Jaime Lerner's Blog, page 11
September 29, 2023
A Incrível História de Henry Sugar

Filme de Wes Anderson, EUA 2023
A Incrível História de Henry Sugar é um filme de média metragem de 40 minutos, um exercício de estilo, ou um experimento muito bem-sucedido de linguagem. Wes adapta o conto do escritor (declaradamente antissemita) Roald Dahl e o exibe como uma peça teatral, ou uma apresentação de um espetáculo de mágica, onde o espectador pode ver os truques. A câmera está sempre frontal ao personagem, há pouca ou nenhuma profundidade nos quadros. E todos falam basicamente para a lente que faz às vezes de plateia. Os cenários muitas vezes mudam durante o plano, frequentemente mexidos por uma pessoa ou deslizando em roldanas para cima ou para os lados. A textura e as cores criam um clima de artificialidade fabulosa. Em outras palavras, todos os truques normalmente usados no cinema para fazer o espectador submergir na realidade do filme são dispensados.
Uma seleção de talentos como Bem Kingsley, Ralph Finess, Dev Patel e Benedict Cumberbatch conduzem a narrativa como personagens/narradores, transpondo para a tela o texto literal do conto e nos levando a uma forma de entretenimento diferente, ousada e cativante, graças ao talento criativo do diretor que como o personagem do filme, enxerga sem usar os olhos. Ao final, como em toda boa fábula, há uma moral da história. Mas é uma moral da história repleto de ironia.
Outros três filmes foram acertados entre a Netflix e Wes Anderson no mesmo estilo narrativo e baseado em contos do mesmo autor: um deles O Cisne, já está disponível. Os outros dois, Poison e The Ratcatcher, estão sendo lançados até o final de setembro.
September 22, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Casa Caiu?

Dois acontecimentos da última semana fizeram tremer os alicerces da Casa do Baralho. Duas ondas com potencial de se chocarem e formarem um tsunami.
A primeira: finalmente o Superior Tribunal Federal tomou uma decisão sobre o Marco Temporal. Imaginem que o primeiro voto foi proferido lá em 2021, e depois o julgamento foi suspenso. Parece que o STF teve que esperar o fim do governo B para concluir a questão.
O tal Marco Temporal nada mais é do que a tese estapafúrdia de que as terras indígenas que podem ser demarcadas como tal, de acordo com a Constituição de 1988, só valem para as terras que os índios ocupavam antes do dia 5 de outubro de 88, data da promulgação da Constituição. Os ruralistas alegam que esse marco temporal daria uma “segurança jurídica” para seus negócios, um belo nome para continuar a usurpação. Não que eles tenham qualquer coisa contra os indígenas. Só querem poder explorar as riquezas dos territórios sem atrapalhação.
A outra onda foi criada pelo ex-ajudante de ordens do ex-presidente B. Após ser preso por falsificar cartões de vacinação usando os computadores da presidência, e ainda pelo envolvimento na surrupiagem e venda das joias das Arábias dadas como presentes ao então presidente, ele decidiu fazer um acordo de delação premiada. Como a casa do baralho é um tanto porosa, mal deu seu depoimento, vazou que nessa delação ele informa que o presidente fez uma reunião com os chefes das Forças Armadas para discutir um plano de golpe, 48 horas após a eleição do presidente L. Na ocasião, o comandante da Marinha topou, os outros dois, não.
Por nove votos contra e dois a favor, a tese do marco temporal foi derrubada. Os dois votos a favor foram de ministros alçados ao STF pelo presidente B. Coincidência? O marco temporal foi afastado, mas não o temporal que ameaça vir do congresso, armado pela Bancada do Boi. Eles prometem tumultuar as votações nas duas casas, até conseguirem o seu salvo conduto, quer dizer, a “segurança jurídica”.
A onda da delação do ex-ajudante de ordens ameaça abalar, além de seu ex-patrão, o próprio governo L, ou melhor, a intricada relação que este está tentado construir com as forças armadas. No Brasil elas se auto constituíram em um quarto poder, não de direito, mas de fato. O fato é que se a Policia Federal seguir mexendo nesse vespeiro do envolvimento dos militares com o movimento golpista, a coisa vai feder, e os militares vão chiar.
O que uma onda tem a ver com a outra? Aonde elas poderiam se encontrar? O ponto de convergência é B, ou melhor, o que ele representa: a bancada da bala, a bancada do boi, a volta do Brasil, enfim, aos tempos em que menino vestia azul e menina rosa, em que índio servia pra ser usurpado e negro pra ser explorado. Tempo em que o pobre sabia o seu lugar.
Será que a casa finalmente caiu para o ex-presidente? Será que o tsunami realmente se formará? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
September 14, 2023
Quero Ser John Malcovich

