Ponte (Suécia + Dinamarca); Borgen (Dinamarca); Borderliner (Noruega); Os Caminhos do Senhor (Dinamarca); Trapped (Islândia); Ragnarok (Noruega); Califato (Suécia); O Assassino de Valhalla (Islândia); Bordertown (Finlândia); The Rain (Dinamarca); Deadwind (Finlândia); Nobel (Noruega); O Jovem Wallander (Suécia); Areia Movediça (Suécia).

E, por falar em listas e séries, o blog do Lerner foi convidado pela mybest Brasil a participar de um post colaborativo sobre séries na Netflix. Além da minha indicação, outras blogueiras e blogueiros destacam suas séries preferidas na plataforma de streaming. Não foi fácil escolher uma entre tantas obras que me impactaram. Para ver a minha e as outras recomendações, clique aqui.

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Published on September 30, 2021 07:46

September 23, 2021

A Casa do Baralho: Um Príncipe em NY

Em um filme de John Landis, de 1988, o jovem príncipe de Zamunda, uma nação africana fictícia, chega a NY fugindo de um casamento arranjado. Ele sonha encontrar um amor verdadeiro, alguém que o ame pela pessoa que é, e não pelo título que tem. Por isso chega incógnito, disfarçado de estudante estrangeiro e arruma trabalho como faxineiro num fast food.

A visita do presidente B à Nova Iorque para discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas lembra um pouco essa comédia. B também chega de uma nação fictícia, um Brasil que só existe na sua imaginação. Igual ao príncipe, ele quer permanecer incógnito, passar por alguém do povo, e por isso entra no hotel pela porta dos fundos, e come pizza em pé, na rua, junto com sua comitiva. Só não viajou em busca do amor verdadeiro, pois odeia amar e ama odiar. Entrou escondido no hotel para escapar da imprensa e dos manifestantes e teve que comer na rua porque não é vacinado. Nova Iorque turbinou ainda mais seu ódio pelo passaporte sanitário.

Inspirado por esse ódio, seu discurso na ONU lembra outra obra clássica: Alice no País das Maravilhas. B fala de um Brasil de economia pujante, que protege o meio ambiente como nenhum outro e que não teve, sob a sua batuta, um caso sequer de corrupção. É um discurso esquizofrênico, dirigido, em tese, para a Assembleia, mas proferido para os ouvidos de seus militantes. Ao  dizer: em 2022, o Brasil voltará a ocupar um assento no Conselho de Segurança, ele pensa: em 2022, o Brasil, me escolherá para mais um mandato. Quando agradece a votação de 181 países entre 190, fantasia sobre o agradecimento que fará a seu povo, no discurso da reeleição. Pinóquio junta-se à Alice nesse palanque e dispara, em tom roBótico, mais mentiras por segundo do que perdigotos. Afirma que as manifestações de 7 de setembro, em defesa da democracia e do seu governo, foram as maiores da história; que o BNDES financiava obras em ditaduras comunistas no governo anterior; que as medidas de isolamento e lockdown são a causa da inflação; que ele socorreu os pobres, impedidos de trabalhar pelos decretos de prefeitos e governadores; que o tratamento precoce deu certo para ele e por isso funciona; que o Brasil, impulsionado pelo retorno de investimentos, devido à confiança do mercado em seu governo, terá um crescimento de 5% em 2022; que a nossa geração de energia é exemplo mundial;  que os indígenas gozam de liberdade e segurança em suas terras ancestrais, e por aí vai. Bem que avisou, no início do pronunciamento, que iria apresentar um Brasil bem diferente do retratado pela imprensa. Foi a única frase em que não mentiu.

Entre discursos que abordaram desafios globais como a pandemia, o  aprofundamento das desigualdades, o aquecimento global, as guerras e a revolução tecnológica, a fala do presidente soou ainda mais estridente. Parecia uma mortadela vencida num sanduíche de pão gourmet.

Para coroar a visita, o ministro da saúde Quemroga foi diagnosticado com Covid e a delegação brasileira foi proibida de entrar no prédio da ONU. Todos voltaram prematuramente para casa (menos o ministro que ficou em quarentena em NY) e assim terminou a participação do Brasil  na Assembleia Geral. Ao aterrissar, B ainda teve que enfrentar uma recomendação da ANVISA para que toda a delegação praticasse o isolamento por 14 dias.

