Jaime Lerner's Blog, page 21

November 11, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Mordendo o Próprio Rabo

O presidente, depois de muito espernear, finalmente prestou depoimento para a Polícia Federal no inquérito que apura se houve interferência dele  na…Polícia Federal.

Ora, se houve interferência e está tudo dominado lá na PF, o inquérito (de cartas marcadas) está fadado a concluir que ele é inocente. Se não houve interferência, e o presidente apenas trocou o diretor geral da PF por “falta de interlocução”, como explicou no depoimento, o inquérito deve concluir a mesma coisa.  Na verdade, a única prova convincente de que B não interferiu na PF, trocando o diretor geral e os superintendentes de Pernambuco e do Rio de Janeiro, onde corria a investigação da rachadinha de seu filho e do amigo Feiroz, seria a PF concluir de que ele sim agiu para interferir na instituição. Isso comprovaria a autonomia da PF, e por consequência,  a inocência do presidente, ao contrário do que concluiria o inquérito. É tipo um ardil 22, ou o insano quadro do cachorro correndo atrás do próprio rabo.

O presidente nem se esforçou muito para esconder as suas intenções nas respostas ao inquérito. Parecia mais preocupado em sujar Moro Num País Tropical do que limpar a sua própria barra. O então superministro da justiça (e hoje pré candidato a presidência) havia se demitido por causa dessa interferência e saiu do governo atirando, denunciando a intenção do mandatário. Graças a isso, o Brasil pode assistir ao vídeo da finíssima reunião ministerial em que B proclama, inserindo um palavrão entre cada três palavras, que vai trocar todo mundo para garantir a sua segurança e a de seus filhos. Foi essa denúncia que originou o inquérito. Como “prova” de que a acusação do ex-ministro não procede, B revelou que M havia topado trocar o chefe da PF, mas apenas após ser indicado para vaga ao STF. De que maneira essa suposta chantagem do ex-ministro isenta o presidente no quesito interferência, não está claro. Trata-se de uma lógica muito peculiar.

Outra lógica absolutamente peculiar norteia o critério do presidente para a escolha do  diretor da Polícia Federal. B pretendia promover ao cargo o responsável por sua segurança na campanha eleitoral. Durante esse período de fortes emoções criou-se um vínculo entre B e o guarda-costas, que lembra aquele filme com a Whitney Houston e o Kevin Costner. Aquilo sim pode se chamar de interlocução. B, que é extremamente sensível no tocante à segurança de sua retaguarda, não consegue rever esse filme sem se comover.

Se formos rever outro filme, o da reunião ministerial, perceberemos que muitos dos que ali estavam ministros, caíram. O da educação que queria prender todos os vagabundos do STF, o do meio ambiente que queria aproveitar a Covid e passar uma boiada de medidas anti ambientais, o da saúde que recém estava entrando no governo e percebeu onde havia se metido, o chanceler que adorava criar atrito com a China, além do próprio ministro da justiça que se sentiu injustiçado, embora o presidente adoraria vê-lo justiçado, ainda mais tendo que disputar com ele as próximas eleições. Muitos ministros caíram, mas o governo B se mantém em pé.

Concluirá a PF pelo arquivamento do inquérito? Logrará o ex-ministro emplacar como o candidato da terceira via? Continuará o país vivendo fortes emoções enquanto segue correndo atrás do próprio rabo? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on November 11, 2021 06:40

November 3, 2021

A Batalha Esquecida

Filme de Matthijs Van Heijninguen Jr. – Holanda – 2020

A Holanda adentrou o meu imaginário quando eu tinha uns sete anos e li o conto sobre o pequeno Hans que salvou a pátria de um terrível destino, ao perceber uma fissura no dique que logo se alargaria pela força da água e romperia o muro de proteção. Sem hesitar, colocou seu dedo na brecha e ali passou a noite toda, até que ao amanhecer chegou o socorro. A história de bravura e sacrifício do garoto me impressionou, obviamente, mas o que realmente mexeu com a minha cabeça foi descobrir que existe um país abaixo do nível do mar que enfrenta a ameaça de ser engolido pelas águas erguendo uma parede de proteção.