Filme de Spike Jonze roteiro de Charlie Kaufman, EUA 1999
Quero Ser John Malcovich é o filme de estreia da dupla Jonze (direção) e Kaufman (roteiro) e causou furor na época por sua criatividade singular, tanto que teve três indicações para o Oscar: Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor e Melhor Atriz Coadjuvante.
A obra, ao menos nos seus dois terços iniciais, bebe direto das águas do surrealismo. Craig, o protagonista vai a uma entrevista de emprego em uma firma localizada no andar sete e meio de um edifício comercial. Por ser um andar espremido entre o sétimo e o oitavo, o pé direito é bem mais baixo e todos ali devem andar curvados. O acesso pelo elevador também é surreal.

Além do cenário, o diálogo de Craig com a recepcionista é absolutamente surrealista e a entrevista com o proprietário não fica muito atrás. Tudo isso nos prepara para a situação inusitada que ancora o filme: a descoberta de um portal que leva quem ali penetra para dentro da cabeça do ator John Malcovich.
Essa inserção de uma pessoa real na trama fantasiosa (tanto Malcovich como seu amigo Charlie Sheen fazem o papel deles mesmos), e a possibilidade de inserção dos personagens ficcionais dentro dessa pessoa real, aumenta a dose de surrealismo que chega ao ápice quando o próprio ator entra no portal.

Infelizmente, a partir desse ápice o filme abandona a pegada Buñeliana e envereda por um caminho de cinema fantasia que não mantém o mesmo brilho. Ainda assim, Quero Ser John Malcovich é uma obra impactante e divertida, pelo inusitado, pelas surpresas a cada dois passos, pelas reflexões existenciais que provoca e pelo humor pra lá de inteligente, outra das marcas do mestre Buñuel, o grande ícone do surrealismo no cinema. Uma das cenas mais piradas e geniais do filme é o flashback do chimpanzé Elijah, flashback que explica a origem de seus traumas.
John Cusack faz o papel de Craig, o marionetista desempregado que acaba topando com o portal; Cameron Diaz interpreta a sua mulher; Catherine Keener arrasa no papel de Maxine, uma exímia femme fatale. Keener foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme.
Após essa estreia, Jonze e Kaufman seguiram fazendo filmes (juntos e separados) que pensam fora da caixinha e abordam questões como a expansão da consciência, o papel do artista criador e o sentido de estarmos nesse mundo, ou de o mundo estar em nós.
Quero Ser John Malcovich pode ser visto na Apple TV e na Amazon Prime Vídeo.
September 7, 2023
E Aí Meu Irmão, Cadê Você?

