Jaime Lerner's Blog, page 19
March 31, 2022
O Tapa na Cara do Oscar
Troy Kotsur, premiado como melhor ator coadjuvanteO Oscar da convalescênça, cuja cerimônia voltou a ser transmitida quase nos moldes pré-pandemia, com os filmes da retomada após a Covid, será lembrado por um tapa.
Poderia ter sido marcado pela premiação, pela primeira vez, de um ator surdo e pelo magnífico discurso que fez ao receber a estatueta de melhor ator coadjuvante. Ou pela avalanche dos prêmios do filme CODA (no Brasil: No Ritmo do Coração), que traz no elenco vários atores e atrizes nessa condição. Poderia ficar marcado pelo aumento considerável de indicados negros e mulheres nas diversas categorias, e a premiação de Jane Campion na melhor direção. Ou pelas manifestações contra a invasão russa da Ucrânia. Mas todos esses momentos notáveis foram obscurecidos por um tapa que Will Smith deu em Chris Rock, quando este estava no palco apresentando o prêmio de melhor documentário de curta metragem e fez uma piada sobre Jada Pinkett, a mulher de Smith. Piada que nem seria tão ácida, em comparação às outras normalmente praticadas nessa cerimônia, não fosse a doença que a fez raspar os cabelos. A careca de Jada foi o alvo do comediante (que não sabia da doença).
Curiosamente, Will ganhou o prêmio de melhor ator, alguns minutos depois da cena bizarra, e misturou em seu discurso pedidos de desculpas e um choro pela emoção do prêmio e pelo episódio. Não chegou nem aos pés do discurso proferido na linguagem dos sinais de seu colega Troy Kotsur, premiado como ator coadjuvante, e que merecia naquela noite ser protagonista. O tapa de Will conseguiu roubar a cena de sua própria premiação, o único troféu de King Richard. Em outras palavras, a cerimônia do Oscar, que deveria ser uma celebração do cinema, especialmente em convalescênça da Covid, virou um episódio de Big Brother. E o entrevero todo, com as piadas tóxicas, o tapa e os palavrões proferidos após o tapa, e acima de tudo o fato de ter obscurecido todo o resto, mostra que o mundo ainda está bem doente. Haja divã.
March 24, 2022
Escondi Minha Voz

Livro de Parinoush Saniee – Irã, 2004
O romance mais surpreendente que li este ano, Escondi Minha Voz é simultaneamente um mergulho poderoso na alma humana e um olhar crítico sobre a sociedade. Num estilo discreto, sem grandes arroubos literários, Saniee dá voz a um menino de quatro anos que por algum motivo não consegue, ou não quer, falar. A narrativa dele é entremeada pela narrativa de outra personagem, também em primeira pessoa, sua mãe. A sensibilidade que Saniee revela ao entrar na mente (e nos corpos) de seus personagens, principalmente na do menino Shahab, e descrever processos psicológicos complexos através de pensamentos infantis, é arrebatadora. É uma escrita sofisticada com trajes simples, que envolve o leitor gradativamente, mas com enorme força, nos conflitos do menino. Na superfície desse oceano emocional, do lado de fora do casulo de Shahab, mas lançando ondas de grande impacto sobre seus mais profundos sentimentos, encontra-se a família, e num raio maior está a sociedade.
Com a mesma maestria que mergulha na psique de Shahab a autora retrata o Irã, com seus códigos sociais e suas leis morais que não toleram o diferente, o indivíduo que não anda estritamente da linha. Ali imperam a hierarquia patriarcal e a honra da família, que enfrentam uma resistência silenciosa mas contundente de mulheres que não se deixam curvar. Conscientes ou não, elas representam o feminino islâmico. Esse embate silencioso se dá entre as linhas do romance, nas relações familiares. Mas seu sentido mais amplo, sua conexão com o regime dos aitaloás é clara, ainda que não explícita. Por trás da família e da sociedade, quase nos bastidores, encontra-se o Estado opressor.
Saniee é psicóloga e socióloga, funcionária pública aposentada do Ministério do Trabalho iraniano. Sua experiência profissional é basilar na escrita de Escondi Minha Voz, mas acima desse conhecimento (e aliado a ele) paira um talento fabuloso para criar dramas envolventes, ficções que expressam verdades fundamentais.
