Jaime Lerner's Blog, page 26
December 3, 2020
O Avesso da Pele
Livro – Jeferson Tenório – Brasil – 2020.
O romance de Jeferson Tenório entra para o clube de cânones como Viva o Povo Brasileiro e Cidade de Deus, obras que tratam da realidade brasileira de maneira visceral e causam um terremoto em cada parágrafo. Não é leitura fácil, mas é altamente necessária. O texto te transplanta na pele do personagem e te vira pelo avesso. E tu entendes coisas como nunca antes entendeste e sentes outras como nunca havias sentido.
Logo após a morte do pai, Pedro entra na casa de Henrique. Sente-se quase um invasor, devassando a intimidade de um lar que perdeu seu habitante, mas que ainda não sabe disso. Em meio a papeis espalhados, objetos pessoais e fragmentos de lembranças, Pedro busca indícios. Tenta entender quem é; quem foi Henrique; qual o peso da carga que lhe foi passada como uma herança maldita. A busca é conduzida, assim como o livro, por uma conversa entre filho e pai. Uma conversa que é um monólogo, um grito de socorro, uma declaração de amor, um ritual de luto e um acerto de contas.
Jeferson constrói esse monólogo complexo com sofisticação, em arquitetura labiríntica – por momentos confunde o leitor, amalgamando identidades: trata-se de Pedro, do pai, ou do pai do pai? É um labirinto acidentado. As histórias de Henrique e de Martha, pela boca do filho, são assimétricas na qualidade literária e na densidade visceral. Mas não na importância narrativa. Na base dessa construção, no entorno e nas sombras está o racismo, ou a condição de ser negro no Brasil atual, especificamente em Porto Alegre, capital do estado mais branco do país. “No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco.” O romance traça essa condição como um beco onde não há saída, não há caminhos possíveis para escapar. A sensação de beco sem saída acompanha Henrique de forma permanente e, muitas vezes, avassaladora, também na sua ocupação como professor de escola pública na periferia. Quando ele finalmente encontra uma saída para sacudir seus alunos do marasmo, descobre que os dois labirintos pertencem à mesma arapuca.
O Avesso da Pele é um acerto de contas com o abandono. No plano mais evidente, um filho que se sente abandonado pelo pai; no plano mais doloroso, o filho abandonado pela pátria, ou pela sociedade que o aceita rejeitando. Essa ligação entre o drama familiar e a tragédia social, que desemboca na identidade esquizofrênica de pertencer por ser excluído, é um dos pontos fortes da obra, ao lado da talentosa descrição de situações e sentimentos que nos colocam nas peles de Henrique, de Pedro e na mente de um policial assombrado por um pesadelo recorrente: na calada da noite negros invadem o seu lar.
O Avesso da Pele é um soco na boca do estômago. É literatura de grosso calibre. Respire fundo e mergulhe.
November 26, 2020
A Carne Mais Barata do Mercado
“Sejam civilizados e queimem pessoas e florestas. Deixem as vitrines dos bancos e supermercados em paz.” Fabiana Moraes
A carne mais barata do mercado é a carne negra, diz a canção de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti. João Alberto, de 40 anos, sentiu na pele essa abominável verdade. Sentiu nos ossos e nos músculos, sentiu no pulmão asfixiado, no coração acelerado, antes de deixar de sentir. Foi espancado brutalmente no estacionamento do supermercado Carrefour, morreu cercado por “seguranças”, na frente da mulher e de outras pessoas atônitas. Era noite de quinta-feira, véspera do dia da consciência negra e oito dias antes da Black Friday. Várias lojas já promoviam descontos, aquecendo os consumidores para a sexta-feira das grandes liquidações. No Carrefour da zona norte de Porto Alegre, a Liquidação ficou por conta do assassinato brutal de João Alberto. O “esquenta Black Friday” ganhou uma conotação sinistra na véspera do dia da consciência negra.
