Jaime Lerner's Blog, page 12

August 17, 2023

Manhãs de Setembro

Série, duas temporadas, criação de Josefina Trotta – Brasil 2021

Faz tempo que não vejo uma série tão cativante como Manhãs de Setembro. Ela logra retratar os dramas de pessoas pobres, periféricas, marginalizadas, no contexto do universo de mulheres trans, e ao mesmo tempo ser uma feel good série.

Um elemento primordial na criação do clima de bem-estar é a música. Cassandra, a protagonista, é uma negra trans que de dia é moto girl e de noite canta num bar. Essa é a desculpa perfeita para inserir a música de maneira orgânica na narrativa. Ao longo de toda a série Cassandra conversa com sua amiga (e musa) imaginária, a cantora Vanusa. O repertório musical, as versões que a série faz de canções conhecidas e a integração das mesmas na composição de personagens e do enredo funcionam como um pilar importante da série. Não é à toa que seu título é o nome de uma música de Vanusa.

Manhãs de Setembro inicia com Cassandra entrando pela primeira vez num apartamento (quitinete) que é seu. É um dia especial na sua jornada de afirmação como mulher independente. É também o dia que ela descobre ser o “pai” de um guri de dez anos. Para Cassandra, a descoberta é uma pedra no sapato em seu projeto de afirmação como mulher que não depende de ninguém e ninguém depende dela. Para Gersinho, conhecer o pai é algo muito importante que fazia falta em sua vida. Esse é o ponto de partida para um dos conflitos centrais da obra. Para Leide, a mãe de Gersinho, levar o menino a conhecer o pai foi o jeito de arranjar um lugar para dormir já que ela e o filho foram despejados da pensão.

Os personagens e os atores que os encarnam são outro pilar importante na empatia que a obra gera junto ao espectador. Cassandra é interpretada por Liniker que cria um personagem forte e frágil; Gersinho, o garoto que parece ser o personagem mais adulto da série, é interpretado por Gustavo Coelho que arrasa na atuação; e a excelente Karine Teles faz o papel de Leide.  No elenco há vários músicos atores como Seu Jorge, Ney Matogorsso e Paulo Miklos, além da própria Liniker , e um grande elenco de atores/atrizes trans.

Uma luz especial para uma personagem especial, Liniker como Cassandra

O terceiro grande pilar de Manhãs de Setembro é a fotografia. Esta cria um look singular, usando cores, texturas, chuva, a noite de São Paulo, além de uma luz especial sobre Cassandra, que desenha o caráter forte, guerreiro e, no entanto, sensível da protagonista. Lito Mendes da Rocha é quem assina a direção de fotografia. Dainara Toffoli e Luís Pinheiro assinam a direção em distintos episódios.

A segunda temporada não é tão impactante quanto a primeira, repete algumas situações e conflitos em vez de aprofundar nos dramas mais instigantes, principalmente aqueles que envolvem estar na pele de uma mulher trans.  Os personagens e a narrativa seguem cativantes, mas com menor força do que na primeira temporada.

Haverá ainda uma terceira temporada? Ao que tudo indica a continuidade se dará em um filme de longa metragem que irá mostrar como estão os personagens cinco anos após o final da segunda temporada.

Manhãs de Setembro, a série, pode ser vista na Amazon Prime Vídeo.

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Published on August 17, 2023 06:41

August 10, 2023

O Mistério de Maya

Filme de Henry Roosevelt, EUA – 2023

O ser humano é o animal que mais tempo leva para tornar-se independente após seu nascimento. Em função disso se criou a família. A família é a unidade social que abriga os primeiros passos do indivíduo, onde ele deve ficar protegido até poder se defender sozinho.

Algumas famílias, no entanto, não cumprem adequadamente essa função, outras ainda a subvertem, tornando o núcleo familiar um espaço de abuso, exploração e violência. Com o avanço da civilização, o estado tomou para si a função de proteger os menores que vivem em famílias disfuncionais. Mas o que acontece quando este serviço de proteção se torna, ele próprio, disfuncional?

