Jaime Lerner's Blog, page 7
August 29, 2024
Totem

Filme de Lila Avilés – México 2023
O cinema mexicano vem nos brindando com uma geração de mulheres cineastas de muito talento despontado nos últimos anos, qualificando ainda mais um cinema vigoroso, diversificando temas e olhares. Diferente de Ruído de Natalia Berinstain, por exemplo, Avilés não explora os temas do narcotráfico, mortes violentas e desparecimentos de mulheres. Ela constrói seus dramas partindo de material mais rotineiro, porém de forma muito original. O México está presente em seus filmes por meio de gestos e atitudes, expressões da cultura local.
Totem, seu segundo longa-metragem, não apresenta propriamente uma história e sim uma situação, ou um recorte na vida de uma família. Quem conduz essa situação é o olhar de Sol, uma menina de sete anos, ansiosa para ver seu pai que está enfermo, enquanto perambula pela casa do avô, entre tias e primos. Há momentos em que o filme a deixa para mostrar outras perspectivas até voltar a ela, em movimentos que lembram um minueto. Essa dança é muito bem desenhada pela câmera passeante de Diego Tenório que assina a direção de fotografia. Ele também opera a câmera cujos movimentos e composições de quadro são grandes responsáveis pela forma sensivelmente diferente e peculiarmente sensível de Totem.
Totem não cativa desde o início. Há certa estranheza nos personagens e nas suas relações, até que, guiados por Sol, começamos a conhecê-los melhor, a eles e a casa que é também um personagem, que me fez lembrar os casarões imponentes/decadentes dos livros de Garcia Marques. Aos poucos, o filme vai nos envolvendo, vai nos abraçando e revelando que é possível fazer um melodrama (mexicano), sem ser melodramático. E é possível lançar uma mirada iluminada, até com humor, sobre uma vivência trágica.
Aviles, que também escreveu o roteiro, dá muita importância aos nomes dos personagens e seus significados, como se verá ao longo do filme. Sua protagonista, Sol, tem a missão de lançar essa luz, enquanto amadurece precocemente pelo evento trágico.
Totem também expressa o lado da cultura mexicana que lida com a morte ou com os mortos em uma festa cheia de cor, oferendas e alegria. Essa dualidade é muito bem trabalhada no filme, e se constitui em um de seus pontos fortes.
Aviles dirige Totem como se fosse um grande improviso, não só nos movimentos de câmera já mencionados, como nos diálogos, mis-em-scène e o estilo de atuação. A sensação é de grande espontaneidade e o resultado é que acreditamos totalmente e nos envolvemos profundamente no drama de Sol e de seu pai.
A diretora dedica o filme à sua filha, que quando criança viveu situação semelhante à de Sol.
Totem pode ser visto na Netlfix.
August 22, 2024
A Caça