Entre as pessoas que assistiram atônitas o assassinato estava um entregador que corajosamente filmou o ato, mesmo sendo intimidado por uma funcionária. As imagens viralizaram na manhã da sexta-feira, dia da consciência da negra no Brasil, uma semana antes da Black Friday, dia do consumo desenfreado. E contaram a história da brutalidade que assola há séculos este país, chocando mais uma vez a todos os que ainda preservam a sua humanidade.
O Carrefour rapidamente emitiu uma nota lamentando o corrido e esclarecendo que os seguranças, assassinos de João Alberto, não são seus funcionários, são terceirizados. Terceirização é um modelo de negócios que ganhou ainda mais força na recente reforma trabalhista orquestrada pelo mercado para “flexibilizar” direitos do trabalhador. Ao tentar terceirizar a responsabilidade pelo assassinato, a nota da multinacional escancarou o verdadeiro significado do termo. A empresa terceirizada, que teve seu contrato interrompido, tem como sócios dois funcionários públicos, da Polícia Civil e da Policia Militar. Um dos assassinos é um policial militar que estava fazendo um bico na segurança privada. Era o seu primeiro dia de “trabalho”. Trouxe consigo, da instituição policial, a licença de matar.
Este país, colonizado por europeus, tem na base de sua fundação duas barbáries: o genocídio indígena e a escravidão negra. Essas barbaridades, embora abolidas legalmente, seguem sendo perpetradas, todos os dias. E nos assombrarão, como sociedade e como indivíduos, enquanto não tivermos a coragem de encará-las.
[image error]Manifestação dentro do Carrefour do RJ, após o assassinato de João Alberto (Photo by CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images)
Os protestos em todo o país mostraram que o debate sobre o racismo vem evoluindo nos últimos anos, graças, principalmente, à ação dos movimentos negros. Hoje se percebe o racismo como projeto político, como instrumento de exploração e poder e não somente como um preconceito individual. Na contramão desse debate, o presidente e seu vice reagiram ao assassinato negando que haja racismo no Brasil. “Querem importar um problema que não existe aqui”, disseram. A música A Carne responde: Só cego não vê.
Não, o presidente e seu vice não são cegos. São agentes do projeto político acima mencionado que liga os pontos entre o racismo estrutural, as privatizações, a precarização do trabalho, e a outorga da licença para matar. Foram eleitos para tocar o instrumento de exploração e domínio que preserva a propriedade privada e liquida vidas, esquenta o consumo e queima florestas. Quem está por trás desse sistema?
No dia em que o Brasil ficou chocado pelo assassinato brutal de João Alberto – dia da consciência negra e a sexta-feira anterior ao dia das maiores vendas no ano – o Mercado, aquele ente abstrato, sensível a qualquer brisa, também reagiu: a bolsa encerrou o dia em queda de 0.59%, mas as ações do Carrefour fecharam em alta de 0.49%. A liquidação da carne mais barata do mercado, dentro de um supermercado, foi aplaudida pelas mãos invisíveis do Mercado.
November 19, 2020
A Vegetariana
A Vegetariana foi meu primeiro contato com a literatura sul-coreana. Contato que certamente será aprofundado depois dessa experiência. O livro foi premiado com o International Man Booker´s Award em 2016 (prêmio para livros traduzidos para o inglês, outorgado a autores e tradutores), o que impulsionou a carreira internacional de Han Kang. O curioso é que foi a própria tradutora, Deborah Smith, quem sugeriu o livro ao editor inglês, abrindo o caminho para o mundo anglófono conhecer a obra de Han. A tradução de Deborah, que tem o aval da autora, gerou polêmica e é considerada, por tradutores e acadêmicos coreanos, quase uma adaptação, principalmente, por adjetivar e florear o estilo seco do texto original.
