Jaime Lerner's Blog, page 26

November 5, 2020

O Gambito da Rainha

[image error]Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), rainha em território predominantemente masculino.



Série – criação de Scott Frank e Allan Scott – EUA – 2020.





Gambito, de acordo com o dicionário significa artimanha, ação destinada a enganar alguém; e no jogo de xadrez, uma abertura ousada em que se sacrifica uma peça para obter vantagem. O Gambito da Rainha é a jogada em que se movimenta inicialmente o peão da Rainha para oferecer depois o peão ao lado como isca para o ardil.





Esse termo, restrito aos enxadristas aficionados, acaba de ganhar notoriedade graças à minissérie lançada na Netflix. A obra é dirigida por Scott Frank, roteirista e diretor da excelente Godless que, assim como O Gambito da Rainha, trabalha o protagonismo feminino em território predominantemente masculino. Em Godless, esse território é o velho oeste; em O Gambito da Rainha, é o universo dos campeonatos de xadrez. A série é baseada no romance homônimo (1983) de Walter Tevis, autor de outros três romances adaptados para as telas: Desafio à Corrupção, A Cor do Dinheiro e o instigante O Homem que Caiu na Terra.





No livro e na série, o termo ganha duplo sentido. Além das competições de xadrez, a protagonista, Beth Harmon, tem que fazer jogadas arriscadas para se deslocar num tabuleiro mais intricado e menos cerebral, o da vida. Recolhida em um orfanato aos oito anos, após testemunhar o suicídio da mãe, seu ponto de partida não é nada promissor. A descoberta do xadrez e de seu talento para o jogo abrem novas perspectivas, todas pesadamente desafiadoras para a menina. No entanto, a obra não apresenta Beth como uma vítima, nem cria antagonistas vilões. O grande jogo de Harmon é contra seus próprios fantasmas. Ela aprende que ninguém vai enfrentá-los por ela; e que para vencê-los precisa de ajuda.





[image error]Beth, o senhor Shaibel e o encontro com o Xadrez. PHIL BRAY/NETFLIX © 2020



Diferente de outros jogos menos complexos e repletos de ação, o xadrez não é muito cinematográfico. Um dos desafios da série foi transmitir os momentos de suspense e emoção das partidas disputadas por Beth. Além do artifício de envolver o espectador no jogo por meio das expressões dos jogadores e da reação das plateias, a obra apresenta um arcabouço de soluções visuais, principalmente no primeiro episódio, no qual Beth tem o marcante encontro com o jogo. O tabuleiro e as peças se desenhando no teto do sombrio dormitório, aos olhos arregalados da menina, marca o forte estilo visual da série. A direção de arte é um dos carros-chefes da obra, não só no desenho dessas soluções, como também na criação de cenários repletos de dramaticidade e de figurinos que dão cores e formas às transformações físicas e psicológicas de Beth. Um dado curioso: a trama se passa nos EUA, México, Paris e, o gran finale, em Moscou; as filmagens foram feitas no Canadá e em Berlim.





[image error]O Gambito da rainha, cenários e estilo visual impressionantes. PHIL BRAY/NETFLIX © 2020



Além do look estiloso, destaca-se a construção dos personagens com suas virtudes e imperfeições e o tom de suspense, sutil e constante, que acompanha a trajetória de Harmon. A protagonista é interpretada por Anya Taylor-Joy (na adolescência) e por Isla Johnston (aos oito anos). As duas atrizes conseguem expressar, exemplarmente, a ambivalência de carisma e fragilidade que conduz a órfã em sua trajetória para rainha, no tabuleiro de jogadas perigosas.

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Published on November 05, 2020 06:51

October 27, 2020

VROOOM

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O medo recolheu toda a pequena tribo para dentro da caverna, mas apesar da grande plateia presente foi o parto menos assistido, pois a atenção de todos se fixava na tempestade impiedosa. A parturiente gemia enquanto o vento uivava num dueto de arrepiar. Gemia pelas dores do parto, pelo abandono, pela aflição dos dentes batendo em volta, pelo mistério das forças que arremessavam chuvas e trovoadas contra a rocha que os abrigava. No meio de toda a balbúrdia, ninguém ouviu o choro inaugural cuja sonoridade determinava o nome de quem nascia na tribo. Por isso, ele foi chamado de Vrooom, mistura de vento e trovão, como o som da tempestade que abafou seu pranto quando foi expelido da caverna uterina e vislumbrou o mundo pela primeira vez.





