Jaime Lerner's Blog, page 11
October 26, 2023
A Queda da Casa dos Ushers + Edgar Alan Poe

Série, criação de Mike Flanagan – EUA, 2023
A Queda da Casa dos Ushers é fruto de um projeto ousado, que abrange a obra de Edgar Alan Poe como um todo e não apenas o conto homônimo como o título da série pode sugerir. A série tão pouco é uma adaptação da obra literária de Poe, está mais para uma grande homenagem ao escritor/poeta, reunindo motivos, elementos e o estilo gótico, numa trama original, que permeia vários contos, poemas e personagens do mais britânico dos escritores norte-americanos.
Dito isto, pode se assistir A Queda da Casa dos Ushers de duas maneiras: como uma série de terror contemporânea que narra a dissolução da família de um Tycoon corrupto da indústria farmacêutica, ou como uma ópera que precisa de um libreto para sua melhor fruição. Vendo a obra da primeira maneira, é apenas mais uma série, com determinados méritos e alguns problemas de atuação e roteiro. Assistindo-a após a leitura do “libreto”, a série ganha em vulto e profundidade, principalmente pela engenhosa reunião dos elementos do universo literário de Poe e sua inserção na trama que acontece em tempos atuais.
O que seria, exatamente, esse libreto? O ideal seria ler todas as obras Poeanas e em seguida assistir a série, mas se isso não for possível é imprescindível conhecer os poemas O Corvo e Anabelle Lee; os contos: A Queda da Casa dos Usher, A Máscara da Morte Vermelha, O Assassinato na Rua Morgue, O Gato Preto, O Coração Delator, O Escaravelho de Ouro, O Poço e o Pêndulo; e a novela (única narrativa mais longa que Poe escreveu) A Narrativa de Arthur Gordon Pym, de preferência nessa ordem.
O Corvo, além de fornecer o elemento icônico de toda a série, dá nome ao primeiro e ao último episódio e à personagem mais enigmática da obra: Verna (anagrama de Raven, corvo em inglês), e explica a importância de Lenore, neta de Usher na série, como personagem que representa o bem, o puro e inatingível. A Máscara da Morte Vermelha dá nome ao segundo episódio, mas o conto está representado em toda a série, pois trata de uma elite que festeja orgasticamente enquanto o povo padece e das consequências desse egoísmo hedonista, caso da família Usher na série. Os outros contos dão nome aos cinco episódios restantes, e a novela, ao personagem complexo de Pym, advogado-faz-tudo dos Usher. É super interessante acompanhar como os elementos de cada um dessas obras são orquestrados em cada episódio e na sinfonia da série como um todo.
Além de enriquecer absurdamente a experiência de assistir a série, a leitura (ou a releitura) de Poe vale a pena por si só. Ali pode se perceber a origem de vários gêneros que conquistaram gerações de leitores e depois espectadores com uma pena vigorosa e impressionista. E a série, consegue imprimir esse mesmo vigor?
A Queda da Casa dos Ushers está disponível para ser assistida na Netflix.
As obras de Poe você pode encontrar em várias antologias como essa:
October 19, 2023
Via Ápia

Livro de Geovani Martins, Brasil 2022
Geovani Martins tem vinte e seis anos. Os protagonistas de seu romance de estreia também são jovens como ele. Apesar de tanta juventude há uma sabedoria contida na escrita de Geovani, aquela de mestres anciãos que dominam a medida certa das frases, a dose precisa de drama, humor e tristeza e conhecem a fórmula de tornar o banal em especial.
Martins nos leva pelas ruas, becos e “bairros” da Rocinha, nos introduz nas histórias e na linguagem singular de seus jovens moradores a ponto de sentirmos que estamos no estrangeiro, e ainda assim num mundo conhecido. Segue à risca a máxima tolstoiana de cantar sua aldeia e ser universal, e o caminho de Pasolini, Welsh, Marlon James e do conterrâneo Paulo Lins no uso da gíria como poesia. Martins não o faz apenas nos diálogos, mas na própria escrita.
Se for puxar o fundamento, eles nem se lembravam mais da última vez que Dona Marli divulgou uma janta. Ela chegava sempre cansada do trabalho e achava muito abuso ainda ter que cozinhar pra dois marmanjos daqueles.
