Jaime Lerner's Blog, page 13
June 8, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Embaralhados

Finalmente o Presidente L assumiu o protagonismo da terceira temporada. Por quatro episódios, a sombra da temporada passada (que se recusava a se reconhecer como tal) pairou sobre A Casa do Baralho. L que estava ocupado em compor seu ministério, recompor o status internacional do Brasil no mundo, e outras coisas mais que afundaram na administração anterior, resolveu dedicar a semana passada a retomar também o protagonismo da série, protagonismo conquistado arduamente nas urnas.
— Não é possível — reclamou ele aos seus assessores — que eu tô a seis meses no poder e só falam desse B nessa p… de A Casa do Baralho.
O primeiro passo foi convocar uma reunião dos países da América Latina para retomar o tema da integração. E nela pagar pau para o presidente da Venezuela Mauduro, e mais ainda, declarar que o regime chavista é democrático e que as perseguições políticas, as prisões, exílios, etc., não passam de uma narrativa. Presidentes de direita e de esquerda presentes aqui na cúpula tiveram que discordar do anfitrião. Ele ainda os rebateu dizendo que não sabia quais jornais eles liam.
Enquanto L discutia se a dita ditadura era realidade ou narrativa (termo que ganhou seu significado canhestro no governo anterior), a Câmara dos Deputados praticamente passou o aspirador nos ministérios do meio ambiente e dos povos indígenas, sugando o poder dessas pastas. Quando as respectivas ministras botaram a boca no trombone e chamaram L para interferir, os deputados ameaçaram deixar caducar a Medida Provisória que definia a estrutura ministerial do novo governo. Se eles não a aprovassem até o dia 01/06, L teria que governar com a estrutura ministerial de B, ou seja, seus 37 ministérios virariam 23 e sua frente ampla viraria bola nas costas. Como se não bastasse, a casa ainda resolveu ressuscitar o tema do marco temporal para a demarcação das terras indígenas, antes que o STF votasse a matéria. Embaralhando assim os roteiros das duas temporadas e tirando cartas importantes da mão do executivo, o legislativo deu o recado: não adianta viajar o mundo e participar do G-7, G-20, BRICS, não adianta tentar resolver o aquecimento global e a guerra na Ucrânia, enquanto aqui em casa os deputados passam fome. Quem tem que ser pacificado primeiro é o Centrão. E o presidente teve que se emendar, liberando emendas parlamentares para todos os bolsos, prometendo dar atenção pessoal à articulação com o congresso e ainda tendo que consolar as furiosas ministras das pastas esvaziadas.
Para embaralhar ainda mais o roteiro, a Policia Federal fez uma operação em que prendeu um aliado muito próximo do Presidente da Câmara. Isso o deixou possesso, bradando para os quatro ventos que foi uma ação deliberada do planalto para o intimidar. O ministro da justiça teve que ir até a sua casa para lhe garantir que o governo não tinha ingerência nenhuma sobre a ação da PF. E o STF decidiu por unanimidade arquivar uma denúncia antiga apresentada contra ele.
— Veja bem, com tanta trapalhada acontecendo, tá assegurado meu episódio na Casa do Baralho. — comentou o presidente.
— Não sei não… — questionou um assessor— os escândalos de B costumavam ser mais suculentos, como nomear o Advogado da União para ministro do STF.
— Bem lembrado! — E o presidente prontamente mandou publicar no diário oficial a indicação de seu fiel advogado, desde 2013, para a vaga disponível no Supremo Tribunal Federal.
Seguirá L tomando emprestados termos e expedientes do seu antecessor? Conseguirá afastar as sombras e aplacar a fome do Congresso? E o mais importante, logrará desembaralhar as cartas e os roteiros? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
June 1, 2023
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May 25, 2023
Lançamento de Monumental!