A novela é dividida em três partes que, mesmo ligadas entre si, têm sua autonomia literária. A Vegetariana é narrada pelo marido da protagonista Yeonghye; A Mancha Mongólica e Árvores em Chamas são narradas na terceira pessoa por um narrador-observador, tendo como falsos protagonistas o cunhado e a irmã, respectivamente. As três histórias, portanto, nos apresentam Yeonghye por intermédio de outros. Não são três versões sobre o mesmo episódio. Cada versão retrata um momento diferente; recortes do processo de decomposição da sanidade mental de Yeonghye, ou é o que parece num primeiro olhar. O olhar mais profundo, pelo qual a autora nos conduz com poesia e horror, não traz “explicações” sobre o que acontece com a protagonista, mas abre uma misteriosa janela de paisagens sugestivas – filosóficas, alegóricas e metafísicas – para o leitor embarcar.
[image error]A autora Han Kang. Foto de Jean Chung para o New York Times
Exatamente como o marido, o cunhado e a irmã, sentimos distanciamento e proximidade em relação à Yeonghye; uma identificação e uma angustiante impossibilidade de compreendê-la. O estranhamento não se dá apenas pelo comportamento incomum, deflagrado por um conjunto de sonhos, nem somente pelas reações que suscita, mas também por alguns truques ocultos no texto. O marido fala sobre Yeonghye sem mencionar seu nome até quase o final da narrativa, o que acaba criando uma oposição entre familiaridade e intimidade. Mais um recurso interessante é a inserção da voz da protagonista na narração do outro, principalmente quando seus sonhos são relatados, o que quebra brevemente a barreira da mediação do narrador e aproxima o leitor da personagem principal. As relações familiares, conjugais, patriarcais e sociais ao redor de Yeonghye também são envoltas em estranheza, mergulhadas em um caldo de rigidez, sensualidade e na ânsia existencial de se libertar de uma prisão impalpável que cerca todos os personagens.
Essa prisão se desenha avassaladora no texto cru e sensível da escritora de estilo peculiar que maneja com maestria beleza, lirismo e dor. A Vegetariana foi adaptado para o cinema, em 2009, pelo diretor sul-coreano, Lim Woo-Seong. No Brasil, o livro foi relançado pela editora Todavia e traduzido diretamente do coreano por Jae Hyung Woo.
November 12, 2020
A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Começo do Fim?
O governo brasileiro, inspirado pelo ocorrido no Amapá, sofreu um apagão. No estado nortista, foi o incêndio em um transformador que deixou a região inteira no escuro. Em Brasília, foi a derrota do presidente Trampo nas eleições.
A tristeza pelo revés do amigo e o medo de que os brasileiros sigam o exemplo norte- americano seria suficiente para paralisar qualquer um. Mas o presidente B se viu ainda frente a outro problema. Trampo não reconhece a derrota. E B ficou sem saber como agir. Várias autoridades brasileiras, políticos e juristas felicitaram os vencedores Joe Bite-me e sua vice Calma-lá Harris. Líderes das outras nações mandaram mensagens calorosas. Inclusive o primeiro ministro israelense, duas vezes Bi, publicou duas notas: uma felicitando o vencedor, outra agradecendo ao derrotado pela grande amizade. E B quieto, no escuro, se perguntando o que fazer. Ligou para o amigo, mas havia um sinal estranho na linha: fakiú, fakiú – como se o fone estivesse fora do gancho. Seria uma mensagem cifrada? O presidente experimentou a sensação de grande parte dos brasileiros sob o seu governo, o desamparo. Saiu momentaneamente do apagão para participar de uma atividade de suma importância, a formatura de novos policiais rodoviários. Em seu discurso, ainda em estado de choque, disse que Trampo não era a pessoa mais importante do mundo, essa pessoa era Deus. Foi alertado que cometeu dupla blasfêmia.
Trampo não admite que perdeu a eleição. Alega que foi roubado. Aliás, ele previa essa possibilidade antes das eleições e anunciou que, se não ganhasse, seria sinal inequívoco de fraude. Dizem que ele não tem provas. Como não, se a grande prova é o próprio resultado? Reconheceria a derrota, sem problema nenhum, se o derrotado fosse o adversário.
