Jaime Lerner's Blog, page 2
July 10, 2025
Nove Rainhas

Filme de Fabián Bielinsky, Argentina – 2000
Uma matriz digitalizada em 4K traz para a janela de streaming um dos maiores sucessos do cinema argentino do início do século. Nove Rainhas é uma aula de cinema, particularmente de roteiro. Um filme inteligente, que funciona muito bem como entretenimento, mas abaixo da superfície tem outras camadas, a de crítica social e do drama familiar. De quebra traz um olhar sobre o universo de um criminoso muito peculiar, o vigarista, como uma certa alegoria da sociedade argentina. E mostra que mesmo essa sociedade de golpistas se divide entre inescrupulosos e éticos.
O que há de tão especial no roteiro? Bielinsky o escreveu com a mente de seus protagonistas. Está o tempo todo escondendo o jogo, trapaceando, e deixando esse fato claro, porém sem revelar como, e esse mistério prende o espectador, é o elemento central do sucesso do filme. A sucessão de revelações surpreendentes e viradas só termina na última cena e expõe uma trama muito mais elaborada do que já parecia.
Mas para aplicar um golpe não basta uma boa história. O vigarista tem que ter seus truques de ilusionista, saber convencer a sua vítima, jogar a isca e principalmente, saber improvisar na hora do aperto. Então, além do roteiro, Fabián soube também escalar seus atores com maestria.
O carismático Ricardo Darin, mais conhecido na época como ator de tv na argentina, fez seu primeiro papel de peso no cinema, o que acabou impulsionando sua carreira vertiginosa. E o jovem Gaston Pauls com sua carinha de inocente, é a outra perna da dupla vigarista. Além dos dois protagonistas, há uma trupe de atores, jovens e antigos que desempenham com primor os papeis de coadjuvantes.
Na década de 1990 a Argentina vivia um caos econômico. Após a queda da ditadura militar, que deixou o país com uma dívida externa enorme, os governos civis tentavam debelar uma hiperinflação galopante. Um cenário muito conhecido para quem viveu no Brasil na mesma época. Aqui houve os fiscais do Sarney e depois o Plano Collor que só pioraram as coisas. Lá dolarizaram o peso o que incialmente controlou a inflação, mas depois teve um efeito rebote que lançou os argentinos na recessão e pobreza. Houve tumultos, a maioria na frente de bancos que ficaram sem dinheiro que era dos correntistas.
Esse é o contexto que inspirou o filme, e que vem à tona na cena em que Marcos tenta resgatar o cheque do golpe que deu, e vai a um banco cercado por clientes furiosos para descobrir que os banqueiros deram um golpe muito maior e fugiram com todo o dinheiro antes de o banco quebrar.
Nove Rainhas faturou todos os prêmios do cinema argentino e vários prêmios internacionais. Em 2004 foi lançado um remake norte americano, chamado no Brasil de 171, que não teve sucesso. Em 2005 Bielinsky dirigiu seu segundo filme, Aura. Um mês antes do lançamento o diretor faleceu, aos 47 anos, em São Paulo, onde estava para a pré-produção de um comercial. Era hipertenso e provavelmente teve um enfarto durante o sono. Na época estava escrevendo o roteiro do que seria seu terceiro filme.
A remasterização para digital foi acompanhada por Marcelo Camorino , diretor de fotografia do filme e pode ser vista na Max.
July 3, 2025
Cenas de um Casamento

Minissérie de Hagai Levi – EUA, 2021
Em 1973 o cineasta Ingmar Bergman apresentou na TV Sueca uma minissérie intitulada Cenas de um Casamento. Foi uma obra surpreendente por dois motivos: na época havia uma separação rígida entre cinema e TV, a TV sendo considerada uma plataforma menor em termos de obras autorias e artísticas. Bergman era um dos cineastas mais autorais de um cinema filosófico que abordava temas complexos e existenciais.