Filme de Thomas Vinterberg – Dinamarca, 2012
Thomas Vinterberg é um dos fundadores do Dogma 95, movimento de cineastas dinamarqueses que tentou ressuscitar, no final do século passado, o impacto dos grandes movimentos da cinematografia europeia como o Neorrealismo Italiano e a Nouvele Vague na França. Queriam com isso dar visibilidade a seus filmes e se opor, ainda que apenas ideologicamente e esteticamente, ao cinema dominante de Hollywood. Os diretores que participavam do Dogma faziam um “voto de castidade” que incluía não usar trilha sonora, efeitos especiais, iluminação artificial e filtros, só trabalhar com câmera na mão, não filmar em estúdio e por aí vai, medidas que visavam despir os filmes de tudo que denominavam ferramentas artificiais.
O primeiro filme do Dogma foi Festen, Festa de Família em português, que fez despontar o talento de Viterberg e para mim é, de longe, o melhor filme desse movimento.
A Caça já não é um filme do Dogma. Mas a obra mantém algumas opções estéticas do movimento. É um filme tenso do início ao fim, porém sem o auxílio de uma trilha sonora para criar ou realçar esse clima. A força do filme está no roteiro e no trabalho de atores, dois elementos que em A Caça se apresentam de forma magistral.
O roteiro constrói, de uma sucessão de situações ordinárias, o pesadelo kafkiano que irá se abater sobre o protagonista. A “antagonista”, deflagradora de toda a situação é uma criança inocente, e fez o que fez por amor. O grande vilão é a comunidade, que assim como a instituição família em Festa de Família, sofre uma crítica atroz sob as lentes de Thomas. Por pressão da comunidade, a amizade é posta à prova em um grupo de amigos, e o grupo não passa no teste, apenas dois indivíduos.
Mas o grupo de amigos não sabe o que o espectador sabe, e o dilema que se apresenta para eles, se apresentaria para cada um de nós se não soubéssemos o que já sabemos. Qual seria nossa opção nessa caçada moral? Nesse sentido, A Caça se aprofunda na questão de o quanto as instituições que erguemos para nos proteger, realmente cumprem essa função, mas de maneira mais complexa do que Festa de Família.
O filme não teria atingido o impacto que atinge, se qualquer um dos atores destoasse da excelência orquestrada pelo diretor no tom da interpretação. Todos entregam uma performance coesa, de alto nível, protagonistas e coadjuvantes, crianças e adultos. Destaque para Mads Mikkelsen como Lucas, que faturou o prêmio de melhor ator em Cannes e Annika Wederkkop como Klara, que na época das filmagens tinha 7 anos.
Acrescente a isso a maneira de Viterberg filmar, usando muitas vezes a câmera viva, ou seja uma câmera na mão, com pequenas oscilações mesmo quando parada, que transmite a tensão que está se construindo na pacata e amigável comunidade. E o desenho de luz, que foge das regras do Dogma, mas constrói os ambientes e as atmosferas das cenas de forma muito orgânica.
A Caça pode ser visto na Netflix.
August 14, 2024
Os Desorientados

Livro de Amin Maalluf, França/Líbano 2012
Amin é um escritor que nasceu e cresceu no Líbano. Em 1976, durante a guerra civil que assolou o país e praticamente iniciou a sua destruição, ele mudou-se para França. Tinha 27 anos.
O protagonista do livro, Adam, fez o mesmo trajeto. Não é escritor, é um historiador, mas como tal, é autor de vários livros. Nunca mais voltou ao país e nem pretendia, até que um telefonema da mulher de seu ex-melhor-amigo o fez comprar a passagem.
A narrativa dessa jornada de Adam por sua antiga terra me tocou profundamente. Os temas do personagem que tem duas pátrias e se sente deslocado em ambas, o choque cultural e religioso entre ocidente e oriente e entre árabes cristões e muçulmanos, a vontade de resgatar um tempo (e as amizades daquele tempo) perdido são entrelaçados com extrema sensibilidade.
Apesar do peso das questões e situações abordadas, há uma leveza no texto, regada de humor, amor, ironia e sensualidade. O peso e a leveza desenham o emaranhado kafkiano daquela guerra civil que enredou a geração de Adam. Há ingenuidade em algumas subtramas e genialidade em outras, como na história de Albert que foi sequestrado quando estava a caminho de casa para… suicidar-se. Curiosamente, o autor não menciona o nome do país uma única vez, mas deixa claro de que nação se trata.
Os Desorientados foi publicado em 2012 (no Brasil, em 2014), mas lendo-o nesses dias em que o oriente médio ameaça incendiar uma nova guerra mundial, dá a impressão de que foi escrito na semana passada.
Amin fala muito bem o árabe, mas escreve em francês. Desde 2011 é membro da Academia Francesa de Letras e atualmente (desde 2023), seu dirigente. Você pode ler uma amostra e/ou adquirir o livro em:
August 8, 2024
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Caindo de Maduro

