Jaime Lerner's Blog, page 19

March 3, 2022

Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo

Livro de Eliane Brum com fotos de Lilo Clareto – Brasil, 2021

“Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar.”

Desde a série de reportagens A Vida Que Ninguém Vê, Eliane se destacou  como autora que foge do óbvio (como o diabo da cruz) na maneira de fazer jornalismo. O texto afiado e principalmente os temas e personagens na contramão do que é considerado notícia, despertaram a atenção para a jovem periodista e alavancaram uma trajetória de sucesso que a levou de Ijuí, via Porto Alegre, à São Paulo. Sua decisão de mudar-se para Altamira, dezoito  anos depois e com uma carreira consolidada, mostra que segue desbravadora, desprezando caminhos batidos e encarando sua profissão como um sacerdócio. Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo é a expressão de tudo isso, radical, contundente e muito diferente do que se espera de um texto  jornalístico. Para começar, é um livro multigênero: tem a pegada da grande reportagem, com a apurada apresentação de fatos e documentos; tem ensaio, de amargas conclusões e densa reflexão existencial; uma ousada exposição autobiográfica;  uma carga dramática que não perde para os russos Guerra e Paz, Vida e Destino ou Vozes de Tchernóbil (Tolstoi, Grossman e Svetlana Alexijevich); uma linhagem de heróis anônimos, personagens incríveis que parecem de outro planeta, mas são nossos conterrâneos,  assim como os vilões que os antagonizam; e um tom trágico e acusador que nos envergonha de ser o que somos, contundente e grandioso como Os Sertões de Euclides da Cunha. Além de todos esses elementos, há um caderno de fotos, a grande maioria delas de autoria de Lilo Clareto, grande parceiro de Eliane em suas reportagens amazônicas, a quem ela dedica o livro. Lilo faleceu em abril de 2021, aos sessenta e um anos, vítima da Covid-19.

Foto de Lilo Clareto no caderno de imagens de Banzeiro Òkòtó

Na porção ensaio de Banzeiro Òkòtó, o olhar profundo e abrangente de Eliane junta os pontos entre as histórias de indígenas, ribeirinhos e quilombolas, jornalistas brancos, missionárias americanas e ativistas europeus, cientistas e antropólogos, garimpeiros de ouro, grileiros de terra, contrabandistas de toras e assassinos de aluguel, militares, corporações multinacionais, criadores de gado e plantadores de soja mostrando como a luta pela preservação do meio ambiente é ligada à luta contra o racismo, contra o exacerbamento do abismo social, contra o capitalismo predatório, contra a crise hídrica e a crise da democracia.

No redemoinho do liquidificador banzeeiro rodopia uma escrita de grande impacto, não apenas no estilo, como na estruturação narrativa. Após seis angustiantes capítulos sobre o suicídio de jovens, Eliane nos tira do chão com o capítulo Alice, não por injetar esperança, ela é contra a esperança como motivadora da ação, mas por nos elevar o espírito com uma aventura singelamente espetacular.

Banzeiro Òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo é acima de tudo um livro manifesto que retrata em cores fortes e em carne viva a urgência de enfrentarmos a questão do clima; os vários pontos de não retorno já ultrapassados  rumo a tornarmos o planeta um ambiente hostil. E aponta que se esperarmos de braços cruzados a atual geração de políticos, líderes empresariais e gestores para salvar o que resta, estamos fritos. É um livro difícil, pungente, comovente e obrigatório.

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Published on March 03, 2022 07:42

February 24, 2022

Mães Paralelas

Filme de Pedro Almodóvar – Espanha 2021

O filme Dor e Glória, lançado em 2019  parecia uma despedida de Almodóvar dos longas metragens. O protagonista, um cineasta de sucesso sofrendo um bloqueio de criatividade e vários problemas de saúde, faz as contas com o seu passado.  As entrevistas de Pedro por ocasião do lançamento também apontavam para a aposentadoria. O cineasta falava de seus problemas na coluna e o quanto o trabalho no set exige fisicamente do diretor. Felizmente, foi alarme falso. Dois anos depois surge Mães Paralelas, filme que resgata vários elementos Almodovarianos. Outra surpresa: a obra é também lançada na Netflix (cinco meses após sua estreia nos cinemas), ao lado de outros 11 filmes do espanhol licenciados para a plataforma de streaming.