Ontem Monumental! O Restauro de Um Símbolo, encontrou o olhar do público pela primeira vez. E foi lindo. Deu para sentir que o filme funciona e consegue cativar. A maioria dos comentários foi no sentido de surpresa, pela obra entregar e abranger muito mais do que as pessoas esperavam de um documentário sobre uma escultura e o seu processo de restauração. Outra surpresa manifestada foi em relação à forma escolhida para a narrativa da obra e como todos os temas, os fatos e processos históricos se concatenam e se comunicam através dessa estrutura narrativa. Carlos Cortes, filho do lendário Paixão Côrtes disse que o filme conta a História, contando uma história. Verônica Di Benedetti, responsável técnica pelo restauro na equipe do Sinduscon-RS, falou em poesia que deu vida ao bronze. Várias pessoas elogiaram o texto e como este se relaciona com os distintos depoimentos.
Cabe aqui um agradecimento e reconhecimento à equipe que trabalhou duro para chegar a esse resultado. A equipe de campo, com Alan Mendonça e Marcelo Curia nas câmeras e drone, Roberto Coutinho, Nina Mayers e Guilherme Cássio no som direto e Carlo Carlota na assistência de direção e produção. A equipe de pós, principalmente o editor Raoni Ceccim que foi um parceiro incansável, criativo e crítico na construção dessa narrativa (eu sempre digo que o roteiro de um documentário é escrito até o último corte), o desenho de som e a mixagem de Augusto Stern e Fernando Efron e a trilha musical do Chico Pereira. Duas consultorias muito importantes, a do Renato Dalto no texto e da Alice Trusz na pesquisa de material de acervo. O pessoal de pós de imagem, o André Wofchuck na cor e o Pedro Marques na supervisão e efeitos, que operou milagres tecnológicos com as fotos e filmes de acervo de distintas fontes, em vários formatos e resoluções. Vale ressaltar o maravilhoso trabalho do ator, Carlos Cunha que deu vida ao texto. E coordenando toda essa galera, em todas as fases, da pré até os lançamentos, a Cintia Helena Rodrigues na produção executiva. Vale mencionar também o apoio primoroso de Vitor Ortiz e Denise Viana Pereira que coordenaram a administração do projeto junto ao Pro-Cultura. E agradecer ao Zalmir Chwartzmann que me convidou para criar Monumental! O Restauro de Um Símbolo.
A exibição na Capitólio foi a primeira perna de três eventos de lançamento do filme, a segunda acontece na semana que vem na Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana. Uma sessão com debate, com a participação do historiador de arte José Francisco Alves, a equipe do Sinduscon-RS e do filme, com mediação da jornalista e curadora Mônica Kanitz. A sessão será às 19 horas, com entrada franca. Ali vai ser possível sentir o público ainda mais.
Monumental! O Restauro de um Símbolo é uma realização do Sinduscon-RS e Associação Sul Riograndense da Construção Civil, produção da Spectra Filmes. Tem o patrocínio da GERDAU e financiamento da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul pelo Pro-Cultura.
Abaixo o teaser do filme
May 18, 2023
Monumental! O Restauro de um Símbolo

Na próxima semana mais um filme meu virá ao mundo, lançado em duas salas icônicas de Porto Alegre – as Cinematecas Capitólio e Paulo Amorim. E o filme é justamente sobre um dos monumentos mais icônicos da capital, O Laçador, de Antonio Caringi.
Em 2019 fui “convocado” por Zalmir Chwartzmann, do Sinduscon-RS, para pensar um projeto de filme sobre o Laçador, por ocasião da restauração da escultura. Um dos temas que me fascinam é a questão de identidade – como num país multiétnico como o Brasil as distintas culturas se relacionam, convivem, integram-se e como as identidades se forjam nesse caldo cultural. Um símbolo como O Laçador tem muito a ver com esse tema.
