Jaime Lerner's Blog, page 10
December 28, 2023
Bye 2023

E lá vai 2023.
Um ano difícil na ficção e mais ainda na realidade. Começou com a bárbara invasão do dia 8 de janeiro ao palácio presidencial, ao congresso e ao prédio do STF, uma semana após a festiva posse que celebrou a eleição de um novo presidente no Brasil. Leia em As Quatro Linhas.
Seguiu com os avanços e retrocessos dos direitos indígenas, principalmente na questão do Marco Temporal abordada em Embaralhados e em A Casa Caiu? Questão que segue embaralhando as nossas mentes e embrulhando o estômago.
Em 7 de outubro, um ataque sem precedentes no alcance, na surpresa e na selvageria contra o Estado de Israel detonou uma guerra e flagelo que não parecem próximos do fim, ao contrário, há uma ameaça constante de ampliação do conflito para outras frentes e um aumento acirrado em manifestações antissemitas pelo mundo. Leia em O Espetáculo da Barbárie.
No âmbito da ficção, se destacaram aqui no blog os filmes mexicanos Ruído e Família, o chileno 1976 e o francês Athena. A série brasileira Manhãs de Setembro e a derradeira temporada de The Crown (em breve resenha). Nas letras, o romance Louças de Família, mais uma obra visceral e contundente de autoras e autores negras/os que estão conquistando seu espaço no universo editorial brasileiro, um ponto de luz nesse ano difícil.
Despedindo-se deste ano triste, o Blog do Lerner deseja a todos um 2024 pacífico na realidade e emocionante nas artes.
December 21, 2023
Família

Filme de Rodrigo Garcia, México 2023
Ao ver Família não pude deixar de compará-lo a Festen (Festa de Família) do dinamarquês Thomas Vinterberg de 1998, sem dúvida um dos melhores filmes do movimento Dogma 95. Tanto Família como Festen acontecem em torno de um evento de reunião familiar, ambos são ancorados em torno de uma figura patriarcal e o drama é todo movido pela relação dessa figura com seus filhos e/ou filhas. Ambos são filmes que mexem fortemente com os sentimentos do espectador e no entanto, são obras completamente opostas.
Festen tem o impacto de um terremoto, com as trágicas revelações que são feitas durante a comemoração dos 60 anos do patriarca. E de fato, sobram apenas ruínas após a explosão do conflito principal, explosão muito bem construída ao longo do filme, expressando uma visão ácida sobre a instituição família.
O filme mexicano é dirigido por Rodrigo Garcia, filho do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez e de Mercedes Bachra. Sua visão sobre a família é um tanto mais complexa do que a do colega dinamarquês. Rodrigo exibe maestria na direção e no roteiro (escrito em conjunto com Bárbara Collio), principalmente na maneira como conduz o jogo entre tensão e idílio, sensações que se apresentam e se mesclam durante o filme todo; e na sensibilidade de tocar sentimentos profundos sem atravessar a fronteira do piegas. Rodrigo erige um local para essa instituição, uma casa em meio a um olival esplendoroso (em Festen, a celebração se dá em um hotel, um espaço frio e muito distante do lar). E uma possível ameaça ao local torna-se também ameaça à família, ou à vivência familiar que floresceu ali junto com as olivas.
Nesse jogo entre amor, ressentimento, calor humano e medo, o pai, interpretado por Daniel Gimenez Cacho, (protagonista de Bardo), tem papel fundamental. Cacho constrói um personagem carismático e profundo, agraciado com diálogos shakespearianos. Aliás, os diálogos se configuram em outro ponto alto da obra, mérito da dupla de roteiristas.
Por fim, a direção de arte e a fotografia se juntam na construção estética do templo da família, criando um cenário e uma luz idílica como reforço para os momentos de amor e contraponto para os momentos de conflito. Mostrando que amor não pressupõe a ausência de conflito, nem o conflito, a ausência do amor.
No final, um toque sútil de realismo mágico, homenagem ao pai do diretor, criador de um universo literário onde os vivos convivem naturalmente com os mortos.
O maravilhoso Família pode ser visto na Netflix.
December 14, 2023
Louças de Família

