Jaime Lerner's Blog, page 16

October 13, 2022

O Som do Silêncio

Filme de Darius Marder, EUA 2019

Poucos filmes conferem ao som  papel tão importante na condução dramática e narrativa quanto o O Som do Silêncio, (Sound of Metal). O protagonista é um jovem  músico, um baterista heavy  metal que no meio da turnê percebe que está perdendo a audição. Ao  consultar o médico tem dificuldade de absorver o fato que está caminhando a passos largos rumo à surdez. É por isso que o diretor, Darius Marder, usa o desenho de som para expor os conflitos, assumir o papel que muitas vezes é atribuído à uma câmera subjetiva, colocando o espectador no interior do personagem. Em O Som do Silêncio não somos convidados a ver pelos olhos de Rubem, mas a sentir através de seus ouvidos. E a maneira como  o desenho e a edição de som nos levam por este caminho é simplesmente genial e genialmente sensível. O responsável por este trabalho primoroso é Nicolas Becker que assina também o som de Gravidade, de Alfonso Curaon (2013) e A Chegada, de Denis Villeneuve (2016).

Contracenando com essa edição de som há um protagonista de carne e osso, Riz Ahmed, no papel de Rubem. Tirando algumas cenas de rompante, sua atuação é sensível, sólida, comovente. Seu olhar, sua postura, seus silêncios dizem muito e reforçam essa sensação de estarmos, em muitos momentos, em sua pele. Outro grande ator é Paul Raci, no papel de Joe, o administrador de uma comunidade de deficientes auditivos que tenta ajudar Rubem.

Mais uma qualidade interessante do filme é a ausência de vilões, e o fato de que essa ausência não prejudica em nada a intensidade dos conflitos que Rubem enfrenta. Ao contrário, torna as decisões que ele toma, decepcionando pessoas que muito lhe ajudaram, em momentos profundamente dramáticos. Há uma sensação (latente, porém constante)  que Rubem, perdido no enfrentamento do seu problema, faz as escolhas erradas, tentando driblar a peça que o destino lhe pregou, e vai se dar mal. O final, no entanto, é mais do que surpreendente.

O Som do Silêncio concorreu ao Oscar em seis categorias, entre elas Melhor  roteiro e Melhor Filme, e foi premiado em Melhor Montagem e Melhor Som. O filme pode ser visto (e ouvido!) na Amazon Prime.

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Published on October 13, 2022 05:41

October 6, 2022

O Vazio do Copo Meio Cheio

O Grito, de Edvard Munch

Como encarar o resultado do primeiro turno das eleições, como absorver o impacto e se colocar de pé novamente para enfrentar as quatros semanas até o desfecho do pleito? Há gente que se recusa a falar em derrota. Lula, afinal, foi o mais votado, faltou um tantinho assim, 1.6% dos votos, para ser eleito já no primeiro turno. No legislativo, seus correligionários formam a  segunda maior bancada. Há também uma outra forma de olhar para o copo e vê-lo meio cheio: na eleição de 2018 Bolsonaro venceu o primeiro turno com 46,03% dos votos válidos. Agora, em 2022, após quatro anos na presidência e utilizando a máquina do governo de maneira escancarada em sua campanha, caiu para 43.2% e o segundo lugar. De fato, muitos analistas comentavam como as grandes benesses que distribuiu no período eleitoral, não surtiam efeito (baseados em pesquisas que se revelaram erradas).

Há porém um grande vazio nessa metade de copo aparentemente cheia. Para mim, desde o início das campanhas, o espantoso não era o presidente não conseguir angariar mais intenções de votos além dos 30%, 35% que as pesquisas indicavam. O espantoso era ele estar conseguindo, apesar de tudo que fez na pandemia, das mentiras, da negligência, do escárnio e desprezo pelo sofrimento e a vida dos brasileiros, um terço das intenções de votos. O normal seria ele nem conseguir chegar até o fim do mandato. O normal seria ele ficar isolado e cair, abraçado a um pequeno séquito de fanáticos, assim que demitiu o ministro Mandetta. E nem menciono aqui os ataques ao meio ambiente, aos povos originais, à democracia, à quem tentava investigar as rachadinhas de sua família.

