Jaime Lerner's Blog, page 17

September 1, 2022

RRR

Filme de S.S. Rajamouli, Índia 2022

RRR é um filme espetacular, ou melhor um filme-espetáculo. Sua trama, roteiro, personagens, ritmo, cinematografia e arte estão todos a serviço do espetáculo, e o espetáculo é alimentado por planos mirabolantes,  uma explosão de cores e efeitos especiais e, principalmente, pelo que há de mais essencial na arte cinematográfica: o movimento.

RRR é um filme indiano, e fiel a tradição cinematográfica do segundo maior país produtor de cinema do planeta, permite-se mesclar musical com drama, ação, fábula, mitologia e…política. Nada parece muito profundo no filme, tudo é exagerado. Os vilões são radicalmente malvados e os heróis são ingênuos ao extremo, os conflitos são melodramáticos,  os diálogos descritivos, os cenários e as cores pululam da tela para dentro de nossos olhos. Rajamouli, porém,  igual a um Almodóvar ou Baz Luhrman, amalgama todos esses elementos numa obra de arte extravagante que abriga entretenimento e conteúdo e deixa o espectador extasiado pela maestria da movimentação da câmera e dos elementos em cena. Essa maestria é que opera a mágica de carregar-nos para dentro da fábula cinematográfica, fazer-nos acreditar  e sermos impactados pela coreografia mirabolante.

Mas não é só de espetáculo que RRR se alimenta. Situando a trama no passado, quando a índia ainda era uma colônia britânica, o filme fala sobre racismo, classes, imperialismo, e natureza. E então entendemos que a vilania exacerbada representa uma condição – a dos dominadores – e que essa condição pode corromper inclusive indivíduos bons em sua essência. É interessante que apesar do desprezo pelo dominador a obra não deixa de abordar o fascínio do colonizado pelo europeu.

Os animais que aparecem no filme são todos gerados por computador, ou seja, não houve maus tratos aos animais.

O filme teve sucesso estrondoso na Índia e chamou a atenção do espectador ocidental. O ideal é vê-lo em tela grande, numa sala de cinema. Para o público brasileiro ele está disponível na Netflix.

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Published on September 01, 2022 07:20

August 26, 2022

O Homem do Castelo Alto

Série, criação de Frank Spotniz, EUA 2015 – 2019

No universo das séries da Amazon O Homem do Castelo Alto se destaca, imponente, fazendo jus ao nome. A série, de 40 episódios distribuídos em 4 temporadas, baseia-se no romance homônimo de Philip K. Dick, autor de várias obras adaptadas para as telas, a mais conhecida: Androides Sonham Com Ovelhas  Elétricas?;  no cinema, Blade Runner, de Ridley Scott. Scott também assina a produção executiva de O Homem do Castelo Alto.

O ano é 1962 (ano de publicação do romance) e os países do eixo venceram a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos foi dividido entre alemães e japoneses, com uma estreita zona neutra no centro. Washington foi destruída por uma bomba atômica. Nova York é a capital do Grande Reich e São Francisco é a sede das forças de ocupação japonesa. A relação entre as ex-aliadas começa a ser corroída por sinais de uma iminente guerra fria (qualquer semelhança entre a Alemanha dividida entre União Soviética e Estados Unidos no pós-guerra do mundo real, não é coincidência). Mas a deterioração nas relações entre o Império Japonês e o Terceiro Reich governado por um Hitler envelhecido, não é o centro da série. Seu eixo principal são os rolos de filmes contrabandeados para o tal Homem do Castelo Alto. Qual o conteúdo desses filmes, onde são produzidos, porque constituem uma ameaça tão grande a ponto de as policias secretas terem como prioridade a captura do Homem do Castelo Alto e seus filmes e ninguém,  além do próprio Fuhrer, ser autorizado a vê-los? Esse mistério mantém o espectador cativo na primeira temporada, enquanto são introduzidos os personagens principais e as “leis” que governam essa distopia de realidade alternativa.

Juliana Crain (Alexa Davalos) e os filmes que deixam em polvorosa o Reich.