Escondi Minha Voz foi lançado em 2004 e publicado no Brasil em 2017 pela Bertrand Brasil. Apesar de ser traduzida da tradução italiana e não diretamente do persa, a edição brasileira esbanja qualidade.
March 17, 2022
Guerra, Cultura e Cancelamento

Em 1917, a Rússia se retirava da Primeira Guerra Mundial. O regime do Tzar havia caído e os bolcheviques assumiram o poder. Eram contra o imperialismo e a guerra entre os povos. Sua luta era contra os nobres, os latifundiários e industriais que exploravam camponeses e operários. Seu esforço de guerra era focado em defender a revolução recém instaurada que ostentava, entre outras, a bandeira do pacifismo. Dois anos depois, o regime comunista soviético fazia sua primeira incursão de guerra invadindo a Polônia. O objetivo era levar a revolução comunista a outros países europeus, chegando à Alemanha. Nesta guerra, a Polônia teve o apoio de várias nações ocidentais e a participação efetiva da Ucrânia lutando ao seu lado. Ao final do conflito Lenin reconheceu a independência da Polônia, mas a Ucrânia foi anexada à União Soviética como a República Socialista Soviética da Ucrânia. Um dos destacamentos invasores, os cossacos da cavalaria vermelha, foi acompanhado por um comissário político que mais tarde escreveria o livro Contos da Cavalaria, apresentando a guerra de uma forma cruel e quase banal, despindo-a de toda aura de bravura e heroísmo que lhe conferiam outros obras. O autor, Isaac Babel tornar-se-ia um dos escritores mais promissores da União Soviética, até ser preso e assassinado por Stalin.
Um século e muitas reviravoltas depois, a invasão da Ucrânia pela Rússia encontra-se em sua terceira semana. O objetivo de Putin é derrubar o regime ucraniano atual e instaurar um governo fantoche, que distancie a Ucrânia de seus sonhos ocidentais e, principalmente, de aproximação com a OTAN. Ele chama isso de uma ação para desarmar e desnazificar o país vizinho. O contexto pode ser melhor entendido vendo o filme Winter on Fire. Assim como no caso da invasão da Polônia há cem anos, a Ucrânia conta com apoio de vários países ocidentais, que lhe fornecem armamentos e aplicam sanções econômicas contra a Rússia. Nesses tempos de redes sociais e extrema polarização junta-se às sanções econômicas um chamado para o boicote cultural. Algo que desvia um mecanismo de pressão não bélico para a xenofobia. Chegou-se ao absurdo de uma prestigiada universidade de Milão ter cancelado um curso sobre Dostoievsky (que após protestos foi devidamente descanelado). Em Florença houve pedidos que a Câmera Municipal retirasse a estatua desse mesmo autor, inaugurada há três meses para marcar o seu segundo centenário. Justo Dostoievsky que foi condenado à morte pelo regime do Tzar por ter lido em público uma carta à Gogol. Segundos antes da execução, já na praça de fuzilamento, chegou a ordem imperial de comutar a pena para prisão com trabalhos forçados. Apesar do susto, a vida do escritor foi poupada. Não foi o caso de Babel. Estes são apenas dois exemplos de artistas que foram severamente castigados por expressões contra ações e condutas ditatoriais. Hoje na Rússia há várias pessoas presas por protestar contra a guerra de Putin. Houve várias manifestações de artistas contra a invasão. Sem falar que há anos as obras de autores como Puschkin, Gogol, Tolstoi, Gorki, Tchekhov, Svetlana, Pasternak, Grossman, Bulgákov, além dos acima mencionados e muitos outros, tornaram-se um patrimônio da cultura universal.
Em outras palavras, um cancelamento da cultura russa é tão absurdo, tão impróprio e despropositado quanto à guerra que Putin resolveu protagonizar.
March 10, 2022
Onde Eu Moro

Filme de Pedro Kos e Jon Shenk– EUA 2021
Onde Eu Moro, título original: Lead me Home (encaminhe-me para casa), é um filme sobre a crescente crise dos sem-teto que assola as grandes cidades nos Estados Unidos. O tema cinzento, no entanto, é tratado com uma abordagem repleta de lirismo, algo que pouco se vê em documentários políticos/sociais.
