Jaime Lerner's Blog, page 4
February 27, 2025
Os Imperdoáveis

Filme de Clint Eastwood, EUA – 1992
Os Imperdoáveis causou furor quando foi lançado, considerado o fecho de ouro para um gênero que parecia esgotado. Curiosamente, acabou sendo catalizador para a revitalização do Faroeste, inspirando/provocando outras obras com um olhar moderno e quebrando paradigmas. Quebra que chega em seu ápice, na minha opinião, não em um filme, mais na série Godless, de 2017.
O filme não só abala paradigmas como também satiriza um dos pilares do gênero: a glorificação do macho, do homem durão que impõe a lei com o seu revólver. O filme inicia com uma prostituta debochando do tamanho do falo de seu cliente. O caubói perde as estribeiras, reage retaliando o rosto e seios da moça. As colegas, indignadas com o ato e com o descaso da “Lei”, fazem uma vaquinha para dar um prêmio a quem o mate.
A segunda sequencia nos apresenta o protagonista do filme, em uma situação nada gloriosa. Em um sítio caindo aos pedaços no meio do nada ele tenta separar seus porcos doentes dos sadios e cai e chafurda na lama. Ele é William Muni, outrora um assassino indomável, um dos melhores gatilhos do oeste, desviado do mal caminho pela esposa que faleceu há pouco. O ator é Clint Eastwood, que ficou famoso por seus personagens durões em faroestes espaguete. Ele protagonizará, mais tarde, outra cena humilhante quando apanhará sem dó do xerife e sairá rastejando do bar para a chuva lá fora.
Outro elemento nessa sátira à glorificação do macho é o personagem W.W Beauchamp, que não é caubói nem pistoleiro, mas um biógrafo que escreve sobre pistoleiros. A interação dele com o xerife (interpretado magistralmente por Gene Hackman) chega a ser hilariante. E essa mitificação do homem mau pelas artes, é ao mesmo tempo questionada e reforçada no filme o que o tornou, na época, um tanto revolucionário.
Além dessa revolução (mantendo, no entanto, à risca a gramática do faroeste), o filme apresenta um elenco de peso que inclui os já citados Clint e Gene, Morgan Freeman e Richard Harris, Anna Levine como a prostituta desfigurada e Frances Fisher como sua colega que organiza a vaquinha. E uma direção de fotografia impressionante, principalmente no desenho de luz com seu alto contraste, o preto denso que cria cenas sombrias inspiradas no cinema noir dos anos 1940-50.
O filme faturou os prêmios de melhor filme, direção, montagem, e ator coadjuvante (Gene Hackman), sendo o grande vencedor do Oscar 1993, disputando com obras sensacionais como O Jogador de Robert Altman e Traídos Pelo Desejo de Neil Jordan.
Os imperdoáveis, um clássico do faroeste moderno, pode ser assistido no Max.
February 20, 2025
Farol da Ilusão

Filme de Matty Brown, Líbano/Emirados Árabes Unidos/EUA, 2025.
O diretor Matty Brown conta que viveu uma infância muito difícil. Como criança, não entendia completamente a gravidade das situações, mas mesmo assim criava, como um mecanismo de defesa, histórias que “explicavam” e encobriam a realidade cruel. A ideia para o filme nasceu da lembrança de uma dessas histórias.
O Farol da Ilusão é um exercício cinematográfico ousado. Ambiciona nos transportar para dentro da cabeça de uma criança que sofre trauma de guerra. Essa incursão pelo inconsciente já é um desafio muito grande, mas Brown dá um passo além na ousadia, construindo uma trama que só nos revela ao final sua verdadeira intenção, embora largue inúmeras pistas espalhadas pelo caminho. Algo semelhante ao que Scorsese fez em Ilha do Medo.
O problema é que a trama não é exatamente uma trama, é uma situação: uma família encontra-se, não sabemos como nem por quê, em uma ilha deserta. Já bem cedo no filme suspeitamos que se trata de uma alegoria, ou algo parecido, em função do surrealismo da situação. Mas não há um enredo que se desenvolve, apenas uma série de desafios que surgem incialmente e depois se repetem, que os quatro membros da família devem encarar, tipo um reality de sobrevivência. O mistério de o que os levou à ilha e quem deve os buscar captura o espectador no início, mas perde essa força já no meio da obra, sem o combustível adequado que o mova.