B, em quase todos as suas atitudes, é uma imitação provinciana de T. No entanto, foi o pioneiro na artimanha da fraude eleitoral. Ainda em 2018, às vésperas da eleição presidencial brasileira, recuperando-se da fakada sofrida, anunciou que haveria fraude nas urnas eletrônicas. Insistiu na tese, sem apresentar fatos ou provas, mesmo depois de eleito. Não, não estava contestando a sua própria vitória; não fosse a fraude, bravateou, teria vencido no primeiro turno. Nesse quesito superou seu guru Trampo. Este é apenas um mau perdedor. B é também um péssimo vencedor.
A derrota de Trampo pode ser o começo do fim da pandemia negacionista e reacionária que se espalhou pela política mundial. Essa possibilidade assusta a trupe tramposa e por isso esperneiam com tanto vigor. É um cenário possível, mas incerto. Vai depender do quanto outros países forem contagiados pelo exemplo norte-americano; e o quanto, de fato, os eleitores estão vacinados. Infelizmente, foi preciso outra pandemia para debelar a primeira. Foram mais de dez milhões de infectados, duzentos e quarenta mil mortos e uma recessão sem precedentes. Nessa queda de braço, o corona deu uma chave de pescoço no Trampo. E ele terá que procurar, a partir de janeiro próximo, outro trampo. Para manter-se fiel a si mesmo, não sairá sem tumultuar o processo.
Quem irá embaralhar as cartas a partir de agora? Resistirá B sem o seu grande pilar? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
November 5, 2020
O Gambito da Rainha
Série – criação de Scott Frank e Allan Scott – EUA – 2020.
Gambito, de acordo com o dicionário significa artimanha, ação destinada a enganar alguém; e no jogo de xadrez, uma abertura ousada em que se sacrifica uma peça para obter vantagem. O Gambito da Rainha é a jogada em que se movimenta inicialmente o peão da Rainha para oferecer depois o peão ao lado como isca para o ardil.
Esse termo, restrito aos enxadristas aficionados, acaba de ganhar notoriedade graças à minissérie lançada na Netflix. A obra é dirigida por Scott Frank, roteirista e diretor da excelente Godless que, assim como O Gambito da Rainha, trabalha o protagonismo feminino em território predominantemente masculino. Em Godless, esse território é o velho oeste; em O Gambito da Rainha, é o universo dos campeonatos de xadrez. A série é baseada no romance homônimo (1983) de Walter Tevis, autor de outros três romances adaptados para as telas: Desafio à Corrupção, A Cor do Dinheiro e o instigante O Homem que Caiu na Terra.
No livro e na série, o termo ganha duplo sentido. Além das competições de xadrez, a protagonista, Beth Harmon, tem que fazer jogadas arriscadas para se deslocar num tabuleiro mais intricado e menos cerebral, o da vida. Recolhida em um orfanato aos oito anos, após testemunhar o suicídio da mãe, seu ponto de partida não é nada promissor. A descoberta do xadrez e de seu talento para o jogo abrem novas perspectivas, todas pesadamente desafiadoras para a menina. No entanto, a obra não apresenta Beth como uma vítima, nem cria antagonistas vilões. O grande jogo de Harmon é contra seus próprios fantasmas. Ela aprende que ninguém vai enfrentá-los por ela; e que para vencê-los precisa de ajuda.
[image error]Beth, o senhor Shaibel e o encontro com o Xadrez. PHIL BRAY/NETFLIX © 2020
Diferente de outros jogos menos complexos e repletos de ação, o xadrez não é muito cinematográfico. Um dos desafios da série foi transmitir os momentos de suspense e emoção das partidas disputadas por Beth. Além do artifício de envolver o espectador no jogo por meio das expressões dos jogadores e da reação das plateias, a obra apresenta um arcabouço de soluções visuais, principalmente no primeiro episódio, no qual Beth tem o marcante encontro com o jogo. O tabuleiro e as peças se desenhando no teto do sombrio dormitório, aos olhos arregalados da menina, marca o forte estilo visual da série. A direção de arte é um dos carros-chefes da obra, não só no desenho dessas soluções, como também na criação de cenários repletos de dramaticidade e de figurinos que dão cores e formas às transformações físicas e psicológicas de Beth. Um dado curioso: a trama se passa nos EUA, México, Paris e, o gran finale, em Moscou; as filmagens foram feitas no Canadá e em Berlim.