Mas com a abertura das urnas do primeiro turno, viu-se que não era um terço, era quase metade dos votos. Como pode? Quase metade dos eleitores brasileiros votaram para lhe dar mais um mandato. E elegeram para o Congresso as figuras mais bizarras/nefastas que passaram pelos seus ministérios, uma mistura de Torquemadas e escravocratas. Não aceito a tese de que o povo não tem memória, não tem conhecimento, é fácil de ser enganado. Não após os quatro anos que estamos vivendo.

Resta então a constatação que virtualmente metade de meus compatriotas se sente representada pelo genocida e normaliza a morte de setecentas mil pessoas pela conduta criminosa de um “líder” que coloca na conta do congresso, do STF, da mídia, da guerra na Ucrânia a sua imensa incompetência. Essa constatação gera um vazio grande demais para suportar. E é justamente desse vazio que se deve tirar as forças para se levantar e lutar, cada um com seus meios e sua capacidade, para que ele desocupe o planalto. Não nos livraremos do bolsonarismo, mas ao menos mandaremos embora o presidente genocida.

Não se trata de “pensar positivo”, trata-se de “pensar combativo”.

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Published on October 06, 2022 07:18

September 29, 2022

MO

Série, criação de Mohammed Amer e Ramy Youssef, EUA, 2022

Mo é um palestino que nunca pisou na Palestina, nasceu no Kuwait e de lá fugiu ainda menino com a família para os Estados Unidos. Mo é Mohammed, abreviação muito útil para facilitar a vida em solo norte americano. Há mais de vinte anos que seu pedido de cidadania está tramitando e Mo sustenta a família transitando na margem da (i)legalidade. Ele está, mas não está no sistema. Essa situação semi-kafkiana é explorada com humor pelo criadores da série  Mohammed Amer e Ramy Youssef que começaram suas carreiras como artistas de stand up. Talvez por isso a série tenha uma estética de sitcom, embora seja uma comédia dramática.

Por trás das situações insólitas, dos vários choques culturais e dos dramas familiares que propiciam o material para o humor sardônico, inteligente de MO há uma tragédia histórica da qual pouco se fala e se falou na época em que aconteceu. Em 1990, Saddam Hussein, ditador máximo do Iraque, invadiu o Kuwait, para se apoderar dos seus poços de petróleo. Naquela época o Kuwait já se consolidava como país acolhedor de trabalhadores palestinos que mesmo sem a cidadania, viviam ali há décadas integrados à sociedade local. Com a invasão iraquiana, um grande número fugiu. O exército de Saddam acabou derrotado por uma força internacional na operação Tempestade do Deserto, e as coisas pareciam voltar ao normal. Não para os palestinos. Durante a guerra, o líder da OLP, Yasser Arafat, havia apoiado Saddam Hussein e os palestinos do Kuwait acabaram pagando o pato. Encarados como quinta coluna, inimigos do povo, em poucos meses a grande maioria dos 350.000 palestinos que moravam no Kuwait foram expulsos. Alguns foram presos e brutalmente torturados. E o mundo calou-se.

Mohammed Amer (com nove anos de idade) e sua família estavam entre esses palestinos. E a série resgata essa tragédia usando elementos da história vivida pelo criador e também ator protagonista de MO. Os Amer foram morar em Houston, Texas, em Alief, um dos bairros mais multiculturais da cidade. E Mohammed fez questão de situar e filmar boa parte da série nesse bairro. A primeira temporada termina com um enorme pega ratão, o que indica uma continuidade. MO, série que trata com leveza temas parrudos como identidade, diversidade e superação, pode ser vista na Netflix.