O elenco parece ser escolhido a dedo, principalmente a mãe e os dois filhos que como figuras conseguem transmitir o estranhamento e a impotência frente à situação. No entanto, esses tipos interessantes não são suficientes para segurar o longa, sem um roteiro que apresente personagens reais e não apenas arquétipos alegóricos.
Nadine Labaki, atriz e diretora do super impactante Cafaranum faz o papel da mãe; Zein Al Rafeaa, (protagonista de Cafarnaum) e sua irmã na vida real, Riman, encarnam as duas crianças do casal; Ziad Bakri faz o papel do pai.
Os recursos imagéticos são criativos e um tanto impressionantes, como o passeio de foco por um aparelho de rádio jogado na areia que termina na ponta de sua antena e que junto com o áudio mostra o isolamento da família, a impossibilidade de fazer conexão com o mundo exterior, para um possível socorro. Mas a montagem de cortes excessivos e uma câmera instável que se repetem nos momentos de ameaça, com um desenho de som que carrega nos clichês de thrillers e filmes de terror, atentam contra o tipo de impacto pretendido pela obra.
Essa desconexão entre a utilização dos vários elementos do filme e sua intenção ambiciosa é que acabam tornando o filme difícil e estranho, não no bom sentido do termo.
Cabe observar que o nome original O Castelo de Areia é muito mais adequado do que o título dado a ele no Brasil, pois é um castelo de areia que a menina Jana constrói em sua mente para sobreviver, até que as ondas da realidade o destroem. O castelo também simboliza a família, a proteção que os pais devem dar aos filhos, mas em certas circunstâncias essa fortaleza se revela um castelo de areia, com traumas terríveis para filhos e pais.
Pelas questões que aborda (e que raramente encontram espaço na tela), pela ousadia na abordagem e a experimentação estética, vale a pena ver o filme, apesar de seus equívocos. O Farol da Ilusão (ou The Sand Castle) pode ser conferido na Netflix.
February 13, 2025
Que Horas Ela Volta?

Filme de Anna Muylaert, Brasil – 2015
Que Horas Ela Volta? É um dos mais tocantes filmes do cinema brasileiro. A sabedoria com que são integrados os dramas familiares com o drama social é um dos pilares fortes do filme. Os temas da maternidade e do afeto maternal, com sua abordagem diferente, é outro pilar. O trabalho primoroso dos atores, que sem arroubos dramáticos constroem personagens fortes, críveis e complexos, destaque para as protagonistas Val e Jéssica, (Regina Cazé e Camila Márdila), é certamente um terceiro grande pilar.
Outro elemento que não é tão evidente, mas impacta em um nível mais inconsciente, é a direção de cena, especialmente as composições de quadro que além da apurada estética têm também função dramática, expressando as hierarquias e os jogos de poder na relação patrões/empregada. Um exemplo é como o pai da família é enquadrado na sala de jantar pela porta da cozinha enquanto Val o serve indo da cozinha e saindo de quadro enquanto está na sala de jantar, território dos patrões. Além da cozinha, o quarto de hóspedes e principalmente a piscina, ganham peso concreto e simbólico nesse jogo de hierarquia e poder. Jogo que sofre abalo sísmico com a aparição de Jessica, a filha da empregada.
Vale destacar que esse foi o primeiro projeto de longa da diretora, mas não foi seu primeiro filme. Ela trabalhou no projeto por vinte anos até conseguir realizá-lo e no decorrer desse tempo foi atualizando o roteiro, principalmente acrescentando a mudança de postura da nova geração em relação ao abismo entre pobres e ricos, postura que acaba gerando o conflito mais interessante do filme, causando o abalo mencionado no parágrafo anterior.
Outro aspecto interessante de bastidores é que a ideia inicial da diretora era que Jessica fosse negra. Ela explica em entrevista para o Canal Brasil por que acabou escolhendo uma atriz branca e revela um pouco dos debates que houve na equipe em torno disso. É interessante pensar como seria o filme com essa personagem interpretada por uma atriz negra. Certamente seria uma obra diferente, pelos caminhos que o roteiro poderia tomar.
