Jaime Lerner's Blog, page 7

August 1, 2024

Drácula

Livro de Bram Stoker, Inglaterra – 1897

Drácula é mais do que um clássico da literatura. Não seria exagero dizer que o livro faz parte da construção de uma mitologia moderna que ultrapassa, inclusive, as fronteiras do gênero de literatura gótica. Não foi o primeiro romance de vampiro, mas foi o que lançou o holofote definitivo sobre o tema e marcou, feito uma bíblia, as leis da física desse universo.

Dezenas de obras na literatura, teatro e principalmente no cinema são inspirados no Lorde morto-vivo Drácula e/ou no caçador de vampiros Van Helsing. Coincidentemente, o livro foi publicado no mesmo ano em que o cinema foi inventado. E vinte e cinco anos depois, o genial F.W Murnau exibia o seu Nosferatu nas telas do mundo, um dos filmes importantes do Expressionismo Alemão, e o primeiro de muitos que contam a história de Drácula.

O texto de Stoker, além da impressionante narrativa gótica tem outras peculiaridades: ele não é narrado em primeira pessoa, nem tem um narrador onipresente. É basicamente uma montagem/compilação de textos de diários, cartas e telegramas de vários personagens, além de uma ou outra reportagem de jornal. Essas narrativas distintas acabam cobrindo um mesmo evento de vários ângulos, mas ao mesmo tempo, deixam o leitor em suspense por não saber mais do que lhe é oferecido pela vivência dos narradores.

Além disso, essa coleção de relatos, a maioria deles em primeira pessoa, acaba conferindo um ar de veracidade à trama fantasiosa. Entre todos esses relatos, o diário de Jonathan Harker, que ocupa toda a primeira parte do livro, é de longe o mais impactante.

Outro elemento que confere essa veracidade é o tom virtualmente científico do romance. No final do século IX, quando Drácula foi escrito, a ciência e tecnologia ocupavam um espaço importante na mente das pessoas, principalmente no ocidente. Entre os cinco antagonistas do conde vampiro, dois são médicos. Os dois aplicam seus conhecimentos científicos para tentar entender o que está acontecendo, porém com a “mente aberta”. E o fato que o doutor Van Helsing estuda antigas superstições e faz uso desse conhecimento para combater o morto-vivo de forma “científica”, une progresso e atraso de forma muito interessante.

Vale destacar também o papel da mulher no romance. A conotação dos assédios vampirescos com o ato sexual é mais do que evidente. Há mulheres tanto na horda dos vampiros, como entre os protagonistas do bem. E Lucy, uma jovem encantadora, acaba sendo vítima do conde, e depois torna-se uma vampira-predadora, participando assim dos dois universos. Todas essas mulheres têm função importante, e apesar de muitas vezes o livro descrever a mulher como assistente dos homens, há um protagonismo especial, e surpreendente para a época, na figura de Mina Harker que tem “inteligência e coragem de um homem”.

Isso pode soar altamente depreciativo em dias atuais, porém vale lembrar que as mulheres conquistaram o direito de voto na Inglaterra, apenas em 1918, após uma luta muito árdua (no Brasil isso aconteceu em 1932). Eram consideradas seres frágeis, fisicamente e emocionalmente, que deveriam ser protegidas e tuteladas por seus pais, irmãos e maridos. A Revolução Francesa que elaborou a declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão, acabou guilhotinando Olympe de Gauges que criou, como resposta, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.

Outros filmes de vampiros que recomendo, além do já mencionado Nosferatu: Drácula de 1931 com Bela Lugosi, direção de Tod Browning; A Dança dos Vampiros que mescla terror e comédia, de 1967, direção de Roman Polansky; Drácula de Bram Stoker de 1992, direção de Coppola e protagonismo de Gary Oldman; Entrevista com Vampiro de 1994, direção de Neil Jordan.

Leia uma amostra do romance de Stoker, ou adquira-o por aqui:

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Published on August 01, 2024 08:23

July 25, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Orelha

Um duro embate foi deflagrado entre os roteiristas da Casa do Baralho do sul e seus colegas do norte. Os sulinos acusam os nortistas de plágio. Como é que eles pegam descaradamente o episódio do atentado ao candidato B, enfeitam daqui, tiram dali, trocam uma faca de cozinha por um fuzil e o transportam, sem nem pedir licença, para a campanha do ex-presidente Trampo?