A intenção dos realizadores era justamente humanizar o tema, dar voz e cara aos personagens que são vistos normalmente como marginais, viciados e/ou doentes mentais, como se eles fossem o problema e não suas vítimas. O filme apresenta vários personagens em três cidades, São Francisco, Los Angeles e Seatlle, com histórias diferentes, mostrando que há vários fatores que podem levar um indivíduo, ou uma família a perder sua casa e morar nas ruas.

Filmando da rua o interior de algumas casas, como quem espia através de janelas e cortinas pessoas escovando os dentes ou tomando o café da manhã, o documentário cria uma relação interessante entre a condição de ter ou não um lar, expressando o sentimento, o olhar dos sem-teto. Planos gerais das cidades, dos prédios modernos em construção contrastam com imagens das praças e locais onde acampam os sem-teto, contraste que sugere que há algo errado com o sistema, não com as pessoas que não têm onde morar.
Onde Eu Moro – Personagens incríveis para além do problema socialA sensibilidade no trato dos personagens e na estética do filme (enquadramentos e montagem) marca toda a obra, confere a ela um tom poético. É provavelmente isso que a levou a ser um dos cinco finalistas indicados ao Oscar de melhor curta documentário. Embora concorra como curta, o filme tem 40 minutos (não há no Oscar categoria para média metragem) .
Pedro Kos, um dos diretores e montador do filme, é brasileiro, que vive desde os 12 anos nos Estados Unidos. Tem outros dois documentários como diretor e assina vários outros trabalhos como montador, entre eles Lixo Extraordinário de 2010. Onde Eu Moro pode ser visto na Netflix.
March 3, 2022
Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo

Livro de Eliane Brum com fotos de Lilo Clareto – Brasil, 2021
“Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar.”
Desde a série de reportagens A Vida Que Ninguém Vê, Eliane se destacou como autora que foge do óbvio (como o diabo da cruz) na maneira de fazer jornalismo. O texto afiado e principalmente os temas e personagens na contramão do que é considerado notícia, despertaram a atenção para a jovem periodista e alavancaram uma trajetória de sucesso que a levou de Ijuí, via Porto Alegre, à São Paulo. Sua decisão de mudar-se para Altamira, dezoito anos depois e com uma carreira consolidada, mostra que segue desbravadora, desprezando caminhos batidos e encarando sua profissão como um sacerdócio. Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo é a expressão de tudo isso, radical, contundente e muito diferente do que se espera de um texto jornalístico. Para começar, é um livro multigênero: tem a pegada da grande reportagem, com a apurada apresentação de fatos e documentos; tem ensaio, de amargas conclusões e densa reflexão existencial; uma ousada exposição autobiográfica; uma carga dramática que não perde para os russos Guerra e Paz, Vida e Destino ou Vozes de Tchernóbil (Tolstoi, Grossman e Svetlana Alexijevich); uma linhagem de heróis anônimos, personagens incríveis que parecem de outro planeta, mas são nossos conterrâneos, assim como os vilões que os antagonizam; e um tom trágico e acusador que nos envergonha de ser o que somos, contundente e grandioso como Os Sertões de Euclides da Cunha. Além de todos esses elementos, há um caderno de fotos, a grande maioria delas de autoria de Lilo Clareto, grande parceiro de Eliane em suas reportagens amazônicas, a quem ela dedica o livro. Lilo faleceu em abril de 2021, aos sessenta e um anos, vítima da Covid-19.
Foto de Lilo Clareto no caderno de imagens de Banzeiro ÒkòtóNa porção ensaio de Banzeiro Òkòtó, o olhar profundo e abrangente de Eliane junta os pontos entre as histórias de indígenas, ribeirinhos e quilombolas, jornalistas brancos, missionárias americanas e ativistas europeus, cientistas e antropólogos, garimpeiros de ouro, grileiros de terra, contrabandistas de toras e assassinos de aluguel, militares, corporações multinacionais, criadores de gado e plantadores de soja mostrando como a luta pela preservação do meio ambiente é ligada à luta contra o racismo, contra o exacerbamento do abismo social, contra o capitalismo predatório, contra a crise hídrica e a crise da democracia.