O romance se estrutura em capítulos curtos e independentes, quase como contos, cada capítulo narrando um episódio, ou um dia na vida dos protagonistas que se juntam (os capítulos e os protagonistas) para formar a saga de vivência na favela no período entre 27 de julho de 2011 e 26 de outubro de 2013.
Em 27 de julho de 2011 Santos e Flamengo fizeram um jogo histórico no campeonato brasileiro. Neymar de um lado e Ronaldinho Gaúcho de outro, protagonizaram uma disputa sensacional que terminou em vitória dos cariocas por 5X4. O jogo e a vitória deixaram a Rocinha em polvorosa. E o que houve em 26 de outubro de 2013? Você terá que ler Via Ápia para saber.
Neste período, porém, são implantadas as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, na maior favela do Brasil. Visando garantir a segurança de milhares de turistas esperados para a Copa do Mundo (2014) e para as Olimpíadas no Rio de Janeiro (2016), o governo cunha essa figura de Polícia Pacificadora que ocupa os morros da cidade maravilhosa.
O que para o pessoal da “pista” é segurança, para os habitantes dos territórios abandonados pelo estado é mais uma ameaça, mais um estágio de deterioração em suas vidas. Essa violência praticada pelo estado num momento de euforia para o Brasil, mascarando ainda a repressão como pacificação, é abordada de forma contundente em Via Ápia, ao lado das questões da droga e do racismo.
O autor, no entanto, não aplica em sua obra a superdose de violência explícita de Cidade de Deus, outro romance genial sobre a vida nas favelas cariocas, escrito com um olhar de dentro. Via Ápia é sobretudo uma obra sobre amizade, amizade forjada em condições de vida desafiadoras. E o contraste entre a força e a beleza da amizade e o cenário de repressão e de pobreza onde ela floresce é o que dá o tom nesse romance tão especial.
O Romance foi publicado pela Companhia das Letras. Leia uma amostra e adquira o livro em:
October 13, 2023
O Espetáculo da Barbárie

Como escrever sobre filmes, livros e séries logo após o ataque bárbaro à Israel no último sábado? Como analisar tramas, dramas e estética com as imagens da brutalidade marcando ainda a retina? Imagens feitas e divulgadas pelos próprios perpetradores, orgulhando-se de matar, aterrorizar, estuprar, vilipendiar os corpos de civis indefesos, de crianças, bebês, idosos e mulheres? Como absorver tamanha violência que levará, que já está levando à uma nova escalada de violência num ciclo que parece não ter fim, apenas hiatos entre um massacre e outro?
Vendo os vídeos, as fotos, não há como não se lembrar dos pogroms que os judeus sofreram na Europa, pogroms que aconteciam antes da existência do Estado de Israel.
Dando-se conta de que os próprios terroristas produziram essas imagens não há como não se lembrar das infinitas fotos e filmes que os nazistas produziram do holocausto, material que seria usado no museu sobre os judeus que o Reich de mil anos ergueria para contar para as gerações futuras como livraram o mundo dessa praga. Acontece que o Reich só durou 12 anos e as fotos e vídeos acabaram servindo como provas no tribunal de Nuremberg.
O Hamas não fez os vídeos pensando num futuro museu, mas no atual terror que isso causaria no mundo civilizado (ainda que haja gente no mundo “civilizado” apoiando essa ação) e no frisson que isso causaria entre sujeitos perdidos, frustrados ou desiquilibrados, o que atrairia novos militantes para a “causa”. Esta é a escola do Estado Islâmico.
Eles sentem que os atos que perpetraram e mais a captura de reféns são uma vitória momentânea que os registros imagéticos, não importa o que venha a acontecer depois, tornarão eterna.
Só resta torcer que encontrem o mesmo destino dos nazistas e dos Jihadistas do EI, para que um dia seja possível o retorno do processo de paz na região.
October 5, 2023
A História de Nós Três e de Nós Quatro

Filme de Jorge Salton e Jaime Lerner, Brasil 2023
Há pouco mais de um ano fiz um post sobre as filmagens de A História de Nós Três e Nós Quatro, prometendo falar mais do filme quando ele estivesse saindo do forno. Pois bem, esse dia chegou. O filme foi exibido por uma semana no Cinelaser, no shopping de Passo Fundo, todas as sessões com sala cheia, em algumas delas pessoas não conseguiram ingresso o que provocou uma sessão a mais do que fora combinado. Agora, na segunda feira dia 09/10, haverá uma sessão de pré-estreia no GNC do Praia de Belas às 19h10. Vamos ver como o público da capital recebe o filme.