A segunda surpresa era que a obra se baseava no casamento do diretor com Liv Ulmann, atriz de vários filmes seus e que interpretou, na série, a si mesma, ou ao menos uma personagem com a sua experiência.
Um ano depois do lançamento da minissérie, Bergman editou uma versão condensada para ser lançada nos cinemas.
Pouco menos de meio século depois, o roteirista e show runner israelense Hagai Levi toma a ambiciosa missão de adaptar a minissérie sueca para a HBO americana, e mais importante ainda, adaptá-la para o século XXI.
Hagai é o criador de obras seriadas que ultrapassaram as fronteiras de seu pequeno país, como Betipul – (Em terapia) e a explosiva Our Boys. Assim como Bergman, Levi coloca no protagonista masculino experiências de vida que ele teve, como ser de uma família judaica ortodoxa e ter abandonado aos poucos à religião, ainda que permaneça com laços ocultos que se revelam em situações especiais.
Ao adaptar a série para o século XXI, Levi subverte os papeis do casal no jogo de poder. Ambos têm sucesso em suas carreiras profissionais (assim como na obra original) porém a mulher, CEO de uma empresa de alta tecnologia é quem bota mais dinheiro em casa, e dedica-se muito mais ao trabalho em termos de horários e viagens. O marido, professor de filosofia, queda-se com mais responsabilidades com o lar e com a filha. O caso extra conjugal que causa (ou é consequência) a crise no relacionamento, é de Mira e o traído é Jonathan, o marido.
Há na série momentos dramáticos profundos, mesclados com cenas em que os diálogos são por demais intelectualizados, o que cria um certo tom artificial e um distanciamento. Há decisões da direção muito criativas, como abrir os episódios com uma espécie de making of que retrata os instantes antecedentes da cena que irá iniciar o episódio. No último episódio a cena de bastidores migra da abertura para o final e cria um fechamento eloquente para a obra. Apenas nessas sequencias há trilha musical.
Essas cenas de making off não são apenas um artifício de estilo. Elas aprofundam a reflexão sobre a relação conjugal e os jogos teatrais que fazem parte dela. O contraste da muvuca do set, captada por uma câmera em constante movimento, para o espaço cênico fechado onde na maior parte do tempo dois atores contracenam em enquadramentos muito bem alinhados e com câmera fixa, oportuniza essa reflexão. Ainda mais quando toda a equipe usa máscaras, já que a série foi filmada durante a pandemia da Covid, pandemia que enclausurou muita gente, botando à prova, vários relacionamentos.
Jessica Chastain faz o papel de Mira e Oscar Isaac encarna Jonathan. Jessica também teve papel importante na adaptação comportamental da série para o século XXI. Ela disse ao diretor que não teria problema com suas cenas de nudez, mas exigiu uma equivalência em cenas de nudez para Oscar. Exigência que Hagai aceitou prontamente.
Cenas de Casamento pode ser vista na Max.
June 26, 2025
Um Dia de Cão

Filme de Sidney Lumet – EUA, 1975
Um polonês, um italiano e um judeu assaltam um banco em Nova York. Mal entram no estabelecimento, o judeu perde a coragem e foge.
Parece o começo de uma piada de tiozão, mas na verdade é o início de um filme que se tornou um clássico, e que apesar de suas tiradas de humor trata de uma tragédia.
O filme é baseado em fatos reais que aconteceram em agosto de 1972, em que um assalto atabalhoado a banco virou um evento com reféns que durou quatorze horas, envolvendo a polícia, o FBI e uma multidão de curiosos, tornando-se um show midiático com transmissão ao vivo pelas redes de televisão.
Tudo é inusitado nesse evento, e o roteiro de Frank Pierson articula de maneira genial essa sequência de elementos surpreendentes na tessitura da trama. Além da arquitetura sofisticada do enredo, os diálogos são fantásticos. Porém o grande lance do filme é a construção dos personagens, o que envolve roteiro, direção e trabalho de ator, e a corajosa sacada de abordar esse drama maior, através do conjunto de dramas “menores” de seus vários personagens.