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Published on September 29, 2022 06:53

September 22, 2022

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Pra Inglês Ver II – A Missão

Este episódio é sequência direta de Pra Inglês Ver. Se você não leu, clique aqui.

E o presidente B, foi à Londres. E acreditem ou não (afinal, a verdade tornou-se algo muito subjetivo nos últimos anos), atingiu o seu intuito. Parecia uma missão impossível, extrair o segredo da falecida rainha. Em primeiro lugar, tinha que descobrir as palavras mágicas lendo um livro. E em Inglês. Para isso levou seu filho, o 03, formado no idioma do Bardo na prestigiosa Mcdonalds. Percorreram várias livrarias antigas, ele já estava tonto de tanta letra, mas não acharam o dito volume que ensinava como roubar os segredos dos mortos.

Ao chegar ao velório, B percebeu que de nada teria adiantado ter aprendido a fórmula. Ao contrário da Condessa, a Rainha Elizabeth estava em um caixão fechado e ainda por cima, de chumbo. Além disso, não haveria como se aproximar, uma barreira de guardas, câmeras e cordões cercava o féretro, principalmente depois que um  maluco correu para tocar no caixão, no dia anterior.

B Cumprimentava as pessoas apático, com um só pensamento em mente, desesperado por ter chegado tão perto e sair de mãos vazias. Estava tão decepcionado e obcecado que em vez de assinar seu nome e o da Micheque no livro de condolências, rabiscou “o segredo dos mortos”.

Acabrunhado, voltou ao hotel, não sem antes atacar uma jornalista só por ter perguntado se estava ali para fazer campanha. Estava ali para fazer algo muito mais importante, pensou, mas infelizmente, o imbrochável havia falhado.

No meio da noite acordou sentindo um frio na espinha. Na penumbra da madrugada londrina viu a porta se abrir e uma senhora de camisola branca entrar na suíte, aproximando-se como se deslizasse sobre o carpete. B ficou com os pelos das sobrancelhas em pé. Já ia soltar um grito. Ela fez sinal que ficasse quieto.

– Eu sei por que você veio ao meu enterro – disse a Rainha. B tentou explicar que não era nada disso daí que a mídia estava escrevendo, mas ela tornou a encostar os dedos nos lábios.

– Fica frio! – sussurrou e ele pensou: frio?, to gelado.

– Vim aqui pra te revelar o segredo do poder longevo, só pra tu me deixar descansar em paz.

B não acreditou no que estava ouvindo. Pensou em beliscar a Micheque que ronroncava ao seu lado, mas ficou com medo que ela acordasse e botasse tudo a perder. Congratulou a si mesmo por ser tão obsessivo. Deus me ama, pensou.

– Presta atenção no serviço: o segredo para manter-se no trono por sete décadas é…

Fez uma pausa para criar suspense e ele quase enfartou.

– …não ter apego ao poder.

No dia seguinte um abatido presidente perdeu a hora da reunião com o secretário da ONU e fez o discurso mais sonolento que a assembleia das Nações Unidas já viu.

Conseguirá o presidente se livrar do seu apego ao poder para ganhar mais quatro anos no cargo?  Logrará convencer o Brasil que vencerá essas eleições, e no primeiro turno? Não perca no próximo episódio de A Casa do Baralho.

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Published on September 22, 2022 06:23

September 15, 2022

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Pra Inglês Ver.

A Rainha Elizabeth, após 96 anos de vida e 70 de reinado, faleceu. Uma de suas últimas manifestações foi parabenizar o Brasil, no 7 de setembro, pelos duzentos anos da independência. A missiva foi endereçada, obviamente e protocolarmente, ao chefe da nação. O Presidente B, que após a queda de Trampo só levava pau na área internacional, ficou comovido. Essa mulher deve ter paixão por mim, pensou, todo mundo me atacando por ter usado a data da independência pra comício e ela me congratulando. No dia seguinte a soberana faleceu. B decretou três dias de luto nacional e proclamou que “Elizabeth foi uma rainha para todos nós.”