Livro de Eliane Marques, Brasil 2023
Louças de Família é o romance de estreia de Eliane Marques, autora que já se destacou na poesia. O título breve traz uma penca de significados. O mais evidente é o trocadilho com laços de família, que além de termo muito usado é também o título de uma novela da Globo, do início do século XXI. E embora haja momentos de sátira folhetinesca (com vilões bem definidos e super-heroínas sofredoras), o romance de Marques é o exatamente oposto da telenovela. E não só por que no fim os vilões permanecem por cima da carne seca. A autora usa um paralelo dos afamados núcleos dramáticos da telenovela para desenhar/denunciar a estrutura que moldou a sociedade brasileira, molde que ainda segue significativamente intacto apesar de algumas rachaduras e muitas mudanças.
O cenário da novela marquesiana não é a zona sul do Rio de Janeiro, mas é o extremo sul do Brasil, ali na fronteira com o país do Rio dos Pássaros Pintados, numa cidade que não se decide entre o nome de Santa, de Ana, ou da Liberdade. Ali onde se criou um mito mais descarado ainda do que o do Brasil como democracia racial, o mito de um estado que liberou seus escravos cinquenta anos antes da Lei Áurea. No lugar de praias maravilhosas e calçadões estilizados, repletos de corpos dourados, há charqueadas, matadouros e frigoríficos. É nesse cenário que Eliane junta os cacos das louças de família numa saga regada a sangue e crueldade, que atravessa gerações de mulheres, todas do núcleo servil, protagonistas do invisível.
Louças de Família, portanto, é mais que um romance. É uma prosa poética de acerto de contas na qual a forma e o conteúdo se amalgamam numa escrita muito peculiar, original e doída, regada à imensa ira. A ira e outros sentimentos conduzem essa peça de acusação. Não é por nada que o livro é recheado de momentos em que a narradora quebra a quarta parede e dirige-se diretamente ao leitor, ou melhor, à leitora. Se você é particularmente sensível, ou ainda acredita em um dos mitos acima mencionados, você não pode deixar de ler Louças de Família.
December 7, 2023
Operação Ecstasy

Série, criação de Nico Moolenaar, Bélgica 2019-21
Há algumas semanas publicamos o post sobre Ferry, o filme e a série. Esta é a resenha prometida sobre o seriado que originou as duas obras. Operação Ecstasy (ou Undercover), tem três temporadas com dez episódios cada, ou seja, umas vinte e cinco horas para maratonar.
A primeira temporada é inspirada em um caso real. Um casal de agentes infiltrados passa a morar no camping que serve de base para um grande produtor de drogas sintéticas. Vizinhos, eles se tornam amigos do barão das drogas e de sua mulher em busca de acesso às provas que podem leva-lo à prisão. Na segunda e terceira temporadas os alvos da infiltração policial são outros, mas Ferry Bouman continua presente; na segunda temporada como uma história paralela que complica a trama principal, na terceira, com protagonismo antagonista dividido com o agente infiltrado.
Há dois elementos, ambos ligados ao roteiro, que se contrapõem: ao longo das três temporadas há uma sucessão de eventos que não são críveis, ou não são construídos no roteiro de modo que gere credibilidade. Na contramão desse problema (que aumenta nas segunda e terceira temporadas), há um universo de personagens muito bem construídos e todos, bandidos e mocinhos, têm suas fraquezas e conflitos morais. Os policiais não são aqueles profissionais infalíveis de boa parte de filmes e séries e isso torna o seriado mais humano e envolvente.
Destacam-se os atores Frank Lammers, no papel de Ferry, Anna Drijver como Kim, a agente infiltrada, e Ruth Becquart como Nathalie. O protagonista, Bob Lemmens, o policial infiltrado que muitas vezes ignora os limites éticos da função, é interpretado por Tom Waes.
Outra qualidade que consegue amenizar as costuras por vezes estapafúrdias do roteiro, é a destreza na direção da série. As cenas de ação são bem filmadas, mas o grande destaque é como a gramática cinematográfica constrói, com seus planos, os momentos de suspense, de conspiração, de como alguém de repente entende que caiu numa cilada. Essa construção imagética do estado psicológico dos personagens é certamente um dos elementos principais do sucesso da série, sucesso que gerou outras duas produções.
Pela colaboração entre policias belgas e holandeses (Kim é holandesa, Bob é belga), já que o traficante opera entre esses dois territórios limítrofes, a série lembra a sensacional A Ponte, embora não tenha a mesma sofisticação.
Embora derivados, a série e o filme Ferry são prequels de Undercover, ou seja, é melhor assistir ao filme e depois o seriado Ferry (8 episódios), para depois maratonar as três temporadas de Operação Ecstasy.
As duas séries e o filme podem ser vistos na Netflix.
November 30, 2023
Ruído