O irreverente Sonny Wortzik, interpretado por Al Pacino, na época em que o ator apresentava nas telas personagens complexos e não apenas um reflexo de si mesmo, conduz esse elenco de figuras que dão vida ao filme. Sal Naturile, seu comparsa no crime, interpretado por John Cazale é também seu comparsa no sucesso do filme. Curiosamente, ambos trabalharam no Poderoso Chefão, filme que o assaltante verdadeiro, John Wojtowictz, assistiu no dia do assalto para se inspirar.
Junto à dupla de assaltantes há ainda outros personagens secundários muito bem construídos, com destaque para a subgerente Sylvia, na pele da atriz Penelope Allan.
Outra sacada inteligente do filme: antes de nos jogar para dentro do banco, onde acontecerá a maior parte da trama, Lumet nos leva por um passeio por Nova York, num dia quente de verão (o assalto aconteceu em 22 de agosto). Há uma qualidade documental muito forte nessas sequência inicial, que com o passar dos anos ganha ares antropológicos. Não só pelo conteúdo, mas também pelo look – as cores e a textura do filme analógico que se perdeu com o tempo.
Esse preâmbulo de um dia normal na cidade também configura a urbe como personagem, dialogando com a aglomeração de curiosos mais tarde e o circo midiático, ao qual o filme faz sua crítica.
O sucesso de Um Dia de Cão inspirou vários documentários sobre o caso. Um dos mais interessantes é O Cão (The Dog) de Frank Keraudren e Alisson Berg, sobre John Wojtowicz, o assaltante na vida real. Vários filmes de ficção se inspiraram e ou homenagearam o clássico, o mais recente é o impactante Até a Última Gota de Tyler Pery, recentemente comentado no blog.
Um Dia de Cão faturou o Oscar de Melhor Roteiro Original em 1976, entre vários outros prêmios. Está disponível para aluguel Na Amazon prime, Google Play, e Apple TV. Não envelheceu nem um pouco nesse meio século desde seu lançamento.
June 19, 2025
Até a Última Gota

Filme de Tyler Perry – EUA, 2025
O copo de agruras tomado diariamente por Janiah, mulher negra, mãe solteira, dois empregos, filha doente, vazou. E ela, tentando apagar um incêndio após o outro, só se enreda mais no turbilhão de problemas, até perder o controle e estourar.
Nesse estouro ela acaba matando dois homens, e sua entrada no banco para resgatar o cheque do salário do mês, após ter sido demitida, acaba se transformando em um assalto com reféns, cerco policial, chegada do FBI e transmissão ao vivo nas redes sociais e na mídia convencional.
Essa situação dentro do banco lembra demais o filme de Sidney Lumet, Um dia de Cão de 1975, estrelado pelo (então) jovem Al Pacino. O filme também faz uma contundente crítica social, só que à sociedade do espetáculo, enquanto que Até a Última Gota foca sua lente crítica na invisibilidade social de pessoas que vivem diariamente no limite da sobrevivência, com ênfase especial no contexto racial.
Até a Última Gota não tem o brilhantismo e o humor de Um Dia de Cão. Perry é muito mais direto e menos sofisticado do que Lumet na tessitura da trama, nas viradas e na exposição dos conflitos, mas o drama de uma pessoa que vive correndo sísificamente atrás do prejuízo e um dia explode é tão fortemente apresentado que comove e gera grande empatia, o que parece ser o objetivo do filme.
Um dos elementos mais interessantes da obra é a divisão de funções entre personagens brancos e pretos. Janiah vive numa vizinhança negra, e em boa parte do filme as pessoas ao seu redor, tanto as que a apoiam como as que alimentam suas agruras, são negras. Seu chefe, os dois assaltantes, a professora da escola de sua filha, a caixa e a gerente do banco, a proprietária do apartamento que a despeja, etc.