O Mistério de Maya, cujo título original é Take Care of Maya (título bem mais apropriado do que sua versão brasileira), começa esquisito. Há uma colagem de fragmentos de depoimentos que é praticamente um “teaser” no início do filme. Parece mais um reality show tipo true crime, daqueles que juntam depoimentos sintéticos e bombásticos com reconstituições superficiais. No entanto, após esse deslize inicial o documentário começa a revelar uma história inacreditável e a forma de expor essa história, camada por camada, nos conduz passo a passo pela imensa tragédia que se desenrola na tela.

Apesar de não haver nada de inovador no filme em termos de linguagem, a maneira como sua narrativa é estruturada potencializa o imenso impacto que os fatos revelados tem sobre o espectador. O capítulo final reserva ainda mais uma surpresa, quando o caso individual migra para o coletivo. Outra grande qualidade do filme é a articulação de vários materiais como vídeos caseiros da família, vídeos dos médicos e do inquérito judicial com as imagens e depoimentos feitos pelo filme, criando a sensação de uma simultaneidade de olhares e ângulos sobre o caso.

O Mistério de Maya é daquelas obras que mexem forte com o emocional, mas abrem também um enorme espaço para reflexão após o término do filme, e desperta curiosidade para saber como estão hoje os personagens. Você pode assistir o filme na Netflix.

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Published on August 10, 2023 05:45

August 3, 2023

HERANÇA

Herança é o conto abre alas do meu livro Entre Quatro Paredes publicado em 1994. Pouco após a publicação, recebi um convite para colocá-lo em uma antologia, Jewish Writting in Brazil, que seria lançada pela Universidade de Nebraska. Essa antologia faz parte de uma coleção chamada Jewish Writing in the Contemporary World que reúne contos de escritores judeus contemporâneos dos mais diversos cantos do planeta. Foi uma grande honra estar ao lado de Clarice Lispector, Moacyr Scliar, Samuel Rawet, Bernardo Ajzenberg, Roney Cytrynowicz, Alberto Dines, Francisco Dzialovsky, Judith Grossman, Jacó Guinsburg, Marcos Iolovitch, Paulo Jacob, Esther Largman, Eliezer Levin, Elisa Lispector, Samuel Malamud, Cíntia Moscovich, Rosa Palatnik, Samuel Reibscheid, Sonia Rosenblatt e Amália Zeitel , graças ao Herança que virou Legacy.  

Herança tem como cenário um Brasil que é refúgio, mas também palco de produção de matanças. E narra um encontro inusitado entre duas pessoas que sem estarem conscientes, partilham de uma ligação profunda, apesar das diferenças de idade, cultura e contexto social. Ambos são sobreviventes.

Um concurso da Amazon, Conto Inesquecível, me fez resgatar Herança do passado e publicá-lo agora, digitalmente como e-book. Dei uma mexidinha, pouquíssima coisa, nesta segunda edição. A partir de hoje, dia 03 de agosto e até o dia 07, ele está disponível gratuitamente na Amazon, veja link abaixo. Após o dia 07 ele fica à venda por R$ 3,00 no Brasil e por preços distintos nas demais lojas da plataforma pelo mundo. Baixem o conto, leiam e comentem/avaliem na Amazon e aqui no blog também.

Para acessar na Amazon BRPara acessar na Amazon EUA
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Published on August 03, 2023 06:43

July 27, 2023

Por Trás da Névoa

Série- Criação de Gundit Chopra, Sudip Sarma e Diggi Sisodia – Índia, 2023

O Punjab é uma região na fronteira entre Índia e Paquistão, considerada o berço da civilização do Vale do Indo. A crença Sikh tem sua origem no Punjab, seus praticantes são facilmente identificados pelas barbas e pelos cabelos nunca cortados, ocultos sempre abaixo de turbantes.

Por Trás da Névoa é uma produção do Punjab indiano (há também o Punjab paquistanês, já que a região foi dividida na partilha da Índia em dois países), um seriado em seis episódios. Na superfície é uma série policial, porém o assassinato investigado pelo inspetor Babil Singh e seu fiel escudeiro Garundi nos conduz por uma trilha repleta de dramas familiares, a maioria entre pais e filhos, todos originados no choque cultural entre machismo, violência, tradição e os novos tempos.