Perguntei à Jorge Salton como nasceu o a ideia:
“Nasceu do meu cotidiano. Como psiquiatra e psicoterapeuta acompanho pessoas que tentam reencontrar-se com seus familiares. Às vezes, rompidos por desavenças que perpetuam mágoas. Também, atendo pessoas que estando na fase final da vida querem conversar a respeito. Lidam com três temores: perder a autonomia, morrer sob a tortura de sintomas dolorosos e perder a comunicação com as pessoas próximas. A falha na comunicação acontece porque os familiares se negam a falar no assunto: “Você não vai morrer!” “Como não vou morrer, se já estou com noventa anos”. Outro tema que ao escrever o roteiro surgiu foi o da tortura da ditadura militar. Também tem a ver com meu trabalho. Colaborei por dez anos com a Anistia Internacional atendendo pessoas torturadas. E foi assim, reunindo tais vivencias, que surgiu o desejo de colocar no cinema “A história de nós três e de nós quatro”.
E como sentiu o filme:
“Não esperava que tantas pessoas, mais de 900, comparecessem ao cinema. Foram seis sessões com casa cheia. Além dos aplausos ao final de cada sessão, os comentários foram sempre muito positivos. O filme conseguiu tocar nas pessoas. E assim, todos que participamos da construção do filme, ficamos com o sentimento de termos alcançado e até mesmo ido além de nossas melhores expectativas. “
De minha parte, realmente a sensação é que o resultado supera em muito o esperado de um trabalho feito num prazo inacreditável, com equipe e elenco híbridos entre profissionais da área e marinheiros de primeira viagem. À equipe das filmagens citada no post de um ano atrás, agregaram-se quatro profissionais: Raoni Ceccim na montagem, Rafael Duarte na finalização de imagem, Roberto Coutinho na pós de som e Chico Machado Pereira na trilha. Além deles, o psiquiatra Ivan Fetter e o músico Edu Martins, também na trilha.
No estúdio de mixagem, da esquerda: Chico, Coutinho, eu, Isa, Ciciliana e Salton.A História de Nós Três e de Nós Quatro fala de luto. Não apenas na dimensão mais imediata e conhecida de perder um ser querido, mas também de perder uma parte da própria vida, por contingências ou decisões erradas. Jota volta à sua cidade natal onde não pisava há cinquenta anos, após o falecimento de sua irmã. Lá se reencontra com sua sobrinha e conhece a sobrinha neta, parte da família que ele havia perdido ao ficar meio século ausente. Lá se reencontra também com grandes amigos com quem manteve contato e a amizade mas não o calor da convivência diária.
“Você atendeu muitos pacientes em final de vida?” Pergunta a ele Angélica, sua sobrinha, ao falarem da irmã/mãe falecida.
“Fui a muitos velórios. Aquelas famílias que conseguem se despedir, elas seguem em frente. As que não conseguem ficam…meio paralisadas.” Responde Jota, descrevendo a si mesmo.
O filme também fala de arte, da arte de cantar e de contar histórias, da arte sedutora das telas de cinema e como ela acrescenta uma dimensão mágica/colorida à vida cotidiana. E o filme trata também do direito da pessoa com doença terminal decidir se quer continuar vivendo e do dever do médico de ajuda-la. Algo que hoje, no Brasil, ainda é ilegal.
Como todos esses temas se interligam, qual o motivo de Jota ter ficado tanto tempo ausente e por que finalmente voltou? Isso você vai descobrir vendo A História de Nós Três e de Nós Quatro.
Sessão de pré-estreia no dia 9/10, às 19h10 no GNC Praia de Belas, Sala 3. Após a sessão haverá um bate papo rápido com o público com a participação dos atores/psiquiatras Euclides Gomes e Theobaldo Thomaz, com Jorge Salton e comigo.