Os poucos brancos que cruzam seu caminho são todos representantes do poder público: a assistente social, os dois policiais na briga de trânsito. O policial homem, claramente racista, torna-se, na mente de Janiha, o algoz mor, o símbolo do mal. No decorrer do cerco ao banco a disputa entre o FBI e a polícia local (comandada por um chefe negro) também adquirirá tons de um conflito racial. Já na pequena multidão que se aglomera no cerco, apoiando a protagonista, há negras/os e brancas/os.
Até a Última Gota tem Taraji P. Henson como protagonista. A atriz rodou o filme todo em apenas quatro dias, pois estava envolvida nas filmagens da série Flight Night. Por um lado, essa correria foi boa, disse ela em entrevistas, já que acabou passando pouco tempo na pele de um personagem que vive no limite, em um ambiente pesado.
O filme foi lançado diretamente na Netflix e já na sua primeira semana chegou ao topo dos filmes mais assistidos da plataforma no Brasil.
June 12, 2025
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Não fui eu, foi a minha retórica.

Retórica, de acordo com o dicionário, é a arte da eloquência, de argumentar bem, a arte da palavra.
Esta semana, transmitido ao vivo e a cores para todo o país, ocorreu o interrogatório no STF dos réus no processo de conspiração para golpe após as eleições presidências de 2022. O réu mor, o ex-presidente B, deu uma aula de como responder à perguntas de forma concisa, clara e objetiva.
Interrogador: Em reunião ministerial de 5 de julho de 2022, o senhor afirmou que o TSE era parcial, que três ministros do STF recebiam dinheiro para fraudar as eleições. Quais os indícios que o senhor tinha para fazer essas acusações?
Interrogado: Essa reunião nem deveria ter sido filmada. Não sei quem filmou, no celular de quem isso foi encontrado? Se não fosse filmada, eu nem estaria aqui, prestando depoimento. Eu peço desculpas se ofendi vossa excelência e algum outro ministro, mas é o meu temperamento, a minha retórica. Foi mais um desabafo. Sempre foi a minha retórica como vereador e depois deputado e levei essa retórica para a presidência da República. Nem eu acreditei quando fui eleito. Mas fizemos um governo exemplar. Tivemos ministros excelentes, todos escolhidos por critério técnicos e não políticos. Melhoramos a segurança pública, vencemos a Covid, arrumamos a economia apesar da crise pela guerra lá fora. Foram quatro anos de sacrifício meu pelo Brasil. O senhor tem ideia o que é trabalhar 7 dias por semana de domingo a domingo, só de vez em quando sair para passear de jet ski ?
Interrogador: O senhor como então Presidente da República convocou uma reunião em 18 de julho de 2022, três meses antes da eleição, com os embaixadores dos países estrangeiros. O tópico da reunião era a fraude nas urnas e a parcialidade do TSE, confirma?
Interrogado: Em 2016, a president@ D também fez uma reunião com embaixadores, o assunto foi outro mas ela fez essa reunião. Então essa é uma prerrogativa do chefe do executivo. Dois meses antes da minha reunião o ministro F do TSE fez uma reunião com os embaixadores e falou da segurança das urnas, dizendo que assim que saísse os resultados os chefes das nações poderiam cumprimentar o vencedor. Essa é a norma, eu sei, mas fiquei surpreso. Então eu chamei essa reunião pra mostrar o inquérito 1131, que tá certo que o foco era outro, não era bem as urnas…mas, Eu não fui o único que questionou as urnas, eu tenho aqui o senhor FD quando perdeu as eleições pra governador do Maranhão em 2010 também falou em fraude. O presidente do PDT anos atrás também disse que foi vítima de fraude, até me surpreendeu que foi ele que me denunciou por abuso de poder pela reunião com os embaixadores. A intenção minha nunca foi desacreditar, sempre foi alertar, para melhorar.
Interrogador: Quando da live de 29 de julho, 2021, as pesquisas já indicavam queda nos votos para o candidato B, nesse momento também foram intensificados os ataques ao processo eleitoral. Eu gostaria de saber se é possível extrair uma relação de causa e efeito entre esses fenômenos.