No redemoinho do liquidificador banzeeiro rodopia uma escrita de grande impacto, não apenas no estilo, como na estruturação narrativa. Após seis angustiantes capítulos sobre o suicídio de jovens, Eliane nos tira do chão com o capítulo Alice, não por injetar esperança, ela é contra a esperança como motivadora da ação, mas por nos elevar o espírito com uma aventura singelamente espetacular.
Banzeiro Òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo é acima de tudo um livro manifesto que retrata em cores fortes e em carne viva a urgência de enfrentarmos a questão do clima; os vários pontos de não retorno já ultrapassados rumo a tornarmos o planeta um ambiente hostil. E aponta que se esperarmos de braços cruzados a atual geração de políticos, líderes empresariais e gestores para salvar o que resta, estamos fritos. É um livro difícil, pungente, comovente e obrigatório.
February 24, 2022
Mães Paralelas

Filme de Pedro Almodóvar – Espanha 2021
O filme Dor e Glória, lançado em 2019 parecia uma despedida de Almodóvar dos longas metragens. O protagonista, um cineasta de sucesso sofrendo um bloqueio de criatividade e vários problemas de saúde, faz as contas com o seu passado. As entrevistas de Pedro por ocasião do lançamento também apontavam para a aposentadoria. O cineasta falava de seus problemas na coluna e o quanto o trabalho no set exige fisicamente do diretor. Felizmente, foi alarme falso. Dois anos depois surge Mães Paralelas, filme que resgata vários elementos Almodovarianos. Outra surpresa: a obra é também lançada na Netflix (cinco meses após sua estreia nos cinemas), ao lado de outros 11 filmes do espanhol licenciados para a plataforma de streaming.
Almodóvar, de cara, faz uma homenagem à velha e boa película (embora Mães Paralelas tenha sido captado em digital). Janis, a protagonista, é fotógrafa, e as fotos que bate na cena de abertura se integram na arte dos créditos iniciais com a identificação de borda da emulsão Kodak Tri X, um filme em preto e branco muito utilizado na era analógica. Falando em fotografia, o filme todo é rodado com uma grande profundidade de foco, deixando nítidos todos os elementos dispostos nos vários planos do quadro. Esse efeito confere ainda maior impacto à cena final, em que ossadas encontradas em uma vala comum recuperam sua humanidade.
O fetiche do diretor pelas cores quentes é representado em Madres Paralelas pelo vermelho, que neste filme ganha, além da função estética, uma conotação política. Duas de suas atrizes fetiche, Penélope Cruz e Rossy de Palma também se fazem presentes. Outro elemento Almodovoriano é o melodrama calcado numa trama repleta de situações impossíveis e rompedoras de tabus, uma mistura de telenovela com arte questionadora. A figura da mãe, outro tema fetiche de Pedro, integra-se aqui à uma questão mais ampla, a de identidade, da conexão entre descendentes e antepassados que por sua vez se liga à questão política, mais evidente nesta do que em outras obras do diretor.
Penelope Cruz e Milena Smit são as mães paralelas.Mães Paralelas é estruturado em torno de duas tramas principais. A que figura em primeiro plano é o encontro entra Janis (40 anos) e Ana (20 anos), duas grávidas solteiras que se conhecem na maternidade, prestes a darem à luz e tornarem-se mães solteiras. As duas parem no mesmo dia e criam um vínculo especial. Em segundo plano, mas não menos importante, é o drama da autorização pela escavação de uma fossa, ou vala comum onde foram enterrados aldeões assassinados por falangistas durante a Guerra Civil Espanhola (para mais detalhes sobre a questão, leia O Silêncio dos Outros). Numa Espanha em que a extrema direita ressurge (como parte de um fenômeno mundial) e tenta vender narrativas alternativas sobre o que ocorreu naquele conflito fratricida, Almodóvar se posiciona contra o esquecimento e pelo resgate da dignidade dos assassinados e seus familiares. Faz isso de forma comovente e absolutamente criativa. A ligação entre as duas tramas aponta que os dramas individuais não podem ser separados dos dramas coletivos. Em outras palavras, quer queria quer não, o individuo, qualquer individuo que vive em sociedade, é um ser político.
O filme tem duas indicações ao Oscar nas categorias de atriz principal e trilha sonora. Penélope Cruz ganhou o prêmio de melhor atriz pelo papel de Janis no festival de Veneza.