Vrooom é um romance que iniciei há muito anos, e foi sendo escrito aos poucos, nas brechas entre outros trabalhos. O primeiro tratamento foi finalizado em 2011. A trama se passa na pré-história, época em que os diálogos eram muito diferentes dos atuais; ações e sentimentos, nem tanto. O grande desafio para contar essa história foi trabalhar personagens limitados pelo domínio incipiente da linguagem e comunicar seus anseios e conflitos ao leitor do século XXI. O exercício de entrar em suas mentes e dar a roupagem de palavras ao intenso movimento de sensações, motivações e dúvidas, usando o verbo para descrever a sua ausência, foi muito interessante.





A conexão entre passado remoto e os dias de hoje está bastante presente no texto, na temática e nas questões que aborda. Pode-se dizer que é um romance contemporâneo da pré-história ou uma lenda pós-moderna.





Vrooom foi contemplado no edital emergencial do governo do estado, o FAC-Digital-RS. O livro está disponível gratuitamente em formato digital neste blog. Você pode “emprestá-lo” a amigos, compartilhando o link. Por favor, deixe um comentário indicando que fez o download ou que está lendo online. Comentários e opiniões sobre o livro serão mais do que bem-vindos. 





Acesse Vrooom pra ler ou baixar, clicando aqui.





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Published on October 27, 2020 08:56

October 15, 2020

De Volta ao Subsolo

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Subsolo é um curta-metragem de minha autoria, realizado em 2008. Nessa época, estava em curso a transição entre o analógico e o digital em vários processos do fazer cinematográfico. O filme foi rodado e finalizado em película 35mm, mas a edição foi feita em um computador com copião digital. A captação e edição de som e a mixagem também foram digitais. O cenário, nada virtual, incluiu a construção de um poço de elevador em estúdio, e a atuação – último bastião não informatizado no cinema – foi protagonizada pela excelente Carla Marins. O argumento se desenvolveu a partir da ideia de fazer um filme no escuro, privando o espectador da visão, principal ferramenta para usufruir de uma obra cinematográfica. Subsolo fez uma bela carreira em mostras e festivais no Brasil e no exterior, ganhou prêmios de Melhor Filme, Direção, Roteiro, Atriz, Montagem e Trilha em festivais como Gramado e Toronto, entre outros.





[image error]Carla Marins, Newland Silva ( no centro) e Jaime Lerner no cenário do poço do elevador



Todo esse processo é revisitado no vídeo De Volta ao Subsolo, no qual falo sobre os desafios conceituais e técnicos que Subsolo apresentou, desde o processo criativo do surgimento da ideia até a carreira do filme. O vídeo conta com depoimentos de apoio da atriz Carla Marins e da diretora de arte Ana Nardi; fotos dos bastidores, trechos do making of e trechos do próprio filme. Tratando de um filme específico, o vídeo é também uma reflexão sobre cinema, sobre o fazer cinematográfico. De Volta ao Subsolo foi feito com recursos do Edital Emergencial da Cultura da SMC-PMPA, neste ano pandêmico em que todos temos que nos reinventar. O vídeo foi editado por Bruno Carvalho; a câmera (do celular) foi operada por Beti Tomasi; e a trilha (feita para o filme) é de autoria de Fausto Prado. De Volta ao Subsolo faz uma homenagem ao eletricista-chefe Amaral Júnior, falecido prematuramente, parceiro de muitos trabalhos.





O vídeo e o filme estão disponíveis no youtube. Para quem ainda não viu o curta, recomendo assistir Subsolo e depois De Volta ao Subsolo.