Fiz uma pesquisa inicial e um pré roteiro para inscrevermos na LIC, a Lei de Incentivo à Cultura do RS. E então veio a pandemia. Os projetos (do restauro e do filme) foram retomados no segundo semestre de 2021. A ideia era fazer um documentário de média metragem. Durante as filmagens e principalmente na edição, percebi que tinha um longa em mãos. Essa é uma qualidade cativante do documentário, você entra numa aventura que sabe onde começa, mas não sabe quais caminhos vai tomar. E o Laçador me levou do pampa sul rio-grandense para as ruas tumultuadas da República de Weimar que desembocou na Alemanha Nazista e na Segunda Guerra Mundial, me levou para o Parque Ibirapuera e pelos dois governos de Getúlio, o ditatorial e o democrático – períodos repletos de entreveros, me levou pelo positivismo e seus monumentos, pelo espaços urbanos de Caxias, Pelotas e Porto Alegre, pela paixão de Paixão Côrtes pelo Rio Grande campeiro, e pela paixão de Antonio Caringi pela arte de esculpir.
A equipe mirando o espaço urbano. Foto de Marcelo Curia.As encruzilhadas que ligam todos esses caminhos ao Laçador compõem um mosaico. Mosaico feito de imagens atuais, riquíssimo material de acervo depoimentos de familiares de Caringi, de acadêmicos das Artes, da História e da Antropologia, de pessoas que trabalharam diretamente na restauração. E de um trabalho sensacional do ator Carlos Cunha.
Monumental! O Restauro de um Símbolo é uma realização do Sinduscon-RS, produção da Spectra Filmes. Tem o patrocínio da Gerdau e financiamento da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul pelo Pró-Cultura. As sessões de lançamento acontecem no dia 24/05 às 19 horas na Cinemateca Capitólio e no dia 31/05 às 19 horas, sessão com debate após o filme, na Cinemateca Paulo Amorim, da Casa de Cultura Mário Quintana. Não perca!
May 11, 2023
Meu Pai

Filme de Florian Zeller – França, Inglaterra 2020
Muito se escreveu, se falou e discutiu sobre o que realmente pode se considerar uma obra de arte. Para mim o critério é simples: quando você tem contato com uma obra que te eleva o espirito e ao mesmo tempo te provoca profunda reflexão, tá aí uma obra de arte. Meu Pai, do dramaturgo, escritor roteirista e diretor francês Florian Zeller, se enquadra com distinção nessa categoria. Ainda que tratando de um tema difícil – o envelhecimento e a deterioração das faculdades mentais, o filme te toca, e anima a alma pelo tanto de arte de que ele contém.
Essa arte se manifesta fortemente na atuação, principalmente as de Anthony Hopkins e de Olivia Colman, que fazem os papeis de pai e filha no filme; na qualidade dos diálogos que ajuda ainda mais os atores em seu trabalho magnífico (e nutre-se também desse trabalho numa retroalimentação); e pela maneira original e altamente sofisticada com que o diretor estrutura o filme e usa as ferramentas específicas do cinema para transportar e envolver o espectador no mundo interior do protagonista. Inicialmente essa estrutura causa estranhamento, até o momento em que se capta o que realmente está acontecendo. O artifício acaba construindo um diálogo muito especial entre realizador e plateia. Uma interação silenciosa, porém, muito forte.
Meu Pai – Olivia Colman e Anthony Hopkins em atuações magistrais.O trabalho de Hopkins aos 82 anos, além de emocionar pela arte, ajuda a quebrar um dos grandes preconceitos da sociedade atual, viciada no efêmero, no descartável, no novo: o etarismo. O velho ator emprega um vigor, uma energia que só rivaliza com a sensibilidade ao interpretar um senhor que deve dizer adeus à sua independência funcional e se nega a reconhecer isto. Anthony ganhou um Oscar por este papel.
Meu Pai é adaptação para a tela de peça de teatro homônima, do próprio Zeller. Ele escreveu o roteiro para cinema em conjunto com Christopher Hampton. O roteiro rendeu ao filme seu segundo Oscar.
Essa obra de arte pode ser vista na Netflix, na Amazon Prime Vídeo, na Paramount+ e no Youtube.
Essa resenha, é publicada no dia 11/05, data de aniversário do meu pai, Aron Lerner, falecido em 1973. Esse post é, portanto, uma homenagem a ele.