Filme de Joel e Ethan Coen, EUA 2000
Três condenados do sistema penal de trabalhos forçados no sul dos Estados Unidos fogem acorrentados uns aos outros. O trio (George Clooney, John Turturo e Tim Blake Nelson) passa por uma verdadeira odisseia na jornada para recuperar um tesouro escondido em um lugar que está prestes a ser inundado para criar uma represa. Com roteiro genial, falas inteligentes e atores que conseguem transitar magicamente entre a farsa e o natural, Joel e Ethan Coen criam uma obra complexa, ousada e muito divertida que une homenagem à Odisseia de Homero com sátira afiada sobre a sociedade norte americana. Algo que às vezes parece teatro, às vezes circo, às vezes um musical ou uma lenda.
Nessa ousadia estética e de linguagem, o elemento mais espetacular é a direção de fotografia, ou mais precisamente, a manipulação das cores. O filme abre com uma imagem colorida da paisagem do Mississipi. O enquadramento se desloca do campo verde para a estrada onde os presos quebram pedras e nesse deslocamento há um dessaturação da imagem até quase um preto e branco. A partir daí cria-se um visual para o filme que lembra antigos cartões postais coloridos à mão.
Este visual tem muito a ver com o clima de fábula do filme, além de remeter à aridez daqueles tempos de depressão econômica dos anos 1930 no sul dos Estados Unidos. Para conseguir esse visual o diretor de fotografia Roger Deakins sugeriu um processo experimental para a época (o filme é de 2000): filmar em celuloide, digitalizar o filme todo, fazer a correção de cor com intermediação digital (o que em tese ampliava as possibilidades em relação ao processo analógico) e depois imprimir novamente o filme em negativo. A intermediação digital já havia sido usada, mas em filmes com grandes efeitos especiais e apenas em cenas específicas. O processo para um filme inteiro e em função, principalmente, da correção de cor, foi pioneiro.
Mas não é apenas o visual dessaturado que se destaca na cinematografia de E Aí Meu Irmão, Cadê Você? Há cenas, principalmente as noturnas, em que as luzes (de faróis de carro ou de tochas e fogueiras) fazem as cores ganhar força, lembram uma iluminação teatral ou operística, com luzes quentes contrastando com a noite fria, quase azul. Essas cenas, em momento de alta dramaticidade, são um contraponto para o look descolorido. O trabalho de manipulação das cores, tanto no processo das filmagens como na pós-produção, abriu caminhos e criou padrões para muitos outros filmes do século XXI.
O filme abunda referências à Odisseia. O protagonista se chama Ulisses (o nome romano de Odisseu) e sua mulher, Penny (Penélope). O Cego Tirésias é o primeiro a ajudar o trio no seu deslocamento e os brinda com uma profecia. John Goodman faz o papel do vilão que lembra o ciclope, as lavadeiras no rio lembram as sereias do poema grego. Essas e outras referências fariam Homero sentir-se plenamente homenageado, não fossem dar o seu nome a um dos personagens mais abjetos do filme, um político, candidato a governador, pretensamente reformista e membro da Klu Klux Klan. Esse é o humor sardônico da dupla Coen.
E Aí Meu Irmão, Cadê Você?, clássico do século XXI, inspirado em outro clássico que tem mais de dois mil anos entre transmissão oral e escrita, pode ser visto na Amazon Prime Vídeo.
August 31, 2023
Ladrão de Bicicletas