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Published on October 15, 2020 08:12

October 8, 2020

Tentando Entender

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Em 2016, a perplexidade tomou conta do planeta. Na Terra da Rainha, os ingleses não conseguiam explicar para o resto do mundo como a proposta de deixar a União Europeia havia vencido nem o motivo de o referendo ter sido convocado. Do outro lado do oceano, Trump ganhava a eleição na base da truculência e de golpes sujos, prometendo tornar a América grande novamente, construindo muros e expulsando imigrantes. Os termos fake news e pós-verdade tornavam-se corriqueiros. No Brasil, assistimos ao impeachment da presidente, tendo que explicar (sem entender) como um deputado envolvido até o pescoço em corrupção derrubava a mandatária da nação amparado por amplas manifestações e o conluio com seus pares. O espetáculo de horrores das declarações de voto no Congresso foi tão ou mais atordoante que o próprio impeachment, prenunciando e pronunciando o fenômeno Bolsonaro. Estava claro que o processo político-democrático estava mudando de feição e ganhando uma cara assustadora.





Se você está entre os perplexos que até hoje tentam entender, sugiro duas obras muito diferentes: o livro A Barata, de Ian McEwan e o documentário O Dilema das Redes (The Social Dilema), dirigido por Jeff Orlowski. Nenhuma delas traz respostas definitivas, mas ambas lidam com as questões de forma muito interessante.





McEwan, escritor que sabe incorporar o mundo contemporâneo aos seus romances como poucos, parte para a alegoria satírica. Inspirado em Kafka e em Jonathan Swift, ele metamorfoseia um exército de baratas em políticos (a começar pelo Primeiro-Ministro) e cria um projeto de reversão do fluxo monetário, algo tão estapafúrdio quanto o Brexit. É muito divertido. E aterrador.





O Dilema das Redes, roteirizado por seu diretor em parceria com Davis Coombe e Vickie Curtis, tenta elucidar as grandes ameaças por trás do negócio bilionário das redes sociais, entre elas, o hackeamento de nosso cérebro para nos vender anúncios e influenciar nosso comportamento. Boa parte dos depoimentos é dada pelas pessoas que criaram ou trabalharam nessas plataformas e aplicativos. O principal depoente, Tristan Harris, é um ex-engenheiro do Google que se tornou ativista contra os mecanismos viciantes da internet. Quase ao final do filme, Tristan explica que o problema não é a tecnologia em si, mas como ela potencializa o que há de pior na sociedade. Em outras palavras, Facebook, Twitter, Google e Instagram não criaram os haters, xenófobos e negacionistas, apenas os empoderaram com uma forte plataforma de conexão e difusão.





Isso nos leva às baratas de McEwan, seres que saíram do subterrâneo e galgaram os bueiros para tomar o poder. E é mais ou menos isso que estamos assistindo: um mundo no qual a ética não acompanhou o ritmo da evolução tecnológica, gerando um esgotamento de modelos (de democracia, de participação, de justiça e de bem-estar) e um gap por onde aflorou o retrocesso mascarado de novidade.





[image error]A democracia e os os modelos esgotados.



O establishment tem sua dose de responsabilidade. Preferiu não perceber o esgotamento dos modelos e, portanto, não se preocupou em construir alternativas, atendo-se a enfrentar as crises econômicas como problemas pontuais. Por isso, Dilma, Hillary e David Cameron (para nos atermos aos casos mencionados) foram pegos de surpresa. Mas esse é apenas um lado do problema. As novas tecnologias poderiam revolucionar a política, através do acesso facilitado à informação, aos próprios candidatos e à participação.  Greta Thunberg, Malala Yousafzai e Jacinda Ardern seriam os modelos a serem seguidos e não Bolsonaro e Trump. Mas a ganância dos novos magnatas e a sociedade, enfetichada pelo que há de pior nas redes, alçou a estupidez truculenta ao poder, colocando o mundo à beira de uma ameaça tão grave quanto foi a corrida nuclear. Hoje, o ponto de não retorno começa a tornar-se algo maior do que mais um termo corriqueiro.

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Published on October 08, 2020 08:29

October 1, 2020

Mignonnes

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Filme de Maïomouna Doucouré – França – 2020.





Mignonnes é um filme sensível sobre uma pré-adolescente, e sua jornada de autodescoberta em meio a vários conflitos: o choque cultural entre seu lar de origem senegalesa/muçulmana e a França ocidental onde vive; o casamento de seu pai com uma segunda esposa e o sofrimento da mãe; o choque geracional entre Amy, sua mãe e uma tia mais velha; e o conflito central – sua vontade de ser adulta, sendo ainda menina.