O filme de Matthijs Van Heijninguen Jr., A Batalha Esquecida, ou A Batalha do Escalda também apresenta histórias de bravura e sacrifício, da época em que seu país foi ocupado pela exército nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Não há crianças que colocam  o dedo na rachadura do dique, porém barragens, pântanos e canais têm presença marcante na história.

A Batalha Esquecida – A Fortaleza de Hitler na defesa do rio Escalda

Walcheren é uma ilha no sudoeste da Holanda, na boca do Rio Escalda. O rio faz a ligação do Mar do Norte com o porto de Antuérpia. Os aliados, após a invasão da Normandia e a conquista da França, precisavam assegurar um porto que servisse de centro de abastecimento (tropas, armas, equipamento e mantimentos) para os exércitos que avançavam rumo à Alemanha. Haviam tomado o porto de Antuérpia na Bélgica, mas de nada serviria enquanto os alemães permanecessem na entrada do Escalda. Ciente disso, a Wermacht concentrou suas forças de resistência em Walcheren, entrincheirando-se no sul da ilha,  explodindo pontes e barragens para dificultar o avanço dos aliados. A fortificação foi apelidada de A Fortaleza de Hitler. A batalha no Escalda, protagonizada principalmente por soldados canadenses pelo lado dos aliados, ceifou um estrondoso número de vidas, entre militares e civis.

A Batalha Esquecida vai além das espetaculares cenas de ação de filmes de guerra. Boa parte da obra lida com dramas de civis forçados a tomar atitudes em seu país ocupado. Temas como colaboração com o inimigo e resistência trazem a tona questionamentos que marcaram a história da Holanda e de outros países ocupados pelos nazistas durante a guerra.  

A estética do filme, principal esteio do clima denso, é o que mais impressiona, através da direção de arte e da fotografia. O desenho de luz, os tons ocres e cinzentos dos cenários de ruas cobertas de água e fortificações militares nos transportam para aqueles dias e aquela guerra, com sua condição topográfica peculiar e seus dilemas morais. Essa costura entre os diversos dramas que colidem no atoleiro holandês, é que faz de A Batalha Esquecida, uma obra impactante.

O filme é uma coprodução entre Holanda, Bélgica e a Netflix com várias locações nesses dois países e na Lituânia. As filmagens foram feitas entre outubro de 2019 e março de 2020, e por pouco não foram interrompidas pela Covid. A Batalha Esquecida foi lançado  em outubro de 2021 e está disponível na plataforma de streaming.

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Published on November 03, 2021 07:08

October 27, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Terremoto

O Brasil não é para principiantes/ Tom Jobim

Para um castelo de cartas, não há nada mais temível do que um terremoto. Por isso, a população da Casa do Baralho estava ligadíssima no desfecho da CPI da Covid, uns esperando que finalmente a casa caísse, outros tentando prevenir o pior (que seria, na real, o melhor) e torcendo para que acabasse em pizza. O relatório (quase) final, apresentado na penúltima sessão da CPI, apontava o indiciamento de sessenta e uma pessoas físicas, duas pessoas jurídicas e uma pessoa mefistofélica – o presidente da república, destacado como autor de nove crimes: prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado de morte, infração a medidas sanitárias preventivas, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade (perseguição, extermínio e outros atos desumanos). Três filhos do presidente: o vereador, o deputado e o senador, também foram indiciados, assim como vários de seus ministros e colaboradores.

A Comissão Parlamentar de Inquérito, em seis meses de trabalho, expôs com clareza a política deliberada do governo para contaminar a população em busca da imunidade de rebanho, banalizando as mortes e as sequelas da doença, incitando a população à exposição e transmissão do vírus, sabotando as medidas de contenção de prefeitos e governadores, promovendo o uso de remédios ineficazes e a desinformação quanto aos números de vítimas, as medidas preventivas e as vacinas. Comprovou a dolosa inércia para adquirir vacinas e de quebra, um manancial de corruptos e lobbies operando ao lado e por dentro do ministério da saúde para encher os bolsos.