A ONU respirou aliviada, mas o vice-presidente ficou extremante frustrado com a volta prematura do chefe. Chegou a fantasiar a assinatura de um decreto proibindo a entrada de pessoas não vacinadas no Brasil.

Teria funcionado esse golpe da vacina? Terá conseguido o presidente resgatar, nessa viagem, a imagem desgastada do país? Logrará o ministro da saúde completar as compras nova-iorquinas que a primeira-dama não concluiu? E o mandatário, cumprirá a recomendação da agência sanitária? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho

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Published on September 23, 2021 06:50

September 16, 2021

O Poder e a Glória

Livro de Graham Greene – Inglaterra – 1940.

Graham Greene escrevia muito. Foi jornalista, contista, resenhista de filmes, ensaísta, autor de peças teatrais e dezenas de romances. É considerado um patrimônio cultural no Reino Unido (os ingleses nunca se conformaram por ele não ter sido laureado com o Nobel de literatura, embora tenha chegado perto em 1967). Como jornalista, fazia longas viagens que nutriam também sua ficção: boa parte de suas tramas acontecem fora do Reino Unido. Não raro, situava seus protagonistas em deslocamento (viagens, fugas, mudanças), ou os concebia como personagens deslocados, mesmo não saindo do lugar. Destrinchar conflitos internos era a especialidade da pena afiada de Graham. 

O Poder e a Glória é uma de suas obras mais instigantes. Num cenário árido de uma província no México, em plena revolução anticlerical, um padre foge das forças governamentais. É o último sacerdote remanescente no estado. Os outros foram fuzilados, obrigados a largar a batina ou ir embora. Tão avassaladores quanto a perseguição são os pensamentos que o assolam durante a missão insana que estabeleceu a si mesmo de seguir praticando o sacerdócio nos locais mais recônditos. Pensamentos que questionam a própria fé, a natureza do bem e do mal, seu desempenho como padre e como ser humano. Seus antagonistas, o tenente revolucionário e o mestiço de caninos amarelos, aliam-se a esses pensamentos para encurralá-lo entre o fogo e a frigideira e expor a fragilidade humana em toda sua dimensão.

Greene escreve com precisão econômica, uma escrita que foca principalmente na fluência narrativa. Suas descrições e diálogos são cinematográficos (provavelmente fruto da quantidade de filmes que viu enquanto resenhista) e colocam o leitor no meio da ação, mesmo quando a ação é pura reflexão. No avanço linear da trama, há cortes que lembram as sequências cinematográficas, deixando de lado o que não é essencial. O humor irônico – marca registrada do autor – está ausente em O Poder e a Glória, a não ser no episódio que o padre tenta comprar clandestinamente vinho para seus ofícios e acaba sendo obrigado a bebê-lo junto com o vendedor. Situação que expõe de forma magistralmente sardônica a psicologia do beberrão e a corrupção na roupagem latino-americana.

O cenário árido de O Poder e a Glória de Graham Greene

Greene conheceu os cenários de O Poder e a Glória nos meses que esteve no México, em 1938, principalmente ao passar pelo estado de Tabasco, onde o governo anticlerical de Tomás Garrido Canabal havia fechado todas as igrejas e obrigado os padres a abandonarem a batina e a casarem. No ano seguinte, o autor publicou o relato dessa viagem em The Lawless Roads (As Estradas sem Lei) e um ano depois veio à luz O Poder e a Glória. O livro, como boa parte dos romances de Greene, foi adaptado para o cinema: o filme O Fugitivo (EUA, 1947), dirigido por John Ford e estrelado por Henry Fonda. Houve também adaptações para o teatro e para a televisão. O Poder e a Glória figura na lista dos cem romances mais importantes do século XX da revista Time.

Greene não ganhou o Nobel de literatura, mas faturou vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Jerusalém, em 1981, outorgado a autores cujas obras abordam temas ligados à liberdade. No Brasil, a edição de 1953 da editora Biblioteca Azul foi traduzida pelo poeta Mario Quintana.