A ideia surgiu após Maïomuna assistir a uma apresentação de dança em um encontro de bairro. Achou a dança inadequadamente sensual para a idade das meninas-dançarinas. Fez uma pesquisa com pré-adolescentes e descobriu que as redes sociais tem um duplo papel na adultização das meninas: o estímulo pelo acesso facilitado a conteúdos pop com carga erótica e a popularidade gerada ao postarem fotos e vídeos em poses sensuais. A essa temática, agregou sua vivência como pré-adolescente, o que resultou num filme autêntico e provocador que questiona o papel da mulher tanto em sociedades tradicionais/religiosas como no livre mundo ocidental.





[image error]Fathia Youssuf, como Amy, escolhida entre outras 700 meninas.



A sensibilidade e o cuidado ao retratar o universo pré-adolescente multirracial e multicultural de Amy  também foram aplicados no trabalho com as jovens atrizes. Além de decupar o filme de maneira a construir sua principal carga erótica na montagem, Doucouré teve cuidados especiais com o elenco juvenil, com longas conversas sobre os temas, a participação dos pais e um acompanhamento psicológico que iniciou antes das filmagens e durou até após o lançamento do filme.





Ironicamente, Mignonnes sofreu uma campanha de cancelamento nas redes. Acusaram-no de incentivar a pedofilia com base no cartaz de pré-lançamento na Netflix e do título em inglês Cutties (Lindinhas, em português). Se nos EUA houve um movimento de boicote ao filme e à própria Netflix; no Brasil, a organização Templo Planeta do Senhor entrou na justiça para bani-lo (sem sucesso) e a pasta de Damares acionou o Ministério Público para pedir sua exclusão da plataforma de streaming, alegando que o filme apresenta cenas de pornografia infantil, o que prova que ninguém ali o assistiu. A Netflix trocou o cartaz (acertadamente), a sinopse (equivocadamente) e retornou ao nome original.  Mas não retirou o filme. Ao contrário, incluiu na plataforma um depoimento da diretora falando sobre o problema da erotização precoce e o caráter de denúncia da obra.





Mignonnes foi premiado no Festival de Sundance com Melhor Direção. É um filme de estreia poderoso pelas questões que aborda, pela maneira de filmar e principalmente pelas interpretações, com destaque para Fathia Youssouf, como Amy, e para Médina El Aidi-Azouni, ambas também estreantes no cinema.

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Published on October 01, 2020 08:16

September 24, 2020

Koyaanisqatsi

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Filme de Godfrey Reggio – EUA – 1982.





Assistir Koyaanisqatsi foi uma revelação. O documentário era tão diferente de tudo que eu havia visto, tão original e impactante que se não fosse estudante de cinema, provavelmente, decidiria me tornar um após ver o filme.





A obra dispensa o verbo. Ou quase. A tradução do título, que no idioma dos indígenas Hopi significa Vida Caótica ou Vida em Desequilíbrio, e as três profecias Hopi, cantadas pelo coro na trilha, são a única informação textual. O resto é imagem, música e ritmo. Mas Koyaanisqatsi não é um musical. É um documentário que reflete sobre uma ideia: a de que a interferência humana na natureza pode destruir o planeta. Fazer um documentário com esse tema sem depoimentos, falas ou narração é uma ousadia. Expressar essa ideia com tamanha clareza, utilizando apenas imagens e música é mais do que uma façanha. No entanto, o grande destaque do filme é a força estética que emana da articulação desses três elementos.





Reggio e seu parceiro no filme,  o diretor de fotografia Ron Fricke, trabalham o ritmo imagético com planos de câmera lenta e time-lapse (quando a câmera dispara um número de fotogramas a intervalos programados, condensando várias horas de captação em poucos segundos de projeção). Essa alternância entre aceleração, dilação e tempo normal, junto com os movimentos de câmera e imagens deslumbrantes, revolucionou a linguagem audiovisual, influenciando outros filmes, videoclipes e comerciais. Os filmes de Dziga Vertov e as sinfonias urbanas trabalharam esses elementos no início do século XX, mas Koyaanisqatsi levou esses experimentos de vanguarda a outro patamar ao construir, através da poesia visual, uma narrativa que sustenta os 90 minutos do filme.