February 17, 2022
A Casa do Baralho, ep. de hoje: O Presidente Vacinado

O presidente B foi pra Rússia, descansar um pouco do verão brasileiro. Bem quando uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia está prestes a estourar.
— E daí — disse o presidente ao ser questionado pelo timing — cada país tem os seus problemas com esse tipo de coisa, os americanos andaram também invadindo e anexando territórios de outros países, nós mesmo tivemos esse tipo de problema com o Acre, por exemplo.
Os jornais americanos apontam o motivo da viagem como uma desfeita para Bite-me que nunca o convidou para uma visita, nem mesmo ligou para B desde sua posse. Os economistas dizem que ele vai a mando da Bancada do Boi, garantir o fertilizante russo no prato dos brasileiros. Seus seguidores juram que vai numa missão de paz, salvar o planeta de uma terceira guerra mundial. A oposição alerta que viaja em busca do apoio russo nas eleições, na forma de bombardeio de fake news e hackeamentos durante a campanha. Por isso a inclusão do filho 02, coordenador do gabinete do ódio, na comitiva.
Mas não é nada disso. A Casa do Baralho descobriu, num furo espetacular, o verdadeiro motivo. Desde que seu mestre Tramposo foi vexatoriamente defenestrado da Casa Branca, B voltou-se a Rasputin como seu novo guru. O cara se mantém no poder há mais de vinte anos, num país com eleições regulares e limite do mandato presidencial. Enquadrou a oposição, a imprensa, o judiciário e o legislativo. B quer contratá-lo como coach. A primeira lição seria ver in loco como ele sustenta o blefe da invasão da Ucrânia para afastar a OTAN de seu quintal, sem disparar um tiro. B também havia criado situações de tensão no Brasil ameaçando golpe, mas todas as vezes acabou recuando de maneira vexatória. Seria uma aula de grande valia.
Logo que ficou a sós com o mandatário russo, Rasputin tocou uma sineta e uma enfermeira do exército entrou com uma bandeja prateada contendo uma seringa e um frasquinho.
— Essa aqui é a Sputnik, a melhor vacina contra a covid-19 — disse ela com sotaque carregado.
— A Putin que o pariu com essa seringa, eu não vou tomar vacina nenhuma! — apavorou-se B.
Vai sim, dizia o sorriso gélido do presidente russo.
— Tô fora, com licença — disse B, procurando a saída. Em um átimo de segundo foi atingido por um golpe de Rasputin que o dominou por trás e ainda arregaçou sua manga. B, apavorado, viu a enfermeira agulhando o frasco, sorvendo o liquido para dentro da seringa e se aproximando dele.
— Eu fiz todos os testes que tu pediu, deu negativo, usei máscara quando desci do avião. Por favor, seringa nããão!
— Se relaxar a musculatura vai doer menos — orienta a enfermeira.
B, sem outra alternativa, relaxou. E tomou a Sputnik.
— Essa foi a primeira lição de nosso programa de coaching. — explicou Rasputin. — Conheça bem o adversário, descubra seus pontos fracos e ataque por ali. A gente descobriu que tu tem um terror atávico de injeção e vacina. E preparamos uma pequena surpresinha. Esse é outro fator importante: ataque sempre de surpresa. Além dessas lições essenciais, você ganhou um bônus: tá vacinado. E não te preocupa, o segredo fica entre nós. A não ser que você saia da linha.
Continuará B no programa de coaching? Interferirão os hackers russos nas nossas eleições? E o presidente, seguirá na linha do Rasputin? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
February 10, 2022
Nação Serial Killer

O mundo do crime sempre foi uma fonte de grandes dramas, conflitos, suspense e mistérios na literatura, nas telas de cinema e TV. Golpistas, assaltantes, proxenetas, contrabandistas, traficantes antagonizam a Lei representada por policiais, detetives, procuradores. Entre os crimes, destaca-se (como não poderia deixar de ser) o atentado contra a vida. A irremediabilidade do ato, a qualidade definitiva da morte, alçou o homicídio a um protagonismo que ultrapassa a esfera do gênero policial. Crime e Pecado, de Dostoyevsky; O Estrangeiro, de Camus; O Túnel, de Sabato; O Jogador, de Altman; Ghost Dog, de Jarmusch são alguns exemplos de grandes obras que tentam entender o mecanismo que leva ao ato de matar, a psicologia do perpetrador. Se todos os outros crimes desafiam a lei dos homens – o contrato social do pacto civilizatório – o assassinato quebra ainda uma outra Lei, natural, a do amor à vida. Ceifar uma vida, qualquer vida, é uma violência que exerce terror e fascínio desde os tempos bíblicos, na vida e na arte.