[image error]O Gambito da rainha, cenários e estilo visual impressionantes. PHIL BRAY/NETFLIX © 2020
Além do look estiloso, destaca-se a construção dos personagens com suas virtudes e imperfeições e o tom de suspense, sutil e constante, que acompanha a trajetória de Harmon. A protagonista é interpretada por Anya Taylor-Joy (na adolescência) e por Isla Johnston (aos oito anos). As duas atrizes conseguem expressar, exemplarmente, a ambivalência de carisma e fragilidade que conduz a órfã em sua trajetória para rainha, no tabuleiro de jogadas perigosas.
October 27, 2020
VROOOM
O medo recolheu toda a pequena tribo para dentro da caverna, mas apesar da grande plateia presente foi o parto menos assistido, pois a atenção de todos se fixava na tempestade impiedosa. A parturiente gemia enquanto o vento uivava num dueto de arrepiar. Gemia pelas dores do parto, pelo abandono, pela aflição dos dentes batendo em volta, pelo mistério das forças que arremessavam chuvas e trovoadas contra a rocha que os abrigava. No meio de toda a balbúrdia, ninguém ouviu o choro inaugural cuja sonoridade determinava o nome de quem nascia na tribo. Por isso, ele foi chamado de Vrooom, mistura de vento e trovão, como o som da tempestade que abafou seu pranto quando foi expelido da caverna uterina e vislumbrou o mundo pela primeira vez.
Vrooom é um romance que iniciei há muito anos, e foi sendo escrito aos poucos, nas brechas entre outros trabalhos. O primeiro tratamento foi finalizado em 2011. A trama se passa na pré-história, época em que os diálogos eram muito diferentes dos atuais; ações e sentimentos, nem tanto. O grande desafio para contar essa história foi trabalhar personagens limitados pelo domínio incipiente da linguagem e comunicar seus anseios e conflitos ao leitor do século XXI. O exercício de entrar em suas mentes e dar a roupagem de palavras ao intenso movimento de sensações, motivações e dúvidas, usando o verbo para descrever a sua ausência, foi muito interessante.
A conexão entre passado remoto e os dias de hoje está bastante presente no texto, na temática e nas questões que aborda. Pode-se dizer que é um romance contemporâneo da pré-história ou uma lenda pós-moderna.
Vrooom foi contemplado no edital emergencial do governo do estado, o FAC-Digital-RS. O livro está disponível gratuitamente em formato digital neste blog. Você pode “emprestá-lo” a amigos, compartilhando o link. Por favor, deixe um comentário indicando que fez o download ou que está lendo online. Comentários e opiniões sobre o livro serão mais do que bem-vindos.
Acesse Vrooom pra ler ou baixar, clicando aqui.
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October 15, 2020
De Volta ao Subsolo
Subsolo é um curta-metragem de minha autoria, realizado em 2008. Nessa época, estava em curso a transição entre o analógico e o digital em vários processos do fazer cinematográfico. O filme foi rodado e finalizado em película 35mm, mas a edição foi feita em um computador com copião digital. A captação e edição de som e a mixagem também foram digitais. O cenário, nada virtual, incluiu a construção de um poço de elevador em estúdio, e a atuação – último bastião não informatizado no cinema – foi protagonizada pela excelente Carla Marins. O argumento se desenvolveu a partir da ideia de fazer um filme no escuro, privando o espectador da visão, principal ferramenta para usufruir de uma obra cinematográfica. Subsolo fez uma bela carreira em mostras e festivais no Brasil e no exterior, ganhou prêmios de Melhor Filme, Direção, Roteiro, Atriz, Montagem e Trilha em festivais como Gramado e Toronto, entre outros.