[image error]Aceleração por time lapse cria poesia visual e mensagem em Koyaanisqatsi



Koyaanisqatsi foi feito sem roteiro, ou melhor, o roteiro foi composto na montagem. Esse foi o trabalho genial da edição, além de criar o ritmo do filme: estruturar sua narrativa sem ter um roteiro como ponto de partida. A viagem deslumbrante que o filme nos oferece conta a história do planeta e a inserção do ser humano nessa história, trazendo “civilização” e “progresso”. Vale lembrar que, na época da realização do filme, a questão climática recém começava a ser discutida entre cientistas e autoridades e somente anos mais tarde chegaria ao grande público.





A música composta por Philip Glass é o terceiro pilar da obra. É uma trilha sinfônica minimalista (composta de breves trechos musicais repetidos continuamente, com pequenas variações inseridas ao longo da obra), uma das pioneiras dessa escola em longa-metragem. Ela reina sobre o som durante todo o filme, dialogando e criando um distanciamento com o que se vê na tela, ditando o peso da dramaticidade das cenas e dando tom ritualístico à obra. Normalmente a trilha é composta em cima de um corte fechado do filme ou se edita o filme com uma música já pronta. Regio e Glass subverteram o padrão, trabalhando e retrabalhando trechos do filme e da música concomitantemente. O sucesso da trilha foi tão grande que gerou uma turnê do Phillip Glass Ensemble e um disco.





Koyaanisqatsi levou seis anos entre o início das filmagens e o lançamento. Inicialmente um projeto pouco ambicioso, derivado de uma campanha social do IRE (Instituto Regional de Educação) e com verba modesta, conquistou as telas e virou um filme cult, que originou as sequências Powaqqatsi (1988) e Naqoyqatsi (2002), formando a trilogia Qatsi. Ver ou rever o filme nos dias atuais, quando florestas do mundo todo ardem em chamas e um vírus invisível  contamina o planeta, acentua ainda mais o seu impacto.

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Published on September 24, 2020 07:37

September 17, 2020

Casa do Baralho, episódio de hoje: Qué he echo yo?

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O general P, após quatro meses como interino da pasta mais importante do país em tempos de pandemia, foi nomeado ministro. Ao receber a notícia deve ter se sentido como o personagem do filme espanhol Qué he echo yo para merecer esto? ou em um idioma que o general entenda: o que fiz para merecer isto? Curiosamente, é a pergunta que o brasileiro vem se fazendo nos últimos anos e tornou a se perguntar, enfaticamente, ao ouvir quem seria o “novo” ministro da saúde.





Quando o general assumiu como interino, em meados de maio, o Brasil tinha 14.800 mortos por Covid-19. Nesses quatro meses saltou para mais de 134.000. Havia pouco mais de 228 mil infectados. Quatro meses depois, são quase quatro milhões e meio. O país assumiu a liderança mundial em vítimas por números de habitantes e por taxa de óbitos entre os contaminados. Bateu o recorde de longevidade da curva. Não é pouca coisa. Em outro país o gestor já teria sido afastado. No Japão, pediria perdão e cometeria Sepukku. No Brasil, foi oficializado no cargo.





O general formou-se nas Agulhas Negras como Oficial de Intendência, responsável, no exército, pelas atividades de suprimentos, transporte, lavanderia e sepultamento. O presidente trocou um médico por um coveiro para cuidar da saúde dos brasileiros. B, é sabido, tem três grandes fetiches: poder, golden shower e a morte (dos outros). No quesito poder, nenhum ministro se mostrou tão subserviente ao senhor presidente. No quesito morte, os números falam por si. Sobre o golden shower…é  assunto privado entre o mandatário e o pau mandado. O fato é que o militar performou conforme os ditames da política do atual governo. Ceifou mais vidas que as armas, a polícia, as queimadas, os agrotóxicos e a crise econômica juntos.  Só não obteve maior êxito por culpa do STF, prefeitos e governadores.  Mesmo assim, chegou onde nenhum outro conseguiu chegar.