Almodóvar, de cara, faz uma homenagem à velha e boa película (embora Mães Paralelas tenha sido captado em digital). Janis, a protagonista, é fotógrafa, e as fotos que bate na cena de abertura se integram na arte dos créditos iniciais com a identificação de borda da emulsão Kodak Tri X, um filme em preto e branco muito utilizado na era analógica. Falando em fotografia, o filme todo é rodado com uma grande profundidade de foco, deixando nítidos todos os elementos dispostos nos vários planos do quadro. Esse efeito confere ainda maior impacto à cena final, em que ossadas encontradas em uma vala comum recuperam sua humanidade.

O fetiche do diretor pelas cores quentes é representado em Madres Paralelas pelo vermelho, que neste filme ganha, além da função estética, uma conotação política. Duas de suas atrizes fetiche, Penélope Cruz e Rossy de Palma também se fazem presentes. Outro elemento Almodovoriano é o melodrama calcado numa trama repleta de situações impossíveis e rompedoras de tabus, uma mistura de telenovela com arte questionadora. A figura da mãe, outro tema fetiche de Pedro,  integra-se aqui à uma questão mais ampla, a de identidade, da conexão entre descendentes e antepassados que por sua vez se liga à questão política, mais evidente nesta do que em outras obras do diretor.

Penelope Cruz e Milena Smit são as mães paralelas.

Mães Paralelas é estruturado em torno de duas tramas principais. A que figura em primeiro plano é o encontro entra Janis (40 anos) e Ana (20 anos), duas grávidas solteiras que se conhecem na maternidade, prestes a darem à luz e tornarem-se mães solteiras. As duas parem no mesmo dia e criam um vínculo especial. Em segundo plano, mas não menos importante, é o drama da autorização pela escavação de uma fossa, ou vala comum onde foram enterrados aldeões assassinados por falangistas durante a Guerra Civil Espanhola (para mais detalhes sobre a questão, leia O Silêncio dos Outros). Numa Espanha em que a extrema direita ressurge (como parte de um fenômeno mundial) e tenta vender narrativas alternativas sobre o que ocorreu naquele conflito fratricida, Almodóvar se posiciona  contra o esquecimento e pelo resgate da dignidade dos assassinados e seus familiares. Faz isso de forma comovente e absolutamente criativa. A ligação entre as duas tramas aponta que os dramas individuais não podem ser separados dos dramas coletivos. Em outras palavras, quer queria quer não, o individuo, qualquer individuo que vive em sociedade, é um ser político. 

O filme tem duas indicações ao Oscar nas categorias de atriz principal e trilha sonora. Penélope Cruz ganhou o prêmio de melhor atriz pelo papel de Janis no festival de Veneza.

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Published on February 24, 2022 06:17

February 17, 2022

A Casa do Baralho, ep. de hoje: O Presidente Vacinado

O presidente B foi pra Rússia, descansar um pouco do verão brasileiro. Bem quando uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia está prestes a estourar.

— E daí — disse o presidente ao ser questionado pelo timing — cada país tem os seus problemas com esse tipo de coisa, os americanos andaram também invadindo e anexando territórios de outros países, nós mesmo tivemos esse tipo de problema com o Acre, por exemplo.

Os jornais americanos apontam o motivo da viagem como uma desfeita para Bite-me que nunca o convidou para uma visita, nem mesmo ligou para B desde sua posse. Os economistas dizem que ele vai a mando da Bancada do Boi, garantir o fertilizante russo no prato dos brasileiros. Seus seguidores juram que vai numa missão de paz, salvar o planeta de uma terceira guerra mundial. A oposição alerta que viaja em busca do apoio russo nas eleições, na forma de bombardeio de fake news e hackeamentos durante a campanha. Por isso a inclusão do filho 02, coordenador do gabinete do ódio, na comitiva.