Filme de Vittorio de Sicca, Itália – 1948
Quando se fala em clássicos do cinema, um dos filmes que entra em quase todas as listas é Ladrão de Bicicletas do ator de sucesso que virou diretor de ainda mais sucesso, Vittorio de Sicca. O filme é uma das obras de grande impacto do movimento neorrealista, que surgiu na Itália logo após a Segunda Guerra Mundial e o fim do regime fascista de Benito Mussolini.
De Sicca despontou inicialmente como ator dos filmes de telefone branco, filmes escapistas, alienados da realidade que eram mais ou menos o equivalente à telenovela brasileira de até pouco tempo. Os cenários de mansões e castelos continham todos um telefone branco, símbolo da burguesia abastada daquela época, as tramas eram frívolas e fantasiosas. O Neorrealismo nasceu como um movimento de oposição a esse tipo de cinema. Queria tratar de temas atuais numa Itália empobrecida e em reconstrução após a grande guerra e o período do regime fascista, queria retratar o dia a dia, os problemas e anseios das pessoas comuns. Recusava os cenários suntuosos e os estúdios, queria locações verdadeiras e filmagens nas ruas, muitas vezes com atores não atores.
De Sicca adere a esse movimento e cria uma cinematografia multipremiada. Em Ladrão de Bicicletas ele não narra uma história, mas retrata uma situação. A trama está toda a serviço dessa situação: o conflito moral do protagonista, o desempregado Antônio Ricci. Nessa construção despontam duas cenas chave no filme, que também são as mais impactantes como estética e gramatica audiovisual.
A primeira se apresenta nos minutos iniciais, quando Ricci vê um dos funcionários da casa de penhora indo guardar os lençóis que ele e sua mulher há pouco entregaram para tirar do prego a sua bicicleta. Ele acompanha o trajeto do funcionário que começa literalmente a escalar uma infinita estrutura de prateleiras que parece subir aos céus, lembrando a torre de babel (e a penúria generalizada).
A outra é a cena do conflito interno do protagonista, quase ao final do filme, na qual de Sicca usa magistralmente a montagem entre os planos de Antônio, do filho dele e o mundo de bicicletas paradas em frente ao estádio de futebol onde acontece um jogo. Essa montagem cria um labirinto ético, onde Ricci está perdido. Para esta cena, que é o ápice da obra, o diretor construiu todo o resto do filme. Nesta e na cena da penhora ele mostra toda sua genialidade na maneira de filmar. Ambas as sequencias são destituídas de diálogos. A ação, o movimento de câmera, os cortes e a expressão dos rostos cumprem o papel narrativo. É cinema puro.
Ladrão de Bicicletas ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1948, quando o cinema italiano e o neorrealismo chamavam atenção da crítica no mundo inteiro. Os filmes do movimento, no entanto, não geraram sucesso comercial. De Sicca continuou a trabalhar como ator em grandes produções para com isso poder financiar os seus filmes autorais. Muitos diretores da geração posterior que mantiveram a Itália no mapa das grandes cinematografias como Fellini, Antonioni, Bertolucci, Os irmãos Taviani, entre outros, beberam da fonte do neorrealismo.
Ladrão de Bicicletas pode ser visto na Amazon Prime Vídeo.
August 24, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Por Um Punhado de Dólares