September 29, 2023
A Incrível História de Henry Sugar

Filme de Wes Anderson, EUA 2023
A Incrível História de Henry Sugar é um filme de média metragem de 40 minutos, um exercício de estilo, ou um experimento muito bem-sucedido de linguagem. Wes adapta o conto do escritor (declaradamente antissemita) Roald Dahl e o exibe como uma peça teatral, ou uma apresentação de um espetáculo de mágica, onde o espectador pode ver os truques. A câmera está sempre frontal ao personagem, há pouca ou nenhuma profundidade nos quadros. E todos falam basicamente para a lente que faz às vezes de plateia. Os cenários muitas vezes mudam durante o plano, frequentemente mexidos por uma pessoa ou deslizando em roldanas para cima ou para os lados. A textura e as cores criam um clima de artificialidade fabulosa. Em outras palavras, todos os truques normalmente usados no cinema para fazer o espectador submergir na realidade do filme são dispensados.
Uma seleção de talentos como Bem Kingsley, Ralph Finess, Dev Patel e Benedict Cumberbatch conduzem a narrativa como personagens/narradores, transpondo para a tela o texto literal do conto e nos levando a uma forma de entretenimento diferente, ousada e cativante, graças ao talento criativo do diretor que como o personagem do filme, enxerga sem usar os olhos. Ao final, como em toda boa fábula, há uma moral da história. Mas é uma moral da história repleto de ironia.
Outros três filmes foram acertados entre a Netflix e Wes Anderson no mesmo estilo narrativo e baseado em contos do mesmo autor: um deles O Cisne, já está disponível. Os outros dois, Poison e The Ratcatcher, estão sendo lançados até o final de setembro.
September 22, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Casa Caiu?

Dois acontecimentos da última semana fizeram tremer os alicerces da Casa do Baralho. Duas ondas com potencial de se chocarem e formarem um tsunami.
A primeira: finalmente o Superior Tribunal Federal tomou uma decisão sobre o Marco Temporal. Imaginem que o primeiro voto foi proferido lá em 2021, e depois o julgamento foi suspenso. Parece que o STF teve que esperar o fim do governo B para concluir a questão.
O tal Marco Temporal nada mais é do que a tese estapafúrdia de que as terras indígenas que podem ser demarcadas como tal, de acordo com a Constituição de 1988, só valem para as terras que os índios ocupavam antes do dia 5 de outubro de 88, data da promulgação da Constituição. Os ruralistas alegam que esse marco temporal daria uma “segurança jurídica” para seus negócios, um belo nome para continuar a usurpação. Não que eles tenham qualquer coisa contra os indígenas. Só querem poder explorar as riquezas dos territórios sem atrapalhação.
A outra onda foi criada pelo ex-ajudante de ordens do ex-presidente B. Após ser preso por falsificar cartões de vacinação usando os computadores da presidência, e ainda pelo envolvimento na surrupiagem e venda das joias das Arábias dadas como presentes ao então presidente, ele decidiu fazer um acordo de delação premiada. Como a casa do baralho é um tanto porosa, mal deu seu depoimento, vazou que nessa delação ele informa que o presidente fez uma reunião com os chefes das Forças Armadas para discutir um plano de golpe, 48 horas após a eleição do presidente L. Na ocasião, o comandante da Marinha topou, os outros dois, não.
Por nove votos contra e dois a favor, a tese do marco temporal foi derrubada. Os dois votos a favor foram de ministros alçados ao STF pelo presidente B. Coincidência? O marco temporal foi afastado, mas não o temporal que ameaça vir do congresso, armado pela Bancada do Boi. Eles prometem tumultuar as votações nas duas casas, até conseguirem o seu salvo conduto, quer dizer, a “segurança jurídica”.
A onda da delação do ex-ajudante de ordens ameaça abalar, além de seu ex-patrão, o próprio governo L, ou melhor, a intricada relação que este está tentado construir com as forças armadas. No Brasil elas se auto constituíram em um quarto poder, não de direito, mas de fato. O fato é que se a Policia Federal seguir mexendo nesse vespeiro do envolvimento dos militares com o movimento golpista, a coisa vai feder, e os militares vão chiar.
O que uma onda tem a ver com a outra? Aonde elas poderiam se encontrar? O ponto de convergência é B, ou melhor, o que ele representa: a bancada da bala, a bancada do boi, a volta do Brasil, enfim, aos tempos em que menino vestia azul e menina rosa, em que índio servia pra ser usurpado e negro pra ser explorado. Tempo em que o pobre sabia o seu lugar.