Mas não é nada disso. A Casa do Baralho descobriu, num furo espetacular, o verdadeiro motivo. Desde que seu mestre Tramposo foi vexatoriamente defenestrado da Casa Branca, B voltou-se a Rasputin como seu novo guru. O cara se mantém no poder há mais de vinte anos, num país com eleições regulares e limite do mandato presidencial. Enquadrou a oposição, a imprensa, o judiciário e o legislativo. B quer contratá-lo como coach. A primeira lição seria ver in loco como ele sustenta o blefe da invasão da Ucrânia para afastar a OTAN de seu quintal, sem disparar um tiro. B também havia criado situações de tensão no Brasil ameaçando golpe, mas todas as vezes acabou recuando de maneira vexatória. Seria uma aula de grande valia.

Logo que ficou a sós com o mandatário russo, Rasputin tocou uma sineta e uma enfermeira do exército entrou com uma bandeja prateada contendo uma seringa e um frasquinho.

— Essa aqui é a Sputnik, a melhor vacina contra a covid-19 — disse ela com sotaque carregado.

— A Putin que o pariu com essa seringa, eu não vou tomar vacina nenhuma! — apavorou-se B.

Vai sim, dizia o sorriso gélido do presidente russo.

— Tô fora, com licença — disse B, procurando a saída. Em um átimo de segundo foi atingido por um golpe de Rasputin que o dominou por trás e ainda arregaçou sua manga. B, apavorado, viu a enfermeira agulhando o frasco, sorvendo o liquido para dentro da seringa e se aproximando dele.

— Eu fiz todos os testes que tu pediu, deu negativo, usei máscara quando desci do avião. Por favor, seringa nããão!

— Se relaxar a musculatura vai doer menos — orienta a enfermeira.

B, sem outra alternativa, relaxou. E tomou a Sputnik.

— Essa foi a primeira lição de nosso programa de coaching. — explicou Rasputin. — Conheça bem o adversário, descubra seus pontos fracos e ataque por ali. A gente descobriu que tu tem um terror atávico de injeção e vacina. E preparamos uma pequena surpresinha. Esse é outro fator importante: ataque sempre de surpresa. Além dessas lições essenciais, você ganhou um bônus: tá vacinado. E não te preocupa, o segredo fica entre nós. A não ser que você saia da linha.

Continuará B no programa de coaching? Interferirão os hackers russos nas nossas eleições? E o presidente, seguirá na linha do Rasputin? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on February 17, 2022 07:50

February 10, 2022

Nação Serial Killer

O mundo do crime sempre foi uma fonte de grandes dramas, conflitos, suspense e mistérios na literatura, nas telas de cinema e TV. Golpistas, assaltantes, proxenetas, contrabandistas, traficantes antagonizam a Lei representada por policiais, detetives, procuradores. Entre os crimes, destaca-se (como não poderia deixar de ser) o atentado contra a vida. A irremediabilidade do ato, a qualidade definitiva da morte, alçou o homicídio a um protagonismo que ultrapassa  a esfera do gênero policial. Crime e Pecado, de Dostoyevsky; O Estrangeiro, de Camus;  O Túnel, de Sabato; O Jogador, de Altman;   Ghost Dog, de Jarmusch são alguns exemplos de grandes obras que tentam entender o mecanismo que leva ao ato de matar, a psicologia do perpetrador. Se todos os outros crimes desafiam a lei dos homens – o contrato social do pacto civilizatório – o assassinato quebra ainda uma outra Lei, natural, a do amor à vida. Ceifar uma vida, qualquer vida, é uma violência que exerce terror e fascínio desde os tempos bíblicos, na vida e na arte.

Mas há alguns anos ceifar uma vida, deixou de ser suficiente. Há que produzir mais de um corpo para nos chocar e um novo protagonista surge em cena, o serial killer. Hanibal Lecter, Jack o estripador, Ted Bunty e uma série de assassinos seriais, da ficção e da morte real, assombram nossos corações, incluindo um serial killer “do bem” que assassina assassinos. Todos parecem possuir um intelecto superior, uma frieza sobre-humana, empatia zero e um sadismo monstruoso. São psicopatas. Que só deixam pistas nos cadáveres. Do lado da Lei, unidades especializadas escrutinam detalhes sobre as vítimas, tentam descobrir pontos em comum entre elas, para traçar um “perfil” do assassino, identificar uma assinatura. A série Mindhunter mostra a origem desses estudos sobre serial killers e seus perfis psicológicos.