Os filmes de faroeste deixaram um legado de duelos inesquecíveis nas telas dos cinemas. O duelo que aconteceu na semana passada na Comisssão Parlamentar de Inquérito sobre os atentados à democracia em Brasília, foi digno do clássico Por Um Punhado de Dólares, o Faroeste Spaghetti do lendário Sergio Leone.
De um lado estava o senador Moro Num País Tropical, também conhecido como ex-juíz da Lava Jato e ex-herói nacional, ex-Ministro da Justiça do ex-presidente B e, finalmente, senador ameaçado de ter seu mandato cassado por abuso de poder econômico. Do outro lado, o maior influencer político dos últimos anos na Casa do Baralho, não por ser youtuber, blogueiro ou jornalista, mas por ser o hacker que originou a Vaza Jato.
A Vaza Jato, para quem não lembra, foi a publicação de mensagens privadas hackeadas de celulares do então juiz e dos promotores da Lava Jato, revelando a sanha implacável e o conluio entre o juiz e os promotores para condenar o ex-presidente L à prisão. A publicação dessas conversas acabou causando a soltura do ex-presidente pelo Superior Tribunal Federal e desmoralizando o pouco que restava da moral de Moro Num País Tropical. L, tendo suas condenações anuladas, pôde concorrer às eleições de 2022 e derrotar B, eleito em 2018 quando L estava preso.
B, logo após ter vencido as eleições de 2018 havia convidado o então juiz para ser seu superministro da Justiça. Este prontamente aceitou. Na metade do mandato saiu do ministério, acusando o presidente de interferir no comando da polícia federal para proteger seus familiares de investigações criminais. Ostracizado pela esquerda e pela direita, imaginou que poderia emplacar como representante da terceira via nas eleições presidências de 2022, mas logo percebeu que era melhor concorrer como senador e abandonou o sonho presidencial.
O hacker estava na CPI como testemunha. Tão logo a polícia descobriu quem era o autor das invasões dos celulares, ele foi preso e sofreu processo. Esperava ajuda da campanha de L, mas se sentiu abandonado. Foi então convidado secretamente pelo presidente B para prestar alguns servicinhos sujos, como criar um falso código fonte para desmoralizar a urna eletrônica durante a campanha e com isso colocar dúvida no resultado da eleição caso L ganhasse. Prometeram um emprego para ele e essa foi a sua justificativa de aceitar cometer esses crimes, conscientemente. Por um punhado de dólares.
Moro Num País Tropical, que havia brigado com B e depois voltado a apoiá-lo, tentou desacreditar a testemunha que havia o desacreditado. Usou de sua experiência como juiz inquiridor e perguntou quantas vítimas o hacker havia feito como estelionatário. Parecia um tiro certeiro, mas o Hacker respondeu: eu li as suas mensagens privadas, senador, e posso aqui afirmar que o senhor é um criminoso contumaz. O Ex-juiz acusou o golpe e pediu proteção ao presidente da CPI que lhe disse que se ele exigia respeito, deveria também respeitar a testemunha.
O duelo seguiu nessa toada, mas como o palco era Brasília, o bangue bangue Spaghetti tava mais pra Pizza. Não havia mocinho, só bandido, e após um pesado tiroteio, saíram todos ilesos, apenas com alguns arranhões nas suas imagens já amplamente arranhadas. Quem levou a pior no confronto entre o senador e o hacker acabou sendo o ex-presidente B. Não, não foi bala perdida. Foi bomba de fragmentação.
Haverá consequências para o ex-presidente após o depoimento bombástico, ou essa denúncia terá de entrar na fila, atrás de outras tantas? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
August 17, 2023
Manhãs de Setembro

Série, duas temporadas, criação de Josefina Trotta – Brasil 2021
Faz tempo que não vejo uma série tão cativante como Manhãs de Setembro. Ela logra retratar os dramas de pessoas pobres, periféricas, marginalizadas, no contexto do universo de mulheres trans, e ao mesmo tempo ser uma feel good série.
Um elemento primordial na criação do clima de bem-estar é a música. Cassandra, a protagonista, é uma negra trans que de dia é moto girl e de noite canta num bar. Essa é a desculpa perfeita para inserir a música de maneira orgânica na narrativa. Ao longo de toda a série Cassandra conversa com sua amiga (e musa) imaginária, a cantora Vanusa. O repertório musical, as versões que a série faz de canções conhecidas e a integração das mesmas na composição de personagens e do enredo funcionam como um pilar importante da série. Não é à toa que seu título é o nome de uma música de Vanusa.
Manhãs de Setembro inicia com Cassandra entrando pela primeira vez num apartamento (quitinete) que é seu. É um dia especial na sua jornada de afirmação como mulher independente. É também o dia que ela descobre ser o “pai” de um guri de dez anos. Para Cassandra, a descoberta é uma pedra no sapato em seu projeto de afirmação como mulher que não depende de ninguém e ninguém depende dela. Para Gersinho, conhecer o pai é algo muito importante que fazia falta em sua vida. Esse é o ponto de partida para um dos conflitos centrais da obra. Para Leide, a mãe de Gersinho, levar o menino a conhecer o pai foi o jeito de arranjar um lugar para dormir já que ela e o filho foram despejados da pensão.
Os personagens e os atores que os encarnam são outro pilar importante na empatia que a obra gera junto ao espectador. Cassandra é interpretada por Liniker que cria um personagem forte e frágil; Gersinho, o garoto que parece ser o personagem mais adulto da série, é interpretado por Gustavo Coelho que arrasa na atuação; e a excelente Karine Teles faz o papel de Leide. No elenco há vários músicos atores como Seu Jorge, Ney Matogorsso e Paulo Miklos, além da própria Liniker , e um grande elenco de atores/atrizes trans.