Nos últimos dias, porém, os números pararam de crescer, mantendo-se no patamar de mil mortes por dia. O presidente entendeu que seu general precisava de um incentivo e resolveu oficializá-lo como chefe da pasta, antes que a curva despencasse. Na posse, o ministro declarou que ficar em casa comprovadamente não conteve a pandemia. E que o novo normal era conviver ou conmorrer com o vírus.





Logrará B estancar a sangria no número de mortos? Voltarão o norte e nordeste ao hemisfério sul? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho!!!

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Published on September 17, 2020 08:03

September 10, 2020

Alien, o Oitavo Passageiro

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Filme de Ridley Scott – Inglaterra/EUA – 1979.





É impressionante como Alien, o Oitavo Passageiro não envelheceu. Após quarenta e um anos segue com a mesma intensidade e qualidade cinematográfica que impactou o espectador no século passado. Seu sucesso gerou uma franquia de seis filmes, dois deles dirigidos pelo próprio Ridley  (Prometheus – 2012 e Alien: Covenant – 2017) e um terceiro que, conforme revelou o diretor, está à caminho. Nenhuma dessas sequências ultrapassou o impacto do primeiro filme, lançado em 1979, com argumento de Dan O’Bannon e Ronald Shusett e roteiro de Dan O’Bannon.





Alien é um filme de terror de ficção científica que ultrapassou as fronteiras do gênero e subgênero, graças principalmente ao destacado estilo visual, que virou marca registrada do diretor; à gramática que ele emprega na narrativa; e à trupe de atores que dão vida aos sete membros da tripulação da Nostromo.





O início do filme nos conduz a um passeio pelo interior da nave. Está tudo silencioso, mas os movimentos de câmera sugerem que há algo errado, como se alguém estivesse à espreita ou a nave abandonada. O passeio encerra no dormitório e assistimos a tripulação despertar. A luz, até aquele momento pontuada entre grandes zonas sombrias e penumbra, banha suavemente a nave acompanhando o clima idílico do despertar e da primeira refeição. Até surgir o motivo do alerta que os fez despertar. Scott constrói sua narrativa como uma peça sinfônica, criando movimentos que alternam calmaria, susto, suspense, falsa calmaria e terror até o gran finale. Outra ótima sacada do diretor é empregar a máxima dos filmes B de terror dos anos 1950: oculte ao máximo o monstro do seu filme, pois nada pode ser mais aterrador do que o monstro imaginário de cada um. Ridley Scott explorou magistralmente essa ideia mostrando apenas parcialmente a criatura que ameaça a tripulação e que, para aprofundar o horror, muda de características no decorrer do filme. Os planos em que o alienígena surge em sua plenitude são curtos e raros. E são os menos impactantes. Mas não é só o monstro que o diretor oculta. Nas imagens do planeta e da nave acidentada mostradas pelas câmeras acopladas nos capacetes dos três exploradores – uma imagem de baixa qualidade que ainda sofre várias interferências e ruídos eletrônicos –, Scott acentua a sensação de mistério e ameaça que aguarda a equipe da Nostromo.




[image error]Scott, forte estilo visual, casamento perfeito entre cenário e luz


Scott é um cineasta que pensa com o olho, ou seja, calca a sua narrativa principalmente no visual. Dirigiu o filme operando a câmera, o que é incomum em produções como essa. Seu forte é a forma de iluminar, muitas vezes com as fontes de luz aparecendo em quadro ou a luz sendo desenhada por fumaça ou neblina. A incubadora de ovos é um casamento perfeito entre luz e direção de arte, um cenário criado com raio laser e fumaça.