O Rio de Janeiro, só na  semana passada, produziu dois corpos. O do congolês Moïse Kabagambe e o do Brasileiro Durval Teófilo Filho. O primeiro foi amarrado e espancando até a morte num quiosque à beira mar onde trabalhava, quando foi cobrar os duzentos reais que lhe deviam; o segundo levou tiros de um vizinho militar que achou que era um ladrão, quando entrava no condomínio onde morava. Os dois somam-se à uma lista interminável de vítimas com um traço em comum: são negros. Qual o perfil do serial killer que mata negros? Quais complexos, temores, desvios mentais e comportamentais são despertados na mente desses carrascos pela pele escura?

Protestos após a morte de Moïse Kabagambe ocorreram em várias cidades do Brasil.

No romance 2666 o autor chileno Roberto Bolaño aborda um fenômeno real que permanece um mistério até os dias atuais. Uma cidade no México que se torna, a partir de 1993,  uma serial killer de mulheres.  As mortes e desparecimentos de moças na  cidade de Juarez acabaram cunhando um novo termo legal: feminicídio. E acabam suscitando outra pergunta: pode uma comunidade tornar-se uma serial killer?

Pode. Infelizmente, o Brasil não deixa dúvidas sobre isso.

Mas a comunidade (um bairro, uma cidade, uma nação) é a grande expressão do pacto civilizatório,  o espaço nobre  das trocas e interações que chamamos de convivência. Como pode esse ente civilizatório tonar-se um serial killer, pretender eliminar das trocas e interações os grupos que o compõem? A cidade de Juarez, no norte do México, fornece algumas pistas. A grande maioria das mulheres assassinadas ou desaparecidas eram ou tinham sido operárias das empresas maquiladoras. As maquiladoras, fenômeno surrealista do capitalismo globalizado, atraíram para Juarez hordas de desempregadas de todo o país, principalmente mulheres entre 17 e 30 anos de idade. A cidade, com esse crescimento abrupto, deixou de ser uma comunidade e tornou-se um entreposto de subtrabalho. É o capitalismo globalizado degradando o espaço urbano. Junta-se a isso o surgimento dos cartéis de drogas no México, sendo o de Juarez, um dos mais violentos. A cultura da crueldade e do machismo dos cartéis se instalou e impregnou a cidade tomada por uma população frágil de forasteiras.

Esses elementos contemporâneos de degradação das comunidades surgem, de forma distinta, também no Brasil. Além deles, o Brasil (como outras nações americanas) tem em sua origem um crime fundador: o extermínio dos povos originais (que não é assassinato em série, é genocídio) e a posterior importação em massa de africanos escravizados. Juntando os pontos, é possível vislumbrar como uma cidade ou nação pode tornar-se serial killer. Não é um paradoxo, é a desintegração, o autoaniquilamento desse espaço como ente civilizatório.

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Published on February 10, 2022 06:38

February 3, 2022

Mais uma Chance

Filme de Tamara Jenkins – EUA, 2018

Tamara Jenkins é uma atriz, roteirista e diretora que envereda por caminhos paralelos ou mesmo opostos ao mainstream. Após o sucesso do filme A Família Savage pelo qual foi nomeada para o Oscar de roteiro, levou onze anos para lançar seu próximo filme.  É uma das realizadoras do cinema independente norte americano com visão original e alto domínio da direção de cena e roteiro que certamente merecer um maior reconhecimento. Mais uma Chance retrata um casal no limiar da idade fértil, obcecado para ter um filho, correndo (cada vez mais desesperado) para todos os lados na busca da realização desse grande desejo. O drama no qual os dois se envolvem, e acabam envolvendo a sua sobrinha, traz uma abordagem diferente sobre relações familiares e tabus impingidos pela sociedade. Embora marido e mulher ( Kathrin Hahn e Paul Giamatti) estejam próximos dos cinquenta anos, o filme trata, curiosamente, do amadurecer.