Mas vocês são mesmo cara de pau, responderam os ianques, quase todas as peripécias do presidente B são uma cópia desavergonhada das estripulias Trampolinistas e vocês vêm falar em plágio?

Ah, é? Quem foi o primeiro a dizer que as urnas não eram confiáveis, mesmo quando ganhou as eleições?

E quem foi o primeiro a mandar seus eleitores atacarem o Congresso?

E quem foi o primeiro a fazer pouco da pandemia?

O presidente de vocês é tão chinelo, que veio correndo pra cá vender as joias que ganhou de presente dos sauditas.

Pelo menos o nosso chileno não foi condenado por roubar dinheiro da própria campanha pra pagar o silêncio de uma atriz pornô!!!

Os insultos teriam chegado à vias de fato, não fosse o canal do Panamá e mais sete países separarem os litigantes. Mesmo assim, a direção da série teve que intervir, ordenando os roteiristas do Norte que dessem um norte completamente diferente para a continuação da série.

A mesma ordem foi dada para os marqueteiros da campanha do Jo(vem) Biteme. Não bastasse as trapalhadas do candidato no primeiro debate, surgiu esse atentado para coroar Trampo com indícios de uma vitória acachapante e um curativo na ponta da orelha.

O ex-presidente conseguiu ainda um outro feito: teve uma experiência de quase morte, sem nem mesmo ter desmaiado. A bala que pegou de raspão na sua orelha, teria-o matado, não tivesse virado a cabeça naquele exato momento. Era para eu ter morrido, concluiu. E resolveu que precisava mudar de paradigma, acabar com o tom virulento da disputa. Isso apavorou seus assessores. Trampinho paz e amor seria o fim da campanha. Para alívio geral, esse novo paradigma não sobreviveu aos primeiros dez minutos da convenção Trampolinista.

Mas o alívio não durou muito. Como os marqueteiros do Biteme não podiam bolar mais um atentado, resolveram virar o jogo eliminando…o candidato. A renúncia do presidente à reeleição, logo após a convenção Trampolinista, pegou os adversários sem calças. A notícia conseguiu ocupar toda a mídia e mais ainda, inutilizou o carro chefe dos ataques Trampistas: o etarismo. Agora, o candidato velho é o Trampo.

Como atacar a jovem Calma Lá Harris? Quais outras viradas radicais nos esperam nos dias vindouros? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on July 25, 2024 08:07

July 18, 2024

Partiu, Vila Lobo!

Foi dada a largada para o desenvolvimento da série Vila Lobo, projeto contemplado pelo edital de produção audiovisual da Lei Paulo Gustavo, através da SEDAC-RS. A série será destinada ao público jovem e adolescente e tem argumento de Fausto Prado, Luiz Santana e meu. A primeira ação do projeto foi a da contrapartida: três oficinas para alunos da EMEF Villa Lobos, escola municipal na Vila Mapa – Lomba do Pinheiro.

A escola, através da Orquestra Villa Lobos e sua coordenadora (e idealizadora) Cecília Rheingantz Silveira, ajudou-nos na pré pesquisa para o projeto e seguirá nos ajudando na pesquisa para o desenvolvimento de roteiro. Nada mais natural, portanto, que o colégio fosse o beneficiado pelas ações de contrapartida.

As oficinas foram ministradas pelos três associados do projeto e autores do argumento. A de Roteiro ficou a cargo de Luiz Santana.

A de Trilha para Filme ficou sob a batuta de Fausto Prado com o apoio de Tiago Becker como técnico de som.

A de Direção, foi dada por mim.

Adorei a minha turma. Gurizada atilada, curiosa e interessada, movida pela inquietude da sede de conhecimento. Meus parceiros de oficinas, tiveram a mesma experiência em suas aulas. 

Agradecemos à diretoria da escola e principalmente às professoras Cecília Rheingantz e Luíza Abrantes que nos receberam e nos acompanharam nas aulas, e tiraram as fotos.