Um exemplo é a própria polícia que tem a seu alcance as ferramentas tecnológicas de investigação (câmeras nas estradas e em locais públicos, internet, rastreamento de celulares e as ciências pericial e forense), mas se utiliza principalmente da porrada ao abordar suspeitos e mesmo testemunhas. Em vários momentosa a série me lembrou a maravilhosa Life On Mars em que um inspetor acidentalmente volta no tempo 30 anos e encara perplexo os procedimentos policiais de sua própria delegacia. 

Por Trás da Névoa, série policial, drama familiar e crítica social

O diretor de Por Trás da Névoa, Randeep Jha, trabalha muito bem esse choque entre moderno e antigo, sem ter que recorrer à uma fantástica viagem no tempo, assim como o choque entre a influência ocidental (a Índia foi colônia britânica) e as culturas locais. A série é falada em Punjabi com várias interferências em inglês. Esse conflito entre a mentalidade arraigada do passado e os ares de tempos atuais traz mais uma camada de profundidade à obra, a de crítica social.

A mise em scène, fotografia e direção de arte se integram em uma estética envolvente que expressa em cores, luz e ritmo o clima da série, dos conflitos apresentados e da cultura local. Há poucas cenas de ação, mas essas são muito bem filmadas, principalmente as de perseguição. Um humor latente acompanha o clima de tensão e mistério da investigação policial e o tom obscuro dos dramas familiares, contrapondo-se à seriedade com que alguns personagens encaram seus papeis de machos na família e na sociedade.

Por Trás da Névoa pode ser vista na Netflix.

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Published on July 27, 2023 07:19

July 20, 2023

Judas e o Messias Negro

Filme de Shaka King, EUA – 2021

O ato de traição e a figura do traidor têm exercido desprezo e fascínio. Na cultura cristã ocidental o grande símbolo do traidor é Judas, ou Iehuda Ishkraiot, um dos discípulos de Jesus que o “entregou” aos romanos por trinta moedas. Ao menos dois grandes escritores se debruçaram sobre a complexidade desta figura, Amos Oz no seu último romance, Judas (2014) e José Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Saramago faz uma defesa eloquente de Judas, argumentando que se tudo estava determinado por Deus, e seu filho deveria ser sacrificado para depois ressuscitar, coube a Judas uma função importante neste plano divino. Em troca, obteve a ingrata pecha de traidor e ainda o sofrimento por entregar seu mestre, o que o levou ao suicido.  

Dos tempos bíblicos e da Terra Santa fazemos um enorme salto no tempo e no espaço e aterrissamos em 1969, nos Estados Unidos da América, ou mais precisamente, Chicago. Os romanos são o FBI e a polícia local. O demônio é personalizado por Edgar Hoover. Os cristãos são os Panteras Negras, grupo que lutava contra a segregação e a discriminação racial.

Diferente de outros grupos que pregavam métodos gandhinianos de protesto, os panteras andavam armados, justificavam usar violência contra a violência sofrida e queriam pôr fim ao racismo através da revolução socialista. O grande inimigo para eles era o sistema capitalista. Em Chicago, um jovem de 20 anos, Fred Hampton, era o líder do partido. Ele conseguiu angariar para a luta porto-riquenhos, americanos brancos pobres e as gangs de rua de seu bairro. Sua capacidade oratória e de liderança apavoraram Hoover que o apelidou de Messias Negro. O FBI então recrutou um ladrão de carros para se infiltrar no grupo de Hampton. Este chegou à função de responsável pela segurança do grupo e esteve muito próximo de Fred. Ele, William O´Neal, é o Judas do título e protagonista do filme, ao lado de Hampton.