Interrogado: Não chamo de ataques, chamo de críticas. Como já fizeram, aqui eu elenquei, FD, CL, Brizola e tantos outros parlamentares que criticaram também. Mas quando é meu nome que tá no balcão, a mídia adora chamar de ataques. Tudo isso por que eu cortei os anúncios do governo nos grandes jornais, mas não foi por maldade. Eu tinha que respeitar o teto de gastos. Tudo que a gente fez foi manifestação pacífica. Não como o outro lado que fechava vias, invadia, quebrava tudo. O oito de janeiro não foi o meu eleitor que tava acampado na frente do quartel que fez, esses entraram de gaiato, coitados. Isso vieram uns cem ônibus cheios de gente na véspera e fizeram aquela baderna. Mas não dá pra chamar isso de golpe. Não apreenderam uma arma de fogo sequer. Que golpe é esse?
A aula de concisão teve tamanho impacto que o advogado do réu repetiu algumas das perguntas pedindo que B só respondesse com sim ou não. Não teve êxito.
Com retórica ou sem retórica, o fato é que o ex-presidente acumula em seu currículo escapadas monumentais das garras da justiça. Foi o caso em que planejava explodir uma bomba no exército, o caso da troca do chefe da polícia Federal e, principalmente, no caso da pandemia, só para citar os exemplos mais espetaculares.
Logrará ser absolvido, também nesse processo? Serão apenas condenados a sua retórica e seu temperamento? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!!!
June 5, 2025
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Fuga das Galinhas

No ano 2000 um filme de animação re-revolucionou a indústria cinematográfica. Filmado em stopmotion e feito em massa de modelar, foi na contramão do avanço tecnológico, cativou o público, arrecadou a maior bilheteria da história de um filme de animação e após inúmeros protestos por não poder ser indicado ao Oscar, a Academia criou, a partir daquele ano, a categoria de Melhor Filme de Animação.
O que esse belo filme tem a ver a com evasão da deputada condenada Cara Rebele da justiça brasileira? Nada, a não ser o título.
A deputada, eleita pelo povo para legislar, destacou-se em seu mandato por duas ações. A contratação de um hacker para invadir o sistema do judiciário e emitir uma falsa ordem de prisão do juiz Xandão assinada por ele mesmo. Perseguir com uma pistola em punho, numa rua movimentada da capital paulista e em plena luz do dia, um cidadão que a provocou na véspera da eleição de 2023, dizendo que o presidente B iria perder a eleição.
O ex-presidente B, de quem ela era grande puxa saco, chegou a dizer que perdeu a eleição por causa dela, o que a deixou profundamente magoada. Naquele momento, ele esqueceu da afirmação que sustentava com todo o vigor, que não havia perdido a eleição, já que houve fraude nas urnas eletrônicas.
A invasão do sistema do CNJ, encomendada pela Rebele, tinha justamente esse objetivo, desmoralizar a justiça eleitoral e desacreditar a urna eletrônica, para poder alegar fraude caso seu grupo político perdesse a eleição.
Por essas duas ações que tanto repercutiram na mídia, honrando o cargo de legislador eleito, a deputada foi condenada a dez anos de prisão na primeira, e cinco anos na segunda. Além de uma multa de dois milhões de reais. Uma tremenda injustiça. Logo fez uma vaquinha pela internet para poder pagar as multas.
Assim como as galinhas do filme de Nick Park quando viram que a dona da fazenda comprou uma máquina de triturar para fazer tortas de frango com elas, a deputada resolveu voar para bem longe. Pegou seu passaporte italiano, atravessou a fronteira para a Argentina, de lá embarcou num avião para a querida Miame, para onde B havia também fugido na véspera de entregar o bastão a L. Ainda pretende voar para Roma, por ter a cidadania italiana. Comprou as passagens com a grana das doações para pagar a multa.