Na equipe do projeto de desenvolvimento participam ainda a roteirista Kaya Rodrigues, a produtora executiva Cíntia Helena Rodrigues, a dupla da Nexus Assessoria Contábil, Andrea Gravina Azevedo e João Batista Azevedo e o artista gráfico Flávio Wild.  Em breve devemos fechar os nomes da/o assistente de roteiro e de quem fará as consultorias de roteiro e do plano de acessibilidade.

Que venha a sala de roteiro de Vila Lobo!!!

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Published on July 18, 2024 06:48

July 11, 2024

Drive My Car

Filme de Ryusuke Hamaguchi, 2021 + conto de Haruki Murakami, Japão + música dos Beatles 1965, Inglaterra

“Baby you can drive my car, yes I´m gonna be a star, baby you can drive my car, and maybe I´ll love you.”

Drive My Car é um conto de Haruki Murakami, cujo título homenageia a canção de McCartney e Lennon. O autor japonês é fã de jazz e dos Beatles, e tem outra obra, Norwegian Wood com o mesmo título da música da banda liverpoolania. O conto, além do título, nada tem a ver com a música.

Paul McCartney declarou que drive my car era um eufemismo usado no blues para sexo. Assim que a música tem um duplo sentido. E embora o conto seja tecido em torno da relação entre o dono do carro e a motorista que, contrariado, ele é obrigado a contratar; e o sexo (não entre esses dois protagonistas), tenha uma presença importante no conto, as duas obras nada têm em comum em termos de conteúdo, clima e profundidade.

O conto curto de Murakami foi adaptado para a tela grande pelo diretor Ryusuke Hamaguchi, resultando num filme de quase três horas de duração. A obra beira a perfeição durante duas horas e quarenta minutos.

A trama intricada que fala sobre traumas e intimidade e sobre o mistério nas relações, é construída meticulosamente, tendo em paralelo os ensaios para a peça Tio Vânia de Anton Tchekhov. É incrível como o texto da peça russa do século XIX é integrado na trama e como ele se insere na exposição dos personagens e seus conflitos no Japão do século XXI.  O fato de a peça ser apresentada em três idiomas diferentes, também remete à universalidade da arte, e cria, muitas vezes, um clima de Torre de Babel nos ensaios.

O trabalho de atores é de uma precisão e delicadeza tocante (especialmente todo o elenco feminino), e a direção de atores, a articulação das cenas e planos, é magistral. Não é de se admirar que o filme faturou o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, além de muitos outros prêmios. No entanto, algo acontece nos 20 minutos finais que coloca o carro dirigido por Hamaguchi na contramão de todas as qualidades mencionadas até aqui.

A partir do momento em que um dos atores de teatro é preso por espancar uma pessoa que acaba morrendo, o filme começa a empilhar drama sobre drama, desviando do ritmo e tom dominantes e pegando a estrada do melodrama exacerbado. As falas do roteiro sensível dão lugar a frases que lembram livros de autoajuda e isso afeta também o trabalho de atores que vinha sendo primoroso.  A cena derradeira da apresentação teatral salva um pouco essa derrocada, mas o filme, sem essa derrocada, seria mais curto e absolutamente genial.

Drive My Car está disponível na Netflix, na Apple TV e no Canal Mubi.

O conto de Murakami se encontra no livro Homens Sem Mulheres, publicado no Brasil pela Alfaguara.

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Published on July 11, 2024 06:33

July 4, 2024

Ismail Kadaré

Faleceu, aos 88 anos, o albanês mais conhecido fora da Albânia. Talvez o nome do ditador Enver Hoxha tenha sido mais famoso, mas se a qualidade da fama vale, o escritor Ismail Kadaré vence de longe. Os escritos de Kadaré romperam os muros de uma sociedade quase hermeticamente fechada e ganharam o mundo, oferecendo um vislumbre do que acontecia no mais pobre país da Europa, em textos inteligentes, ácidos e cheios de magia. 

Kadaré, um dos escritores proeminentes da Albânia após a Segunda Guerra Mundial, teve a permissão do governo comunista para viajar e publicar no exterior, uma espécie de embaixador cultural do país. Porém logo em seguida, quando a crítica ao totalitarismo imbuída em seus textos começou a ser percebida pelos burocratas do partido, as autoridades revogaram essas prerrogativas além de proibi-lo de publicar por três anos.