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Published on September 16, 2021 07:32

September 10, 2021

A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Ressaca

No dia seguinte ao brado redundante, em que o presidente paraquedista B convocou seu rebanho para servirem de retrato vivo de um ultimato, e todos bradaram em uníssono eu autorizo!, o gado em sua maioria voltou para casa, mas alguns levaram o Mito a sério. Pessoas enroladas na bandeira mandavam vídeos emocionados dizendo que o Brasil estava em Estado de Sítio, como se estado de sítio fosse sinônimo de êxtase ou nirvana. Caminhoneiros fecharam estradas vicinais em vários cantos do país, lembrando as difíceis semanas de 2018 que deixaram o governo T de joelhos. O fantasma do  desabastecimento voltou a assombrar os brasileiros e desagradou ao mercado. A bolsa despencou e o dólar disparou.

B, apavorado mandou uma mensagem pedindo para os aliados liberarem as estradas. Incrédulos, acharam que o áudio era fake. Não iriam liberar. Só se ele gravasse um vídeo e ainda mostrasse um jornal com a data do dia, como nos filmes de sequestro. A palavra impeachment começou a circular na boca de políticos que antes pretendiam desconhecê-la.

Nessa hora, um personagem quase esquecido reentrou em cena. O ex-presidente T, protagonista da temporada passada, travestido de bombeiro, almoçou com B e lhe passou alguns ensinamentos valiosos: 1. não há problema nenhum em dar golpe no Brasil, mas tem que ser combinado  com os outros poderes (a mídia hegemônica, o PIB e o judiciário, entre outros) e tem que ser aparentemente civilizado. De preferência, que nem pareça golpe. Esse negócio de tanques nas ruas é muito démodée 2. Agora que o estrago foi feito, é hora de se retratar.

B não gosta de se retratar, só de ser retratado à frente de seus seguidores, bradando ultimatos. Alegou que era muito poder para dividir e assim não tinha graça nenhuma dar um golpe, muito menos um auto-golpe. E que igual, a intenção dele não era essa, era só blefar pra assustar os canalhas que o provocavam. O chamaram, na mesma semana, de corno e de bicha, aí ele perdeu as estribeiras, como todo homem perderia.

— Perfeito — disse T — Eis um bom texto pra retratação. Anote aí: não tive a intenção de atacar ninguém. Isso aconteceu no calor do momento. Peço desculpas à nação e a quem se sentiu ofendido. Não tem coisa que eu mais prezo do que a harmonia entre os poderes.

— Prezo é com z ou com s?

— Depende. Se você for publicar a nota é com z, se você não publicar, será com s.

Este foi um argumento cabal e a retratação foi publicada. Como por mágica, a bolsa se recuperou, o dólar se aquietou, e o presidente do senado elogiou o retratante. O Brasil deu mais um passo rumo ao passado.

Como reagirão os fieis militantes do Presidente B? Quanto tempo ele conseguirá sustentar o papel de bom moço? E o ex-protagonista T, voltará definitivamente à cena, ou vai preferir operar nos bastidores? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on September 10, 2021 08:32

September 9, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Brado Redundante.

Há 199 anos ouvia-se, às margens do Ipiranga, um brado retumbante. Partiu do príncipe regente, que viajava com sua comitiva a São Paulo e acabara de receber uma carta urgente de sua querida esposa, informando-o do ultimato da coroa portuguesa. Além da mensagem, havia um documento pronto para o regente assinar. Era a declaração de independência do Brasil. Dom Pedro suspirou: não bastava a dor de barriga que o fizera correr para aliviar-se às margens plácidas, ainda tinha que encarar essa bronca. Assinava a declaração ou se curvava às exigências de Portugal? O brado, que alguns historiadores juram que foi Independência ou Morte! e outros atribuem ao desarranjo intestinal do regente, entrou para a história como o ato formador da nossa pátria e, também, da ideia de que no Brasil se ganha tudo no grito.

Não há, na história da nação, maior adepto dessa doutrina do que o presidente B. Desde que ganhou as eleições de 2018 (que, alega, foram fraudadas), ele avança, de brado em brado, rumo ao projeto ditatorial de governar sozinho. Sonha em fazer o país regredir dois séculos e tornar-se imperador, defensor perpétuo do Brasil, como foi Dom Pedro. Perpétuo tem um som que o agrada demais. Vocifera que só Deus o tirará da presidência, pois foi Ele quem lhe conferiu essa missão, igualzinho aos monarcas de antigamente. Produziu até herdeiros: 01, 02, 03 e 04, criados e preparados para assumir o seu legado, quando Deus o chamar. Ah, como adoraria retornar aos tempos da sociedade escravagista, de maioria analfabeta e miserável, dominada pela religião, onde os homens de bem eram os homens dos bens e ninguém precisava de licença para andar armado. As mulheres (de bem) eram rainhas do lar, os índios não tinham alma e a natureza se oferecia virgem para ser explorada. Veados eram caçados, o ouro era extraído, sem admoestações. Da modernidade manteria consigo apenas o divórcio, o leite condensado e as redes sociais.