Isso seria mais do que o suficiente para causar um abalo de grande magnitude. Mas não foi. O  filho do presidente disse que seu pai deve ter recebido o relatório com uma sonora gargalhada, que soou (na imitação do filho) deveras mefistofélica, reforçando a sensação de que o país está preso numa novela kafkomexicana. Para corroborar, o presidente alertou a população, em sua live semanal,  que a vacina pode causar AIDS. O perigo não é mais virar jacaré, é pegar HIV. Se o relatório teve algum efeito sobre o presidente, foi o de levá-lo a intensificar os crimes que a CPI denunciou.

Uns dizem que o abalo sísmico da CPI ocorreu ao longo dos depoimentos e que o desfecho já era esperado. Outros analisam que a Casa do Baralho, de tanto balançar nesses últimos anos, adquiriu imunidade natural. Afinal, um presidente que saiu ileso de bater contra um prédio ao saltar de paraquedas, de planejar um atentado à bomba contra o próprio exército, de levar uma fakada em plena campanha, de demitir o ministro da saúde em plena pandemia e mais uma lista infindável de cataclismos, está mais do que calejado.

No entanto, o tremor aconteceu. Dois dias depois da apresentação do relatório, a bolsa de São Paulo despencou e o dólar disparou feito um foguete. Mas não em função da CPI. Foi após o superministro da economia, guru da responsabilidade fiscal, admitir furar o teto de gastos para pagar, no ano eleitoral que se avizinha, um auxilio de 400 reais para os pobres. O mercado entrou em convulsão, não podendo admitir tamanha irresponsabilidade (não com a compra de votos, mas com o rombo nas contas). Moral da história: matar seiscentas mil pessoas, pode, furar o teto de gastos, não.

Uma semana após a apresentação, a CPI fez a sua derradeira sessão, votando o relatório final, atualizado com mais vinte indiciados, inclusive um senador membro da CPI, que foi desindiciado, aos 47 do segundo tempo. Agora é com o Ministério Público.

Arquivará o Procurador da República, nomeado pelo presidente, o relatório que indica o indiciamento de seu patrão, ou terá coragem de tocar o processo? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on October 27, 2021 07:35

October 21, 2021

Todo Vá Estar Bien

Série criação e direção de Diego Luna – México – 2021

Todo Vá Estar Bien é uma comédia cujo humor e ritmo lembram Club de Cuervos, outra série mexicana frenética de sátira mordaz. Isso, porém, só nos episódios iniciais. A partir de certo momento, o espectador se dá conta que a comédia virou um drama e o assunto é sério. Para mim a ficha caiu quando Idália, a empregada do casal, praticamente um membro da família, é levada pela polícia como suspeita do sequestro da filha. Essa virada no gênero é um dos aspectos interessantes da série de trama super bem articulada e diálogos inteligentes. 

Se o olhar satírico de Club de Cuervos recai sobre o universo futebolístico, Todo Vá Estar Bien aborda o universo das relações familiares, com foco especial na instituição matrimônio. No bojo desse universo entram temas atuais como machismo, feminismo, assédio e o abismo social, num mundo em constantes mudanças. Um dos pontos altos das situações urdidas na trama  é a terapia de grupo (tipo Alcoólatras Anônimos) para homens machistas. A ideia é genial, algumas dinâmicas e  “procedimentos” são hilariantes. 

A primeira temporada tem oito episódios de trinta minutos que parecem quinze. A edição se destaca não só pelo ritmo, mas também pela estruturação da narrativa. No meio de tantas qualidades houve algo que me incomodou, a consciência de estar assistindo a um programa, a um show. Os personagens não geram aquela identificação que nos conduz para uma imersão incondicional. Não é pelo trabalhado dos atores, que é ótimo, mas há algo na construção dos personagens e mesmo no cuidado impecável com cenários e figurinos e talvez até nos diálogos inteligentes que cria certa artificialidade. Se a série fosse uma comédia escrachada do início ao fim talvez isso passasse batido, mas quando ela pende para o drama, a leveza dos personagens e das soluções parece fora de sintonia com o peso dos conflitos. Não é um problema grave. A obra, apesar disso, é um bom entretenimento que provoca importantes reflexões, mas poderia ser mais genial ainda se nos arrebatasse totalmente na sua viagem. Como o final remete à uma segunda temporada, é possível que isso seja sanado e então, como indica o título, tudo vai ficar bem.