Daniel Kaluuia, o messias negro, olhando para seu Judas, interpretado por LaKeith Stanfield

Judas e o Messias Negro é um filme sombrio, no conteúdo e na estética. Muitas noturnas, pretos densos e luzes baixas envolvem a relação imbricada do carismático Hampton e do conflituado O´Neal. Shaka King não acompanha Saramago na defesa ao Judas, mas trata essa figura ambígua de maneira muito interessante, focando na duplicidade, na ambivalência e na… ambiguidade. O trabalho dos dois atores é excelente, tanto nas performances individuais como na interação, na forma como um personagem alimenta o outro. Daniel Kaluuia faz o papel de Hampton e LaKeith Stanfield interpreta O’Neal. Curiosamente, ou estranhamente, os dois foram finalistas no Oscar na categoria de ator coadjuvante. Kaluuia, faturou a estatueta.

Judas e o Messias Negro encara com sucesso o desafio de tratar na ficção fatos que aconteceram num passado recente, retratar personagens reais que poderiam estar ainda vivos, não fosse suas mortes prematuras. O filme logra também expor de forma chocante a brutalidade do governo e seus braços de segurança na questão racial há apenas 50 anos e o quanto essa mentalidade da Klan permanece nos dias atuais. Mas a obra não é um panfleto. É um drama envolvente com personagens humanos e conflitos complexos.

O filme utiliza estrategicamente um fragmento da entrevista de O’Neal para a série documental da PBS Eyes on the Prize (parte 12). O programa está disponível no Youtube, assim como o material bruto da entrevista, que é o mais interessante de assistir (após ver o filme, é claro). Eu diria que é obrigatório. Quatro dias antes de o programa ir ao ar (janeiro de 1990), O´Neal praticou seu derradeiro ato de Judas.

Judas e o Messias Negro foi indicado também ao Oscar de Melhor filme, Fotografia, Roteiro Original e Canção, Fight For You que também faturou a estatueta. O filme pode ser visto na Amazon Prime Vídeo.

A entrevista (em inglês, sem legendas).
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Published on July 20, 2023 07:29

July 13, 2023

O Pianista

Filme de Roman Polanski, Polônia, Inglaterra, Alemanha e França – 2002

Polanski tinha seis anos quando estourou a Segunda Guerra. Ele nasceu na França, mas seu pai (judeu polonês) havia decidido voltar para a Polônia em 1936. Mal sabia ele que estava levando a família para o local onde estouraria o conflito mais violento da história humana.

Após a ocupação alemã, a família foi confinada, assim como outros judeus, no gueto de Cracóvia. Roman separou-se dos pais ao fugir do gueto e escapar dos trens que levavam aos campos de extermínio. Virou menino de rua, vagando pela cidade e arredores, fingindo ser um gói (não judeu) e assim sobreviveu até o fim da guerra. Sessenta anos depois, já um cineasta consagrado, Polanski finalmente decidiu lidar com o holocausto em sua filmografia, com uma história emprestada, porém com vários pontos em comum com a sua.

Wladeck Szpilman também teve sua vida virada ao avesso com a chegada dos nazistas. Perdeu o emprego, teve que deixar sua casa rumo ao gueto (de Varsóvia) e por um triz não subiu nos vagões que levavam à Treblinka junto com seus pais, irmãs e irmão. Conseguiu fugir e com a ajuda de amigos da resistência polonesa viveu escondido, passando doença e fome até a chegada dos soviéticos. Diferente de Polanski, Szpilman não era criança, era um pianista já conhecido que tocava na rádio de Varsóvia. Ser pianista salvou a sua vida em mais de uma ocasião. Logo após a guerra registrou em livro suas agruras desse período.

Adrien Brody é Wladeck Szpilman em O Pianista.

O filme abre com imagens de arquivo da capital polonesa em 1939, antes da invasão nazista e não abandona a cidade até o final. Mostra pouco da guerra e nada dos campos de concentração onde as pessoas viravam cinzas, resultado de um plano meticuloso de “limpeza racial”. Ainda assim, mostra de forma genial como a guerra invadiu a vida civil e expõe minuciosamente o processo de degradação, de desumanização imposto pelos nazistas aos judeus. Esse processo sádico, gradual e contínuo, filmado pelo olhar polanskiniano é o que gera o principal impacto na tela.