O trio protagonista (Gabrielle Reid,  no papel da sobrinha) apresenta um trabalho magistral que confere naturalidade absoluta aos personagens. O elenco de apoio mantém o mesmo nível de interpretação. Além da segura direção dos atores, Tamara mostra que sabe tudo sobre onde colocar a câmera, quais lentes usar e como compor o enquadramento para construir sua narrativa cinematográfica. O plano de abertura do filme, um falso pin up, é um ótimo exemplo. Além de enganar/surpreender o espectador, acaba tecendo um comentário sobre os distintos métodos de reprodução. Mas o ponto forte de Mais uma Chance encontra-se no roteiro, mais precisamente, nos diálogos. Jenkins consegue escrever falas inteligentes que não soam pretensiosas, com brilho, mas sem artificialidade, parecem totalmente orgânicas aos seus locutores. Alguns desses diálogos fazem lembrar a verve afiada de Billy Wilder. Outro atributo da obra é tecer um drama repleto de conflitos, porém sem vilões. Todos os personagens, mesmo em momentos de antagonismo, são bem intencionados. Isso passa um tom de feel good movie para a obra, mesmo quando transitando por temas delicados.

Mais uma Chance (título original Private Life) foi lançado no Brasil em 2018 e está disponível no catálogo da Netflix.

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Published on February 03, 2022 06:16

January 27, 2022

What Did Jack Do?

Filme de David Lynch – EUA, 2017

What Did Jack Do, ou em português, O que Jack Fez, é um filme de curta metragem de David Lynch, sua obra cinematográfica mais recente. Lynch é um artista que foge do convencional e seu curta confirma essa fama. O nome da produtora  que abre os créditos iniciais,  Absurda, já oferece um vislumbre do que nos espera. E realmente, nos dezessete minutos de filme mesclam-se elementos do teatro do Absurdo, do cinema noir de meados do século XX, e do próprio surrealismo onírico opressivo Lynchiano, com doses de humor bizarro. O filme consiste numa única cena de interrogatório, no qual David faz o papel do detetive (além do roteiro, edição, desenho de som e a música). Jack, o suspeito, é um macaco-prego-de-cara-branca que ganha (por meio de uma computação digital meia boca) uma boca humana e um sinc quase perfeito com suas falas. Em meio a respostas e perguntas  que não se conectam, recheadas de frases de efeito, clichês, e ditados populares, emerge uma lógica. Uma dessas perguntas transita do inquérito policial para o estado policialesco lembrando o quanto é tênue a fronteira entre os dois, ao evocar o macarthismo.

David Lynch contracenando com Jack

O filme é preto e branco e acontece todo em um café de estação de trem. Pode ser considerado uma brincadeira cinematográfica, ou um exercício de estilo, o que não afeta em nada o prazer de assisti-lo. Não é o caso da legenda em português, que em duas ocasiões escorrega, perdendo-se entre a literalidade e o sentido na tradução dos jogos de palavras. Para sua defesa (da legenda), não é um diálogo fácil de traduzir, e optar pelo sentido pode não se revelar, neste filme, um bom caminho.

What Did Jack Do estreou em 2017 na Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, em Paris, acompanhando o lançamento do livro de fotos de David Lynch.  Em 20 de janeiro, 2020, dia de aniversário de 74 anos do cineasta, foi lançado na Netflix, onde pode ser visto.

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Published on January 27, 2022 06:51

January 20, 2022

Valentina

Filme de Cássio Pereira dos Santos – Brasil, 2020

Valentina é o longa de estreia de boa parte de sua equipe e elenco, a começar pelo diretor e pela  atriz protagonista.  É um filme de baixo orçamento, contemplado no edital do Ministério da Cultura para longa B.O de 2016, último ano em que houve esse edital. Foi rodado todo no interior de Minas Gerais. Não é um filme de planos espetaculares, trama complexa ou linguagem inovadora, mas é uma obra que cativa desde o primeiro fotograma.

Quais são os elementos que a tornam tão cativante? A simplicidade, o tom naturalista e discreto da interpretação que aproxima dos personagens; a delicadeza na abrodagem do tema e do universo adolescente e trans; e acima de tudo, o carisma da atriz principal e por consequência da protagonista. Thiessa Woinbackk encarna Valentina com uma verdade, com  imensa autenticidade, e com um charme singular. Não é a toa que o filme abre (e por isso escrevi que cativa desde o primeiro fotograma) com um plano frontal de Valentina, caminhando em direção à câmera. Há um magnetismo fotogênico, uma empatia imediata. Seu andar, semblante e expressão conquistam o espectador, mesmo antes de saber qualquer coisa sobre a personagem.