May 4, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Vingança da Vacina

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
O ex-presidente B acordou após uma noite de sonhos intranquilos com a sensação de que o pesadelo no qual tentava, desesperadamente, proteger suas hemorroidas em uma cela escura, estava prestes a desembarcar do universo onírico para a vida real. Um bando de policiais com mandato de busca e apreensão invadiu a sua casa e levou computador, tablets, seu celular e pasmem, seu cartão de vacinação. Antes que fosse algemado correu para telefonar para aliados, políticos, militares, advogados, botando a boca no trombone. Nessas conversas ficou sabendo que seu ex-ajudante de ordens, aquele que tentou reaver as joias sauditas aprendidas pela alfândega antes da fuga presidencial para a terra do tio Trampo, havia sido preso nessa mesma operação, bem como outros assessores do ex-presidente.
No entanto, não se tratava do caso das joias das Arábias. Nem da investigação das fake news. Tampouco tratava-se do atentado à democracia, pelo qual seu ex-ministro da justiça já estava preso. Era um novo escândalo, o da adulteração dos cartões de vacina dele, de sua filha menor de idade, de seus assessores e a mulher de um deles, que viajariam com ele aos EUA na véspera de ele não entregar a faixa presidencial ao governante eleito e despedir-se do foro privilegiado. Como a lei estadunidense exigia comprovante de vacinação para quem entrasse no país, e como o presidente e sua turba preferiam a morte a tomar a vacina (a morte de outros, é claro), resolveram a parada com uma operação extremamente astuta, criando fake cartões de vacinação, forjando documentos e adulterando dados no sistema do SUS, usando para isso o gabinete da presidência. O que mais assustou B, não foi constatar que a PF descobriu a ardilosa fraude, foi o sigilo absoluto da operação policial contra ele. Esta o pegou, literalmente, sem calças. Era um claro sinal que seus comparsas na PF, no Ministério Público e em outros órgãos não tinham mais aquele acesso esperto à informação operacional. Ou continuavam tendo, mas não eram mais seus comparsas.
Logo quando ele se achava mais tranquilo em relação a ser preso e tornou a botar as manguinhas de fora, desfrutando de uma pequena vitória no Agrodoce Show, do qual o ministro de agricultura do presidente L fora desconvidado por sua causa, a PF, em pessoa, invade a sua casa. E ainda por cima apreendem as suas armas. Levem a Micheque mas não levem as minhas armas!!!, queria ele gritar, mas estava perplexo demais. Acabou não sendo preso, apenas convocado a depor, mas apreenderam também seu passaporte. Droga, pensou ele, falsificar um novo passaporte já é bem mais complicado. Iria ter que fugir para um país do Mercosul. Sentiu-se muito próximo de ver seu pesadelo premonitório se concretizando. Uma onda de autocomiseração inundou seu peito, ameaçou embargar-lhe a voz.
O que encontrarão no celular do ex-presidente, candidato a futuro presidiário? Será que ele, que escapuliu de responder pela morte de milhões de brasileiros, atrasando ao máximo a vacinação, acabará caindo por um falso atestado da vacina? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
April 27, 2023
O Plano Perfeito

Filme de Spike Lee – EUA, 2006
Tá aí um filme que faz jus ao nome. Poderia se chamar também o roteiro perfeito. É um dos meus favoritos entre os filmes do frenético Spike Lee, junto com Faça A Coisa Certa e A Última Noite. Sua trama ardilosa junta-se a Golpe de Mestre de George Roy Hill e Nove Rainhas de Fabian Bielinski na tradição de enredos genialmente enganosos. Mas diferente dos dois filmes, o “buraco” do golpe de O Plano Perfeito, é mais embaixo, ou melhor, mais em cima. Não é um filme sobre pequenos vigaristas e seus truques, é algo bem mais complexo cujas origens remontam ao Holocausto.