Surgiu então a questão de ir, ou não, ao funeral da Rainha. Diz o ditado que ir ao enterro de alguém é a maior prova de amizade desinteressada, pois não se espera que o falecido devolva o favor. Mas amizade desinteressada passa longe do léxico do presidente. Parte de seus aliados argumentou que ele não deveria ir, já chega ter que ausentar-se, em plena campanha para reeleição, para discursar na ONU. Outra parte defendia que sua presença no ato fúnebre ajudaria a reverter o desprestígio internacional, com imagens do presidente entre outros Chefes de Estado sendo fartamente utilizadas na campanha. Os contrários à ida alegaram que ele poderia ficar isolado e isto seria um tiro no pé, e ademais, ele precisava era ir às ruas, convencer o eleitor no Brasil e não produzir imagens de um enterro distante pra inglês ver.

B decidiu ir. E por nenhum dos motivos mencionados acima. Dizem as más línguas que ele foi sondar um destino para a fuga, caso perca as eleições. Mas tampouco foi isso. A Casa do Baralho traz com exclusividade a verdadeira motivação do presidente.

Quando muito jovem o menino B viu um filme de terror no qual um oficial russo busca extrair o segredo das cartas de uma nobre idosa. Movido pela ganância e viciado no jogo, ele tanto exorta e ameaça a anciã que esta acaba morrendo. O desesperado capitão Herman vai ao velório da condessa Ranevskaya após consultar o livro: como roubar os segredos dos mortos. O ponto mais aterrorizante do filme (A Dama de Espadas, de 1949, baseado em conto homônimo de Pushkin) é o momento em que o oficial chega perto do caixão, sussurra as palavras mágicas e a falecida abre de repente os olhos. Esta cena marcou o jovem B, que anos mais tarde também seria capitão do exército. E ainda anos mais tarde seria eleito presidente do Brasil e quatro anos depois estaria desesperado para não perder o poder, após um calamitoso mandato, assim como Herman estava desesperado para faturar no baralho. O problema é que para conseguir seu intuito, B tem que, antes de mais nada, consultar um livro.

Conseguirá o presidente extrair da falecida Rainha o segredo do reinado longevo? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on September 15, 2022 06:57

September 8, 2022

Nas Muralhas da Fortaleza

Filme de Hwang Dong-Hyuk, Coreia do Sul, 2017

O ano é 1636, o local, o reino de Joseon, na península que hoje chamamos de Península da Coreia. O Rei Injo está espremido entre duas dinastias que disputam o domínio da China: a Quing e a Ming. O exército Quing invade a península e o Rei consegue fugir para uma fortaleza nas montanhas, ao sul da capital. Sitiado com sua corte, poucos soldados e os aldeões da fortaleza, Injo deve decidir se capitula para as exigências dos Quing ou os enfrenta. Em suma, tem que optar pela sobrevivência com humilhação ou uma provável morte com dignidade. Curiosamente, este conflito (filosófico, mas também muito pragmático) é o cerne dramático do filme, e não a própria guerra que espreita logo abaixo das muralhas. Dois ministros conduzem esse debate, lutando pela atenção do Rei e dos vários outros conselheiros que o cercam, representando duas facções políticas. Junta-se aos conflitos político e militar o conflito social, o abismo entre nobres e o povo que padece de fome e frio durante o sítio. Este terceiro conflito insere um olhar contemporâneo no filme histórico que se passa em uma Ásia feudal.

A densidade dramática, assim como as muralhas da fortaleza, é solidamente construída. Percebe-se a mão segura e a sensibilidade apurada do diretor. Os figurinos e cenários, as cores do inverno na montanha gelada, as composições rigorosas dos planos, o uso de lentes longas que borram a profundidade, além do trabalho preciso dos atores, fazem parte dos instrumentos nessa orquestração que trata questões universais, atuais abordando uma realidade distante num episódio histórico quase esquecido.