Filme de Natalia Berinstain, México 2022
Ruído não é um filme fácil de assistir. Ele está tão distante de uma obra de entretenimento quanto os desaparecimentos no México estão distantes de uma solução. É um filme seco, cruel, incômodo, como a experiência que sua protagonista atravessa na jornada caótica em busca da filha, sumida há nove meses.
Nove meses, o tempo de uma gestação. Não é um período aleatório que os roteiristas escolheram para o desaparecimento de Ber. Ele remete ao laço forte da maternidade, força que moveu muitos anos atrás as avós da Praça de Maio, na Argentina, e atualmente move as mulheres mexicanas em busca de seus desaparecidos. Julia tatua em seu braço a mesma tatuagem que sua filha tem, ou tinha. Mais um reforço simbólico da relação mãe e filha e uma maneira simbólica também de se colocar dragonas, ou se pintar para a guerra.
Ao partir para a guerra, ou seja, para a ação, Julia descobre os caminhos dos coletivos de mulheres. Essa é uma diferença muito grande entre Ruído e vários outros filmes sobre pais procurando seus filhos sequestrados, desapontados com a inércia das autoridades. A obra de Natalia constrói uma jornada individual que se insere no coletivo. Julia participa, entre outras atividades, de um mutirão das rastreadoras, mulheres que se especializaram em localizar covas coletivas clandestinas.
Toda essa organização nasce da omissão, negligência e corrupção do poder público, realidade que o filme retrata magistralmente, criando um quadro assustador da ligação dos órgãos governamentais, a polícia especialmente, com o crime que ela deve combater. Um terceiro fator nessa jornada é a imprensa, principalmente a imprensa investigativa. A jornalista Abril Escobedo (Teresa Ruiz) conduz Júlia pelos labirintos de sangue, dor e morte, fazendo o papel que a imprensa oficial se omite de fazer. Mais uma heroína feminina nessa narrativa trágica.
A diretora comenta em entrevista que nos casos de desaparecimento a vítima principal é, obviamente, a pessoa desaparecida. Mas a violência é praticada também contra pessoas no entorno dessa vítima. Muitas famílias acabam se desintegrando pelas dúvidas sobre o destino da pessoa desparecida, pela impotência, pela falta de um desfecho, da possibilidade inclusive de praticar o rito de enterrar um corpo. O caráter pandêmico dos desparecimentos que assolou o país nas últimas décadas é que a motivou a fazer o filme, focando nos familiares das vítimas, eles também vítimas.
A sequência impactante que abre o filme escancara esse caráter pandêmico e dá um vislumbre da jornada que transita entre o individual e o coletivo. Julia é representada pela atriz Julieta Egurrola, mãe da diretora. O pai e o irmão de Natalia também são atores e trabalham no filme como pai e irmão da vítima. Seus personagens, Arturo e Pedro, assim como a protagonista, tem os nomes próprios dos atores.
A mim, o filme lembra Antigona, a tragédia de Sófocles (442 AC), e outra obra difícil e muito impactante que trata dos assassinatos de mulheres em Sinaloa, o livro 2666 de Roberto Bolaño. Ruído e 2666 são obras de denuncia, mas sobretudo de espanto frente a uma violência inexplicável. Dois fenômenos distintos, mas profundamente ligados, sintomas de uma sociedade gravemente enferma. Em Ruído há ainda um leve sopro, uma pequena ponta de esperança na organização coletiva. Mas a dor, o medo e o terror são ainda maiores.
O filme pode ser visto na Netflix.
November 9, 2023
Ferry