Será que a casa finalmente caiu para o ex-presidente? Será que o tsunami realmente se formará? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
September 14, 2023
Quero Ser John Malcovich

Filme de Spike Jonze roteiro de Charlie Kaufman, EUA 1999
Quero Ser John Malcovich é o filme de estreia da dupla Jonze (direção) e Kaufman (roteiro) e causou furor na época por sua criatividade singular, tanto que teve três indicações para o Oscar: Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor e Melhor Atriz Coadjuvante.
A obra, ao menos nos seus dois terços iniciais, bebe direto das águas do surrealismo. Craig, o protagonista vai a uma entrevista de emprego em uma firma localizada no andar sete e meio de um edifício comercial. Por ser um andar espremido entre o sétimo e o oitavo, o pé direito é bem mais baixo e todos ali devem andar curvados. O acesso pelo elevador também é surreal.
Craig ( John Cusack) e Maxine (Catherine Keener) no sétimo e meio andarAlém do cenário, o diálogo de Craig com a recepcionista é absolutamente surrealista e a entrevista com o proprietário não fica muito atrás. Tudo isso nos prepara para a situação inusitada que ancora o filme: a descoberta de um portal que leva quem ali penetra para dentro da cabeça do ator John Malcovich.
Essa inserção de uma pessoa real na trama fantasiosa (tanto Malcovich como seu amigo Charlie Sheen fazem o papel deles mesmos), e a possibilidade de inserção dos personagens ficcionais dentro dessa pessoa real, aumenta a dose de surrealismo que chega ao ápice quando o próprio ator entra no portal.
John Malcovich visitando o seu inconscienteInfelizmente, a partir desse ápice o filme abandona a pegada Buñeliana e envereda por um caminho de cinema fantasia que não mantém o mesmo brilho. Ainda assim, Quero Ser John Malcovich é uma obra impactante e divertida, pelo inusitado, pelas surpresas a cada dois passos, pelas reflexões existenciais que provoca e pelo humor pra lá de inteligente, outra das marcas do mestre Buñuel, o grande ícone do surrealismo no cinema. Uma das cenas mais piradas e geniais do filme é o flashback do chimpanzé Elijah, flashback que explica a origem de seus traumas.
John Cusack faz o papel de Craig, o marionetista desempregado que acaba topando com o portal; Cameron Diaz interpreta a sua mulher; Catherine Keener arrasa no papel de Maxine, uma exímia femme fatale. Keener foi indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme.
Após essa estreia, Jonze e Kaufman seguiram fazendo filmes (juntos e separados) que pensam fora da caixinha e abordam questões como a expansão da consciência, o papel do artista criador e o sentido de estarmos nesse mundo, ou de o mundo estar em nós.
Quero Ser John Malcovich pode ser visto na Apple TV e na Amazon Prime Vídeo.
September 7, 2023
E Aí Meu Irmão, Cadê Você?

Filme de Joel e Ethan Coen, EUA 2000
Três condenados do sistema penal de trabalhos forçados no sul dos Estados Unidos fogem acorrentados uns aos outros. O trio (George Clooney, John Turturo e Tim Blake Nelson) passa por uma verdadeira odisseia na jornada para recuperar um tesouro escondido em um lugar que está prestes a ser inundado para criar uma represa. Com roteiro genial, falas inteligentes e atores que conseguem transitar magicamente entre a farsa e o natural, Joel e Ethan Coen criam uma obra complexa, ousada e muito divertida que une homenagem à Odisseia de Homero com sátira afiada sobre a sociedade norte americana. Algo que às vezes parece teatro, às vezes circo, às vezes um musical ou uma lenda.
Nessa ousadia estética e de linguagem, o elemento mais espetacular é a direção de fotografia, ou mais precisamente, a manipulação das cores. O filme abre com uma imagem colorida da paisagem do Mississipi. O enquadramento se desloca do campo verde para a estrada onde os presos quebram pedras e nesse deslocamento há um dessaturação da imagem até quase um preto e branco. A partir daí cria-se um visual para o filme que lembra antigos cartões postais coloridos à mão.
Este visual tem muito a ver com o clima de fábula do filme, além de remeter à aridez daqueles tempos de depressão econômica dos anos 1930 no sul dos Estados Unidos. Para conseguir esse visual o diretor de fotografia Roger Deakins sugeriu um processo experimental para a época (o filme é de 2000): filmar em celuloide, digitalizar o filme todo, fazer a correção de cor com intermediação digital (o que em tese ampliava as possibilidades em relação ao processo analógico) e depois imprimir novamente o filme em negativo. A intermediação digital já havia sido usada, mas em filmes com grandes efeitos especiais e apenas em cenas específicas. O processo para um filme inteiro e em função, principalmente, da correção de cor, foi pioneiro.