Mas há alguns anos ceifar uma vida, deixou de ser suficiente. Há que produzir mais de um corpo para nos chocar e um novo protagonista surge em cena, o serial killer. Hanibal Lecter, Jack o estripador, Ted Bunty e uma série de assassinos seriais, da ficção e da morte real, assombram nossos corações, incluindo um serial killer “do bem” que assassina assassinos. Todos parecem possuir um intelecto superior, uma frieza sobre-humana, empatia zero e um sadismo monstruoso. São psicopatas. Que só deixam pistas nos cadáveres. Do lado da Lei, unidades especializadas escrutinam detalhes sobre as vítimas, tentam descobrir pontos em comum entre elas, para traçar um “perfil” do assassino, identificar uma assinatura. A série Mindhunter mostra a origem desses estudos sobre serial killers e seus perfis psicológicos.
O Rio de Janeiro, só na semana passada, produziu dois corpos. O do congolês Moïse Kabagambe e o do Brasileiro Durval Teófilo Filho. O primeiro foi amarrado e espancando até a morte num quiosque à beira mar onde trabalhava, quando foi cobrar os duzentos reais que lhe deviam; o segundo levou tiros de um vizinho militar que achou que era um ladrão, quando entrava no condomínio onde morava. Os dois somam-se à uma lista interminável de vítimas com um traço em comum: são negros. Qual o perfil do serial killer que mata negros? Quais complexos, temores, desvios mentais e comportamentais são despertados na mente desses carrascos pela pele escura?
Protestos após a morte de Moïse Kabagambe ocorreram em várias cidades do Brasil.No romance 2666 o autor chileno Roberto Bolaño aborda um fenômeno real que permanece um mistério até os dias atuais. Uma cidade no México que se torna, a partir de 1993, uma serial killer de mulheres. As mortes e desparecimentos de moças na cidade de Juarez acabaram cunhando um novo termo legal: feminicídio. E acabam suscitando outra pergunta: pode uma comunidade tornar-se uma serial killer?
Pode. Infelizmente, o Brasil não deixa dúvidas sobre isso.
Mas a comunidade (um bairro, uma cidade, uma nação) é a grande expressão do pacto civilizatório, o espaço nobre das trocas e interações que chamamos de convivência. Como pode esse ente civilizatório tonar-se um serial killer, pretender eliminar das trocas e interações os grupos que o compõem? A cidade de Juarez, no norte do México, fornece algumas pistas. A grande maioria das mulheres assassinadas ou desaparecidas eram ou tinham sido operárias das empresas maquiladoras. As maquiladoras, fenômeno surrealista do capitalismo globalizado, atraíram para Juarez hordas de desempregadas de todo o país, principalmente mulheres entre 17 e 30 anos de idade. A cidade, com esse crescimento abrupto, deixou de ser uma comunidade e tornou-se um entreposto de subtrabalho. É o capitalismo globalizado degradando o espaço urbano. Junta-se a isso o surgimento dos cartéis de drogas no México, sendo o de Juarez, um dos mais violentos. A cultura da crueldade e do machismo dos cartéis se instalou e impregnou a cidade tomada por uma população frágil de forasteiras.
Esses elementos contemporâneos de degradação das comunidades surgem, de forma distinta, também no Brasil. Além deles, o Brasil (como outras nações americanas) tem em sua origem um crime fundador: o extermínio dos povos originais (que não é assassinato em série, é genocídio) e a posterior importação em massa de africanos escravizados. Juntando os pontos, é possível vislumbrar como uma cidade ou nação pode tornar-se serial killer. Não é um paradoxo, é a desintegração, o autoaniquilamento desse espaço como ente civilizatório.