[image error]Carla Marins, Newland Silva ( no centro) e Jaime Lerner no cenário do poço do elevador
Todo esse processo é revisitado no vídeo De Volta ao Subsolo, no qual falo sobre os desafios conceituais e técnicos que Subsolo apresentou, desde o processo criativo do surgimento da ideia até a carreira do filme. O vídeo conta com depoimentos de apoio da atriz Carla Marins e da diretora de arte Ana Nardi; fotos dos bastidores, trechos do making of e trechos do próprio filme. Tratando de um filme específico, o vídeo é também uma reflexão sobre cinema, sobre o fazer cinematográfico. De Volta ao Subsolo foi feito com recursos do Edital Emergencial da Cultura da SMC-PMPA, neste ano pandêmico em que todos temos que nos reinventar. O vídeo foi editado por Bruno Carvalho; a câmera (do celular) foi operada por Beti Tomasi; e a trilha (feita para o filme) é de autoria de Fausto Prado. De Volta ao Subsolo faz uma homenagem ao eletricista-chefe Amaral Júnior, falecido prematuramente, parceiro de muitos trabalhos.
O vídeo e o filme estão disponíveis no youtube. Para quem ainda não viu o curta, recomendo assistir Subsolo e depois De Volta ao Subsolo.
October 8, 2020
Tentando Entender
Em 2016, a perplexidade tomou conta do planeta. Na Terra da Rainha, os ingleses não conseguiam explicar para o resto do mundo como a proposta de deixar a União Europeia havia vencido nem o motivo de o referendo ter sido convocado. Do outro lado do oceano, Trump ganhava a eleição na base da truculência e de golpes sujos, prometendo tornar a América grande novamente, construindo muros e expulsando imigrantes. Os termos fake news e pós-verdade tornavam-se corriqueiros. No Brasil, assistimos ao impeachment da presidente, tendo que explicar (sem entender) como um deputado envolvido até o pescoço em corrupção derrubava a mandatária da nação amparado por amplas manifestações e o conluio com seus pares. O espetáculo de horrores das declarações de voto no Congresso foi tão ou mais atordoante que o próprio impeachment, prenunciando e pronunciando o fenômeno Bolsonaro. Estava claro que o processo político-democrático estava mudando de feição e ganhando uma cara assustadora.
Se você está entre os perplexos que até hoje tentam entender, sugiro duas obras muito diferentes: o livro A Barata, de Ian McEwan e o documentário O Dilema das Redes (The Social Dilema), dirigido por Jeff Orlowski. Nenhuma delas traz respostas definitivas, mas ambas lidam com as questões de forma muito interessante.
McEwan, escritor que sabe incorporar o mundo contemporâneo aos seus romances como poucos, parte para a alegoria satírica. Inspirado em Kafka e em Jonathan Swift, ele metamorfoseia um exército de baratas em políticos (a começar pelo Primeiro-Ministro) e cria um projeto de reversão do fluxo monetário, algo tão estapafúrdio quanto o Brexit. É muito divertido. E aterrador.
O Dilema das Redes, roteirizado por seu diretor em parceria com Davis Coombe e Vickie Curtis, tenta elucidar as grandes ameaças por trás do negócio bilionário das redes sociais, entre elas, o hackeamento de nosso cérebro para nos vender anúncios e influenciar nosso comportamento. Boa parte dos depoimentos é dada pelas pessoas que criaram ou trabalharam nessas plataformas e aplicativos. O principal depoente, Tristan Harris, é um ex-engenheiro do Google que se tornou ativista contra os mecanismos viciantes da internet. Quase ao final do filme, Tristan explica que o problema não é a tecnologia em si, mas como ela potencializa o que há de pior na sociedade. Em outras palavras, Facebook, Twitter, Google e Instagram não criaram os haters, xenófobos e negacionistas, apenas os empoderaram com uma forte plataforma de conexão e difusão.