Esta aliás é uma tática recorrente desse grupo que tanto respeita a Lei e a Ordem. O pedido de Anistia para quem participou da invasão aos três poderes, o pernoite de B na embaixada da Hungria, a fuga para Argentina ou EUA para escapar dos braços da justiça.
A deputada, antes de chegar ao seu destino final, não se aguentou, e se manifestou pelas redes que havia saído do Brasil e não pretendia voltar para cumprir as penas. Conseguiu a façanha de ser demitida como cliente, pelo seu próprio advogado. Mas conseguiu também constranger o judiciário e o ministério público que deixaram de tomar precauções como recolher seus passaportes.
Logrará Cara Rebele obter refúgio seguro no exterior, ou será extraditada ao Brasil? Tomará o judiciário, a partir desse caso, medidas preventivas contra o ex-presidente B e seus asseclas que respondem a inquérito ligado ao plano de golpe contra a eleição do presidente L? Não perca nos próximos episódios de Casa do Baralho!!!
May 29, 2025
A Baleia

Filme de Darren Aronofsky – EUA, 2022
Confesso que demorei para assistir A Baleia, por receio. Fã dos primeiros filmes de Aronofsky, principalmente o do Requiem para um Sonho, senti que ele se perdeu em obras mais recentes como Cisne Negro e Mother. Sabendo que A Baleia tem como personagem principal um obeso mórbido que mal consegue se deslocar dentro da própria casa, fiquei com um pé atrás em relação à exploração do grotesco que poderia encontrar.
Uma das surpresas agradáveis foi descobrir que A Baleia é título do ensaio de uma estudante sobre o livro Moby Dick. Um ensaio cuja leitura e releitura ajuda o protagonista se recuperar de suas crises, cada vez mais frequentes dado o seu estado de saúde. No decorrer do filme é revelado porque esse ensaio é o seu favorito, tem um poder de cura quase milagrosa, não necessariamente por sua qualidade literária, nem pelo tema abordado.
Outa grande surpresa agradável é a atuação de Brendan Fraser. É maravilhoso ver como Brendan dá vida a Charles, muitas vezes apenas com uma expressão dos olhos, preso num corpo imenso e prensado por uma culpa gigantesca. O ator, mais conhecido pelos filmes da franquia A Múmia, que envolvem terror com fantasia, estava a tempos fora da tela grande. Foi resgatado de volta para o cinema por Daren (e no mesmo ano também por Soderbergh) e apresenta um trabalho dramático sensível e cheio de nuances, que infelizmente é interrompido volta e meia por um mal-estar súbito, um engasgue ou queda. Armadilhas colocadas por sua condição, porém usadas exageradamente.
Aliás, o resgate de atrizes e atores “aposentados” virou uma tradição do diretor. Ellen Burstin em Requiem para um Sonho e Mickey Rourke, em O Lutador, são dois exemplos. Darren parece saber trabalhar muito bem essa volta pós afastamento desses atores.
A Baleia é adaptação de peça de teatro homônima de Daniel Hunter que assina também o roteiro do filme junto com Darren. Um dos problemas do filme é justamente a teatralidade de algumas misancenes e performances de atores coadjuvantes, como o da ex-mulher de Charles. A grande virtude da obra é a abordagem corajosa de tema complexo e sensível, o “suicídio” por engorde, causado por um luto e uma culpa.
O filme estreou no festival de Veneza, ovacionado em pé por seis minutos. Ganhou dois Oscars em 2023: o de Melhor Maquiagem e de Melhor Ator para Brendan. Gerou polêmica ao ser taxado nas redes de gordofóbico e ser acusado do uso de Fat Suit (engordar um personagem com uso de próteses e efeitos de maquiagem).
A Baleia está disponível na Netflix (assinatura) e para aluguel na Amazon Prime, Google Play e Apple TV.
May 22, 2025
Reality

Filme de Tina Satter, EUA – 2023
Reality Winner, nome e sobrenome que parecem de personagem de quadrinhos, mas pertencem à uma pessoa muito real. Seu pai escolheu o nome Reality por que queria que ela fosse uma real winner, uma verdadeira vencedora na vida. Não podia imaginar o que o destino lhe reservava.