O Pianista aborda também um episódio pouco tratado nos filmes sobre o holocausto e a segunda guerra: o levante do gueto de Varsóvia. Szpilman, escondido num apartamento que tinha vista para o gueto, foi testemunha ocular dessa ação de resistência armada que incrivelmente perdurou por quase um mês. As tropas da SS que entraram no gueto para destruí-lo em 1943, véspera do aniversário de Hitler, foram recebidas à bala e tiveram que recuar. Essa foi a primeira revolta civil armada contra os nazistas e desencadeou outras rebeliões em guetos e campos na Europa ocupada.

O Pianista foi filmado em Varsóvia, e em Postdam, Alemanha. O filme é protagonizado por Adrien Brody. Foi premiado em Cannes (palma de ouro, melhor filme, diretor, ator e roteiro) no BAFTA (melhor filme e diretor) e ganhou os Oscars de direção, ator e roteiro adaptado (Ronald Harwood). O filme pode ser visto na Amazon Prime Vídeo. O livro foi publicado no Brasil pela editora BestBolso, em 2007.

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Published on July 13, 2023 07:49

July 6, 2023

Black Mirror 6ª temporada

Criação de Charlie Brooker – EUA, Inglaterra 2023

Após um hiato de quase 5 anos, surge a sexta temporada de Black Mirror. E de um modo geral, decepciona. Três  dos cinco episódios apresentam ideias muito interessantes: A Joan é Péssima, o primeiro, envolve temas como a perda da privacidade e a exploração total do individuo num mundo de mega empresas big techs e um super computador de IA que cria roteiros a partir do dia a dia de personagens comuns, espionados por seus próprios celulares. O pior é que os indivíduos assinaram consentimento para essa exploração sem nem mesmo saber, clicando em permitir ou concordar naqueles textos imensos que você tem que assinalar que concorda para ter acesso a um serviço ou aplicativo. Assim, uma atônita Joan acaba vendo na TV à noite o seu dia ser exposto e sua vida vira do avesso. O único alento é que ela (ou melhor, sua personagem) é interpretada por Salma Hayek. Infelizmente, esse argumento não é aprofundando no roteiro que após criar um labirinto magnífico de burocracia e tecnologia, costura a situação kafkiana com soluções rasas. Além disso, a direção de atores tem um tom artificial que afasta o espectador dos personagens. O mesmo vale para Mazey Day e Beyond The Sea. As ideias são interessantes, os temas abordados são complexos e provocantes, mas a execução dos episódios deixa a desejar.

O episódio Loch Henry destoa dos demais por desviar da premissa da série, apresentando uma história tipo true crime. É o mais fraco dos cinco episódios.

Nina (Anjana Vasan) e Gaap (Paapa Essiedu) em Demon 79

O episódio Demon 79 também desvia do conceito Black Mirror trazendo questionamentos éticos interessantes, porém fora de contexto hightech. E usa o humor como poucas vezes foi usado ao longo das seis temporadas da série. O encontro insólito entre uma atendente de balcão de origem indiana e um demônio do baixo clero na Inglaterra de 1979 que juntos devem salvar a humanidade do apocalipse atômico resulta num episódio criativo, original com um enredo quase beckettiano e personagens pra lá de carismáticos. O tema da relação entre o bem e o mal, e entre o bem e o mal de cada indivíduo e o da sociedade é genialmente explorado nessa comédia alegórica de humor sombrio. A tecnologia está representada, ao final, pela causa do apocalipse que ao que tudo indica é uma explosão nuclear (a grande ameaça que pairava sobre os anos da Guerra Fria). Este é o único episódio da sexta temporada que não foi escrito exclusivamente pelo criador da série Charlie Brooker. A roteirista britânica de origem paquistanesa, Bisha K. Ali, assina com ele o roteiro e certamente colaborou muito  na criação das situações insólitas que a protagonista enfrenta.  Os atores principais, Anjana Vasan e Paapa Essiedu, a direção e a direção de arte também contribuem para a qualidade do episódio.

Você pode ver as seis temporadas na Netflix. Para ler sobre a quinta temporada clique aqui. Para ler sobre as quatro primeiras temporadas clique aqui.