O terceiro grande pilar de Manhãs de Setembro é a fotografia. Esta cria um look singular, usando cores, texturas, chuva, a noite de São Paulo, além de uma luz especial sobre Cassandra, que desenha o caráter forte, guerreiro e, no entanto, sensível da protagonista. Lito Mendes da Rocha é quem assina a direção de fotografia. Dainara Toffoli e Luís Pinheiro assinam a direção em distintos episódios.
A segunda temporada não é tão impactante quanto a primeira, repete algumas situações e conflitos em vez de aprofundar nos dramas mais instigantes, principalmente aqueles que envolvem estar na pele de uma mulher trans. Os personagens e a narrativa seguem cativantes, mas com menor força do que na primeira temporada.
Haverá ainda uma terceira temporada? Ao que tudo indica a continuidade se dará em um filme de longa metragem que irá mostrar como estão os personagens cinco anos após o final da segunda temporada.
Manhãs de Setembro, a série, pode ser vista na Amazon Prime Vídeo.
August 10, 2023
O Mistério de Maya

Filme de Henry Roosevelt, EUA – 2023
O ser humano é o animal que mais tempo leva para tornar-se independente após seu nascimento. Em função disso se criou a família. A família é a unidade social que abriga os primeiros passos do indivíduo, onde ele deve ficar protegido até poder se defender sozinho.
Algumas famílias, no entanto, não cumprem adequadamente essa função, outras ainda a subvertem, tornando o núcleo familiar um espaço de abuso, exploração e violência. Com o avanço da civilização, o estado tomou para si a função de proteger os menores que vivem em famílias disfuncionais. Mas o que acontece quando este serviço de proteção se torna, ele próprio, disfuncional?
O Mistério de Maya, cujo título original é Take Care of Maya (título bem mais apropriado do que sua versão brasileira), começa esquisito. Há uma colagem de fragmentos de depoimentos que é praticamente um “teaser” no início do filme. Parece mais um reality show tipo true crime, daqueles que juntam depoimentos sintéticos e bombásticos com reconstituições superficiais. No entanto, após esse deslize inicial o documentário começa a revelar uma história inacreditável e a forma de expor essa história, camada por camada, nos conduz passo a passo pela imensa tragédia que se desenrola na tela.
Apesar de não haver nada de inovador no filme em termos de linguagem, a maneira como sua narrativa é estruturada potencializa o imenso impacto que os fatos revelados tem sobre o espectador. O capítulo final reserva ainda mais uma surpresa, quando o caso individual migra para o coletivo. Outra grande qualidade do filme é a articulação de vários materiais como vídeos caseiros da família, vídeos dos médicos e do inquérito judicial com as imagens e depoimentos feitos pelo filme, criando a sensação de uma simultaneidade de olhares e ângulos sobre o caso.
O Mistério de Maya é daquelas obras que mexem forte com o emocional, mas abrem também um enorme espaço para reflexão após o término do filme, e desperta curiosidade para saber como estão hoje os personagens. Você pode assistir o filme na Netflix.
August 3, 2023
HERANÇA