O diretor Hwang Dong-Hyuk alcançou fama mundial com sua série Round 6. Assim como a série, o filme Nas Muralhas da Fortaleza, adaptado do romance histórico Namhansanseong (2007) de Kim Hoon, pode ser visto na Netflix.

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Published on September 08, 2022 05:49

September 1, 2022

RRR

Filme de S.S. Rajamouli, Índia 2022

RRR é um filme espetacular, ou melhor um filme-espetáculo. Sua trama, roteiro, personagens, ritmo, cinematografia e arte estão todos a serviço do espetáculo, e o espetáculo é alimentado por planos mirabolantes,  uma explosão de cores e efeitos especiais e, principalmente, pelo que há de mais essencial na arte cinematográfica: o movimento.

RRR é um filme indiano, e fiel a tradição cinematográfica do segundo maior país produtor de cinema do planeta, permite-se mesclar musical com drama, ação, fábula, mitologia e…política. Nada parece muito profundo no filme, tudo é exagerado. Os vilões são radicalmente malvados e os heróis são ingênuos ao extremo, os conflitos são melodramáticos,  os diálogos descritivos, os cenários e as cores pululam da tela para dentro de nossos olhos. Rajamouli, porém,  igual a um Almodóvar ou Baz Luhrman, amalgama todos esses elementos numa obra de arte extravagante que abriga entretenimento e conteúdo e deixa o espectador extasiado pela maestria da movimentação da câmera e dos elementos em cena. Essa maestria é que opera a mágica de carregar-nos para dentro da fábula cinematográfica, fazer-nos acreditar  e sermos impactados pela coreografia mirabolante.

Mas não é só de espetáculo que RRR se alimenta. Situando a trama no passado, quando a índia ainda era uma colônia britânica, o filme fala sobre racismo, classes, imperialismo, e natureza. E então entendemos que a vilania exacerbada representa uma condição – a dos dominadores – e que essa condição pode corromper inclusive indivíduos bons em sua essência. É interessante que apesar do desprezo pelo dominador a obra não deixa de abordar o fascínio do colonizado pelo europeu.

Os animais que aparecem no filme são todos gerados por computador, ou seja, não houve maus tratos aos animais.

O filme teve sucesso estrondoso na Índia e chamou a atenção do espectador ocidental. O ideal é vê-lo em tela grande, numa sala de cinema. Para o público brasileiro ele está disponível na Netflix.

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Published on September 01, 2022 07:20

August 26, 2022

O Homem do Castelo Alto

Série, criação de Frank Spotniz, EUA 2015 – 2019

No universo das séries da Amazon O Homem do Castelo Alto se destaca, imponente, fazendo jus ao nome. A série, de 40 episódios distribuídos em 4 temporadas, baseia-se no romance homônimo de Philip K. Dick, autor de várias obras adaptadas para as telas, a mais conhecida: Androides Sonham Com Ovelhas  Elétricas?;  no cinema, Blade Runner, de Ridley Scott. Scott também assina a produção executiva de O Homem do Castelo Alto.

O ano é 1962 (ano de publicação do romance) e os países do eixo venceram a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos foi dividido entre alemães e japoneses, com uma estreita zona neutra no centro. Washington foi destruída por uma bomba atômica. Nova York é a capital do Grande Reich e São Francisco é a sede das forças de ocupação japonesa. A relação entre as ex-aliadas começa a ser corroída por sinais de uma iminente guerra fria (qualquer semelhança entre a Alemanha dividida entre União Soviética e Estados Unidos no pós-guerra do mundo real, não é coincidência). Mas a deterioração nas relações entre o Império Japonês e o Terceiro Reich governado por um Hitler envelhecido, não é o centro da série. Seu eixo principal são os rolos de filmes contrabandeados para o tal Homem do Castelo Alto. Qual o conteúdo desses filmes, onde são produzidos, porque constituem uma ameaça tão grande a ponto de as policias secretas terem como prioridade a captura do Homem do Castelo Alto e seus filmes e ninguém,  além do próprio Fuhrer, ser autorizado a vê-los? Esse mistério mantém o espectador cativo na primeira temporada, enquanto são introduzidos os personagens principais e as “leis” que governam essa distopia de realidade alternativa.