Vários elementos do assalto ao banco de O Plano Perfeito foram “levados” pela série espanhola La Casa de Papel (2017) que fez tremendo sucesso na Netflix. Mas não é apenas o roteiro inteligente de Russel Gewirtz que sustenta O Plano Perfeito. A abertura do filme, com um dos protagonistas falando para a câmera e quebrando a quarta parede (enquanto se encontra recluso entre quatro paredes), já indica que este será um filme diferente. Os atores Christofer Plummer, Denzel Washington, Judie Foster, Clive Owen e Chiwetel Ejiofor dão vida a personagens que facilmente poderiam ter escorregado em estereótipos. A direção frenética de Spike Lee junto ao ritmo da música bolliwoodiana Chaya Chaya e da trilha original de Terence Blanchard completam o cenário de um envolvente filme de ação/reflexão. Apesar de quase todo o filme se desenrolar em uma locação, o banco e suas adjacências, Spike consegue trazer para dentro da obra sua cidade fetiche, Nova York, como uma grande babilônia multiétnica. E de maneira sutil, mas bem visível, faz uma homenagem ao 11 de setembro em um dos planos.
A montagem do filme também é brilhante, principalmente a quebra da linearidade, intercalando o assalto com a inquirição de reféns e suspeitos pós-assalto, o que aumenta o mistério sobre o inusitado “roubo” do banco. A direção de fotografia contribui para essa quebra diferenciando textura e predominância de cores entre as duas situações, usando nas cenas de interrogatório um filtro Low Contrast que suaviza as altas luzes, criando um clima quase irreal, dessaturado, em contraste com as cenas do banco. Além da já mencionada engenhosidade do enredo, o roteiro se destaca também pela qualidade dos diálogos.
O Plano perfeito pode ser visto na Netflix, mas somente até o dia 15/05/23. Se você não viu, vá e veja, se você já assistiu, vale a pena ver de novo.
April 20, 2023
O Desconhecido

Filme de Thomas Michael Wright, Austrália – 2022
O cinema australiano vem produzindo, de tempos em tempos, algumas joias cinematográficas de alto quilate. Uma delas, que não teve a repercussão merecida na grande tela, é O Desconhecido, ou The Stranger, filme de aridez quase poética e de uma densidade psicológica de cortar a respiração. O filme baseia-se numa história real. Daniel Morcombe, garoto de 13 anos, foi sequestrado de um ponto de ônibus em 2003 e nunca mais foi encontrado. A polícia tinha um suspeito, mas não havia prova alguma contra ele. Montou-se então uma operação com agentes disfarçados para ganhar a confiança do indivíduo e fazê-lo confessar. O filme foca nessa operação, principalmente no relacionamento que é construído entre um dos policiais e o suspeito.
A aproximação entre Frame (Joel Edgerton) e Teaguer (Sean Harris) em O Desconhecido.É incrível como todos os instrumentos fílmicos funcionam, orquestralmente afinados, para criar esse clima psicológico sombrio, à beira de um pesadelo. A fotografia é absolutamente noir, ou melhor dark, trabalhando com luz baixa e um preto tão denso que às vezes parece engolfar todo o quadro. Há cortes abruptos no meio das cenas, ou mesmo dos planos, que deixam o espectador suspenso, com o sentimento de que há algo errado. Os cenários de Queensland são desérticos, ermos. Os interiores – casas, quartos de hotéis e as delegacias, são absolutamente impessoais. Os diálogos, lacônicos, contrastam com o objetivo da equipe que é fazer o suspeito soltar o verbo. O mais surpreendente, no entanto, é a construção do personagem principal, o suspeito pelo estupro e assassinato do garoto. Peter Teaguer, interpretado pelo ator inglês Sean Harris, revela-se incialmente frágil, alguém incapaz de qualquer violência. Ao longo do filme a percepção muda sutilmente e essas nuances na mudança tornam o processo ainda mais assustador. O efeito da aproximação entre os dois sobre o agente Mark Frame, interpretado por Joel Edgerton, reforçam esse impacto. É incrível que não há no filme uma cena sequer de violência explícita. Não há porrada, não há tiroteio. Apenas uma ameaça intangível, crescente.