Herança é o conto abre alas do meu livro Entre Quatro Paredes publicado em 1994. Pouco após a publicação, recebi um convite para colocá-lo em uma antologia, Jewish Writting in Brazil, que seria lançada pela Universidade de Nebraska. Essa antologia faz parte de uma coleção chamada Jewish Writing in the Contemporary World que reúne contos de escritores judeus contemporâneos dos mais diversos cantos do planeta. Foi uma grande honra estar ao lado de Clarice Lispector, Moacyr Scliar, Samuel Rawet, Bernardo Ajzenberg, Roney Cytrynowicz, Alberto Dines, Francisco Dzialovsky, Judith Grossman, Jacó Guinsburg, Marcos Iolovitch, Paulo Jacob, Esther Largman, Eliezer Levin, Elisa Lispector, Samuel Malamud, Cíntia Moscovich, Rosa Palatnik, Samuel Reibscheid, Sonia Rosenblatt e Amália Zeitel , graças ao Herança que virou Legacy.
Herança tem como cenário um Brasil que é refúgio, mas também palco de produção de matanças. E narra um encontro inusitado entre duas pessoas que sem estarem conscientes, partilham de uma ligação profunda, apesar das diferenças de idade, cultura e contexto social. Ambos são sobreviventes.
Um concurso da Amazon, Conto Inesquecível, me fez resgatar Herança do passado e publicá-lo agora, digitalmente como e-book. Dei uma mexidinha, pouquíssima coisa, nesta segunda edição. A partir de hoje, dia 03 de agosto e até o dia 07, ele está disponível gratuitamente na Amazon, veja link abaixo. Após o dia 07 ele fica à venda por R$ 3,00 no Brasil e por preços distintos nas demais lojas da plataforma pelo mundo. Baixem o conto, leiam e comentem/avaliem na Amazon e aqui no blog também.
Para acessar na Amazon BRPara acessar na Amazon EUAJuly 27, 2023
Por Trás da Névoa

Série- Criação de Gundit Chopra, Sudip Sarma e Diggi Sisodia – Índia, 2023
O Punjab é uma região na fronteira entre Índia e Paquistão, considerada o berço da civilização do Vale do Indo. A crença Sikh tem sua origem no Punjab, seus praticantes são facilmente identificados pelas barbas e pelos cabelos nunca cortados, ocultos sempre abaixo de turbantes.
Por Trás da Névoa é uma produção do Punjab indiano (há também o Punjab paquistanês, já que a região foi dividida na partilha da Índia em dois países), um seriado em seis episódios. Na superfície é uma série policial, porém o assassinato investigado pelo inspetor Babil Singh e seu fiel escudeiro Garundi nos conduz por uma trilha repleta de dramas familiares, a maioria entre pais e filhos, todos originados no choque cultural entre machismo, violência, tradição e os novos tempos.
Um exemplo é a própria polícia que tem a seu alcance as ferramentas tecnológicas de investigação (câmeras nas estradas e em locais públicos, internet, rastreamento de celulares e as ciências pericial e forense), mas se utiliza principalmente da porrada ao abordar suspeitos e mesmo testemunhas. Em vários momentosa a série me lembrou a maravilhosa Life On Mars em que um inspetor acidentalmente volta no tempo 30 anos e encara perplexo os procedimentos policiais de sua própria delegacia.

O diretor de Por Trás da Névoa, Randeep Jha, trabalha muito bem esse choque entre moderno e antigo, sem ter que recorrer à uma fantástica viagem no tempo, assim como o choque entre a influência ocidental (a Índia foi colônia britânica) e as culturas locais. A série é falada em Punjabi com várias interferências em inglês. Esse conflito entre a mentalidade arraigada do passado e os ares de tempos atuais traz mais uma camada de profundidade à obra, a de crítica social.
A mise em scène, fotografia e direção de arte se integram em uma estética envolvente que expressa em cores, luz e ritmo o clima da série, dos conflitos apresentados e da cultura local. Há poucas cenas de ação, mas essas são muito bem filmadas, principalmente as de perseguição. Um humor latente acompanha o clima de tensão e mistério da investigação policial e o tom obscuro dos dramas familiares, contrapondo-se à seriedade com que alguns personagens encaram seus papeis de machos na família e na sociedade.
Por Trás da Névoa pode ser vista na Netflix.