Juliana Crain (Alexa Davalos) e os filmes que deixam em polvorosa o Reich.

Na medida em que a trama avança, a série torna-se mais complexa, questionando, de forma extremamente criativa se somos o que somos talhados pelas circunstâncias do tempo e local em que vivemos, ou se manteríamos a mesma personalidade em outras realidades. Além da sofisticação dos temas, a série tem a marca de seu produtor no rigor  dos enquadramentos, da direção da arte e principalmente da luz. A estética nazista, a cultura nipônica e os anos 1960 nos EUA abrem as portas para uma mistura ousada e um visual eloquente, quase exuberante.

A jovem Juliana Crain (Alexa Davalos) é a protagonista da série, no entanto os personagens mais instigantes são o oficial nazista Joe Smith (nome equivalente a João  Silva no Brasil, ou seja, um americano comum que ascendeu na hierarquia do novo regime) e o ministro japonês Nobuske Tagomi, magistralmente interpretados por Rufus Sewell e Cary-Hiroyuki Tagawa.

No romance, são livros que deixam o Reich em polvorosa, na série são filmes. Em ambos os casos trata-se de veículos de conhecimento, cultura e imaginação, o pesadelo de ditaduras e ditadores. Essa mescla de política, mistério, história, filosofia e fantasia cria uma obra impactante, que em alguns momentos perde força quando os dramas dos personagens escorregam para um terreno telenovelesco. Das quatro temporadas, a primeira é a mais eletrizante. Mas se você começar a assistir, vai ser difícil de largar.

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Published on August 26, 2022 08:24

August 18, 2022

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Escândalo

— Espelho, espelho meu, existe neste reino alguém mais esperto do que eu?

B estava postado na frente do espelho mágico, presente do amigo RasPutin, ostentando no peito a faixa presidencial e faceiro pela grande vitória: a PEC das Bondades fora aprovada por esmagadora maioria em ambas as casas legislativas.

O espelho, programado para só dizer verdades, respondeu:

— Em primeiro lugar, presidente, isso não é um reino. É para ser uma república, mas na real é A Casa do Baralho. E a pergunta, na real, deveria ser: existe alguém mais nefasto do que eu?

O presidente B não tolerava ser contrariado, ainda mais por sua própria imagem refletida, embaralhando esquerda e direita. Seu primeiro impulso foi de pegar o 38 e dar um tiro no espelho, mas logo refletiu que isso daria sete anos de azar. Chamou o ordenança e mandou devolver o presente para a fábrica e trocar por outro. O ordenança disse não saber se ainda estava na garantia. B mandou trocar o ordenança.

Como ignorar a esperteza de sua manobra? A ideia surgiu durante a pandemia, quando o congresso lhe empurrou goela abaixo um auxílio emergencial para os mais pobres. Altamente contrariado, percebeu, porém, que a medida produziu uma bombada nos índices raquíticos de aprovação de seu governo. Agora, com o ex-presidente L liderando todas as pesquisas, não tinha outra opção se não retomar esse auxílio, porém muito mais revigorado. Sabia que nenhum deputado ou senador ousaria votar contra uma medida como esta na véspera da eleição. O TSE não se atreveria enquadrar como crime eleitoral uma PEC que teve tamanha aprovação, juntando oposição e situação. Ele mandou o teto de gastos para as favas, aumentou de 200 para 600 reais o auxilio, aumentou o número de beneficiários, ainda deu vale gás para as famílias e ajuda para os caminhoneiros. Tudo isso valendo apenas entre agosto e dezembro, o início da campanha eleitoral e o fim de seu atual mandato. Era como aquela compra de votos que os coronéis davam pro sujeito a bota  de um só pé, a outra dariam se ganhassem a eleição, só que muito mais sofisticado. Foi o primeiro suborno eleitoral com registro no diário oficial, sem maquiagem nem subterfúgios, e melhor ainda, tudo por conta do orçamento da União, ou seja, quem comprava os votos era ele, quem pagava era o próprio vendedor.