O Desconhecido é livremente baseado no livro da jornalista Kate Kiryacou The Sting: The Undercover Operation That Caught Daniel Morcombe´s Killer. O filme que teve um orçamento modesto passou quase despercebido até entrar no catálogo da Netflix. Ali foi descoberto pelos cinéfilos e é atualmente um dos filmes mais assistidos na plataforma.
April 13, 2023
O Castelo de Vidro

Livro de Jeannette Walls, 2005 + Filme de Destin Cretton, EUA 2017.
No ano de seu lançamento, O Castelo de Vidro foi o grande assunto literário. Era um livro de memórias, focado na infância e juventude da autora, uma jornalista estadunidense. O que causou alvoroço foi a história que o livro revelava e a sua qualidade narrativa. Apesar de autobiográfico, O Castelo de Vidro foi escrito como um romance, uma espécie de As Aventuras de Huckleberry Finn para adultos do século XXI. Jeannette realmente deixou de lado a jornalista, ao narrar a história real de sua família, e vestiu o avental da romancista, com a picardia e o olhar profundo do grande Mark Twain.
Uma das grandes virtudes da obra é sua variedade de tons. A família disfuncional de Jeannette não é descrita em preto e branco. Não são vilões nem heróis, ou melhor, são vilões e são heróis, às vezes fazendo o duplo papel no mesmo parágrafo. Não há no livro condescendência em relação aos seus pais e outros adultos, mas há um olhar compreensivo e amoroso, incluindo admiração, em vários momentos, que conferem à obra uma dimensão maior. Nesse universo de ambivalências e meios-tons, Jeannette, a autora, consegue alternar com maestria entre o olhar infantil e o olhar adulto da protagonista, sempre com uma sinceridade, uma verdade incrível.
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O livro foi publicado no Brasil pela editora Globo e o filme pode ser visto na Netflix. Leia uma amostra e/ou adquira o livro:
April 6, 2023
O Suplente

Filme de Diego Lerman, Argentina 2022
Con estes versos no harás la Revolucion, dicen… /Juan Gelman – Confidências
Assim como o poema de Juan Gelman, O Suplente inicia questionando a “utilidade” da poesia. E desse ponto se desenvolve para um tango de voltas e reviravoltas, dança afinada e embate entre a vocação artística, o universo acadêmico e a realidade – o mundo cão da periferia que o protagonista Lucio deve enfrentar, incialmente como suplente de professor de literatura e ao final, como substituto do… você terá que assistir o filme para saber.
O Suplente, fiel à escola dos bons filmes argentinos, tem como pilares um roteiro magistralmente elaborado e interpretações fantásticas, que abarcam desde os protagonistas aos figurantes, muitos deles não atores. Além disso, prima pelos seus planos – a escolha de onde colocar a câmera, como enquadrar e acompanhar seus personagens, criando uma relação especial (e espacial) entre eles e o entorno, sendo o indivíduo e o seu entorno uma das questões essências da obra. O cume da aplicação dessa gramática cinematográfica é a fuga do jovem Dilan pelo labirinto da favela num plano sequência, cena que ganha ainda mais dramaticidade pela opção de não usar música onde doze de dez filmes usariam.
O Suplente, no entanto, não é um filme espetacular, não no sentido do espetáculo. Não há nele grandes arroubos e os enormes conflitos são tratados com sensibilidade e comovente delicadeza. É um dos mais belos filmes que vi sobre a relação pais e filhos, embora não seja este o principal tema do filme. E qual seria o principal tema do filme? Talvez o da transformação, o do crescimento, da busca para encontrar o seu lugar no meio do caos, seja qual for o entorno; talvez uma reflexão sobre a valor das coisas intangíveis, aquelas que “não servem para nada”, como a poesia.
O Suplente está disponível na Netflix. Os poemas de Juan Guelman encontram-se traduzidos para o português no livro Amor que Serena, Termina? E Confidências (Confianzas) foi musicado pelo grupo Gotan Project.