Isso nos leva às baratas de McEwan, seres que saíram do subterrâneo e galgaram os bueiros para tomar o poder. E é mais ou menos isso que estamos assistindo: um mundo no qual a ética não acompanhou o ritmo da evolução tecnológica, gerando um esgotamento de modelos (de democracia, de participação, de justiça e de bem-estar) e um gap por onde aflorou o retrocesso mascarado de novidade.
[image error]A democracia e os os modelos esgotados.
O establishment tem sua dose de responsabilidade. Preferiu não perceber o esgotamento dos modelos e, portanto, não se preocupou em construir alternativas, atendo-se a enfrentar as crises econômicas como problemas pontuais. Por isso, Dilma, Hillary e David Cameron (para nos atermos aos casos mencionados) foram pegos de surpresa. Mas esse é apenas um lado do problema. As novas tecnologias poderiam revolucionar a política, através do acesso facilitado à informação, aos próprios candidatos e à participação. Greta Thunberg, Malala Yousafzai e Jacinda Ardern seriam os modelos a serem seguidos e não Bolsonaro e Trump. Mas a ganância dos novos magnatas e a sociedade, enfetichada pelo que há de pior nas redes, alçou a estupidez truculenta ao poder, colocando o mundo à beira de uma ameaça tão grave quanto foi a corrida nuclear. Hoje, o ponto de não retorno começa a tornar-se algo maior do que mais um termo corriqueiro.
October 1, 2020
Mignonnes
Filme de Maïomouna Doucouré – França – 2020.
Mignonnes é um filme sensível sobre uma pré-adolescente, e sua jornada de autodescoberta em meio a vários conflitos: o choque cultural entre seu lar de origem senegalesa/muçulmana e a França ocidental onde vive; o casamento de seu pai com uma segunda esposa e o sofrimento da mãe; o choque geracional entre Amy, sua mãe e uma tia mais velha; e o conflito central – sua vontade de ser adulta, sendo ainda menina.
A ideia surgiu após Maïomuna assistir a uma apresentação de dança em um encontro de bairro. Achou a dança inadequadamente sensual para a idade das meninas-dançarinas. Fez uma pesquisa com pré-adolescentes e descobriu que as redes sociais tem um duplo papel na adultização das meninas: o estímulo pelo acesso facilitado a conteúdos pop com carga erótica e a popularidade gerada ao postarem fotos e vídeos em poses sensuais. A essa temática, agregou sua vivência como pré-adolescente, o que resultou num filme autêntico e provocador que questiona o papel da mulher tanto em sociedades tradicionais/religiosas como no livre mundo ocidental.
[image error]Fathia Youssuf, como Amy, escolhida entre outras 700 meninas.
A sensibilidade e o cuidado ao retratar o universo pré-adolescente multirracial e multicultural de Amy também foram aplicados no trabalho com as jovens atrizes. Além de decupar o filme de maneira a construir sua principal carga erótica na montagem, Doucouré teve cuidados especiais com o elenco juvenil, com longas conversas sobre os temas, a participação dos pais e um acompanhamento psicológico que iniciou antes das filmagens e durou até após o lançamento do filme.
Ironicamente, Mignonnes sofreu uma campanha de cancelamento nas redes. Acusaram-no de incentivar a pedofilia com base no cartaz de pré-lançamento na Netflix e do título em inglês Cutties (Lindinhas, em português). Se nos EUA houve um movimento de boicote ao filme e à própria Netflix; no Brasil, a organização Templo Planeta do Senhor entrou na justiça para bani-lo (sem sucesso) e a pasta de Damares acionou o Ministério Público para pedir sua exclusão da plataforma de streaming, alegando que o filme apresenta cenas de pornografia infantil, o que prova que ninguém ali o assistiu. A Netflix trocou o cartaz (acertadamente), a sinopse (equivocadamente) e retornou ao nome original. Mas não retirou o filme. Ao contrário, incluiu na plataforma um depoimento da diretora falando sobre o problema da erotização precoce e o caráter de denúncia da obra.