Kadaré aprendeu a sobreviver como escritor em um regime totalitário, em que até as fotocópias em xerox eram controladas pelo governo, dissidentes e escritores eram presos e mortos. Ele dizia que o escritor é o inimigo natural das ditaduras, e sua pena afiada comprovava essa visão. Teve que contrabandear vários de seus manuscritos para serem publicados na França, para onde se mudou em 1990, após anos de recusa de se exilar. Em 1999, já após o fim do regime comunista, voltou.

No Brasil ficou conhecido quando o romance Abril Despedaçado (1978) foi adaptado para o cinema e para a realidade do nordeste brasileiro por Walter Salles, em 2001.

Em 2005 ele inaugurou o prêmio internacional do Booker Man Award, dado até então apenas a escritores de língua inglesa.

No Brasil foram publicados pela Companhia das Letras os romances: Abril Despedaçado, Dossiê H, O Jantar Errado, O Acidente, Crônica na Pedra, Uma Questão de Loucura, Vida, Jogo e Morte de Lul Mazrek, Os Tambores da Chuva, A Pirâmide, O Palácio dos Sonhos, Concerto no Fim do Inverno e A Filha de Agamenon e o Sucessor. Para ler a resenha deste último clique aqui.

A editora prepara para setembro o lançamento de Um Ditador na Linha, romance que apresenta uma conversa imaginária por telefone entre Stálin e Boris Pasternak, o autor de Doutor Jivago, que foi tragicamente perseguido pelo líder soviético após a publicação dessa obra.

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Published on July 04, 2024 07:08

June 27, 2024

Rio, 40 Graus

Filme de Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1955

A Netflix licenciou, na semana passada, 18 filmes brasileiros lançados entre 1955 e 2019. Três deles de autoria de Nelson Pereira dos Santos. Infelizmente, o maravilhoso A Música Segundo Tom Jobim, não está entre eles. No entanto, Rio, 40 Graus tido como uma das obras mais importantes do cinema brasileiro, pode ser visto na plataforma de Streaming.

O filme abre com imagens de “cartão postal” da cidade maravilhosa como fundo para os créditos iniciais, boa parte delas imagens aéreas. Após essa abertura corta para uma câmera baixa apontada para a favela no íngreme morro do Cabuçu. Lá, cinco meninos negros se preparam para vender amendoim num domingo de sol na cidade do Rio de Janeiro.  Se espalharão entre o Maracanã, o Pão de Açúcar, O Corcovado, Quinta da Boa Vista e a praia de Copacabana.

Nelson, grande fã do neorrealismo italiano, revolucionou a maneira de filmar aqui pelos trópicos, usando locações reais e misturando seus atores com o movimento das ruas, do estádio etc. Muitos desses atores, eram não atores, ou seja, tiveram sua primeira experiência frente às câmeras. Isso sopra um ar documental no filme, embora a estética (luz, uso da trilha sonora, ângulos e movimentos de câmera) permanece do cinema tradicional.

Outra grande inovação para a época: o filme não tem uma trama central, nem protagonistas. A câmera flana entre os diversos personagens e subtramas, criando um mosaico que espelha os contrastes entre a pobreza, a classe média e a burguesia, mas mais do que isso (e esse pra mim foi o grande barato de assistir o filme,  quase setenta anos após seu lançamento) cria um ensaio antropológico sobre a alma da cidade, então capital do país, e portanto, sobre a alma brasileira. Nesse retratar a alma, o filme continua chocantemente atual.

Alguns dos dramas apresentados lembram outro Nelson, o Rodrigues, cronista e dramaturgo que mergulhou fundo na alma e na lama da sociedade carioca.

Rio, 40 Graus ficou censurado para exibição por um ano, por ser considerado “comunista” ao inserir a miséria e a pobreza na Cidade Maravilhosa, e indecoroso por usar gíria em seus diálogos. Estreou em 1956 influenciando fortemente os então futuros realizadores do movimento que iria eclodir nos anos 1960, o Cinema Novo.