Já havia visto o filme há dez anos, na época do seu lançamento e quando escrevi o post sobre o romance Limpa, lembrei dele. São duas visões interessantes e abordagens muito diferentes sobre o mesmo tema: a “instituição” empregada doméstica. Limpa é contundente, Que Horas Ela volta? tem mais nuances e profundidade. Descobri que o filme está em exibição em streaming e foi muito bom revê-lo, não perdeu em nada de sua força com o passar do tempo.
Regina Cazé assina também o roteiro ao lado da diretora, outra surpresa por parte dessa artista de multitalentos que ficou por muito tempo marcada como apresentadora de programas populares de TV. Você pode assistir ao filme na Netflix.
February 6, 2025
Limpa

Romance de Alia Trabuco Zeran, Chile 2022
O título do romance, Limpa, pode se referir ao verbo, especialmente se conjugado no imperativo, ou se referir ao adjetivo. Ambos caem como uma luva. O texto é basicamente um monólogo de uma profissional da limpeza, em outras palavras, de uma empregada doméstica que além de limpar, cozinha, serve a família e cuida da filhinha dos patrões. É um monólogo quase em tom de confissão do que parece ser um crime. Mas em Limpa as aparências enganam. Não que não se trate de um crime, mas o crime não é aquele que parece ser, e a vítima, muito menos.
Embalando a narrativa no mistério de uma morte, o que dá ao texto o tom de um enredo policial, Alia Trabuco Zeran cria um manifesto contra a exploração calcada no abismo social. É este o crime denunciado. Não um crime de morte, um crime de vida. A história é chilena, mas a situação é latino-americana, um continente erguido em cima do trabalho escravo, cuja mentalidade de exploração escravagista ainda está presente em dias atuais. Isso vem à tona de forma eletrizante na história de Estela. Dela emerge uma protagonista muito especial, tão forte e trágica quanto a trama. Uma protagonista, após o monólogo confessional, de alma limpa.
Zeran, autora emergente da literatura chilena contemporânea, escreveu o livro de não ficção As Homicidas, que também mescla crime e a condição feminina. O livro foi a inspiração para o sensacional filme No Lugar da Outra que ela assina como uma das roteiristas. Seu premiado romance de estreia A Subtração (2015) foi traduzido e publicado no Brasil pela editora Moinhos. Já Limpa e As Homicidas (2019) foram publicados aqui pela Editora Fósforo.
Leia uma amostra e adquira o livro:
January 30, 2025
Fallout

Série, direção de Jonathan Nolan, EUA, 2024
Jonathan é o irmão menos famoso de Christopher Nolan, mas nem por isso menos prodígio. Amnésia, o filme que catapultou a carreira de Christopher e cujo roteiro foi indicado ao Oscar, é adaptação do conto de Jonathan Memento Mori. Além de roteirista em vários filmes, Jonathan é diretor, criador e produtor executivo de séries importantes como West World e Person of Interest.
Assim como em outros trabalhos seus, Fallout traz uma visão original embalada em narrativa empolgante. A série que inicialmente parece um tanto maniqueísta, como muitas outras distopias de ação, revela aos poucos um roteiro complexo com guinadas muito inteligentes.
A estética também é peculiar, jogando no caótico caldeirão do que restou daquele pedaço de mundo após a hecatombe nuclear, referências de vários gêneros e épocas, do Scifi ao Faroeste, passando por Flash Gordon e Mad Max, do futurismo aos anos 1950.
Fallout é adaptação para a TV do videogame homônimo, do qual Nolan é fã. Vários elementos como personagens, cenários e desafios são do jogo, mas a trama que os aglutina é original. E sua premissa distópica chega a dar arrepios frente ao que estamos vendo acontecer recentemente nos EUA com a posse de Trump: um conjunto de bilionários tomando as rédeas do estado.
Em outras palavras, por trás da pancadaria, do universo de *ghouls, irmandades paramilitares e dos efeitos visuais, há uma mensagem política que encara temas importantes, expressa, principalmente, pela diferença entre a vida absurdamente regrada dos abrigos, e a terra de ninguém lá fora.