Alien tem um roteiro típico de filme de terror, com um enredo simples construído em torno de uma situação básica: sete pessoas e um gato presos em uma nave espacial com um terrível predador sobre o qual nada sabem. O conflito é o mais elementar possível: matar ou morrer. Mesmo assim, há elementos de reflexão avançados para a época: duas das tripulantes são mulheres, uma delas, Ripley, é a oficial de máquinas que tem dois marmanjos sob seu comando. Ela acaba se revelando o herói do filme. Outra visão futurista interessante é a de que a nave não pertence a um país e sim a uma empresa, a Weyland Corporation. É a globalização, ou melhor, a universalização já que o globo ficou pequeno para o capitalismo. O oficial cientista Ash declara sua admiração pelo alienígena, por ser um puro sobrevivente, livre de sentimentos de culpa e consciência. Essa visão fascista que liga pureza à falta de escrúpulos casa perfeitamente com a visão utilitária da corporação que prefere preservar o monstro e descartar a tripulação. A obra revisita a questão do homem versus máquina, ou os perigos da inteligência artificial, apresentada em 2001, uma Odisseia no Espaço,de Kubrick e aprofundada depois em Blade Runner, de Scott. Embora não haja complexidade nos personagens de Alien, os atores conseguem criar uma dinâmica e um ambiente repleto de nuances entre os membros da tripulação. Os ingleses Ian Holm, John Hurt e Veronica Cartwright e os americanos Harry Dean Stanton, Tom Skerritt, Yaphet Kotto e Sigourney Weaver compõem o elenco dos tripulantes da Nostromo.  O nome da nave é uma homenagem ao escritor Joseph Conrad e seu romance Nostromo, de 1904.




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Alien, o Oitavo Passageiro foi feito para ser visto em tela grande. Ele e outros filmes daqueles anos 1970 foram na contracorrente dos filmes que começaram a trabalhar com enquadramentos de TV para garantirem uma sobrevida na segunda janela. Ao optar pelo impacto da tela grande “salvaram” o cinema da morte anunciada pela acelerada inserção da TV colorida em todos os lares. Alien faturou o Oscar de efeitos visuais e vários outros prêmios. Além dos seis filmes da franquia, deu origem a livros e histórias em quadrinhos.

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Published on September 10, 2020 09:04

September 3, 2020

Seven Seconds

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Série – criação de Veena Sud – EUA – 2018.


Nesses tempos em que se debate a violência da polícia e o racismo estrutural, não dá para perder Seven Seconds. A obra ficcional delineia com muita clareza, por meio dos dramas pessoais de seus personagens, como o racismo impregna as instituições e as relações sociais e dali se aloja nos corações e nas mentes dos indivíduos.  Mostra também como o racismo, ladeado pelo machismo e homofobia, atuam como ferramentas de imposição de poder nas mais distintas esferas, desde a política, passando pela justiça e pela polícia, até a disputa territorial em bairros empobrecidos.


Brenton Butler, jovem negro de dezesseis anos, é atropelado e abandonado sem socorro em um parque de uma zona pobre em Jersey City, na margem oposta (em relação a NY) do rio Hudson. Dali se vê a estátua da liberdade de costas, ângulo mais do que simbólico para Brenton, sua família e seus amigos. O inverno – o frio, o céu gris e a neve branca que encobre tudo – e o sangue que mancha a neve, também são elementos visuais e simbólicos muito bem explorados na série. Os clichês são utilizados em Seven Seconds de maneira inteligente.  Inseridos nas condutas e diálogos dos personagens, a obra mostra como falas e comportamentos prontos, repetidos muitas vezes, engessam o pensamento das pessoas e tornam-se “verdades”. São esses clichês que disseminam os preconceitos. Um exemplo é o raciocínio de que um jovem negro, naquele local e àquela hora, só poderia estar traficando e que sua morte foi fruto de uma disputa entre gangues.  Nem mesmo Joe Rinaldi, o policial mente aberta, consegue escapar da armadilha desse clichê.


Há duas personagens femininas muito fortes: a promotora do caso (Clare-Hope Ashitey) e a mãe do rapaz atropelado (Regina King, premiada com o Emy por sua interpretação). A dinâmica entre a dupla que investiga o caso é muito bem construída: KJ, promotora negra, e Rinaldi (Michael Mosley), policial branco, são loosers de primeira, cometem inúmeros erros pessoais e profissionais (principalmente KJ) e mesmo assim emanam força, calcada na dignidade e nas próprias fragilidades. A relação entre eles começa tensa e evolui, sofisticadamente, para uma ligação muito especial.


[image error]KJ e Rinaldi no pântano do racismo estrutural. 


Vale mencionar que o nome da vítima, Brenton Butler, é homenagem ao jovem negro acusado injustamente de assassinato no ano 2000 na Flórida. Caso que ganhou notoriedade e foi retratado no documentário oscarizado Assassinato numa Manhã de Domingo do diretor francês Jean-Xavier de Lestrade. Seven Seconds também leva emprestados do caso real o ambiente religioso da família Butler e a integridade da dupla de defensores públicos que cuidou do caso.