Thiessa, assim como Valentina, é uma mulher trans e passou na pele vários dos conflitos de seu personagem. Isso certamente a ajuda na construção da autenticidade. O que surpreende é que a atriz tem 31 anos e faz papel de uma adolescente de 17. E está perfeita. Guta Stresser  interpreta a mãe de Valentina, Márcia,  confirmando seu enorme talento. Além das duas, o elenco todo mantém o  mesmo tom e um alto nível de interpretação, entre estreantes, experientes e não atores. Esse é um mérito da direção, da produção e preparação de elenco.

Uma das ótimas escolhas do diretor e roteirista foi situar o conflito da protagonista (a afirmação de sua identidade sexual) no universo da escola, espaço e ambiente de formação, onde se formam também os preconceitos. A relação entre os diferentes círculos – pais, educadores e alunos– que compõem esse ambiente é muito bem construída. O clímax do confronto final perde um pouco da autenticidade que marca todo o filme, mas isso não abala nossa fascinação por Valentina, seus amigos e sua história.

Valentina teve uma intensa participação em festivais no Brasil e no exterior, com várias premiações, principalmente nas categorias de melhor atriz e melhor filme do júri popular o que confirma seu encanto sobre diferentes plateias. O filme pode ser visto na Netflix.

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Published on January 20, 2022 07:02

January 13, 2022

Torto Arado + 7 prisioneiros

Livro de Itamar Vieira Junior + filme de Alexandro Morrato, Brasil 2019, 2021

Duas  obras que abordam o mesmo tema porém são muito distintas. Ler o romance e assistir ao filme (ou vice-versa) cria uma dimensão interessante de reflexão e olhar sobre a espécie humana e sobre o Brasil,  no contexto do tema que ambas tratam.

Torto Arado nos leva para o interior baiano. Matas, rios, campos, roças e seres míticos são os elementos que compõem um cenário que parece aferrado ao passado. Um passado de grandes fazendas e senzalas. A escravidão foi legalmente abolida, há anos, mas a servidão, uma versão hipócrita da mesma, reina absoluta. Os lavradores, em troca de seu trabalho podem erguer uma casa de barro e ter uma pequena roça num pedaço de terra que cultivarão em seu tempo livre. Trabalham de sol a sol e de domingo a domingo. Podem ir embora, se o desejarem, e podem ser mandados embora à vontade do patrão. 7 Prisioneiros começa em um cenário parecido, um ambiente rural interiorano, mas imediatamente desloca seus personagens para a urbe e de lá não sai mais. Os jovens que deixam suas casas em busca de uma vida melhor ignoram o fato que foram “comprados”. Parte desse dinheiro é dado às suas famílias como um adiantamento, uma promessa dos proventos que terão na grande cidade, a outra parte fica com o aliciador. Ao chegarem em SP os rapazes têm seus documentos sequestrados e terão que trabalhar para pagar o parco alojamento e a comida fornecida pelo patrão, mais o valor investido em sua compra. Ao se rebelarem, dão-se conta que são cativos no seu local de trabalho.

Vieira Junior foca no universo feminino: Belonísia e Bibiana, as duas irmãs que conduzem a trama (como protagonistas e narradoras), a mãe (Salu), a avó (Donana) e uma série de outras mulheres desenham uma linhagem de dor e coragem ao longo de gerações. Esse ponto de vista feminino não ignora o papel do homem e destaca  Zeca Chapéu Grande e Severo como figuras centrais na vida da comunidade de Águas Negras. Já Morrato aborda  o universo masculino. Seus protagonistas e o antagonista são todos homens, mas a figura da mãe tem papel importante nas relações e conflitos travados nesse universo.  