Enquanto Trampo e Calma Lá Harris se digladiam em turbulenta campanha eleitoral (ver episódio anterior), na Venezuela, o presidente vitalício Mauduro mostra por que é mau e o quanto é duro.
No final do ano passado, após longas negociações que resultaram no acordo de Barbados, ele conseguiu a seguinte barbada: a comunidade internacional aliviava as sanções econômicas e ele prometia fazer eleições livres e transparentes na Venezuela. Até soltou das prisões o pessoal da oposição para que achassem um candidato. Marcou as eleições e jogou o jogo até poucos dias antes do pleito, quando bradou em comício que se não ganhasse as eleições o país teria um banho de sangue.
O presidente L, que pagou pau para Mauduro no passado recente, dizendo que a Venezuela vivia em pleno regime democrático, levou um susto. Seu protegido tava querendo exatamente o quê? Declarou que num regime democrático se leva um banho de votos e não de sangue e quem perde dá tchau e vai pra casa.
“Quem levou um susto que tome chá de camomila” – foi a reação dura de Mauduro, sem mencionar nomes.
O ex-presidente da Argentina, também um líder da esquerda, que iria como observador internacional, foi desconvidado após também criticar as falas do presidente venezuelano.
Eis que chegou o dia das eleições e as pessoas foram às urnas. Para evitar o banho de sangue prometido em campanha, o CNE, Conselho Nacional Eleitoral, proclamou o presidente novamente vencedor.
A oposição exigiu que o CNE apresentasse as atas das sessões eleitorais. As que eles tinham apontavam a vitória do candidato da oposição. Mauduro não gostou e mandou prender o pessoal novamente. As pessoas saíram às ruas em protesto. Levaram pau da polícia, com mortos e feridos. Observadores internacionais botaram o resultado em suspeição. Países que condenaram a atitude presidencial ou que reconheceram a vitória da oposição, tiveram seus diplomatas expulsos do país. Em outras palavras, Mauduro seguiu sendo Mauduro.
E o Brasil?
Bom, o governo ficou quieto, um silêncio longo e estranho. Mas o partido do presidente L correu a parabenizar MauDuro por sua vitória, fazendo coro com países de longa tradição democrática como China, Rússia e Cuba. MauDuro tentou ligar para L, mas este deixou a secretária eletrônica atender. Com medo de que o venezuelano o mande tomar chá de camomila, ou coisa até pior, decidiu que só fala com ele em conjunto com os presidentes do México e da Colômbia. Tudo que ele não precisa agora, há dois meses das eleições municipais, é ser identificado como paga pau de ditador.
Mas assim como o mundo espera que Mauduro entregue as atas, ou melhor, entregue o cargo, os brasileiros esperam que seu presidente, vítima de uma tentativa de golpe no oitavo dia de seu mandato, se manifeste.
Será que L, um político tão maduro, irá cair na esparrela do líder venezuelano? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
August 1, 2024
Drácula