Na medida em que a trama avança, a série torna-se mais complexa, questionando, de forma extremamente criativa se somos o que somos talhados pelas circunstâncias do tempo e local em que vivemos, ou se manteríamos a mesma personalidade em outras realidades. Além da sofisticação dos temas, a série tem a marca de seu produtor no rigor  dos enquadramentos, da direção da arte e principalmente da luz. A estética nazista, a cultura nipônica e os anos 1960 nos EUA abrem as portas para uma mistura ousada e um visual eloquente, quase exuberante.

A jovem Juliana Crain (Alexa Davalos) é a protagonista da série, no entanto os personagens mais instigantes são o oficial nazista Joe Smith (nome equivalente a João  Silva no Brasil, ou seja, um americano comum que ascendeu na hierarquia do novo regime) e o ministro japonês Nobuske Tagomi, magistralmente interpretados por Rufus Sewell e Cary-Hiroyuki Tagawa.

No romance, são livros que deixam o Reich em polvorosa, na série são filmes. Em ambos os casos trata-se de veículos de conhecimento, cultura e imaginação, o pesadelo de ditaduras e ditadores. Essa mescla de política, mistério, história, filosofia e fantasia cria uma obra impactante, que em alguns momentos perde força quando os dramas dos personagens escorregam para um terreno telenovelesco. Das quatro temporadas, a primeira é a mais eletrizante. Mas se você começar a assistir, vai ser difícil de largar.

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Published on August 26, 2022 08:24

August 18, 2022

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Escândalo

— Espelho, espelho meu, existe neste reino alguém mais esperto do que eu?

B estava postado na frente do espelho mágico, presente do amigo RasPutin, ostentando no peito a faixa presidencial e faceiro pela grande vitória: a PEC das Bondades fora aprovada por esmagadora maioria em ambas as casas legislativas.

O espelho, programado para só dizer verdades, respondeu:

— Em primeiro lugar, presidente, isso não é um reino. É para ser uma república, mas na real é A Casa do Baralho. E a pergunta, na real, deveria ser: existe alguém mais nefasto do que eu?

O presidente B não tolerava ser contrariado, ainda mais por sua própria imagem refletida, embaralhando esquerda e direita. Seu primeiro impulso foi de pegar o 38 e dar um tiro no espelho, mas logo refletiu que isso daria sete anos de azar. Chamou o ordenança e mandou devolver o presente para a fábrica e trocar por outro. O ordenança disse não saber se ainda estava na garantia. B mandou trocar o ordenança.

Como ignorar a esperteza de sua manobra? A ideia surgiu durante a pandemia, quando o congresso lhe empurrou goela abaixo um auxílio emergencial para os mais pobres. Altamente contrariado, percebeu, porém, que a medida produziu uma bombada nos índices raquíticos de aprovação de seu governo. Agora, com o ex-presidente L liderando todas as pesquisas, não tinha outra opção se não retomar esse auxílio, porém muito mais revigorado. Sabia que nenhum deputado ou senador ousaria votar contra uma medida como esta na véspera da eleição. O TSE não se atreveria enquadrar como crime eleitoral uma PEC que teve tamanha aprovação, juntando oposição e situação. Ele mandou o teto de gastos para as favas, aumentou de 200 para 600 reais o auxilio, aumentou o número de beneficiários, ainda deu vale gás para as famílias e ajuda para os caminhoneiros. Tudo isso valendo apenas entre agosto e dezembro, o início da campanha eleitoral e o fim de seu atual mandato. Era como aquela compra de votos que os coronéis davam pro sujeito a bota  de um só pé, a outra dariam se ganhassem a eleição, só que muito mais sofisticado. Foi o primeiro suborno eleitoral com registro no diário oficial, sem maquiagem nem subterfúgios, e melhor ainda, tudo por conta do orçamento da União, ou seja, quem comprava os votos era ele, quem pagava era o próprio vendedor.

Odiava ter que ajudar os pobres, mas era por uma causa nobre. Para satisfazer também o mercado, bolou um esquema para os bancos poderem oferecer empréstimos aos beneficiários do auxilio, já descontando as parcelas do mesmo.

— Não é um verdadeiro golpe de mestre? — Regozijou-se perante sua imagem espelhada.

— É um dos maiores escândalos de compra de votos na história republicana.

B perdeu as estribeiras com o espelho. Seu ministro da defesa, ouvindo os berros acudiu imediatamente.

— O que foi Presidente?