As duas obras traçam caminhos opostos nos processos que abordam. Apesar de todo o calvário que marca os personagens, Torto Arado descreve como se forja uma comunidade, como se cria uma consciência através do fortalecimento do coletivo calcado na solidariedade, na cultura e na fé que argamassam essa união. 7 prisioneiros, na contramão, trata de desagregação, da vitória do egoísmo, do  salve-se quem puder numa cidade de ferro e concreto onde não há lugar para a empatia, muito menos para os encantados de Torto Arado. Dane-se o outro e viva eu, parece ecoar do labirinto de ruas e esquinas e corroer a frágil união do grupo, a consciência coletiva e o ímpeto de lutar pelo que é certo.

As duas obras desenham faces distintas do mesmo mal, o trabalho escravo, mal que o Brasil não conseguiu erradicar  em quinhentos anos e segue carcomendo o tecido social na surdina, no subterrâneo. Lançar esse tema à superfície já é um grande mérito dessas obras impactantes. Torto Arado ganhou o Premio Leya, o Jabuti para Romance literário e o Oceanos. Foi publicado em Portugal pela editora Leya e no Brasil pela Todavia.  7 Prisioneiros, com Rodrigo Santoro e Christian Malheiros nos papeis principais, foi premiado no Festival de Veneza e está licenciado pela Netflix.

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Published on January 13, 2022 06:56

January 6, 2022

A Casa do Baralho, ep. de hoje – Rectumspectiva do Anus 2021

Entre episódios tensos, alguns até explosivos de A Casa do Baralho, os meses passaram voando e chegou o tempo da cerimônia mais badalada, da mais tradicional entrega de prêmios do planeta, A Rectumspectiva do Anus, 2021. Desta vez o evento não ocorreu na última semana do anus, porque o banco de dados da A Casa do Baralho sofreu um ataque de hackers que estranhamente, até agora, não pediram resgate, ou coisa parecida. Esse atraso, no entanto, foi providencial, pois nos derradeiros dias de 2021 as férias do presidente produziram um rico material para a disputa.

Sem mais delongas vamos às categorias, aos indicados e tcham, tcham, tcham… aos premiados.

Na categoria Queda Espetacular concorreram:

O Ministro Amazon is for Salles, mentor do estouro da boiada que, em 2021, escorregou na própria malandragem e caiu do Meio Ambiente para o baixo ambiente da JP.

O Chanceler Honesto Sabujo que tanto se preocupou com a China e acabou levando a maior  rasteira do Centrão.

O Ministro da Defesa (ninguém nem lembra o nome) que caiu no esquecimento junto com os três comandantes das forças armadas.

O Presidente B que foi derrubado por uma onda ao descer do jet ski.

E o vencedor: O Ministro da Saúde Pançuelo que caiu duas vezes no mesmo ano: da cadeira e da moto.

Na categoria Ator Coadjuvante, também conhecida como Puxa Saco do Presidente:

O ex-Ministro da Saúde Pançuelo

O atual Ministro da Saúde QuemRoga

O senador da CPI da Covid Circo Topeira

A deputada Carma Zenbelly.

E o vencedor:  Afé MeEndossa, o terrivelmente evangélico ex-ministro da justiça e atual Ministro no STF, que além do presidente, teve que puxar o saco de 47 senadores para conseguir a vaga.

Na categoria Abalo Sismico Hemorróidico:

A CPI da Covid

O Sete de Setembro

As Queimadas na Amazônia

As férias do presidente em pleno flagelo na Bahia

e a vencedora: A obstrução intestinal.

Nessa categoria houve um recurso das demais concorrentes, alegando que a obstrução aconteceu já em 2022 e tecnicamente estaria fora da disputa. Após muito debate, a comissão do prêmio deliberou:  “O que ocorreu em 2022 foi a internação, mas o que conta é quando se deu a obstrução, ou seja, quando o Presidente engoliu o camarão sem mastigá-lo, causa declarada da oclusão intestinal. Apesar do sigilo estabelecido sobre o histórico alimentar do mandatário, tudo indica que isso aconteceu ainda em 2021 e B atravessou o anus com o camarão já entalado, qualificando, portanto, a concorrente a disputar e a vencer.” A CPI da Covid ainda tentou derrubar a decisão no STF, mas este estava em recesso.

Na categoria Personalidade do Anus:

Moro Num País Tropical, o candidato por um dia da terceira via.