Livro de Bram Stoker, Inglaterra – 1897
Drácula é mais do que um clássico da literatura. Não seria exagero dizer que o livro faz parte da construção de uma mitologia moderna que ultrapassa, inclusive, as fronteiras do gênero de literatura gótica. Não foi o primeiro romance de vampiro, mas foi o que lançou o holofote definitivo sobre o tema e marcou, feito uma bíblia, as leis da física desse universo.
Dezenas de obras na literatura, teatro e principalmente no cinema são inspirados no Lorde morto-vivo Drácula e/ou no caçador de vampiros Van Helsing. Coincidentemente, o livro foi publicado no mesmo ano em que o cinema foi inventado. E vinte e cinco anos depois, o genial F.W Murnau exibia o seu Nosferatu nas telas do mundo, um dos filmes importantes do Expressionismo Alemão, e o primeiro de muitos que contam a história de Drácula.
O texto de Stoker, além da impressionante narrativa gótica tem outras peculiaridades: ele não é narrado em primeira pessoa, nem tem um narrador onipresente. É basicamente uma montagem/compilação de textos de diários, cartas e telegramas de vários personagens, além de uma ou outra reportagem de jornal. Essas narrativas distintas acabam cobrindo um mesmo evento de vários ângulos, mas ao mesmo tempo, deixam o leitor em suspense por não saber mais do que lhe é oferecido pela vivência dos narradores.
Além disso, essa coleção de relatos, a maioria deles em primeira pessoa, acaba conferindo um ar de veracidade à trama fantasiosa. Entre todos esses relatos, o diário de Jonathan Harker, que ocupa toda a primeira parte do livro, é de longe o mais impactante.
Outro elemento que confere essa veracidade é o tom virtualmente científico do romance. No final do século IX, quando Drácula foi escrito, a ciência e tecnologia ocupavam um espaço importante na mente das pessoas, principalmente no ocidente. Entre os cinco antagonistas do conde vampiro, dois são médicos. Os dois aplicam seus conhecimentos científicos para tentar entender o que está acontecendo, porém com a “mente aberta”. E o fato que o doutor Van Helsing estuda antigas superstições e faz uso desse conhecimento para combater o morto-vivo de forma “científica”, une progresso e atraso de forma muito interessante.
Vale destacar também o papel da mulher no romance. A conotação dos assédios vampirescos com o ato sexual é mais do que evidente. Há mulheres tanto na horda dos vampiros, como entre os protagonistas do bem. E Lucy, uma jovem encantadora, acaba sendo vítima do conde, e depois torna-se uma vampira-predadora, participando assim dos dois universos. Todas essas mulheres têm função importante, e apesar de muitas vezes o livro descrever a mulher como assistente dos homens, há um protagonismo especial, e surpreendente para a época, na figura de Mina Harker que tem “inteligência e coragem de um homem”.
Isso pode soar altamente depreciativo em dias atuais, porém vale lembrar que as mulheres conquistaram o direito de voto na Inglaterra, apenas em 1918, após uma luta muito árdua (no Brasil isso aconteceu em 1932). Eram consideradas seres frágeis, fisicamente e emocionalmente, que deveriam ser protegidas e tuteladas por seus pais, irmãos e maridos. A Revolução Francesa que elaborou a declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão, acabou guilhotinando Olympe de Gauges que criou, como resposta, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.
Outros filmes de vampiros que recomendo, além do já mencionado Nosferatu: Drácula de 1931 com Bela Lugosi, direção de Tod Browning; A Dança dos Vampiros que mescla terror e comédia, de 1967, direção de Roman Polansky; Drácula de Bram Stoker de 1992, direção de Coppola e protagonismo de Gary Oldman; Entrevista com Vampiro de 1994, direção de Neil Jordan.
Leia uma amostra do romance de Stoker, ou adquira-o por aqui:
July 25, 2024
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Orelha