*Para quem não conhece o jogo, um ghoul em Fallout é uma espécie de mortos vivos, outrora humanos que sofreram prolongada exposição à radiação, mas não o suficiente para matá-los. Essas criaturas deformadas com a pele necrosada são resistentes à radiação, e têm duas variações: ghouls inteligentes e feral ghouls, que são iguais a zumbis selvagens e adoram carne humana. Um dos protagonistas da série é um ghoul.
Você pode (e deve) assistir Fallout na Amazon Prime Vídeo.
January 23, 2025
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Trombeta do Apocalipse

Trump em inglês significa trombeta, ou trompete. Nesse seu retorno à Casa Branca, o presidente exigiu que a Casa do Baralho não o apelidasse mais de Trampo, ameaçando com embargo econômico, sanções militares e até deportação dos roteiristas. Quando tomou conhecimento que nenhum dos roteiristas mora nos EUA, estudou anexar o território casabaralhense, para poder depois deportá-los.
Pedindo assim, tão delicadamente, A Casa do Baralho resolveu atendê-lo, alcunhando-o, nesse segundo mandato, de Trompete. Para muitos ele é o trompete do apocalipse. No primeiro dia de trabalho já decretou a saída do EUA do Acordo Climático de Paris, a saída da Organização Mundial de Saúde e a saída da prisão dos 1500 criminosos que invadiram o Capitólio. Revogou a proteção ambiental à exploração de petróleo em áreas do litoral, e cravou o mote Driil, Baby, Drill (vamos perfurar, baby, perfurar).
Seu grande fã no Brasil, o ex-presidente e futuro-presidiário B, foi impedido de ir à sua posse, apertar a sua mão. Seu passaporte está retido pela justiça, após ele ter sido indiciado por tentativa de abolir o estado democrático de direito. B mandou no seu lugar o filho e sua querida esposa, a quem acompanhou, emocionado ao aeroporto.
Mal o avião decolou ele se lembrou da célebre frase do amigo americano: Grab them by the pussy, gabando-se com um colega que era assim que ele chegava nas as mulheres. B e seus filhos acharam muito engraçado na época, mas agora, com a Micheque a caminho de cumprimentar o Trompete, B sentiu um aperto nas hemorroidas. Chegou a verter uma lágrima, que explicou aos jornalistas como emoção pela posse do grande mandatário.
A publicação do áudio misógino com todo o escândalo que causou, na época, não minou a eleição do Trombeta. Como não minou agora o fato de ele ser réu condenado por fraude eleitoral em um episódio no qual pagou pelo silêncio de uma atriz pornô (ainda com dinheiro da campanha), sobre um caso que teve com ela.
O Trompete disputou três vezes a eleição para presidente. Ganhou duas delas e uma perdeu. Coincidentemente, as duas que ganhou eram contra candidatas mulheres. A que perdeu foi para um homem. Será os EUA tão machista quanto o presidente que elegeu?
Machista ou misógina, a infame frase sobre como Trompete tratava as mulheres pode ser aplicada atualmente à nação americana. Ele a pegou pelos órgãos genitais, e vai apertar, se for preciso.
Para o alívio do ex-presidente brasileiro, a Micheque acabou não tendo contato com o empossado. Não pôde ingressar na cerimônia e teve que assistir a posse em um telão. Isso que de acordo com B, ela era uma convidada VIP.
O que acabará antes, o novo mandato do Trompete ou o mundo? E até lá, estará a humanidade pronta para colonizar Marte? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
January 16, 2025
Cem Anos de Solidão, a série

Série, direção de Alex Garcia Lopez e Laura Mora Ortega, Colômbia, 2024
Em dezembro de 2024 a Netflix lançou a primeira parte (8 episódios) da super esperada série, adaptada do romance homônimo de Gabriel García Márquez. Desde o grande furor causado por Cem Anos de Solidão após seu lançamento em 1967, o autor recusou inúmeras propostas de adaptação. Achava difícil condensar em um longa-metragem a saga de Macondo e queria que fosse uma produção colombiana, com equipe e elenco locais falando o idioma do livro.