Mignonnes foi premiado no Festival de Sundance com Melhor Direção. É um filme de estreia poderoso pelas questões que aborda, pela maneira de filmar e principalmente pelas interpretações, com destaque para Fathia Youssouf, como Amy, e para Médina El Aidi-Azouni, ambas também estreantes no cinema.
September 24, 2020
Koyaanisqatsi
Filme de Godfrey Reggio – EUA – 1982.
Assistir Koyaanisqatsi foi uma revelação. O documentário era tão diferente de tudo que eu havia visto, tão original e impactante que se não fosse estudante de cinema, provavelmente, decidiria me tornar um após ver o filme.
A obra dispensa o verbo. Ou quase. A tradução do título, que no idioma dos indígenas Hopi significa Vida Caótica ou Vida em Desequilíbrio, e as três profecias Hopi, cantadas pelo coro na trilha, são a única informação textual. O resto é imagem, música e ritmo. Mas Koyaanisqatsi não é um musical. É um documentário que reflete sobre uma ideia: a de que a interferência humana na natureza pode destruir o planeta. Fazer um documentário com esse tema sem depoimentos, falas ou narração é uma ousadia. Expressar essa ideia com tamanha clareza, utilizando apenas imagens e música é mais do que uma façanha. No entanto, o grande destaque do filme é a força estética que emana da articulação desses três elementos.
Reggio e seu parceiro no filme, o diretor de fotografia Ron Fricke, trabalham o ritmo imagético com planos de câmera lenta e time-lapse (quando a câmera dispara um número de fotogramas a intervalos programados, condensando várias horas de captação em poucos segundos de projeção). Essa alternância entre aceleração, dilação e tempo normal, junto com os movimentos de câmera e imagens deslumbrantes, revolucionou a linguagem audiovisual, influenciando outros filmes, videoclipes e comerciais. Os filmes de Dziga Vertov e as sinfonias urbanas trabalharam esses elementos no início do século XX, mas Koyaanisqatsi levou esses experimentos de vanguarda a outro patamar ao construir, através da poesia visual, uma narrativa que sustenta os 90 minutos do filme.
[image error]Aceleração por time lapse cria poesia visual e mensagem em Koyaanisqatsi
Koyaanisqatsi foi feito sem roteiro, ou melhor, o roteiro foi composto na montagem. Esse foi o trabalho genial da edição, além de criar o ritmo do filme: estruturar sua narrativa sem ter um roteiro como ponto de partida. A viagem deslumbrante que o filme nos oferece conta a história do planeta e a inserção do ser humano nessa história, trazendo “civilização” e “progresso”. Vale lembrar que, na época da realização do filme, a questão climática recém começava a ser discutida entre cientistas e autoridades e somente anos mais tarde chegaria ao grande público.
A música composta por Philip Glass é o terceiro pilar da obra. É uma trilha sinfônica minimalista (composta de breves trechos musicais repetidos continuamente, com pequenas variações inseridas ao longo da obra), uma das pioneiras dessa escola em longa-metragem. Ela reina sobre o som durante todo o filme, dialogando e criando um distanciamento com o que se vê na tela, ditando o peso da dramaticidade das cenas e dando tom ritualístico à obra. Normalmente a trilha é composta em cima de um corte fechado do filme ou se edita o filme com uma música já pronta. Regio e Glass subverteram o padrão, trabalhando e retrabalhando trechos do filme e da música concomitantemente. O sucesso da trilha foi tão grande que gerou uma turnê do Phillip Glass Ensemble e um disco.
Koyaanisqatsi levou seis anos entre o início das filmagens e o lançamento. Inicialmente um projeto pouco ambicioso, derivado de uma campanha social do IRE (Instituto Regional de Educação) e com verba modesta, conquistou as telas e virou um filme cult, que originou as sequências Powaqqatsi (1988) e Naqoyqatsi (2002), formando a trilogia Qatsi. Ver ou rever o filme nos dias atuais, quando florestas do mundo todo ardem em chamas e um vírus invisível contamina o planeta, acentua ainda mais o seu impacto.