Mas não é apenas o visual dessaturado que se destaca na cinematografia de E Aí Meu Irmão, Cadê Você? Há cenas, principalmente as noturnas, em que as luzes (de faróis de carro ou de tochas e fogueiras) fazem as cores ganhar força, lembram uma iluminação teatral ou operística, com luzes quentes contrastando com a noite fria, quase azul. Essas cenas, em momento de alta dramaticidade, são um contraponto para o look descolorido. O trabalho de manipulação das cores, tanto no processo das filmagens como na pós-produção, abriu caminhos e criou padrões para muitos outros filmes do século XXI.
O filme abunda referências à Odisseia. O protagonista se chama Ulisses (o nome romano de Odisseu) e sua mulher, Penny (Penélope). O Cego Tirésias é o primeiro a ajudar o trio no seu deslocamento e os brinda com uma profecia. John Goodman faz o papel do vilão que lembra o ciclope, as lavadeiras no rio lembram as sereias do poema grego. Essas e outras referências fariam Homero sentir-se plenamente homenageado, não fossem dar o seu nome a um dos personagens mais abjetos do filme, um político, candidato a governador, pretensamente reformista e membro da Klu Klux Klan. Esse é o humor sardônico da dupla Coen.
E Aí Meu Irmão, Cadê Você?, clássico do século XXI, inspirado em outro clássico que tem mais de dois mil anos entre transmissão oral e escrita, pode ser visto na Amazon Prime Vídeo.
August 31, 2023
Ladrão de Bicicletas

Filme de Vittorio de Sicca, Itália – 1948
Quando se fala em clássicos do cinema, um dos filmes que entra em quase todas as listas é Ladrão de Bicicletas do ator de sucesso que virou diretor de ainda mais sucesso, Vittorio de Sicca. O filme é uma das obras de grande impacto do movimento neorrealista, que surgiu na Itália logo após a Segunda Guerra Mundial e o fim do regime fascista de Benito Mussolini.
De Sicca despontou inicialmente como ator dos filmes de telefone branco, filmes escapistas, alienados da realidade que eram mais ou menos o equivalente à telenovela brasileira de até pouco tempo. Os cenários de mansões e castelos continham todos um telefone branco, símbolo da burguesia abastada daquela época, as tramas eram frívolas e fantasiosas. O Neorrealismo nasceu como um movimento de oposição a esse tipo de cinema. Queria tratar de temas atuais numa Itália empobrecida e em reconstrução após a grande guerra e o período do regime fascista, queria retratar o dia a dia, os problemas e anseios das pessoas comuns. Recusava os cenários suntuosos e os estúdios, queria locações verdadeiras e filmagens nas ruas, muitas vezes com atores não atores.
De Sicca adere a esse movimento e cria uma cinematografia multipremiada. Em Ladrão de Bicicletas ele não narra uma história, mas retrata uma situação. A trama está toda a serviço dessa situação: o conflito moral do protagonista, o desempregado Antônio Ricci. Nessa construção despontam duas cenas chave no filme, que também são as mais impactantes como estética e gramatica audiovisual.
A primeira se apresenta nos minutos iniciais, quando Ricci vê um dos funcionários da casa de penhora indo guardar os lençóis que ele e sua mulher há pouco entregaram para tirar do prego a sua bicicleta. Ele acompanha o trajeto do funcionário que começa literalmente a escalar uma infinita estrutura de prateleiras que parece subir aos céus, lembrando a torre de babel (e a penúria generalizada).
A outra é a cena do conflito interno do protagonista, quase ao final do filme, na qual de Sicca usa magistralmente a montagem entre os planos de Antônio, do filho dele e o mundo de bicicletas paradas em frente ao estádio de futebol onde acontece um jogo. Essa montagem cria um labirinto ético, onde Ricci está perdido. Para esta cena, que é o ápice da obra, o diretor construiu todo o resto do filme. Nesta e na cena da penhora ele mostra toda sua genialidade na maneira de filmar. Ambas as sequencias são destituídas de diálogos. A ação, o movimento de câmera, os cortes e a expressão dos rostos cumprem o papel narrativo. É cinema puro.