Cabe aqui uma menção especial à Cinemateca Brasileira que restaurou este e outros filmes, em condições precárias, típicas de um país que não preserva a sua memória audiovisual. O filme foi restaurado a partir de um internegativo que foi encontrado na República Tcheca. Nenhuma matriz (negativo ou mesmo internegativo) foi encontrada no Brasil.

Nelson Pereira dos Santos Faleceu em 2018, aos noventa anos.

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Published on June 27, 2024 07:41

June 20, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Aborto

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

Qual será a próxima bomba da BBB no congresso? A sigla, neste caso não se refere ao Big Brother Brasil e sim à outra grande irmandade do show da reality brasileira, a das bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia. Esta irmandade ganhou tamanho poder e sintonia nas casas legislativas que chega a dar arrepios.

Para exibir sua musculatura sugaram, feito um aspirador, o poder do ministério do meio ambiente no início do governo L. Um soco no estomago do executivo. Depois resolveram legislar pelo Marco Temporal das terras indígenas, em pleno debate do STF sobre a constitucionalidade dessa tese estapafúrdia. Um tapa na cara do Judiciário.

Excitados, tentaram um pulo mais ousado, criando a lei que equipara aborto a homicídio, inclusive nos casos de estupro. Por este PL, a pena da vítima de estupro que praticar o aborto após 22 semanas da gestação será maior do que a do estuprador. Um chute nos rins das meninas, moças e mulheres de todo o país. Uma bomba no aparato de proteção à mulher.

Para demonstrar mais força ainda, conseguiram colocar o projeto em regime de urgência, evitando que seja debatido nas diversas comissões. E então descobriram que o passo foi maior que a perna.

A grita da sociedade, mulheres e homens, foi tão contundente que uma das deputadas coautoras da PL pediu para retirar sua assinatura após “ter lido o texto da proposta com maior atenção”. O Presidente da Câmara decidiu criar uma comissão que irá debater o projeto, o tempo que for necessário. Não que ele se importe normalmente com a opinião pública, mas este é um ano de eleição. E, portanto, tiveram que dar um recuo estratégico.

Para elevar a moral das tropas abatidas, os BBB já planejam a próxima bomba: a PEC da abolição. Uma emenda à constituição que irá abolir aquela ridícula Lei Aurea que aboliu a escravidão.  Hoje é sabido que a Princesa Isabel, que promulgou a maldita Lei em 1888, era comunista. Com uma penada despojou os cidadãos de bem do seu bem mais precioso, a força de trabalho escrava.  Cem anos depois, após o fim do regime militar, a Constituição Cidadã (quer nome mais comunista do que este?) foi além e ampliou direitos e proteção aos descendentes dos escravizados.

Nada melhor então do que essa PEC para ser um divisor de águas entre o Brasil atual e aquele país de glorioso passado, onde cada sujeito e sujeita sabiam o seu lugar. É um projeto perfeito para as três bancadas: a do Boi vai enriquecer mais ainda, sem correr o risco de seus membros serem autuados pelo uso de trabalho escravo, como vem acontecendo frequentemente; a da Bíblia poderá combater com mais força as práticas de idolatria importadas pelos escravizados de então e presentes até hoje no tecido social brasileiro; a da Bala poderá meter bala à vontade, sem ter que dar satisfação, no escravo fujão, rebelde ou ladrão.

O projeto está afiado, porém mantido em segredo absoluto. Há que se esperar até após a eleição, porque, infelizmente, pobres, negros, indígenas e mulheres, ainda têm direito de voto.

Conseguirá a BBB devolver a nação aos trilhos do passado? Ou o Brasil conseguirá devolvê-los à condição de uma minoria apenas ruidosa? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on June 20, 2024 06:56

June 13, 2024

ERIC

Série, criação de Abi Morgan, EUA, 2024

Abi Morgan é uma roteirista Galesa, britânica até a medula. Ela usou sua vivência em Nova Iorque nos anos 1980 para criar uma série totalmente americana, mas com um olhar aguçado de quem vem de fora. O resultado é uma obra fascinante que se vê em um, no máximo em dois dias. Com um roteiro cheio de aparências que enganam e várias subtramas que se entrosam, alimentam e nutrem-se da  trama central, Eric cria um drama familiar que se entrelaça com o drama social e o gênero policial, tudo isso para refletir sobre a verdadeira natureza dos monstros (ou do que é monstruoso) e a ludibriosa ideia de que estes se escondem embaixo da cama. Em outras palavras, para refletir sobre nossos preconceitos.