February 3, 2022
Mais uma Chance

Filme de Tamara Jenkins – EUA, 2018
Tamara Jenkins é uma atriz, roteirista e diretora que envereda por caminhos paralelos ou mesmo opostos ao mainstream. Após o sucesso do filme A Família Savage pelo qual foi nomeada para o Oscar de roteiro, levou onze anos para lançar seu próximo filme. É uma das realizadoras do cinema independente norte americano com visão original e alto domínio da direção de cena e roteiro que certamente merecer um maior reconhecimento. Mais uma Chance retrata um casal no limiar da idade fértil, obcecado para ter um filho, correndo (cada vez mais desesperado) para todos os lados na busca da realização desse grande desejo. O drama no qual os dois se envolvem, e acabam envolvendo a sua sobrinha, traz uma abordagem diferente sobre relações familiares e tabus impingidos pela sociedade. Embora marido e mulher ( Kathrin Hahn e Paul Giamatti) estejam próximos dos cinquenta anos, o filme trata, curiosamente, do amadurecer.
O trio protagonista (Gabrielle Reid, no papel da sobrinha) apresenta um trabalho magistral que confere naturalidade absoluta aos personagens. O elenco de apoio mantém o mesmo nível de interpretação. Além da segura direção dos atores, Tamara mostra que sabe tudo sobre onde colocar a câmera, quais lentes usar e como compor o enquadramento para construir sua narrativa cinematográfica. O plano de abertura do filme, um falso pin up, é um ótimo exemplo. Além de enganar/surpreender o espectador, acaba tecendo um comentário sobre os distintos métodos de reprodução. Mas o ponto forte de Mais uma Chance encontra-se no roteiro, mais precisamente, nos diálogos. Jenkins consegue escrever falas inteligentes que não soam pretensiosas, com brilho, mas sem artificialidade, parecem totalmente orgânicas aos seus locutores. Alguns desses diálogos fazem lembrar a verve afiada de Billy Wilder. Outro atributo da obra é tecer um drama repleto de conflitos, porém sem vilões. Todos os personagens, mesmo em momentos de antagonismo, são bem intencionados. Isso passa um tom de feel good movie para a obra, mesmo quando transitando por temas delicados.
Mais uma Chance (título original Private Life) foi lançado no Brasil em 2018 e está disponível no catálogo da Netflix.
January 27, 2022
What Did Jack Do?

Filme de David Lynch – EUA, 2017
What Did Jack Do, ou em português, O que Jack Fez, é um filme de curta metragem de David Lynch, sua obra cinematográfica mais recente. Lynch é um artista que foge do convencional e seu curta confirma essa fama. O nome da produtora que abre os créditos iniciais, Absurda, já oferece um vislumbre do que nos espera. E realmente, nos dezessete minutos de filme mesclam-se elementos do teatro do Absurdo, do cinema noir de meados do século XX, e do próprio surrealismo onírico opressivo Lynchiano, com doses de humor bizarro. O filme consiste numa única cena de interrogatório, no qual David faz o papel do detetive (além do roteiro, edição, desenho de som e a música). Jack, o suspeito, é um macaco-prego-de-cara-branca que ganha (por meio de uma computação digital meia boca) uma boca humana e um sinc quase perfeito com suas falas. Em meio a respostas e perguntas que não se conectam, recheadas de frases de efeito, clichês, e ditados populares, emerge uma lógica. Uma dessas perguntas transita do inquérito policial para o estado policialesco lembrando o quanto é tênue a fronteira entre os dois, ao evocar o macarthismo.
David Lynch contracenando com Jack O filme é preto e branco e acontece todo em um café de estação de trem. Pode ser considerado uma brincadeira cinematográfica, ou um exercício de estilo, o que não afeta em nada o prazer de assisti-lo. Não é o caso da legenda em português, que em duas ocasiões escorrega, perdendo-se entre a literalidade e o sentido na tradução dos jogos de palavras. Para sua defesa (da legenda), não é um diálogo fácil de traduzir, e optar pelo sentido pode não se revelar, neste filme, um bom caminho.
What Did Jack Do estreou em 2017 na Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, em Paris, acompanhando o lançamento do livro de fotos de David Lynch. Em 20 de janeiro, 2020, dia de aniversário de 74 anos do cineasta, foi lançado na Netflix, onde pode ser visto.