— Esse espelho “mágico” que o Rasputin me deu, tá de sacanagem comigo!

— Que presente de grego, hein chefe.

— Grego?!?!, já disse que foi o RasPutin que me deu!

— Grego, russo,  que importa o que diz o espelho, ele vota?

— Claro que não.

— Então,  não é com a opinião dele que a gente tem que se preocupar.

Conseguirá B ignorar as verdades do seu espelho? Conseguirá o eleitor mais pobre driblar a arapuca do suborno? Conseguirá o judiciário dormir à noite com esse escândalo eleitoral batendo na porta da sua consciência? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!!!

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Published on August 18, 2022 04:15

August 9, 2022

Nunca Deixe de Lembrar

Filme de Florian Henckel Von Donnesmarck, Alemanha – 2018

Filme que inicia com densidade dramática fora do comum, e uma estética (arte, fotografia e misancene) do mesmo nível. Em Dresden de 1937 um menino e sua jovem tia visitam a exposição de arte degenerada, uma exposição “educativa” de obras que se desviam da cartilha  nazista. Esse mesmo menino aprenderá, após a guerra, a cartilha do realismo socialista na Alemanha Oriental. E quando adulto descobrirá que mesmo no ocidente democrático, há cartilhas (chamadas de escolas) que promovem e marginalizam certos tipos de artes.

Mas não é só da arte que o filme trata, nem apenas das consequências dos regimes ditatoriais. O filme trata de almas sensíveis, que  buscam sobreviver aos seus traumas, e ao mundo oprimente ao redor; fala da aleatoriedade do destino, e por isso seu título original, Obra Sem Autor é tão sugestivo; trata da ética de quem conduz os processos terapêuticos e principalmente fala da liberdade, aquela que atinge o grau máximo quando se exerce a imaginação, mergulha-se no processo criativo sem as amarras dos ismos.

Há cenas de rara beleza no filme, uma delas inclusive é a sequência de morte e destruição que cercam o menino Kurt. O choque entre estética e conteúdo nesta sequência cria um impacto poderoso. Infelizmente, o filme não mantém a mesma densidade da primeira parte, o ator que encarna o Kurt mais velho  não tem o olhar penetrante do menino Kurt, e a trama não consegue aprofundar nos conflitos estabelecidos no terço inicial, deixando a sensação de uma  promessa não cumprida. Mesmo assim é um filme que deve ser visto, pela complexidade dos temas abordados e pelos momentos altos do roteiro, atuação, montagem e cinematografia.

Florian Henckel é também o diretor do multipremiado A Vida dos Outros de 2006. A trajetória do protagonista Kurt é baseada na vida do pintor Gerhard Richter, nascido em Dresden em 1932.

Nunca Deixe de Lembrar pode ser visto na Netflix.

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Published on August 09, 2022 06:51

August 2, 2022

Life is Live

Filme de Dani De La torre – Espanha 2021

Life is Live é um filme de formação, ou coming of age, gênero que aborda o dramático momento de transição de um/a jovem rumo à idade adulta. No filme, embora o narrador/protagonista seja Rodri, são cinco os jovens que encaram o início de adolescência num ritual de passagem que é filmado como uma grande aventura. Curiosamente, as situações, os diálogos e conflitos, inclusive o uso da trilha (com exceção das músicas da época) são os menos importantes na feição do filme, têm um certo ar de clichê, ou fórmulas já  usadas em outras obras sobre adolescentes. O que é especial em Life is Live é a construção da trama como uma grande aventura, que se dá principalmente através das cenas de ação, aquelas  em que o protagonista e seus amigos são perseguidos, ora pelos valentões da escola, ora pela gang de motoqueiros do povoado onde Rodri passa o veraneio. Essas cenas de ação, que acontecem em sua grande maioria em paisagens majestosas de montanhas e lagos, dão o ar de uma jornada especial, inesquecível para os jovens que enfrentam encontros com a morte, com o amor, com a esperança.