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Published on October 21, 2021 06:59

October 14, 2021

Atos Humanos

Livro de Han Kang – Coreia do Sul – 2014

Han Kang é um ser de outro mundo. Ao menos é o que parece de sua escrita. Ela viaja por lugares que julgamos conhecer, mas revela com seu olhar paisagens muito diferentes – grotas,  crateras e cumes –, de arrepiar.

Este é o segundo livro que a Editora Todavia publica dela aqui no Brasil. O primeiro foi o premiado A Vegetariana, lançado em 2018. Três anos depois é traduzido Atos Humanos. Os dois livros são estruturados como um enfeixe de relatos.  Diferente de A Vegetariana, Atos Humanos não é centrado em uma protagonista e seu processo interno frente a uma inadequação, mas  cria um mosaico de personagens ligados a um episódio que marcou a história do país. Todas as personagens, menos uma, são vítimas diretas desse evento.

O terrível massacre na cidade de Gwangju, ordenado pelo governo sul-coreano contra seu próprio povo é o pivô de Atos Humanos. A manifestação fazia parte de uma série de protestos contra o regime ditatorial do general Duwhan Jeon que havia tomado o poder com um golpe. O movimento, iniciado por estudantes e professores,  exigia o fim da lei marcial, a reabertura das universidades e liberdade de imprensa. As manifestações em Gwangju duraram de 18 a 27 de março de 1980. A repressão violenta das forças policiais contra os estudantes nos primeiros dias provocou uma reação popular e a cidade toda foi tomada pelos protestos,  chegando a declarar um governo autônomo. O ditador então enviou o exército, com forças de elite e tropas que haviam lutado na Guerra do Vietnam em apoio aos EUA. O resultado foi um banho de sangue. Os manifestantes foram assassinados, presos, torturados e rotulados de comunistas. Esse rótulo (que na história coreana tem peso significativo) se manteve até o final da ditadura (1988), quando o movimento foi reconhecido como pró-democracia. Em 1996, Duwhan Jeon foi julgado pelo massacre e condenado à morte. Porém foi perdoado pelo presidente Kim Young-sam.

Soldados contra estudantes em Gwangju (AP Photo/Sadayuki Mikami)

Atos Humanos não apresenta um panorama do massacre. Ao contrário, perambula pelo terreno acidentado do conflito recriando o caos, a tensão e os detalhes das atrocidades perpetradas, sempre pelos olhos das vítimas. Juntando os cacos, ligando esses fragmentos emerge um questionamento doído, uma espécie de tratado sobre a crueldade. Quem começa a desfiar esse novelo é Dongho, um rapaz que ainda cursa o segundo grau e entra quase de gaiato no movimento. À procura do corpo de um amigo, ele chega ao auditório da universidade e acaba ficando por lá para ajudar a receber, limpar, e tentar identificar os mortos trazidos em profusão. A partir de Dongho a narrativa aborda outros seis personagens, como uma borboleta que flutua entre os vários cenários e histórias que conduzem à outras histórias e cenários, todos interligados. A força do texto de Kang, falando pelas vítimas, traz a dimensão das barbaridades que sofreram. Uma prosa linda de morrer e triste de matar, repleta de delicadeza e brutalidade, solidariedade e selvageria, todas fruto de atos humanos.

A sétima personagem, a única que não sofreu diretamente na pele as consequências da massacre, é a própria autora, que nos revela o seu caminho até Dongho, sua conexão com o menino e com o tema. O romance, portanto, é também sobre criação, sobre a importância de contar, de não deixar esquecer. Sobre escrever. O que é, por excelência, um ato humano.  

Leia uma amostra

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Published on October 14, 2021 07:36

October 7, 2021

Boy Erased – Uma Verdade Anulada

Filme de Joel Edgerton – EUA – 2018.

Boy Erased não é uma obra que apresenta inovação de linguagem ou ousadia narrativa/estética. O que a torna um grande filme é a sensibilidade com que aborda um drama íntimo e intricado, a partir de  um roteiro sólido e um esplêndido trabalho de atores.