A cada avanço nesse projeto de retrocesso, seus gritos soam mais como ruídos de um desarranjo. E cheiram mal. Estão mais para o Tietê atual do que para o Ipiranga de outrora. Grita e blefa, em brados redundantes, a ponto de nem ele saber mais quando está blefando. De quando em vez, um dos poderes paga pra ver. Ele então recua, sente-se acossado, mas sempre escapa de pagar a aposta.

Seu mais recente ato foi o sequestro do 7 de Setembro. Já havia se apropriado da bandeira nacional, da camisa da seleção, por que não da data da Independência? Convocou seu rebanho para manifestações em todo o país e disse (pela enésima vez) que dessa vez chega! Houve quem achou que seria o início de uma guerra civil ou um autogolpe, ou que hordas invadiriam o Congresso e o STF. No entanto, foi mais um blefe. B Bradou em Brasília e depois voou para São Paulo, lá bradou mais forte e mais alto. Atacou governadores e prefeitos, as urnas eletrônicas, o sistema de partidos e a justiça. Clamou seus seguidores a darem a vida pela liberdade. A sua liberdade de jogar o país 200 anos para trás. Não mencionou a alta da inflação e do desemprego, nem o encolhimento do PIB, a educação paralisada e o aprofundamento do abismo social. Não falou da pandemia com seu mais de meio milhão de mortos. No Brasil de B, o único problema é que existem canalhas que não o deixam governar. Anunciou que levaria a imagem da multidão que o apoiava para enquadrar, a partir dessa data histórica, os outros poderes. Foi mais um brado fétido, um balão de ensaio. Mas se não o fizerem pagar a conta e logo, ele ainda consegue completar a viagem no tempo.

Haverá reação concreta ao último ato do presidente, além da multa que levou por não usar máscara em SP? Seguirá o Brasil chafurdando na crise institucional? E a variante Delta, terá feito a festa nas aglomerações do candidato a Imperador? Descubra nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on September 09, 2021 08:49

September 2, 2021

A Chegada + História de Sua vida

Filme de Denis Villeneuve, 2016 + conto de Ted Chiang, 1999 – EUA.

O encontro entre humanos e alienígenas talvez seja o tema mais recorrente na literatura de ficção científica. E não só nela. Volta e meia, ovnis e extraterrestres aparecem em noticiários e programas investigativos; em Eram os Deuses Austronautas, Erich Von Daniken apresentou a tese de que relatos bíblicos e de outras mitologias descrevem a visita de civilizações mais avançadas ao nosso planeta, causando grande furor. O tema abre espaço ilimitado para a imaginação, mexe com desejos e medos atávicos na busca incessante por um sentido na nossa existência.

Em História de Sua Vida, Ted Chiang, escritor norte-americano, aborda esse encontro com muita originalidade. Há mistério, mas não há pânico nem violência. Quem conduz o contato não é um líder político ou militar, é uma linguista que, junto a uma equipe multidisciplinar, tem a missão de estabelecer comunicação e desvendar o objetivo da visita dos heptapódes à terra. Descobrir isso é de suma importância para as autoridades, mas não é para o livro. Ao tentar se apropriar da linguagem heptapoide, na qual o idioma falado e escrito são muito distintos, Louise começa a pensar como eles, percebendo o tempo de forma não linear e a sucessão de eventos não como causa e consequência. Essa capacidade irá mudar completamente a sua vida, principalmente a comunicação com sua filha.

Louise – Amy Adams – e a escrita circular dos heptapódes.