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Published on July 06, 2023 06:58

June 29, 2023

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Livro de Marçal Aquino, Brasil 2005

Eu conhecia o trabalho de roteirista de Marçal Aquino, principalmente em dois filmes que gosto muito, Os Matadores e O Invasor de Beto Brant. Há horas estava curioso para ler um de seus romances e o impulso final surgiu com a censura de um deputado (não precisa falar de qual corrente) que reclamou por Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios constar no vestibular da UniRV de Goiás. O livro é pornográfico, vaticinou ele, portanto, inadequado. A universidade não concordou com a avaliação do deputado sobre a obra, mas mesmo assim retirou-a da lista de leituras para o vestibular.

Na novela de Aquino duas histórias de amor nada convencionais conduzem a narrativa. Uma delas é narrada para o protagonista na pensão onde ele vive, a outra é narrada pelo próprio protagonista. A primeira é uma incrível história de amor platônico, ou algo parecido com isso, a segunda é muito bem definida pelo título do primeiro capítulo: O amor é sexualmente transmissível. O cenário das histórias é uma cidadezinha amazônica no fim do mundo, erguida em função do garimpo, um local impregnado de tensão, violência e fracasso. O fracasso envolve os personagens como uma fragrância pegajosa.

A escrita de Aquino é pulsante, como as histórias que compõem esse “ensaio” sobre o amor radical e suas consequências. A obra é lida em um só folego, porém deixa resíduos para reflexão por vários dias. De quebra, é um livro que rompe preconceitos, o que deve ter incomodado o deputado e sua turma, mais do que as descrições de alta voltagem dos atos de amor que ele considerou pornográficas. Há uma interessante mescla no tratamento dos personagens, parecem estereotipados por um lado (o pastor, a ex-prostituta, a dona de pensão, o fotógrafo aventureiro, etc.), mas surpreendem pela originalidade e complexidade ao longo de toda a obra. Há algo de Graham Greene na elaborada construção desses personagens e seus conflitos a partir de arquétipos.

Em 2012 o livro foi adaptado para o cinema, com direção de Beto Brant e Renato Ciasca e roteiro, obviamente, de Marçal Aquino. A editora é a Companhia das Letras que reagiu ao ato de censura com um novo impulsionamento de vendas da obra de 2005, com sessões de autógrafo e debates. É incrível o quanto o cenário de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios segue atual. Se você quer fazer a sua parte na reação à “censura”, ou simplesmente usufruir de uma boa leitura, clique abaixo:

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Published on June 29, 2023 05:33

June 22, 2023

1976

Filme de Manuela Martelli, Chile – 2022

Manuela Martelli não conheceu a sua avó. Esta faleceu em 1976, sete anos antes de Manuela nascer. Mas ouviu várias histórias sobre ela e ficou curiosa sobre a personagem, a ponto de planejar fazer seu longa de estreia sobre a história dela. O processo de gestação e escrita do roteiro foi longo e muita coisa mudou no trajeto em relação à concepção da cineasta. Várias características da avó permaneceram em Carmen, protagonista de 1976, mas a história mudou bastante.

Carmen é uma mulher de classe média alta, esposa de um médico diretor de hospital, mãe e avó dedicada ao lar, à família e à igreja. Há desde o início uma inquietude interna em Carmen, algo que guarda em si, e que perturba, sutilmente, a ordem da vida dela. Dá para perceber essa inquietude desde a cena de abertura, cena de grande sensibilidade estética em que a protagonista está comprando tintas para reformar a casa.  Ao se deslocar para a casa de praia para acompanhar a reforma, Carmem acaba se envolvendo em uma situação que dá vazão à essa inquietude e insere, subversivamente, um outro papel em seu mundo ordenado.

Embora o filme não mantenha a pegada estética promissora dos planos de abertura, ele expõe o drama de Carmen de forma magistral, trazendo o caos do mundo externo (a ditadura ferrenha de Pinochet) para o mundo seguro da esposa do doutor. Carmen se vê transitando nesses dois mundos, usando a máscara de um para driblar as armadilhas do outro, até se estrepar.

Carmem, interpretada magistralmente por Aline Küpenheim.