O filme é baseado no livro de Garrard Conley, que relata sua experiência com a cura gay em uma instituição religiosa especializada no assunto. Garrard, com dezenove anos, filho de um pastor da igreja Batista, acreditava que a atração que sentia por homens era um problema e queria resolvê-lo antes de ir para a universidade. Concordou, ainda que com alguns temores, em ingressar no programa de tratamento a pedido do pai. O que vivenciou nesse tratamento e, depois, na universidade, acabou mudando radicalmente a visão que tinha sobre a sua sexualidade. Mas não no sentido esperado por sua família.

O grande desafio do filme é expressar na tela a intensa provação do jovem, os inúmeros conflitos internos e externos que encara nessa jornada; e manter a autenticidade de seu relato, sem escorregar em maniqueísmos. O elenco que conduz essa missão é composto por Lucas Hedges, como Jared (nome de Garrard na adaptação cinematográfica), Nicole Kidman, como sua mãe e Russel Crowe, como seu pai. Estes dois personagens parecem estereotipados no início, mas no avançar da obra se entende que é uma impressão enganosa. O que figura como estereótipo é um modelo rígido de comportamento que o casal segue religiosamente, nos papeis de pais, marido e esposa, cidadãos, etc. Assim como o filho, pai e mãe também passam por um abalo sísmico e, em consequência, por mudanças importantes. As viradas fazem esses personagens crescerem de forma excepcional, revelando ainda mais o excelente trabalho de Nicole e Russel na construção do arco dramático de seus personagens. Ao lado do trio protagonista, o elenco de apoio mantém o mesmo nível de atuação, com destaque para o diretor do filme, Joel Edgerton, que faz também o papel de Victor Sykes, o terapeuta de conversão sexual.

Sublime trabalho de Lucas Hedges, Nicole Kidman e Russel Crowe.

O filme causou polêmica no Brasil, após o cancelamento da  estreia, prevista para fevereiro de 2019. Era o início do governo Bolsonaro com sua cartilha meninos usam azul e meninas, rosa o que suscitou suspeita de censura. A Universal Pictures (distribuidora do filme, nada a ver com a Universal do bispo) negou que isso tenha influenciado o cancelamento, explicou que o motivo foi puramente comercial: projeções apontavam que o investimento na divulgação do filme acabaria sendo maior do que o retorno nos cinemas. E deu exemplo de outro filme, cuja estreia brasileira foi cancelada naquele período pelo mesmo motivo, Bem-vindos a Marwen, de Robert Zemeckis. Coincidência ou não, este filme (também baseado em fatos reais) aborda o caso de Mark Hogancamp, que foi brutalmente espancado em um bar após admitir que gostava de andar com sapatos de salto alto. É evidente que as estreias não foram canceladas por qualquer pedido ou iniciativa do governo recém-empossado, mas é provável que o clima no Brasil levou a distribuidora a uma autocensura para evitar boicotes e consequente prejuízo financeiro.

Apesar do cancelamento da estreia nos cinemas, o  livro de Conley (2016) foi traduzido para o português e lançado no Brasil no início de 2019. Atualmente, os dois filmes,  Boy Erased e Bem-vindos a Marwen podem ser vistos na Netflix.

Assista ao trailer:

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Published on October 07, 2021 08:24

September 30, 2021

Nordic Noir e mybest Brasil

Saga Noren e Martin Rohde – personagens ícone em A Ponte

No último 21 de setembro, a série A Ponte comemorou dez anos de sua estreia. Coprodução inédita entre as TVs da Suécia e da Dinamarca, seu tremendo sucesso colocou em foco a dramaturgia audiovisual da Escandinávia e cunhou um novo termo, Nordic Noir, referindo-se a séries de países escandinavos com tramas de crimes macabros e uma estética do frio singular. O termo noir ganha outro sentido em uma região geográfica que mergulha a cada ano no escuro prolongado do inverno polar.

A Ponte não foi a pioneira. Antes dela, a série The Killing (2007) havia atravessado fronteiras, inclusive gerou um spin-off americano. A brecha aberta por The Killing foi escancarada por A Ponte, que rendeu inúmeros spin-offs em função do argumento: um corpo encontrado na  divisão entre dois países, a metade superior em um país e a inferior em outro. Na esteira desse sucesso, as programadoras, principalmente, as plataformas de streaming, foram atrás de conteúdo da Escandinávia, tanto para aquisição como para produção. E não apenas séries policiais do Nordic Noir, como outros gêneros. O sucesso no audiovisual movimentou também outros setores, como o turismo. Em Copenhagen existe uma agência, a Nordicnoirtour, especializada em passeios por locações dessas séries, sendo o maior destaque, obviamente, a ponte de Oresund.