Um duro embate foi deflagrado entre os roteiristas da Casa do Baralho do sul e seus colegas do norte. Os sulinos acusam os nortistas de plágio. Como é que eles pegam descaradamente o episódio do atentado ao candidato B, enfeitam daqui, tiram dali, trocam uma faca de cozinha por um fuzil e o transportam, sem nem pedir licença, para a campanha do ex-presidente Trampo?
Mas vocês são mesmo cara de pau, responderam os ianques, quase todas as peripécias do presidente B são uma cópia desavergonhada das estripulias Trampolinistas e vocês vêm falar em plágio?
Ah, é? Quem foi o primeiro a dizer que as urnas não eram confiáveis, mesmo quando ganhou as eleições?
E quem foi o primeiro a mandar seus eleitores atacarem o Congresso?
E quem foi o primeiro a fazer pouco da pandemia?
O presidente de vocês é tão chinelo, que veio correndo pra cá vender as joias que ganhou de presente dos sauditas.
Pelo menos o nosso chileno não foi condenado por roubar dinheiro da própria campanha pra pagar o silêncio de uma atriz pornô!!!
Os insultos teriam chegado à vias de fato, não fosse o canal do Panamá e mais sete países separarem os litigantes. Mesmo assim, a direção da série teve que intervir, ordenando os roteiristas do Norte que dessem um norte completamente diferente para a continuação da série.
A mesma ordem foi dada para os marqueteiros da campanha do Jo(vem) Biteme. Não bastasse as trapalhadas do candidato no primeiro debate, surgiu esse atentado para coroar Trampo com indícios de uma vitória acachapante e um curativo na ponta da orelha.
O ex-presidente conseguiu ainda um outro feito: teve uma experiência de quase morte, sem nem mesmo ter desmaiado. A bala que pegou de raspão na sua orelha, teria-o matado, não tivesse virado a cabeça naquele exato momento. Era para eu ter morrido, concluiu. E resolveu que precisava mudar de paradigma, acabar com o tom virulento da disputa. Isso apavorou seus assessores. Trampinho paz e amor seria o fim da campanha. Para alívio geral, esse novo paradigma não sobreviveu aos primeiros dez minutos da convenção Trampolinista.
Mas o alívio não durou muito. Como os marqueteiros do Biteme não podiam bolar mais um atentado, resolveram virar o jogo eliminando…o candidato. A renúncia do presidente à reeleição, logo após a convenção Trampolinista, pegou os adversários sem calças. A notícia conseguiu ocupar toda a mídia e mais ainda, inutilizou o carro chefe dos ataques Trampistas: o etarismo. Agora, o candidato velho é o Trampo.
Como atacar a jovem Calma Lá Harris? Quais outras viradas radicais nos esperam nos dias vindouros? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
July 18, 2024
Partiu, Vila Lobo!

Foi dada a largada para o desenvolvimento da série Vila Lobo, projeto contemplado pelo edital de produção audiovisual da Lei Paulo Gustavo, através da SEDAC-RS. A série será destinada ao público jovem e adolescente e tem argumento de Fausto Prado, Luiz Santana e meu. A primeira ação do projeto foi a da contrapartida: três oficinas para alunos da EMEF Villa Lobos, escola municipal na Vila Mapa – Lomba do Pinheiro.
A escola, através da Orquestra Villa Lobos e sua coordenadora (e idealizadora) Cecília Rheingantz Silveira, ajudou-nos na pré pesquisa para o projeto e seguirá nos ajudando na pesquisa para o desenvolvimento de roteiro. Nada mais natural, portanto, que o colégio fosse o beneficiado pelas ações de contrapartida.
As oficinas foram ministradas pelos três associados do projeto e autores do argumento. A de Roteiro ficou a cargo de Luiz Santana.

A de Trilha para Filme ficou sob a batuta de Fausto Prado com o apoio de Tiago Becker como técnico de som.

A de Direção, foi dada por mim.

Adorei a minha turma. Gurizada atilada, curiosa e interessada, movida pela inquietude da sede de conhecimento. Meus parceiros de oficinas, tiveram a mesma experiência em suas aulas.
Agradecemos à diretoria da escola e principalmente às professoras Cecília Rheingantz e Luíza Abrantes que nos receberam e nos acompanharam nas aulas, e tiraram as fotos.
Na equipe do projeto de desenvolvimento participam ainda a roteirista Kaya Rodrigues, a produtora executiva Cíntia Helena Rodrigues, a dupla da Nexus Assessoria Contábil, Andrea Gravina Azevedo e João Batista Azevedo e o artista gráfico Flávio Wild. Em breve devemos fechar os nomes da/o assistente de roteiro e de quem fará as consultorias de roteiro e do plano de acessibilidade.
Que venha a sala de roteiro de Vila Lobo!!!
July 11, 2024
Drive My Car