Live is Life se passa na Galícia nos anos 80, e utiliza alguns sucessos musicais da época, todos em inglês.  Inevitavelmente, o filme tem um ar nostálgico, ou como diz a letra da música que dá título ao filme: every minute of the future is a memory of the past. Fica claro que cada minuto dessa jornada do verão de 1985 terá consequências no futuro e nas memórias de seus protagonistas. Felizmente, o filme evita o clichê de informar o que acontece com cada um dos amigos nesse tal futuro. Essa escolha de encerrar o filme ali, quando a turma se despede ao fim da aventura e os destinos de cada um permanecem em aberto, resulta num dos momentos mais sensíveis da obra.

A música Live is Life é da banda Austríaca Opus. O filme Live is Life pode ser visto na Netflix.

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Published on August 02, 2022 06:38

July 26, 2022

Peaky Blinders – última temporada

Série, Criador Steven Knight, Inglaterra 2022

Peaky Blinders, assim como tantas séries e filmes, foi atropelada pela Covid. A sua sexta e última temporada teve sua produção adiada em função da pandemia. Os episódios estavam roteirizados e a série entrou em produção, mas o isolamento social adiou o início das filmagens para 2021. Quando a produção iria retornar, uma das protagonistas da série, a atriz Helen Mcrory faleceu de um câncer, aos 52 anos. Isso, além de afetar emocionalmente equipe e elenco, obrigou os roteiristas a mudarem caminhos na trama.

Helen Mcrory como Polly Gray, a alma dos Shelby.

Assim como tantas outras boas séries, esse hiato na produção afetou a qualidade. O criador Steven Knight roteirizou todos os episódios da sexta temporada e Anthony Byrne, que dirigiu a quinta temporada, na qual a série atingiu seu ápice, seguiu com a batuta na sexta. A época e o tema seguiram os mesmos, com Thomas Shelby tendo que enfrentar os irlandeses e o líder fascista Mosley, no parlamento e nos bastidores da política, além de ter que encarar seus próprios fantasmas. E talvez este tenha sido o problema. A última temporada parece mais do mesmo, mais uma repetição do que um progresso na história da gang de ciganos, que a cada temporada surpreendia na trama e nos avanços estéticos.

Knight garantiu que embora a sexta seria a  derradeira temporada, a história dos Shelby continuará em outro formato, o que indica que um filme para amarrar a história vem por aí. Resta torcer que este faça a jus à ousadia estética e à qualidade da trama das cinco primeiras temporadas. Para ler sobre essas temporadas clique aqui.

A sexta temporada foi exibida inicialmente pela BBC e em junho entrou na Netflix.

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Published on July 26, 2022 07:54

July 14, 2022

A História de Nós Três

Jorge Salton como Jota, protagonista de a História de Nós três.

Na semana passada não houve post no blog. Eu estava filmando em Passo Fundo, envolvido até a medula em um projeto sui generis. Não em termos de roteiro – A História de Nós Três é um drama familiar que aborda de forma sensível inúmeros temas existenciais e éticos – mas em termos do processo de filmagem. Filmamos, com uma equipe minúscula, um longa-metragem em sete dias. Éramos quatro profissionais: Alan Mendonça e Marcelo Curia operando as câmeras e o drone, Nina Mayers no som, e eu na direção e DF. Conosco estavam estreando o Eric Roberty como assistente de direção;  o Toni Campos como microfonista e assistente de produção e a Rejane Salton na direção de produção. O elenco era composto de atores experientes (grande Cristian Cardoso), amadores e uma maioria de não-atores que encaravam a câmera pela primeira vez. Tínhamos que criar uma dinâmica no set para filmar rápido, com um formato de produção No Budget (uma escala abaixo de Low Budget – baixo orçamento), mas com o cuidado e qualidade que o roteiro exigia. Tudo isso foi provocado pelo psiquiatra e escritor Jorge Salton, que de dia é médico e de noite é artista. E que me apresentou, durante esse processo, outros doutores que encontram na arte um refúgio para o peso da lida com o sofrimento alheio, como Paulo Raichert e Ciciliana Zailo Rech. É uma confraria que está no filme como elenco e como sujeito.

Ciciliana Rech como Angélica, livreira no filme, endocrinologista na vida real.

