Tentando Entender

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Em 2016, a perplexidade tomou conta do planeta. Na Terra da Rainha, os ingleses não conseguiam explicar para o resto do mundo como a proposta de deixar a União Europeia havia vencido nem o motivo de o referendo ter sido convocado. Do outro lado do oceano, Trump ganhava a eleição na base da truculência e de golpes sujos, prometendo tornar a América grande novamente, construindo muros e expulsando imigrantes. Os termos fake news e pós-verdade tornavam-se corriqueiros. No Brasil, assistimos ao impeachment da presidente, tendo que explicar (sem entender) como um deputado envolvido até o pescoço em corrupção derrubava a mandatária da nação amparado por amplas manifestações e o conluio com seus pares. O espetáculo de horrores das declarações de voto no Congresso foi tão ou mais atordoante que o próprio impeachment, prenunciando e pronunciando o fenômeno Bolsonaro. Estava claro que o processo político-democrático estava mudando de feição e ganhando uma cara assustadora.





Se você está entre os perplexos que até hoje tentam entender, sugiro duas obras muito diferentes: o livro A Barata, de Ian McEwan e o documentário O Dilema das Redes (The Social Dilema), dirigido por Jeff Orlowski. Nenhuma delas traz respostas definitivas, mas ambas lidam com as questões de forma muito interessante.





McEwan, escritor que sabe incorporar o mundo contemporâneo aos seus romances como poucos, parte para a alegoria satírica. Inspirado em Kafka e em Jonathan Swift, ele metamorfoseia um exército de baratas em políticos (a começar pelo Primeiro-Ministro) e cria um projeto de reversão do fluxo monetário, algo tão estapafúrdio quanto o Brexit. É muito divertido. E aterrador.





O Dilema das Redes, roteirizado por seu diretor em parceria com Davis Coombe e Vickie Curtis, tenta elucidar as grandes ameaças por trás do negócio bilionário das redes sociais, entre elas, o hackeamento de nosso cérebro para nos vender anúncios e influenciar nosso comportamento. Boa parte dos depoimentos é dada pelas pessoas que criaram ou trabalharam nessas plataformas e aplicativos. O principal depoente, Tristan Harris, é um ex-engenheiro do Google que se tornou ativista contra os mecanismos viciantes da internet. Quase ao final do filme, Tristan explica que o problema não é a tecnologia em si, mas como ela potencializa o que há de pior na sociedade. Em outras palavras, Facebook, Twitter, Google e Instagram não criaram os haters, xenófobos e negacionistas, apenas os empoderaram com uma forte plataforma de conexão e difusão.





Isso nos leva às baratas de McEwan, seres que saíram do subterrâneo e galgaram os bueiros para tomar o poder. E é mais ou menos isso que estamos assistindo: um mundo no qual a ética não acompanhou o ritmo da evolução tecnológica, gerando um esgotamento de modelos (de democracia, de participação, de justiça e de bem-estar) e um gap por onde aflorou o retrocesso mascarado de novidade.





[image error]A democracia e os os modelos esgotados.



O establishment tem sua dose de responsabilidade. Preferiu não perceber o esgotamento dos modelos e, portanto, não se preocupou em construir alternativas, atendo-se a enfrentar as crises econômicas como problemas pontuais. Por isso, Dilma, Hillary e David Cameron (para nos atermos aos casos mencionados) foram pegos de surpresa. Mas esse é apenas um lado do problema. As novas tecnologias poderiam revolucionar a política, através do acesso facilitado à informação, aos próprios candidatos e à participação.  Greta Thunberg, Malala Yousafzai e Jacinda Ardern seriam os modelos a serem seguidos e não Bolsonaro e Trump. Mas a ganância dos novos magnatas e a sociedade, enfetichada pelo que há de pior nas redes, alçou a estupidez truculenta ao poder, colocando o mundo à beira de uma ameaça tão grave quanto foi a corrida nuclear. Hoje, o ponto de não retorno começa a tornar-se algo maior do que mais um termo corriqueiro.

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Published on October 08, 2020 08:29
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