Nordic Noir – crimes macabros e tons frios. Cena de O Assassino de Valhalla.

As obras de países como Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia, trazem normalmente tramas inusitadas, personagens que fogem dos estereótipos de heróis ou de detetives durões, mulheres em posições de liderança, e um visual gelado, quase monocromático de tons cinza e azul. Uma personagem que se tornou ícone é Saga Norén, policial dinamarquesa de A Ponte. No roteiro original, Saga seria morta no nono episódio da primeira temporada. A empatia que criou junto ao público salvou a vida da personagem, “obrigando” produtores e roteiristas a repensarem a trama e mudar o destino de Saga, para felicidade geral.

Em homenagem ao audiovisual da Escandinávia e aos dez anos de A Ponte, eis uma lista com séries disponíveis no Brasil. Algumas foram resenhadas pelo blog, basta clicar sobre os nomes para linkar ao post.

The Killing (Dinamarca); A Ponte (Suécia + Dinamarca); Borgen (Dinamarca); Borderliner (Noruega); Os Caminhos do Senhor (Dinamarca); Trapped (Islândia); Ragnarok (Noruega); Califato (Suécia); O Assassino de Valhalla (Islândia); Bordertown (Finlândia); The Rain (Dinamarca); Deadwind (Finlândia); Nobel (Noruega); O Jovem Wallander (Suécia); Areia Movediça (Suécia).

E, por falar em listas e séries, o blog do Lerner foi convidado pela mybest Brasil a participar de um post colaborativo sobre séries na Netflix. Além da minha indicação, outras blogueiras e blogueiros destacam suas séries preferidas na plataforma de streaming. Não foi fácil escolher uma entre tantas obras que me impactaram. Para ver a minha e as outras recomendações, clique aqui.

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Published on September 30, 2021 07:46

September 23, 2021

A Casa do Baralho: Um Príncipe em NY

Em um filme de John Landis, de 1988, o jovem príncipe de Zamunda, uma nação africana fictícia, chega a NY fugindo de um casamento arranjado. Ele sonha encontrar um amor verdadeiro, alguém que o ame pela pessoa que é, e não pelo título que tem. Por isso chega incógnito, disfarçado de estudante estrangeiro e arruma trabalho como faxineiro num fast food.

A visita do presidente B à Nova Iorque para discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas lembra um pouco essa comédia. B também chega de uma nação fictícia, um Brasil que só existe na sua imaginação. Igual ao príncipe, ele quer permanecer incógnito, passar por alguém do povo, e por isso entra no hotel pela porta dos fundos, e come pizza em pé, na rua, junto com sua comitiva. Só não viajou em busca do amor verdadeiro, pois odeia amar e ama odiar. Entrou escondido no hotel para escapar da imprensa e dos manifestantes e teve que comer na rua porque não é vacinado. Nova Iorque turbinou ainda mais seu ódio pelo passaporte sanitário.

Inspirado por esse ódio, seu discurso na ONU lembra outra obra clássica: Alice no País das Maravilhas. B fala de um Brasil de economia pujante, que protege o meio ambiente como nenhum outro e que não teve, sob a sua batuta, um caso sequer de corrupção. É um discurso esquizofrênico, dirigido, em tese, para a Assembleia, mas proferido para os ouvidos de seus militantes. Ao  dizer: em 2022, o Brasil voltará a ocupar um assento no Conselho de Segurança, ele pensa: em 2022, o Brasil, me escolherá para mais um mandato. Quando agradece a votação de 181 países entre 190, fantasia sobre o agradecimento que fará a seu povo, no discurso da reeleição. Pinóquio junta-se à Alice nesse palanque e dispara, em tom roBótico, mais mentiras por segundo do que perdigotos. Afirma que as manifestações de 7 de setembro, em defesa da democracia e do seu governo, foram as maiores da história; que o BNDES financiava obras em ditaduras comunistas no governo anterior; que as medidas de isolamento e lockdown são a causa da inflação; que ele socorreu os pobres, impedidos de trabalhar pelos decretos de prefeitos e governadores; que o tratamento precoce deu certo para ele e por isso funciona; que o Brasil, impulsionado pelo retorno de investimentos, devido à confiança do mercado em seu governo, terá um crescimento de 5% em 2022; que a nossa geração de energia é exemplo mundial;  que os indígenas gozam de liberdade e segurança em suas terras ancestrais, e por aí vai. Bem que avisou, no início do pronunciamento, que iria apresentar um Brasil bem diferente do retratado pela imprensa. Foi a única frase em que não mentiu.