A atriz Aline Küpenheim conduz a personagem por esse labirinto conflituado com habilidade e talento. Sua interpretação é sem duvida um dos pontos fortes da obra, ao lado da já comentada integração dos universos e da maneira como o filme marca os papeis (de homens, mulheres, obreiros, patrões, pobres, burgueses, militantes e polícia) naqueles anos de chumbo no Chile. Cada gesto, cada palavra parecem meticulosamente colocados para assinalar esses papeis em uma sociedade pretensamente ordenada, na qual cada “ator” conhece o seu lugar.

Como 1976 foca principalmente no papel de uma mulher, inspirado pela avó da diretora, o olhar feminino é composto por uma equipe de mulheres na direção, roteiro, direção de fotografia, direção de arte, montagem e trilha sonora, assinada pela compositora brasileira Maria Portugal.

Esse drama tenso e delicado ganhou o prêmio de melhor filme de estreia nos festivais de Jerusalém e de Londres, Prêmio Goya de melhor filme Ibero-americano e pode ser visto na Netflix.

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Published on June 22, 2023 05:29

June 15, 2023

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Discriminação

Leis e salsichas, é melhor não saber como são feitas/ Otto Bismarck

A Casa do Baralho é um habitat eivado de preconceitos. Preconceitos, por sua vez, resultam em discriminação. Discriminação racial, social, religiosa, de gênero, etária entre várias outras. Com o avanço da sociedade casabaralhal, várias leis foram feitas para coibir e combater a discriminação. Ontem, incluído na pauta de votação de última hora e sem passar por comissão nenhuma, foi aprovado na câmara dos deputados o Projeto de Lei que combate a mais nefasta das discriminações: a discriminação contra políticos e seus familiares.

Até a Lei abrir os olhos da sociedade, o brasileiro via os políticos e seus parentes como discriminados positivamente, ou seja, tinham direitos que o resto da população nem sonhava que existiam, como acesso a passaporte diplomático, julgamento em tribunais especiais, Auxílio Moradia, dois meses de férias por ano, entre outros. O mais kafkiano desses privilégios legais é justamente o poder de legislar… em causa própria.

No entanto, uma jovem deputada esclareceu aos brasileiros que políticos e seus familiares sofrem sim de terríveis preconceitos. Principalmente os políticos envolvidos em corrupção. E essa deputada tem toda a autoridade para tratar do assunto. Ela é a filha do ex-presidente da Câmara C, notório por ter conseguido derrubar a president@ D, quando esta não cedeu à chantagem de apoiá-lo contra as denúncias de corrupção. Ele Cunhou o termo tchau, querida, que serve do título ao livro que escreveu na prisão. D caiu e C caiu logo após, sendo condenado nas várias ações contra ele à uma soma de mais de 55 anos de prisão. Como em todos os roteiros de A Casa do Baralho, ele, como deputado condenado, não cumpriu nem 10% e foi liberado. Essa é outra discriminação que a classe política vem sofrendo, é expulsa das prisões sem nem ter chance de cumprir metade da pena.

Seja como for, a jovem C sentiu na carne a mudança de status de seu pai e decidiu seguir os seus passos, tornar-se uma deputada e combater no legislativo a terrível discriminação que ele e ela sofreram, só por ele ter desviado para o próprio bolso uma quantia monumental de dinheiro. Imaginem o impacto sobre uma jovem, ver seis carros de luxo da família serem confiscados pela Justiça no mesmo dia. É trauma para uma vida inteira.  

Uma vez sancionada a Lei, aprovada na Câmara por ampla maioria (apenas os partidos PSOL, REDE, Novo, Cidadania e PC do B votaram contra), não será mais possível xingar político, nem mesmo negar-lhe um emprego na iniciativa privada ou no setor público, sem correr o risco de ser penalizado com multa ou até quatro anos de prisão. É como se fizessem uma lei para criminalizar o futebol, impossível de cumprir.

Seguirá o Senado essa nova modalidade de combate à discriminação inaugurada pela Câmara? Perderá o brasileiro o direito de avacalhar seus políticos, aqueles que ele mesmo elege a cada quatro anos? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on June 15, 2023 08:12