Odiava ter que ajudar os pobres, mas era por uma causa nobre. Para satisfazer também o mercado, bolou um esquema para os bancos poderem oferecer empréstimos aos beneficiários do auxilio, já descontando as parcelas do mesmo.

— Não é um verdadeiro golpe de mestre? — Regozijou-se perante sua imagem espelhada.

— É um dos maiores escândalos de compra de votos na história republicana.

B perdeu as estribeiras com o espelho. Seu ministro da defesa, ouvindo os berros acudiu imediatamente.

— O que foi Presidente?

— Esse espelho “mágico” que o Rasputin me deu, tá de sacanagem comigo!

— Que presente de grego, hein chefe.

— Grego?!?!, já disse que foi o RasPutin que me deu!

— Grego, russo,  que importa o que diz o espelho, ele vota?

— Claro que não.

— Então,  não é com a opinião dele que a gente tem que se preocupar.

Conseguirá B ignorar as verdades do seu espelho? Conseguirá o eleitor mais pobre driblar a arapuca do suborno? Conseguirá o judiciário dormir à noite com esse escândalo eleitoral batendo na porta da sua consciência? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!!!

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Published on August 18, 2022 04:15

August 9, 2022

Nunca Deixe de Lembrar

Filme de Florian Henckel Von Donnesmarck, Alemanha – 2018

Filme que inicia com densidade dramática fora do comum, e uma estética (arte, fotografia e misancene) do mesmo nível. Em Dresden de 1937 um menino e sua jovem tia visitam a exposição de arte degenerada, uma exposição “educativa” de obras que se desviam da cartilha  nazista. Esse mesmo menino aprenderá, após a guerra, a cartilha do realismo socialista na Alemanha Oriental. E quando adulto descobrirá que mesmo no ocidente democrático, há cartilhas (chamadas de escolas) que promovem e marginalizam certos tipos de artes.

Mas não é só da arte que o filme trata, nem apenas das consequências dos regimes ditatoriais. O filme trata de almas sensíveis, que  buscam sobreviver aos seus traumas, e ao mundo oprimente ao redor; fala da aleatoriedade do destino, e por isso seu título original, Obra Sem Autor é tão sugestivo; trata da ética de quem conduz os processos terapêuticos e principalmente fala da liberdade, aquela que atinge o grau máximo quando se exerce a imaginação, mergulha-se no processo criativo sem as amarras dos ismos.

Há cenas de rara beleza no filme, uma delas inclusive é a sequência de morte e destruição que cercam o menino Kurt. O choque entre estética e conteúdo nesta sequência cria um impacto poderoso. Infelizmente, o filme não mantém a mesma densidade da primeira parte, o ator que encarna o Kurt mais velho  não tem o olhar penetrante do menino Kurt, e a trama não consegue aprofundar nos conflitos estabelecidos no terço inicial, deixando a sensação de uma  promessa não cumprida. Mesmo assim é um filme que deve ser visto, pela complexidade dos temas abordados e pelos momentos altos do roteiro, atuação, montagem e cinematografia.

Florian Henckel é também o diretor do multipremiado A Vida dos Outros de 2006. A trajetória do protagonista Kurt é baseada na vida do pintor Gerhard Richter, nascido em Dresden em 1932.

Nunca Deixe de Lembrar pode ser visto na Netflix.

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Published on August 09, 2022 06:51