Ao adaptar o conto, o cineasta Denis Villeneuve estabelece para si um desafio e tanto. Há muitas ideias e ciência no texto de Chiang, fáceis de serem desenvolvidas numa narrativa escrita, nem tanto na linguagem audiovisual. O filme toca de leve no paradoxo entre o livre arbítrio e o determinismo,  simplifica e abrevia o manejo de Louise na troca de conhecimentos com os alienígenas. Villeneuve adiciona a ameaça iminente de guerra e violência, inexistente no livro, para adensar a carga dramática e revela, ao final, o objetivo da visita dos extraterrestres, propositalmente ignorado no conto. No terreno das ideias explora a hipótese de Sapir-Whorf em que línguas diferentes moldam diferentes percepções de mundo, o que explica a mudança em Louise. Por outro lado, estrutura a não linearidade da narrativa de maneira mais sofisticada que Chiang; dá maior substância à personagem Hannah, filha de Louise, e aos dois alienígenas. E, acima de tudo, cria uma estética muito especial que expressa o tom solene dos encontros entre a dupla de humanos e de heptapódes. Estética construída pela fértil imaginação da direção de arte, pelo trabalho de luz e efeitos especiais, com destaque para a animação da linguagem escrita dos visitantes e, especialmente, pelo desenho de som. Este desempenha, discretamente, uma função dramática muito importante, trazendo à tona o estado emocional dos personagens e pontuando de forma genial as barreiras e avanços na comunicação – o principal conflito da obra. Merecidamente, o filme ganhou o Oscar de melhor edição de som em 2017.

Conto e filme são duas obras interessantes. O conto, acredito eu, fala mais aos corações dos fãs de ficção cientifica; o filme provavelmente agrade um público mais amplo. Ambos usam a visita dos alienígenas para apresentar ideias e dilemas bem terrenos, mas que dão um nó em nossos conceitos e padrões de pensamento. A Chegada pode ser visto na Netflix, no Now e na Globo Play Filmes. O conto pode ser lido na coletânea História de sua Vida e Outros Contos, publicado no Brasil pela editora Intrínseca.

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Published on September 02, 2021 07:39

August 26, 2021

The Delivery Boy

Filme de Adekunle (Nodash) Adejuyigbe – Nigéria – 2018.

O que une um jihadista, criado para ser um mártir do islã, e uma prostituta da zona mais empobrecida da cidade? Aparentemente, o acaso de estarem na mesma hora e no mesmo local. Ela, sendo perseguida por um cliente que nocauteou, após o larápio se recusar a pagar; ele, fugindo de uns rapazes que o confundem com um ladrão, e que nem imaginam estar no encalço de uma bomba ambulante. O encontro que surpreende Nkem e Amir numa esquina escura irá revelar que os dois têm em comum muito mais do que a partilha do esconderijo. Surpreender parece ser o grande objetivo do filme, que usa ardilosamente o maniqueísmo, abusa dos estereótipos para despedaçá-los e mostrar que aparências podem ser enganosas. As surpresas se esgueiram no meticuloso jogo de sombras e luz, despontam nas viradas da trama, assaltam os personagens nas esquinas escuras de suas vidas.

The Delivery Boy – alto contraste e espaços monocromáticos.

Mas não é só no conteúdo que o filme surpreende. No jargão profissional, low-budget é um filme de baixo orçamento e no-budget é uma produção ainda mais pobre. The Delivery Boy é um desses filmes sem verba, bancado pelo próprio diretor. Para economizar, o filme precisou ser rodado em seis noites e o diretor atuou também como produtor, diretor de fotografia, roteirista, editor e colorista. É difícil não pasmar diante do apuro técnico, da estética e do estilo que o filme ostenta, apesar das parcas condições.

Amir e Nkem – Jammal Ibrahim e Jemima Osunde.

The Delivery Boy marca a estreia de Adekunle na direção, mas Nodash, como é conhecido em Nollywwod (apelido dado à indústria cinematográfica nigeriana) é diretor de fotografia de vários filmes e clipes musicais. Seus enquadramentos e movimentos de câmera conduzem magistralmente o olho do espectador pelos conflitos de Amir e Nkem, numa gramática que remete à novela gráfica. Na luz, cria zonas cromáticas, quase monocromáticas, diferenciando espaços e climas, mas mantendo o espírito sombrio que impera na tela. O impacto visual é tão forte quanto a história e os temas que interliga (pedofilia, religião, pobreza, abuso e fanatismo), desconcertando o espectador. Nessa orquestração de elementos, o naipe que desafina é o dos diálogos, aqueles que revelam boa parte da história egressa dos protagonistas. Estão mais para duelos do que diálogos, expelidos quase sempre em situação de conflito, mas esse não é o problema, ao contrário, essa condição é orgânica ao filme e aos personagens. O problema está na ingenuidade das falas, que resultam na quebra da densidade dramática, da identificação, do quanto a gente acredita no filme e em seus personagens.