Entre discursos que abordaram desafios globais como a pandemia, o  aprofundamento das desigualdades, o aquecimento global, as guerras e a revolução tecnológica, a fala do presidente soou ainda mais estridente. Parecia uma mortadela vencida num sanduíche de pão gourmet.

Para coroar a visita, o ministro da saúde Quemroga foi diagnosticado com Covid e a delegação brasileira foi proibida de entrar no prédio da ONU. Todos voltaram prematuramente para casa (menos o ministro que ficou em quarentena em NY) e assim terminou a participação do Brasil  na Assembleia Geral. Ao aterrissar, B ainda teve que enfrentar uma recomendação da ANVISA para que toda a delegação praticasse o isolamento por 14 dias.

A ONU respirou aliviada, mas o vice-presidente ficou extremante frustrado com a volta prematura do chefe. Chegou a fantasiar a assinatura de um decreto proibindo a entrada de pessoas não vacinadas no Brasil.

Teria funcionado esse golpe da vacina? Terá conseguido o presidente resgatar, nessa viagem, a imagem desgastada do país? Logrará o ministro da saúde completar as compras nova-iorquinas que a primeira-dama não concluiu? E o mandatário, cumprirá a recomendação da agência sanitária? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho

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Published on September 23, 2021 06:50

September 16, 2021

O Poder e a Glória

Livro de Graham Greene – Inglaterra – 1940.

Graham Greene escrevia muito. Foi jornalista, contista, resenhista de filmes, ensaísta, autor de peças teatrais e dezenas de romances. É considerado um patrimônio cultural no Reino Unido (os ingleses nunca se conformaram por ele não ter sido laureado com o Nobel de literatura, embora tenha chegado perto em 1967). Como jornalista, fazia longas viagens que nutriam também sua ficção: boa parte de suas tramas acontecem fora do Reino Unido. Não raro, situava seus protagonistas em deslocamento (viagens, fugas, mudanças), ou os concebia como personagens deslocados, mesmo não saindo do lugar. Destrinchar conflitos internos era a especialidade da pena afiada de Graham. 

O Poder e a Glória é uma de suas obras mais instigantes. Num cenário árido de uma província no México, em plena revolução anticlerical, um padre foge das forças governamentais. É o último sacerdote remanescente no estado. Os outros foram fuzilados, obrigados a largar a batina ou ir embora. Tão avassaladores quanto a perseguição são os pensamentos que o assolam durante a missão insana que estabeleceu a si mesmo de seguir praticando o sacerdócio nos locais mais recônditos. Pensamentos que questionam a própria fé, a natureza do bem e do mal, seu desempenho como padre e como ser humano. Seus antagonistas, o tenente revolucionário e o mestiço de caninos amarelos, aliam-se a esses pensamentos para encurralá-lo entre o fogo e a frigideira e expor a fragilidade humana em toda sua dimensão.

Greene escreve com precisão econômica, uma escrita que foca principalmente na fluência narrativa. Suas descrições e diálogos são cinematográficos (provavelmente fruto da quantidade de filmes que viu enquanto resenhista) e colocam o leitor no meio da ação, mesmo quando a ação é pura reflexão. No avanço linear da trama, há cortes que lembram as sequências cinematográficas, deixando de lado o que não é essencial. O humor irônico – marca registrada do autor – está ausente em O Poder e a Glória, a não ser no episódio que o padre tenta comprar clandestinamente vinho para seus ofícios e acaba sendo obrigado a bebê-lo junto com o vendedor. Situação que expõe de forma magistralmente sardônica a psicologia do beberrão e a corrupção na roupagem latino-americana.