Seven Seconds é uma série original da Netflix, baseada no filme russo The Major, de Yuri Bykov. Foi criada como um seriado para várias temporadas e cancelada após a primeira, provavelmente pelos números modestos de audiência. Acredito que se fosse lançada nos dias de hoje, após os casos de violência policial de racismo explícito que incendiaram protestos e suscitaram o debate sobre o racismo estrutural, teria merecidamente maior repercussão.

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Published on September 03, 2020 06:12

August 28, 2020

Trainspotting

Livro – Irvine Welsh – Escócia – 1993.


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Romance de estreia do escritor escocês, que retrata o universo de uma turma de jovens dos bairros operários de Leith (hoje subúrbio da grande Edimburgo) nos meados de 1980. São jovens que gravitam em torno de uma vida sem perspectiva, sustentada pelo seguro desemprego, nos anos de recessão que viram surgir os movimentos punk e skinhead. Mark Renton é o personagem principal, mas a protagonista é a heroína. O álcool e outras drogas são suas coadjuvantes. O sexo, as bandas de rock e o futebol são os figurantes. Um pseudoniilismo tenta dar um verniz de sofisticação ao vazio existencial dessa turma, vazio que em alguns momentos parece derivado do vício, em outros é preenchido por ele.


A obra tem uma estrutura original, raramente utilizada em romances. Construída como uma colcha de retalhos, a narrativa ganha forma a partir de relatos curtos que ora se cruzam, ora se complementam, ora têm enredos autônomos. Os narradores também se alternam entre  personagens que narram em primeira pessoa, um narrador/observador e um observador onisciente. Essa construção fragmentada, essa estrutura “desestruturada”, não é meramente um exercício de estilo, é um elemento importante para desacomodar e confundir o leitor, colocá-lo no interior das mentes e corações dos jovens junkies de Leith. Renton, Sick Boy, Spud, Stevie e Begbie são personagens caóticos, como a estrutura que narra suas histórias. A linguagem utilizada – uma mistura de gíria com o jargão local do inglês e forte sotaque escocês proletário – fortalece a autenticidade do texto,  transporta-nos para as ruas, pubbs e  muquifos frequentados por essa turma. Parte dessa riqueza se perde na tradução, é inevitável, mesmo assim, o trabalho de Daniel Galera e Daniel Pelizarri para a edição brasileira (Companhia das Letras) encara com louvor o desafio rítmico e de estilo na tradução de Trainspotting.


[image error]Mark Renton e seus amigos na adaptação de Trainspotting para o cinema.


O nome do livro tem alguns sentidos. Trainspotting é um passatempo britânico que consiste em observar os trens numa estação ferroviária, registrar seus horários, série do motor e outros detalhes que parecem relevantes apenas para quem é um adepto da prática. Por isso virou uma expressão (entre os não adeptos) que indica uma atividade inútil ou sem sentido. O termo aparece apenas uma vez no texto quando, em uma noite fria, Renton e Begbie param para mijar no muro de uma central de trem desativada e um bêbado, atirado no local, pergunta com deboche: “o que estão fazendo aí, trainspotting?” O termo, na gíria junkie de Edimburgo daqueles anos, também se referia a injetar heroína.


O livro, apesar do humor, da linguagem cativante e do ritmo alucinante, tem vários momentos barra pesada. A enganosa leveza na forma de tratar o mundo cão também causa desconcerto, sacode o leitor do conforto do sofá para as latrinas de um mundo amoral, em alternância contínua entre desespero e êxtase.


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Apesar dos desafios que apresenta aos leitores, o livro foi um sucesso. Foi adaptado para o cinema por Danny Boyle, o que aumentou a sua notoriedade. Gerou uma sequência, Pornô (2002) e, uma pré-sequência, Skagboys (2012). Pornô também virou filme: T2 Trainspotting (para ler a resenha, clique aqui), com o mesmo diretor e atores. Irvine Welsh escreveu vários outros romances, contos, peças de teatro e roteiros. Também dirigiu curtas e codirigiu um longa-metragem.


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Published on August 28, 2020 07:34