Reality estudou pashto e dari, idiomas falados no Irã, Paquistão e Afeganistão. Serviu na inteligência da força área norte americana por seis anos. Depois seguiu trabalhando em empresa privada que fornecia serviços de inteligência para a NSA, a Agência Nacional de Segurança norte americana, que lida principalmente com criptologia e segurança Cyber. O título do filme é, portanto, o nome da sua protagonista, mas ganha ainda outra dimensão pelo experimento de linguagem que faz.
Reality não é uma obra biográfica. Retrata o dia em que Winner chega em casa do supermercado e é abordada por agentes do FBI. O singular no filme é que os diálogos são rigorosamente extraídos da gravação em áudio feita por um dos agentes. Em outras palavras, o roteiro do filme é estruturado por um documento oficial, porém o filme não é um documentário. Ele é completamente encenado, os atores representam personagens reais, não de maneira que alguns realities de TV usam atores para reconstituição, mas da maneira como atores interpretam personagens, reais ou fictícios, em dramas de ficção.
A diretora deixa claro desde o princípio que as falas são do áudio original, e lembra isso ao espectador ao longo de todo o filme, usando recursos simples, mas muito criativos, para mesclar realidade e ficção, principalmente em relação aos detalhes que são ocultos para publicação nesse áudio. O resultado vai além de uma grande autenticidade. A sensação é que viramos aquela mosquinha na parede que assiste a toda a interação entre a jovem e os agentes do FBI.
Esse efeito não teria o impacto que tem, não fosse o maravilhoso trabalho de atores, principalmente o da protagonista interpretada por Sidney Sweene, e a direção de cena, na movimentação em quadro e na gramática audiovisual, que evitam que o filme pareça um teatro filmado.
Dessa maneira, junto ao drama de Reality, nos é passada a realidade de um interrogatório de um serviço secreto, com suas táticas e técnicas. E surge uma nova forma de fusão entre realidade e ficção na linguagem cinematográfica. O filme também não deixa de ser uma maneira de trazer à luz, através da arte, um documento do serviço secreto, quando tornar público um documento secreto é justamente o crime do qual Reality é acusada.
O curioso é que essa é a primeira experiência de Tina Satter como diretora de cinema, e que o filme é adaptação da peça de teatro Is This a Room criada e dirigida por ela. É um filme simples em termos de produção (foi rodado em 16 dias, praticamente em uma só locação), mas de grande engenhosidade e que trata de temas absolutamente importantes e atuais. A mim lembrou, em vários momentos, o romance O Processo de Kafka.
Reality estreou no festival de Berlim em 2023, e foi enaltecido pela crítica. Além dos elogios pelo trabalho de Sweene e pela construção do suspense por Tina, foi ressaltada a importância de lançar luz sobre um episódio pouco conhecido, e extremamente relevante. O filme foi agraciado com o Prêmio Peadboy em 2023 e premiado no festival de cinema de Jerusalém como Melhor Documentário, embora não seja um filme documentário.
É surpreendente que não teve maior impacto na distribuição para as salas de cinema. Foi lançado na TV na HBO e agora Reality pode ser visto na Netflix e na Plataforma MUBI.
May 15, 2025
O Eternauta

Série, direção de Bruno Stagnaro, Argentina – 2025
O Eternauta é uma aposta ousada, tanto da Netflix como do audiovisual argentino. É adaptação da novela gráfica homônima, criada em 1957 e retomada nos anos setenta por Hector German Osterheld (texto) e Solano López (desenho, na década de 70). A HQ é icônica na argentina, mas pouco conhecida internacionalmente. Várias tentativas de adaptação para cinema (animação e live action) ao longo dos anos acabaram não vingando. Talvez pelo alto custo da produção, talvez pela extensão da obra, ou pela forte tradição do cinema argentino de trabalhar com dramas realistas, enquanto O Eternauta é uma fantasia distópica de ficção científica, com muita ação.