Oito anos após o falecimento de Márquez a família licenciou os direitos de adaptação para uma série, o que soluciona a questão da duração, e embora seja uma produção da Netflix, a produtora, os diretores, elenco, equipe e locações são colombianos e a série é falada em espanhol. É curioso que Márquez viveu a maior parte de sua vida no México, onde escreveu Cem Anos de Solidão, publicado inicialmente por uma editora argentina e alçado à fama mundial por uma agente literária de Barcelona, porém todo ele é inspirado nas vivências com os avôs, com quem passou boa parte da infância, no interior da Colômbia.
Muitas pessoas manifestaram receio de assistir a série, temendo que estragasse o impacto causado a elas pelo livro. Eu recomendo não a ver pensando ou comparando-a com o romance. Para mim ela apresenta uma estética interessante, que não se equivale em criatividade ao realismo mágico do livro, mas que tem suas próprias qualidades e que confere à obra audiovisual o seu próprio clima. Destaque para a direção de arte, na elaboração dos cenários e na caracterização e maquiagem do envelhecimento dos personagens. Aliás, a passagem de tempo, e a troca de elenco em função disso, tem um conceito bastante ousado.
Dito isso, vale mencionar que a saga dos Buendia e a alma/história latino-americana dos séculos 19 e 20, com seu caudilhismo, paixões desenfreadas, revoluções e um certo anarquismo/banditismo, estão bem representados na série. E que ela integra ao universo Macondiano elementos de outras obras de Márquez, como a personagem Erendira do conto A Incrível e Triste História de Erendira e sua Avó Desalmada (esse conto foi adaptado ao cinema por Ruy Guerra, com Claúdia Ohana como protagonista, em 1983).
Vale também mencionar que ares contemporâneos conferem protagonismo à matriarca dos Buendia, Úrsula Iguaran, um protagonismo maior do que o conferido no romance. Úrsula é, ao menos nessa primeira parte com oito episódios, a grande heroína da obra, o personagem mais basilar.
Como noventa e nove de cada cem obras audiovisuais adaptadas da literatura, a série usa uma narração em voice over.
Cem Anos de Solidão pode ser assistida na Netflix. Não há previsão ainda para o lançamento dos oito episódios restantes.
Assista ao trailer, (infelizmente) dublado em português
January 8, 2025
A Palavra Que Resta

Livro de Stênio Gardel, Brasil 2021
Romance de estreia que tem o impacto de um abalo sísmico na profundidade dos conflitos, na força do texto, na sensibilidade de capturar um universo inteiro e embalá-lo em poesia.
Stênio não busca agradar o leitor com uma escrita fácil, ao contrário, nos seduz com mistérios oriundos do embaralhamento dos tempos, da fragmentação da narrativa e das vozes que a narram, da mistura de pensamentos e divagações, falas e personagens. Um caos que reflete a tempestade no coração de Raimundo.
Ao pouco vamos tomando pé do que é o que e quem é quem e a linguagem nos assombra com sua precisão poética, sua gramática peculiar e riqueza criativa que fecham perfeitamente (e surpreendentemente) com um personagem que não sabe ler nem escrever.
“Essa história da cabeça feita é que é o perigo, usar a cabeça feita pra ignorar, rejeitar, eu fui me rejeitando, tu sabe como isso é ruim, Cícero?”
A cabeça feita, termo que o protagonista usa para pré-conceito que leva ao preconceito, é o verdadeiro antagonista no romance, presente em quase todos os personagens, vítimas e algozes simultaneamente. O gerador de todos os conflitos que conduzem a trama, as tempestades internas e externas. Mas o livro não trata só do preconceito, da homofobia. É um livro sobre identidade, sobre amarras e raízes, sobre amores e paixão.
A Palavra Que Resta foi finalista do Prêmio Jabuti eganhou o National Books Award norte americano na categoria Literatura Traduzida. Traduzir esse livro certamente foi um desafio e tanto, encarado por Bruna Dantas Lobato. Editá-lo também deve ter sido desafiador, não é à toa que o autor agradece no livro a Júlia Bussius, que além da dedicada edição sugeriu o título para o livro. O romance foi publicado pela Companhia das Letras.