Apesar do mau uso dos diálogos informativos (os outros diálogos funcionam bem), The Delivery Boy é uma obra instigante, que se comunica cinematograficamente de maneira exemplar, em estilo e ritmo afiados como um machete. O filme pode ser visto na Netflix e na Amazon Prime Vídeo.

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Published on August 26, 2021 07:41

August 19, 2021

Aura

Livro de Carlos Fuentes – México – 1962.

Aura é uma novela curta ou um conto longo que Fuentes escreveu em cinco dias a partir de um lampejo. Estava em um encontro com uma jovem em Paris e, ao se movimentar, a moça passou por uma luz que a transformou, num átimo, em uma anciã. Essa súbita mudança acendeu a imaginação do escritor. Como dizia Fellini, luz é tudo. Mas ele se referia ao cinema, não à literatura.

Desse fenômeno metafísico chamado inspiração nasceu uma obra estranha e enigmática, identificada por muitos como precursora do realismo mágico, o movimento que gerou o boom da literatura latino-americana nos anos 1960 e 70. De fato, Fuentes foi um dos autores agenciados pela lendária Carmen Balcells, mentora empresarial desse boom, formando o quarteto fantástico ao lado de García Márquez (Colômbia), Vargas Llosa (Peru) e Cortazar (Argentina).

Você lê esse anúncio: uma oferta assim não é feita todos os dias. Lê e relê o anúncio. Parece dirigido diretamente a você, a ninguém mais. Distraído, deixa cair a cinza do cigarro dentro da xícara de chá que estava bebendo neste café sujo e barato…” Desde as primeiras linhas surge um estranhamento, fruto da escolha inusitada por um narrador em segunda pessoa. O tempo verbal da narração reforça esse estranhamento, alternando presente e futuro do indicativo. “… Você viverá esse dia como os demais dias, e não voltará a se lembrar dele senão no dia seguinte, quando senta-se novamente na mesa do bar, pede o café da manhã e abre o jornal.” Essas duas escolhas criam, de cara, uma relação peculiar entre narrador e personagem, narrador e leitor e, por consequência, leitor e personagem. A natureza dessa relação sugere várias interpretações, assim como os fenômenos desencadeados com a entrada de Felipe no antigo casarão do centro da cidade para responder ao anúncio. Ele entra e dali não sai mais.

A trama se desenrola em três dias e, embora o fio condutor seja o mistério, não há desfecho com a sua solução. As chaves  dos enigmas que se apresentam apenas abrem portas para novos enigmas. O suspense é uma armadilha para seduzir o leitor, como o anúncio para atrair Felipe. Aura, mais que uma história de amor, é uma história de desejo, que confronta e amalgama morte e vida, juventude e decadência, sensualidade e abandono. Cria um impossível triangulo amoroso entre quatro personagens e, de quebra, fala de identidade ou de como essa identidade se transmuta no tempo. O tempo, em Aura, é o ponto de luz que criou o lampejo no mundo real. Não é de se admirar que a luz tenha um papel tão importante no texto, na construção do clima barroco e na simbologia do contraste entre o oculto e o visível.

Em 2001, quase quarenta anos após a sua publicação, a novela ganhou novo sopro de vida editorial. O então ministro do trabalho, Carlos Abascal, decidiu que Aura era inadequada para sua filha de quinze anos e protestou junto à escola que afastou a professora responsável pela leitura em aula. O motivo apontado: o parágrafo que descreve Felipe e Aura fazendo amor sob uma imagem de Cristo. A polêmica inflamou detratores e defensores, mas principalmente reacendeu o interesse pelo livro. Ao ser questionado, Fuentes evitou entrar na disputa, apenas observou que transar, tendo uma imagem de cristo acima da cama, era bem corriqueiro nos lares mexicanos e agradeceu a Abascal por ter impulsionado as vendas de Aura. “Foram mais de vinte mil cópias vendidas em apenas uma semana. Eu e meu editores adoramos”, brincou.

Sexagenária, Aura permanece uma obra jovem, de olhos verdes fulgurantes, e cheia de mistérios. Carlos Fuentes faleceu em 2012, aos 83 anos, deixando uma obra profícua. A jovem professora demitida, Georgina Rábago, é atriz e segue fazendo leituras dramáticas de textos literários entre seus trabalhos.

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Published on August 19, 2021 08:05