O cenário árido de O Poder e a Glória de Graham Greene

Greene conheceu os cenários de O Poder e a Glória nos meses que esteve no México, em 1938, principalmente ao passar pelo estado de Tabasco, onde o governo anticlerical de Tomás Garrido Canabal havia fechado todas as igrejas e obrigado os padres a abandonarem a batina e a casarem. No ano seguinte, o autor publicou o relato dessa viagem em The Lawless Roads (As Estradas sem Lei) e um ano depois veio à luz O Poder e a Glória. O livro, como boa parte dos romances de Greene, foi adaptado para o cinema: o filme O Fugitivo (EUA, 1947), dirigido por John Ford e estrelado por Henry Fonda. Houve também adaptações para o teatro e para a televisão. O Poder e a Glória figura na lista dos cem romances mais importantes do século XX da revista Time.

Greene não ganhou o Nobel de literatura, mas faturou vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Jerusalém, em 1981, outorgado a autores cujas obras abordam temas ligados à liberdade. No Brasil, a edição de 1953 da editora Biblioteca Azul foi traduzida pelo poeta Mario Quintana.

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Published on September 16, 2021 07:32

September 10, 2021

A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Ressaca

No dia seguinte ao brado redundante, em que o presidente paraquedista B convocou seu rebanho para servirem de retrato vivo de um ultimato, e todos bradaram em uníssono eu autorizo!, o gado em sua maioria voltou para casa, mas alguns levaram o Mito a sério. Pessoas enroladas na bandeira mandavam vídeos emocionados dizendo que o Brasil estava em Estado de Sítio, como se estado de sítio fosse sinônimo de êxtase ou nirvana. Caminhoneiros fecharam estradas vicinais em vários cantos do país, lembrando as difíceis semanas de 2018 que deixaram o governo T de joelhos. O fantasma do  desabastecimento voltou a assombrar os brasileiros e desagradou ao mercado. A bolsa despencou e o dólar disparou.

B, apavorado mandou uma mensagem pedindo para os aliados liberarem as estradas. Incrédulos, acharam que o áudio era fake. Não iriam liberar. Só se ele gravasse um vídeo e ainda mostrasse um jornal com a data do dia, como nos filmes de sequestro. A palavra impeachment começou a circular na boca de políticos que antes pretendiam desconhecê-la.

Nessa hora, um personagem quase esquecido reentrou em cena. O ex-presidente T, protagonista da temporada passada, travestido de bombeiro, almoçou com B e lhe passou alguns ensinamentos valiosos: 1. não há problema nenhum em dar golpe no Brasil, mas tem que ser combinado  com os outros poderes (a mídia hegemônica, o PIB e o judiciário, entre outros) e tem que ser aparentemente civilizado. De preferência, que nem pareça golpe. Esse negócio de tanques nas ruas é muito démodée 2. Agora que o estrago foi feito, é hora de se retratar.

B não gosta de se retratar, só de ser retratado à frente de seus seguidores, bradando ultimatos. Alegou que era muito poder para dividir e assim não tinha graça nenhuma dar um golpe, muito menos um auto-golpe. E que igual, a intenção dele não era essa, era só blefar pra assustar os canalhas que o provocavam. O chamaram, na mesma semana, de corno e de bicha, aí ele perdeu as estribeiras, como todo homem perderia.

— Perfeito — disse T — Eis um bom texto pra retratação. Anote aí: não tive a intenção de atacar ninguém. Isso aconteceu no calor do momento. Peço desculpas à nação e a quem se sentiu ofendido. Não tem coisa que eu mais prezo do que a harmonia entre os poderes.

— Prezo é com z ou com s?

— Depende. Se você for publicar a nota é com z, se você não publicar, será com s.

Este foi um argumento cabal e a retratação foi publicada. Como por mágica, a bolsa se recuperou, o dólar se aquietou, e o presidente do senado elogiou o retratante. O Brasil deu mais um passo rumo ao passado.

Como reagirão os fieis militantes do Presidente B? Quanto tempo ele conseguirá sustentar o papel de bom moço? E o ex-protagonista T, voltará definitivamente à cena, ou vai preferir operar nos bastidores? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on September 10, 2021 08:32