Além da obra em si, a história trágica de Hector Osterheld, desaparecido pela ditadura argentina, assim como suas quatro filhas, em 1977, traz mais um componente de peso para a mística da História em Quadrinhos. Hector criou uma trama que acabou tendo ligação chocante com seu destino e o de sua família. Para ler mais sobre Osterheld clique aqui.
A série conta com um elenco de peso, com os atores Ricardo Darin e Cesar Troncoso, mais conhecidos também por seus papeis em dramas realistas. Os primeiros episódios têm esse tom realista, e o fenômeno estranho que assola a capital argentina parece um desvio, algo como uma anomalia meteorológica ou física. A série engata numa estética sci-fi e HQ, a partir do terceiro episódio quando surgem os bichos. No entanto, ela já é prenunciada no primeiro plano do episódio inicial, um plongée radical de um barco parado em águas escuras, seu mastro desnudo da vela quase cutuca a lente, e no fundo, o rosto de uma moça deitada visto pela escotilha.
As cenas de ação e os efeitos são bem executados, os atores entregam boas performances ainda que não haja grande complexidade nos personagens. Mas há algo estranho na estrutura da primeira temporada que parece incompleta. Normalmente se espera que um ciclo se feche em cada temporada, ainda que com gancho para a continuação. No caso de O Eternauta, a sensação é que há uma interrupção no meio do ciclo. Ainda mais quando esse é um ciclo expositivo. Parece que faltou ainda um ou dois episódios para estabelecer o conflito principal, inclusive esclarecer o título da obra. Há que esperar, portanto, a próxima temporada, para fazer uma análise mais completa.
Apesar dessa anomalia estrutural, o lançamento foi um enorme sucesso, é a série de língua não inglesa mais assistida nos primeiros cinco dias pós estreia na plataforma. É provável, portanto, que a segunda temporada não demore para entrar em produção.
O Eternauta pode ser vista na Netflix.
May 8, 2025
O Que Resta de Nós

Livro de Virginie Grimaldi, França – 2022
O que resta de nós é um livro sobre um triângulo amoroso. Não, não é que você está pensando. É um triângulo e um amor muito diferentes do que o termo normalmente sugere.
Na base do triângulo uma senhora que recém perdeu o marido, aos setenta e quatro anos. Não tiveram filhos, mas tiveram uma vida longa de um casamento feliz, e o luto dilacera Jeanne.
Os outros lados do triângulo: O jovem Theo é aprendiz de padeiro. Recém saiu do abrigo para menores ao completar dezoito anos. Não tem pai e sua mãe, alcoólatra, está numa instituição e não o reconhece mais. Iris, outra jovem, embora mais velha do que Theo, fugiu de um relacionamento tóxico e está grávida. E ainda é stalkeada pelo marido.
Como esses três se encontraram? Você terá que ler para saber. Mas o mais interessante é como os três, perfeitos estranhos uns aos outros – cada um carregando um grande peso, e com forte propensão a não se abrirem para novos relacionamentos – acabam constituindo uma família de laços profundos, ainda que não sanguíneos.
A autora, Virgine Grimaldi, constrói essa relação de tijolos simples, mas muito bem-acabados, pintados de várias cores com grande delicadeza. Estrutura sua narrativa intercalando capítulos para Jeanne, Iris e Theo. E esses capítulos individuais, ou individualizados, reforçam a magia da conexão que vai se formando.
Curiosamente, os dois jovens têm suas histórias narradas em primeira pessoa, e Jeanne, a mais velha, tem seu processo narrado em terceira pessoa. Por quê? Essa é uma das surpresas agradáveis do texto que sugere a possibilidade de um quarto lado do triângulo. Isso não existe na geometria, mas existe no romance de Grimaldi.
O Que Resta de Nós foi lançado na França em 2022, publicado no Brasil pela editora Gutenberg em 2024.
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