Filme de Ryusuke Hamaguchi, 2021 + conto de Haruki Murakami, Japão + música dos Beatles 1965, Inglaterra
“Baby you can drive my car, yes I´m gonna be a star, baby you can drive my car, and maybe I´ll love you.”
Drive My Car é um conto de Haruki Murakami, cujo título homenageia a canção de McCartney e Lennon. O autor japonês é fã de jazz e dos Beatles, e tem outra obra, Norwegian Wood com o mesmo título da música da banda liverpoolania. O conto, além do título, nada tem a ver com a música.
Paul McCartney declarou que drive my car era um eufemismo usado no blues para sexo. Assim que a música tem um duplo sentido. E embora o conto seja tecido em torno da relação entre o dono do carro e a motorista que, contrariado, ele é obrigado a contratar; e o sexo (não entre esses dois protagonistas), tenha uma presença importante no conto, as duas obras nada têm em comum em termos de conteúdo, clima e profundidade.
O conto curto de Murakami foi adaptado para a tela grande pelo diretor Ryusuke Hamaguchi, resultando num filme de quase três horas de duração. A obra beira a perfeição durante duas horas e quarenta minutos.
A trama intricada que fala sobre traumas e intimidade e sobre o mistério nas relações, é construída meticulosamente, tendo em paralelo os ensaios para a peça Tio Vânia de Anton Tchekhov. É incrível como o texto da peça russa do século XIX é integrado na trama e como ele se insere na exposição dos personagens e seus conflitos no Japão do século XXI. O fato de a peça ser apresentada em três idiomas diferentes, também remete à universalidade da arte, e cria, muitas vezes, um clima de Torre de Babel nos ensaios.
O trabalho de atores é de uma precisão e delicadeza tocante (especialmente todo o elenco feminino), e a direção de atores, a articulação das cenas e planos, é magistral. Não é de se admirar que o filme faturou o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, além de muitos outros prêmios. No entanto, algo acontece nos 20 minutos finais que coloca o carro dirigido por Hamaguchi na contramão de todas as qualidades mencionadas até aqui.
A partir do momento em que um dos atores de teatro é preso por espancar uma pessoa que acaba morrendo, o filme começa a empilhar drama sobre drama, desviando do ritmo e tom dominantes e pegando a estrada do melodrama exacerbado. As falas do roteiro sensível dão lugar a frases que lembram livros de autoajuda e isso afeta também o trabalho de atores que vinha sendo primoroso. A cena derradeira da apresentação teatral salva um pouco essa derrocada, mas o filme, sem essa derrocada, seria mais curto e absolutamente genial.
Drive My Car está disponível na Netflix, na Apple TV e no Canal Mubi.
O conto de Murakami se encontra no livro Homens Sem Mulheres, publicado no Brasil pela Alfaguara.
July 4, 2024
Ismail Kadaré

Faleceu, aos 88 anos, o albanês mais conhecido fora da Albânia. Talvez o nome do ditador Enver Hoxha tenha sido mais famoso, mas se a qualidade da fama vale, o escritor Ismail Kadaré vence de longe. Os escritos de Kadaré romperam os muros de uma sociedade quase hermeticamente fechada e ganharam o mundo, oferecendo um vislumbre do que acontecia no mais pobre país da Europa, em textos inteligentes, ácidos e cheios de magia.
Kadaré, um dos escritores proeminentes da Albânia após a Segunda Guerra Mundial, teve a permissão do governo comunista para viajar e publicar no exterior, uma espécie de embaixador cultural do país. Porém logo em seguida, quando a crítica ao totalitarismo imbuída em seus textos começou a ser percebida pelos burocratas do partido, as autoridades revogaram essas prerrogativas além de proibi-lo de publicar por três anos.
Kadaré aprendeu a sobreviver como escritor em um regime totalitário, em que até as fotocópias em xerox eram controladas pelo governo, dissidentes e escritores eram presos e mortos. Ele dizia que o escritor é o inimigo natural das ditaduras, e sua pena afiada comprovava essa visão. Teve que contrabandear vários de seus manuscritos para serem publicados na França, para onde se mudou em 1990, após anos de recusa de se exilar. Em 1999, já após o fim do regime comunista, voltou.
No Brasil ficou conhecido quando o romance Abril Despedaçado (1978) foi adaptado para o cinema e para a realidade do nordeste brasileiro por Walter Salles, em 2001.
Em 2005 ele inaugurou o prêmio internacional do Booker Man Award, dado até então apenas a escritores de língua inglesa.
No Brasil foram publicados pela Companhia das Letras os romances: Abril Despedaçado, Dossiê H, O Jantar Errado, O Acidente, Crônica na Pedra, Uma Questão de Loucura, Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek, Os Tambores da Chuva, A Pirâmide, O Palácio dos Sonhos, Concerto no Fim do Inverno e A Filha de Agamenon e o Sucessor. Para ler a resenha deste último clique aqui.
A editora prepara para setembro o lançamento de Um Ditador na Linha, romance que apresenta uma conversa imaginária por telefone entre Stálin e Boris Pasternak, o autor de Doutor Jivago, que foi tragicamente perseguido pelo líder soviético após a publicação dessa obra.
June 27, 2024
Rio, 40 Graus