O deputado Reicardo Lamas que em vez de ficar chorando com a paralisação, mostrou que é possível faturar na pandemia.

O Ministro da Economia Pau-no-Deles que garantiu que 2021 seria o ano da virada e virou o Brasil num país com recessão e inflação ao mesmo tempo.

A mutação Omicron, que chegou sem muito alarde no final do ano e acabou com o natal e réveillon de muita gente, mostrando que enquanto o mundo todo não for vacinado, ninguém vai poder se sentir livre da pandemia.

E o vencedor: Mais uma vez o presidente B, que balança, dança, mas não cai e fatura o bi na categoria mais prestigiada da competição!!!

Você concorda com as categorias, indicações e os premiados? Tem alguma sugestão? Deixe seu comentário para que a gente possa avacalhar.

Um feliz 2022! Se quiser maratonar a série, basta ir à aba Casa do Baralho e rolar os episódios de baixo para cima.

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Published on January 06, 2022 07:38

December 30, 2021

Não Olhe Para Cima

Filme de Adam McKay – EUA 2021

Um cometa se precipita em direção à Terra. O choque, tudo indica, será fatal. Ele já pode ser visto no céu noturno do planeta, a olho nu. Olhe para cima!, clamam os cientistas em uma campanha para tentar conscientizar as pessoas. Não olhe para cima! é o lema da contracampanha, orquestrada pela presidente norte americana e seu patrocinador.

Não Olhe Para Cima não é um filme de ficção científica ou uma distopia apocalíptica, nem um blockbuster de catástrofe. É uma sátira mordaz sobre a humanidade, muito adequada a este fim de ano, início da terceira década do século XXI, época em que a idiotice uniu-se à superficialidade para tomar conta da espécie.

O cometa que irá despencar sobre nossas cabeças, olhemos ou não para cima, é o aquecimento global. Mas o filme aborda outros temas que se relacionam com o negacionismo explícito: a derrocada da democracia pela eleição de líderes fascipopulistas, a polarização e o pós verdade através da desinformação, a revolução tecnológica que criou novos multibilionários e a sensação que podem brincar de Deus, e a Covid que tanto no Brasil como nos EUA de Trump mostrou que o filme, frente à realidade, nem chega perto do farsesco.

Meryl Streep arrasa como a presidente dos EUA, um Trump feminino.

O governo, os políticos, a mídia, as grandes corporações e as redes sociais são os alvos dessa sátira mordaz, mas no fundo a obra é um reflexo da sociedade atual, um espelho com a imagem de cada um de nós, o que deve ter incomodado muita gente. Isso explica em parte as inúmeras críticas à obra. Dizem que não é um filme profundo, que a sátira é muito óbvia, que os personagens, em sua maioria, são estereotipados. Mas se analisarmos os personagens reais que eles representam, veremos que o estereótipo não é obra do filme, mas das próprias personas. E que os atores que os interpretam incorporam muito bem essa característica, sem se tornarem caricaturescos. Por outro lado, há personagens (como os três cientistas) que embora não sejam altamente complexos, são tampouco superficiais. Os diálogos são inteligentes e a construção do conflito (o negacionismo) é muito bem articulado. Não se pode esperar que um filme que almeja se comunicar com uma sociedade que denuncia como superficial, seja profundo como Bergman, ou sagaz como Billy Wilder. Mas há momentos de irreverência no filme que me lembraram Dr. Fantástico (Dr. Strangelove) de Kubrick. Ambos falam de um perigo de extinção oriundo da estupidez humana. E em nenhum dos dois  o humor tem a função de amenizar a seriedade da ameaça, mas realçar o absurdo. Odiado ou amado, criticado ou enaltecido Não Olhe Para Cima é certamente o filme mais comentado nos últimos anos, o que já é um bom sinal. Resta saber se isso será suficiente para levantarmos a cabeça e finalmente agirmos como a espécie inteligente que pretendemos ser, antes que seja tarde.

Recheado de estrelas como  Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence,  Cate Blanchett, Meryl Streep e Ariana Grande, Não Olhe Para Cima pode ser visto nos cinemas e na Netflix.

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Published on December 30, 2021 06:48