Salton e eu nos conhecemos há muitos anos, quando ministrei um curso de extensão sobre linguagem audiovisual, na UPF. Há tempos ele vem produzindo vídeos curtos, que utiliza principalmente em suas aulas e em congressos. No entanto, escreveu um roteiro para longa e queria qualificar o processo de produção. Acabou me seduzindo para esse desafio, que incrivelmente funcionou (e funcionou incrivelmente), sem tensão de set nem grandes percalços. Como é um roteiro de muitos diálogos, resolvemos trabalhar com duas câmeras. Em quase todas as locações, contamos com a luz existente para reforçar nosso modesto “parque” de luz. Isso exigiu um planejamento meticuloso e uma solução estética que revelarei no futuro (embora esteja sugerida neste post). Os atores foram preparados semanas antes das filmagens por Salton e, remotamente, por mim. Outro fator importante foi a organização e a dedicação de toda a equipe, o elenco e agregados. Até o inverno gaúcho se contagiou com o clima de colaboração do set, apresentando uma semana de temperaturas agradáveis e  tempo seco, no meio de frio e chuvas constantes. Duas horas após o término das filmagens, o céu foi tomado por relâmpagos e trovoadas.

A muvuca do set e Paulo Martins como Paulo, psicólogo na vida e no filme.

Falarei mais detalhadamente sobre o filme e sobre esse processo diferente de filmar, quando a obra estiver saindo do forno. Por enquanto, queria apenas compartilhar a minha satisfação e avisar da novidade que está a caminho. Além de explicar porque não houve post na semana passada. As duas fotos do making of são de Alan Mendonça, a foto da equipe é de Eric Roberty, aquele com a claquete.

Obrigado Passo Fundo pela acolhida, obrigado Jorge pelo desafio.

A equipe base (faltou a Rejane) e os dois protagonistas no set da Livraria Delta.
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Published on July 14, 2022 08:06

June 30, 2022

Uma Mulher Fantástica

Filme de Sebastián Lellio, Chile 2017

Marina perde seu grande amor na noite de seu aniversário, as vésperas de viajarem para uma lua de mel. Um aneurisma fatal leva Orlando e  vira a vida dela ao avesso. Junto com o luto, a jovem trans terá que enfrentar a família que Orlando deixou ao se apaixonar por ela, e o enorme preconceito das autoridades policiais.

O drama da protagonista é tratado sem arroubos, revelando sutilmente como por trás da máscara da polidez podem ser praticadas grandes violências. Além da exposição da hipocrisia social, o tom contido da obra, tanto no roteiro como na interpretação, tece o processo pelo qual Marina passa: de fragilidade quase absoluta, após o baque inicial, até dar a volta por cima. É interessante que mesmo que os eventos apontem o contrário, há algo em Marina que sugere, desde o início, uma grande força, e essa sugestão contrasta com as reações da protagonista frente aos calvários que sofre, a ponto de deixar o espectador frustrado, até entender o processo e a verdadeira natureza da força da mulher fantástica. Essa condução sofisticada do papel e do filme, rendeu ao diretor e à atriz  Daniela Vega inúmeras premiações, entre elas o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2018. Foi o primeiro filme estrelado por uma mulher trans a ganhar esse prêmio. Uma ousadia poética marca o ponto alto estético da obra, quando Lellio cinematiza, ou literaliza em imagem, a caminhada de Marina contra o vento.

Daniela é atriz e cantora lírica. Após ser a primeira atriz trans a apresentar um Oscar, em 2018,  teria sido agraciada com o titulo de cidadã ilustre de Ñunõa, distrito de Santiago onde nasceu. A homenagem, porém, foi cancelada, porque o nome e o gênero em sua carteira de identidade seguem sendo masculinos. “A quem entregaríamos o prêmio? Se temos a identidade de um homem, não podemos entregá-lo à uma mulher.” Explicou o prefeito de Ñuñoa. Ele, pelo visto, não viu o filme.

Uma Mulher Fantástica está disponível na Netflix.

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Published on June 30, 2022 07:40

June 23, 2022

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Bode na Sala

Conta a tradição judaica que Moishe, um aldeão pobre na Polônia do século dezenove, vai procurar o rabino. Ele acabou de ganhar mais um filho e a casa está pequena para as três gerações que a compartilham. O rabino orienta que ele bote as galinhas para dentro de casa e volte a falar com ele em uma semana. Na semana seguinte, Moishe chega desesperado.

— E? — Pergunta o homem sábio.

— Só piorou, Rabino, acho que o senhor não entendeu bem o problema.