Nessa trama intricada a direção de arte tem papel importante. Além de reproduzir com maestria o clima da urbe na década de 1980, cria dois cenários chave. Um é o estúdio onde é gravado o programa de televisão infantil – colorido, artificial, com uma textura plástica que lembra o vídeo (TV) daquela época.  Outro, o mais impressionante, é o local da “moradia” dos sem teto, nos subterrâneos do metro nova iorquino. Ali a estética extrapola a fidelidade realista para algo que a mim lembrou o inferno de Dante, pelos olhos de um Hyeronimus Bosch.

Entre esses dois campos: o lúdico, colorido e musical e o abrigo dos infernos, a série transita em alta densidade.

Se na composição das situações em que as aparências enganam e dos personagens principais há sensibilidade e criatividade, a série deixa a desejar na composição dos vilões, bastante estereotipados. Os políticos e policiais corruptos e o ricaço sem coração que foi um pai ausente são quase clichês que decepcionam frente a profundidade na elaboração dos demais elementos.

Ainda assim Eric é uma obra que se destaca. Original em muitos aspectos e inteligente na costura dos vários dramas, mantendo um suspense denso desde o primeiro episódio e lidando com temas importantes e cabeludos. Eric pode ser vista na Netflix.

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Published on June 13, 2024 06:42

June 5, 2024

Cem Anos sem Kafka

No dia 3 de junho de 1924 o mundo perdeu Franz Kafka. Ou talvez tenha sido o contrário, o mundo ganhou Franz Kafka. Antes de sua morte havia publicado alguns contos em revistas literárias e em coletâneas, sem chamar atenção. Em seu testamento pediu a seu melhor amigo, Max Brod, queimar todos seus escritos e manuscritos, incluindo cartas, diários e bilhetes que escrevia em profusão. No dilema entre ser fiel à última vontade do amigo ou presentear o mundo com um legado artístico que julgava de valor incalculável, Brod escolheu a segunda opção.

Kafka deixou a vida aos quarenta anos. Era tubercoloso e estava internado em um sanatório, porém morreu de inanição. Chegou a um estágio em que sua garganta fechada tornava muito doloroso se alimentar, e na época não havia ainda a alimentação parenteral. Morreu editando sua última obra O Artista da Fome (que começou a escrever bem antes de não conseguir mais comer).

Em vida o autor parecia pouco se preocupar com fama ou carreira literária. O pouco que publicou foi por insistência e contatos do amigo Brod. Kafka se preocupava em escrever. Escrevia como quem estava em missão, ou como um viciado. E lia seus escritos para seu círculo de amigos.

Brod enfrentou inúmeros desafios na sua “missão” de trazer à luz a obra do amigo. Desde a organização dos textos, vários deles inacabados, passando pela estranheza de estilo e temas abordados que afugentavam as editoras. Mas o primeiro grande desafio foi salvar a obra e a si mesmo das garras dos nazistas. Em 1939 conseguiu fugir da Alemanha para a então Palestina, levando consigo na bagagem o tesouro literário. Viveu em Israel até 1968, dedicando-se à sua missão. É também um dos biógrafos de Kafka.

Kafka virou um ícone da literatura mundial. A estranheza de seus escritos acabou conquistando os leitores. As visões e alucinações e desejos e terrores que lhe habitavam a mente revelavam, vertidas em palavras, um mundo subterrâneo que existia por baixo da superfície de civilização e progresso que marcava o ocidente no início do século XX. Um mundo onde o indivíduo (tão valorizado pelo iluminismo) era insignificante frente ao “sistema” erguido pela mesma civilização, mero joguete de forças poderosas, como sentia-se o mais primitivo homem das cavernas.