Filme de Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1955
A Netflix licenciou, na semana passada, 18 filmes brasileiros lançados entre 1955 e 2019. Três deles de autoria de Nelson Pereira dos Santos. Infelizmente, o maravilhoso A Música Segundo Tom Jobim, não está entre eles. No entanto, Rio, 40 Graus tido como uma das obras mais importantes do cinema brasileiro, pode ser visto na plataforma de Streaming.
O filme abre com imagens de “cartão postal” da cidade maravilhosa como fundo para os créditos iniciais, boa parte delas imagens aéreas. Após essa abertura corta para uma câmera baixa apontada para a favela no íngreme morro do Cabuçu. Lá, cinco meninos negros se preparam para vender amendoim num domingo de sol na cidade do Rio de Janeiro. Se espalharão entre o Maracanã, o Pão de Açúcar, O Corcovado, Quinta da Boa Vista e a praia de Copacabana.
Nelson, grande fã do neorrealismo italiano, revolucionou a maneira de filmar aqui pelos trópicos, usando locações reais e misturando seus atores com o movimento das ruas, do estádio etc. Muitos desses atores, eram não atores, ou seja, tiveram sua primeira experiência frente às câmeras. Isso sopra um ar documental no filme, embora a estética (luz, uso da trilha sonora, ângulos e movimentos de câmera) permanece do cinema tradicional.
Outra grande inovação para a época: o filme não tem uma trama central, nem protagonistas. A câmera flana entre os diversos personagens e subtramas, criando um mosaico que espelha os contrastes entre a pobreza, a classe média e a burguesia, mas mais do que isso (e esse pra mim foi o grande barato de assistir o filme, quase setenta anos após seu lançamento) cria um ensaio antropológico sobre a alma da cidade, então capital do país, e portanto, sobre a alma brasileira. Nesse retratar a alma, o filme continua chocantemente atual.
Alguns dos dramas apresentados lembram outro Nelson, o Rodrigues, cronista e dramaturgo que mergulhou fundo na alma e na lama da sociedade carioca.

Rio, 40 Graus ficou censurado para exibição por um ano, por ser considerado “comunista” ao inserir a miséria e a pobreza na Cidade Maravilhosa, e indecoroso por usar gíria em seus diálogos. Estreou em 1956 influenciando fortemente os então futuros realizadores do movimento que iria eclodir nos anos 1960, o Cinema Novo.
Cabe aqui uma menção especial à Cinemateca Brasileira que restaurou este e outros filmes, em condições precárias, típicas de um país que não preserva a sua memória audiovisual. O filme foi restaurado a partir de um internegativo que foi encontrado na República Tcheca. Nenhuma matriz (negativo ou mesmo internegativo) foi encontrada no Brasil.
Nelson Pereira dos Santos Faleceu em 2018, aos noventa anos.