Clicando abaixo você poder ler uma amostra e/ou adquirir o livro.
January 2, 2025
Adeus 2024!

Primeiro blog do ano, em que tradicionalmente destaco as obras do ano passado que foram aqui comentadas. Após vencer vários obstáculos patrocinados pela companhia de energia porto-alegrense, a CEEE- Equatorial (era ruim antes e ficou pior, após a privatização) para concluir e subir esse post, vamos ao que interessa.
Das cinquenta publicações de 2024, vinte e cinco foram sobre filmes. Destaque para a cineasta chilena Maite Alberdi que teve dois filmes comentados: A Memória Infinita (doc, 2023) e No Lugar da Outra (ficção, 2024). Destaque também para o brasileiro Ainda Estou Aqui de Walter Moreira Salles (2024) que fez uma carreira brilhante nos cinemas e está em campanha pelo Oscar. E o filme que mais me impactou, Anatomia de Uma Queda da francesa Justin Triete.
A literatura foi contemplada com 10 posts, sete sobre livros e três sobre escritores como Prêmio Nobel (para Han Kang), Ismail Kadaré e Cem Anos Sem Kafka.
As séries tiveram 7 publicações, o grande destaque é Ripley, pela ousadia estética.
A Casa do Baralho teve dez episódios, o derradeiro foi Jeca, Joca e Juca.
A enchente que assolou o Rio Grande so Sul foi comentada em O Arquipélago e em Entulhos.
O fim de ano foi de leituras, maratonas de filmes e séries, assim que há ótimas obras esperando na fila para serem resenhadas nas próximas semanas. Não perca!
Obrigado pelas leituras, curtidas e comentários. O blog do Lerner deseja a todas e todos um grande 2025, repleto de dramas em livros e filmes, e só alegrias na vida real.
December 26, 2024
Ferry 2

Filme, direção de Wannes Destoop, Bélgica 2024
Quem pensou que o rei das anfetaminas holandês havia se aposentado das telas, enganou-se. A Netflix resolveu cancelar a aposentadoria de Bauman, escondido em um retiro numa praia espanhola, para jogá-lo de volta à atividade. E há quatro dias do natal lançou o filme Ferry 2, com a missão de surfar na popularidade do personagem. Lembrando que Ferry apareceu inicialmente na série Operação Ecstasy como antagonista (três temporadas), foi alçado a protagonista em Ferry, o filme e na série homônima de 8 episódios.
Infelizmente, o novo filme só lembra a série nos minutos iniciais, justamente aqueles em que Ferry é sacudido de seu canto oculto, trabalhando no bar/restaurante do camping à beira-mar. A partir do momento em que é convocado, ou melhor, empurrado à ação, os diálogos ferinos dão lugar a uma trama rasa de um filme de ação pouco inspirado, inclusive nos quesitos de linguagem audiovisual, ritmo e cinematografia.
Outro atributo das séries e do filme em torno do barão das drogas são os personagens que o rodeiam. Em Ferry 2 não há nenhum personagem carismático, como os detetives da Operação Ecstasy, ou Danielle, a mulher por quem Ferry é apaixonado, ou seu cunhado John. A tentativa de passar o bastão para sua jovem sobrinha não funciona, justamente pela falta de carisma desse e dos outros personagens, com exceção da dona do bar onde Ferry trabalha no início do filme, personagem que some logo após os primeiros minutos. E mesmo Frank Lammers, o ator que alçou Ferry ao protagonismo, não consegue segurar o filme que está alguns níveis abaixo das outras peças audiovisuais.
Talvez um dos motivos seja que Nico Moolenaar, criador de ambas as séries e roteirista do primeiro filme, não participa da equipe de Ferry 2. Ele está à frente da série Amsterdam Empire, ainda em produção, que deve estrear em 2025. Outro motivo pode ser que a frankia/personagem já deu o que tinha para dar.
Ferry 2 poder se visto na Netflix, assim como as duas séries e o filme anterior que são um bom pedido para maratonar. Para ler as resenhas sobre essas obras clique nos links em azul no parágrafo inicial.