Sua obra extrapolou a literatura e influenciou a cultura mundial. Sua maneira de ver o mundo revolucionou o nosso olhar. Basta ver quantos livros, filmes, peças e obras musicais tem o seu nome no título, ou referência ao seu legado. Kafkiano virou verbete de dicionário, usado por muita gente que nada leu do grande escritor. A Metamorfose, O Processo, O Castelo, América, Na Colônia Penal, Diários são algumas de suas obras que devem ser lidas.

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Published on June 05, 2024 08:28

May 30, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Entulhos

O Governados do RS, estado meridional da Casa do Baralho, acordou de sobressalto. Deus, ou alguma outra entidade abstrata, na forma de um imenso corpo de água, inundou seu gabinete e avisou que estava muito descontente com o ser humano. Era um absurdo como tratavam aquela terra abençoada, terra do leite e do melo. Ordenou que usasse o tesouro do estado para construir uma arca e escolhesse um par de cada espécie para nela embarcar, estes, após o dilúvio, povoariam o novo estado a ser reconstruído com dinheiro do Governo Federal.

O governador ficou duplamente atordoado: não era a primeira vez que cochilava em pleno horário de expediente na mesa de seu gabinete. Mas era o primeiro cochilo que atingiu a profundidade de um sonho, chegou a babar em cima da agenda. E o sonho, meu Deus, parecia muito real. Ficou até com medo de comentá-lo com seu analista.

Depois ficou pensando em quem escolheria de cada espécie. Adorava fazer listas. Deveria ter um casal de direita e outro de esquerda, um casal do centrão e dois do seu próprio partido, o partido em cima do muro. Haveria que ter alguém das empreiteiras, que seria muito importante na reconstrução, e alguém do Agro para refazer o plantio. Matutou se botava na lista um casal das forças armadas. Eles poderiam ser uteis na contenção do pessoal da classe serviçal, mas também adoravam dar uns golpes. E para a classe serviçal? Não tinha a mínima ideia quem escolher. Ah sim, não podia esquecer do pessoal da Comunicação, os especialistas em redes sociais.

Nesse passatempo ficou até ser lembrado pela secretaria que tinha hora no barbeiro. Naquela altura já estava mais calmo. Estamos no século XXI, refletiu, dilúvio é coisa dos tempos bíblicos. Pelo sim pelo não, encomendou de seu figurinista um par de trajes de capitão e dois modelos de coletes salva-vidas.

Saiu do barbeiro no meio da tarde, que parecia noite. Nuvens negras arrepiaram-lhe o cabelo recém cortado. Chamou para seu gabinete o pessoal da defesa civil e o prefeito da capital. Este lhe garantiu que a cidade tinha um sistema robusto de contenção e bombeamento contra as enchentes.

A água caiu violenta sobre todo o estado por seis dias seguidos, transformado em um mar barrento a terra do leite e do melo. A arca não havia sido construída, o sistema robusto não conteve a enchente. Faltou, nesses últimos anos, manutenção. O caos tomou conta e o governador, na sua primeira declaração, se acusou: não é hora de procurar culpados, disse, é hora de salvar vidas. Ao menos os modelitos de colete ficaram muito bem em sua figura esguia.

O prefeito não fez por menos, revelando-se um verdadeiro líder no momento de crise. Após a primeira enchente, alertou que a cidade iria “colapsar”, recomendando que quem tivesse casa na praia, se mandasse pro litoral. As poucas vias que não foram obstruídas pelas águas ficaram engarrafas pela debandada geral. Orientou, quando a água deu uma baixada, que os moradores botassem nas ruas seus móveis e utensílios estragados para a prefeitura recolher. Mas não recolheu. Conseguiu assim a façanha de alagar, nos parcos dias de sol, ruas que não haviam sido alagadas pela enchente, devido aos bueiros entupidos pelos entulhos não recolhidos.

Os dois líderes, que sempre falavam em enxugar o estado, aprenderam na pele o sentido literal do termo, e a consequência de sua política de “enxugamento”. O governador tirou ainda mais uma lição do sonho premonitório: mandar a conta da reconstrução para o Governo Federal.

Aprenderão os governantes e os governados, a verdadeira lição dessa terrível tragédia? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on May 30, 2024 08:02