Ladrão de Bicicletas ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1948, quando o cinema italiano e o neorrealismo chamavam atenção da crítica no mundo inteiro. Os filmes do movimento, no entanto, não geraram sucesso comercial. De Sicca continuou a trabalhar como ator em grandes produções para com isso poder financiar os seus filmes autorais. Muitos diretores da geração posterior que mantiveram a Itália no mapa das grandes cinematografias como Fellini, Antonioni, Bertolucci, Os irmãos Taviani, entre outros, beberam da fonte do neorrealismo.
Ladrão de Bicicletas pode ser visto na Amazon Prime Vídeo.
August 24, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Por Um Punhado de Dólares

Os filmes de faroeste deixaram um legado de duelos inesquecíveis nas telas dos cinemas. O duelo que aconteceu na semana passada na Comisssão Parlamentar de Inquérito sobre os atentados à democracia em Brasília, foi digno do clássico Por Um Punhado de Dólares, o Faroeste Spaghetti do lendário Sergio Leone.
De um lado estava o senador Moro Num País Tropical, também conhecido como ex-juíz da Lava Jato e ex-herói nacional, ex-Ministro da Justiça do ex-presidente B e, finalmente, senador ameaçado de ter seu mandato cassado por abuso de poder econômico. Do outro lado, o maior influencer político dos últimos anos na Casa do Baralho, não por ser youtuber, blogueiro ou jornalista, mas por ser o hacker que originou a Vaza Jato.
A Vaza Jato, para quem não lembra, foi a publicação de mensagens privadas hackeadas de celulares do então juiz e dos promotores da Lava Jato, revelando a sanha implacável e o conluio entre o juiz e os promotores para condenar o ex-presidente L à prisão. A publicação dessas conversas acabou causando a soltura do ex-presidente pelo Superior Tribunal Federal e desmoralizando o pouco que restava da moral de Moro Num País Tropical. L, tendo suas condenações anuladas, pôde concorrer às eleições de 2022 e derrotar B, eleito em 2018 quando L estava preso.
B, logo após ter vencido as eleições de 2018 havia convidado o então juiz para ser seu superministro da Justiça. Este prontamente aceitou. Na metade do mandato saiu do ministério, acusando o presidente de interferir no comando da polícia federal para proteger seus familiares de investigações criminais. Ostracizado pela esquerda e pela direita, imaginou que poderia emplacar como representante da terceira via nas eleições presidências de 2022, mas logo percebeu que era melhor concorrer como senador e abandonou o sonho presidencial.
O hacker estava na CPI como testemunha. Tão logo a polícia descobriu quem era o autor das invasões dos celulares, ele foi preso e sofreu processo. Esperava ajuda da campanha de L, mas se sentiu abandonado. Foi então convidado secretamente pelo presidente B para prestar alguns servicinhos sujos, como criar um falso código fonte para desmoralizar a urna eletrônica durante a campanha e com isso colocar dúvida no resultado da eleição caso L ganhasse. Prometeram um emprego para ele e essa foi a sua justificativa de aceitar cometer esses crimes, conscientemente. Por um punhado de dólares.
Moro Num País Tropical, que havia brigado com B e depois voltado a apoiá-lo, tentou desacreditar a testemunha que havia o desacreditado. Usou de sua experiência como juiz inquiridor e perguntou quantas vítimas o hacker havia feito como estelionatário. Parecia um tiro certeiro, mas o Hacker respondeu: eu li as suas mensagens privadas, senador, e posso aqui afirmar que o senhor é um criminoso contumaz. O Ex-juiz acusou o golpe e pediu proteção ao presidente da CPI que lhe disse que se ele exigia respeito, deveria também respeitar a testemunha.
O duelo seguiu nessa toada, mas como o palco era Brasília, o bangue bangue Spaghetti tava mais pra Pizza. Não havia mocinho, só bandido, e após um pesado tiroteio, saíram todos ilesos, apenas com alguns arranhões nas suas imagens já amplamente arranhadas. Quem levou a pior no confronto entre o senador e o hacker acabou sendo o ex-presidente B. Não, não foi bala perdida. Foi bomba de fragmentação.
Haverá consequências para o ex-presidente após o depoimento bombástico, ou essa denúncia terá de entrar na fila, atrás de outras tantas? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.