— Entendi muito bem, meu caro Moishe. Falta espaço na casa?

— Tá horrível, rabino, horrível.

— Bota o cachorro pra morar com vocês.

— Mas senhor…

— Faz isso e volta em uma semana!

Na semana seguinte um abatido Moishe se arrasta à casa do homem santo, chorando lágrimas amargas. Ele nem consegue mais distinguir quem é gente, quem é bicho naquele caos.

— Não te preocupa, Moishe, agora é só botar o bode pra dentro, morando na sala.

— Rabino, o senhor definitivamente não…

— Faça o que eu mando e volte em uma semana.

A entrada do bode no seio familiar não alterou apenas o espaço físico, já exíguo. O bode, com seu comportamento dominador, e principalmente, com seu odor peculiar, transformou o que um dia foi um lar – com todos os problemas que tinha , mas um lar – num chiqueiro. A alegria foi embora, o humor se retirou, a solidariedade e a benevolência pediram as contas. Um ar que evocava podridão, massacres e morte começou a tomar conta do pedaço. A família toda ameaçou se rebelar, incluindo o cachorro e algumas galinhas, mas o impacto odorífico era tão forte que paralisou a todos.

E assim, finalmente, na quarta semana, quando um farrapo humano que atende pelo nome de Moishe cambaleia para dentro da sala do Rabino, este sorri, ordenando:

– Agora volta para casa, tira as galinhas, o cachorro e o bode.

Moishe desta vez obedece sem pestanejar. Corre para executar a orientação rabínica (tem alguma dificuldade em convencer o bode a se retirar, mas enfim, consegue), e de repente, do nada, descobre que morava numa mansão. Será essa a sensação que o Brasil experimentará em janeiro do ano próximo, após as eleições de outubro? Conseguiremos tirar o nosso B da sala? Não perca, nos próximos episódios da Casa do Baralho.  

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Published on June 23, 2022 07:45

June 16, 2022

Intimidade

Série, criação de Verónica Fernández e Laura Sarmiento, Espanha 2022

Intimidade é uma das mais instigantes obras para TV  que  tratam do avanço das mulheres em  territórios que outrora eram predominantemente masculinos e da reação dos que não conseguem encarar este avanço. O choque entre progresso e reação é o motor dramático da série. O combustível é a violação da intimidade.

Seis mulheres, de diferentes idades, profissões e contextos sociais são envolvidas nos dramas causados pela publicação de dois vídeos que mostram duas delas durante o ato sexual. Malen é vice-prefeita de Bilbao e o vídeo, gravado na surdina, é publicado para acabar com a carreira da jovem política em ascensão. Ane é operária em uma fábrica, e as fotos e o vídeo, enviados e compartilhados em seu local de trabalho, têm o objetivo de humilhá-la por mera vingança. As outras quatro mulheres: a investigadora de crimes digitais que busca desvendar os dois casos, a irmã de Ane, a filha adolescente de Malen e a conselheira política da vice prefeita, têm seus próprios conflitos que são exacerbados em função do vazamento. A cadeia de reações machistas, desencadeada pelo material “explosivo”, engloba homens e mulheres, jovens e adultos.

Ane, Verónica Etchegui, avançando em território masculino.

A trama se desenrola entre o espaço da política e poder, a fábrica de maquinas pesadas, a polícia, a escola e as famílias. É admirável como o roteiro de Intimidade consegue conectar os personagens e cenários de dois casos paralelos, criando a dimensão de fenômeno social, sem abandonar a dimensão pessoal, o impacto de cada um dos casos nos indivíduos envolvidos. É mais admirável ainda como roteiro e direção constroem as personagens dessas seis heroínas, não apenas em cima de sua força, mas também de suas fragilidades.

Outro ponto interessante é que é uma produção do País Basco, conhecido no século passado pela luta sangrenta dos separatistas do ETA (ver o post Pátria). Com o fim do conflito a região resolveu investir no progresso e na cultura, criando, entre outras coisas, um polo de produção audiovisual. A série é falada em espanhol, mesclado eventualmente com o Euskera, o idioma local.

Intimidade, com Itziar Ituño e Verónica Etchegui, nos papéis de Malen e Ane, pode ser vista na Netflix.

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Published on June 16, 2022 07:23