Filme + Série, Bélgica/Holanda – 2021 e 2023
O personagem do gangster Ferry Bouman virou, praticamente, uma franquia. Estreando em Operação Ecstasy, Ferry tornou-se protagonista de um filme e uma série com o seu nome que são spin offs (derivados) e prequels (prelúdios) de Operação Ecstasy. A série de três temporadas foi lançada em 2019, depois Ferry o filme (2021), e em 2023, Ferry, a série (dá rima). Na ordem linear dos eventos o filme vem em primeiro lugar; Ferry, a série, logo depois; e Operação Ecstasy no final.
Confuso? É simples: se você quer ver na ordem cronológica da trama veja o filme, depois a série e depois ainda as três temporadas de Operação Ecstasy (ainda não vi, mas está na minha lista). Se você quiser pular o filme, Ferry, a série começa com um resumo do mesmo, mas você vai ficar curioso para ver igual. Então é melhor ver o filme e depois pular o resumo ao assistir o seriado de oito episódios.
O filme e a série são mais dois produtos do polo de produção de Flandres, a região norte da Bélgica que está muito ligada à vizinha Holanda. Desse polo já comentei aqui a excelente série Os Doze Jurados. Os diálogos são todos em holandês que é o idioma que se fala no Flandres. Os outros três idiomas que se fala na Bélgica são o francês e o flamengo, em regiões distintas do país.
Voltando ao Ferry, ele não é somente o protagonista, como também o dínamo da qualidade das duas obras. Isso se deve principalmente ao ator Frank Lammers que produz um personagem para lá de carismático e, claro, problemático. O filme e a série cobrem o processo de Ferry a caminho de se tornar um chefão das drogas e como seu caso de amor com Danielle acaba sendo um ponto de virada na trajetória de pequeno gangster para grande chefão.
Além do carisma de Ferry, a série é muito bem filmada, mantendo o ritmo entre a ação e os conflitos pessoais, e descortinando com maestria as várias reviravoltas. O filme não exibe o mesmo domínio da gramática audiovisual, mas é importante para entendermos o personagem.
Cecilia Verheyden é a diretora do filme, Nico Moolenar é o criador da série e roteirista do filme. No elenco, ao lado de Frank Lammers, brilha também a atriz Elise Schaap como Danielle Van Marken. O criminoso da vida real que inspirou o personagem é Janus Wan Wessenbeeck, também conhecido como o Harry Potter do crime.
As duas séries e o filme podem ser vistos na Netflix.
November 2, 2023
Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você

Filme, direção de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, Brasil 2023
Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você, documentário que fui ver com uma expectativa enorme, pelos seguintes motivos:
A canção Águas de Março, na versão de Elis e Tom é extraída desse disco, e o “clip” que virou um clássico-cult, é um plano sequencia do material que foi filmado na gravação do disco, base para o filme atual. Não apenas a música é absolutamente maravilhosa, como a filmagem do dueto é sensacional e te deixa curioso para ver o antes e depois daquele momento único em que músicos, cantores e câmera atingem em sincronia a perfeição.
Um dos diretores do filme é o Jomico, o Jom Tob Azulay (nome que é corruptela de Iom Tov que significa, em hebraico, bom dia), diretor do esplendoroso Doces Bárbaros (1976), documentário musical no estilo cinema direto que me marcou profundamente quando o assisti com estudante de cinema. Jomico era estudante de cinema na UCLA quando Elis e Tom foi gravado e ele constituiu virtualmente 50% da equipe de filmagem, captando o som direto. A outra metade era Fernando Duarte, o diretor de fotografia que operou a câmera 16mm e que seria o DF também em Doces Bárbaros.
O filme A Música Segundo Tom Jobim de Nelson Pereira dos Santos que para mim é um dos grandes filmes brasileiros de todos os tempos.
Além dessas três referências, havia ali o encontro de dois gigantes da música que eu admiro muito. Em outras palavras, eu esperava sair do cinema absolutamente embevecido. Acontece que essa expectativa alta, acaba sendo uma armadilha. Há elementos no documentário, há momentos no filme que valem muito a pena ter ido assistir, mas esses elementos não se juntam numa obra completa. Ou seja, o impacto positivo é devido a esses momentos e, portanto, um impacto fragmentado.

Acredito que um dos problemas do filme é a falta de um conceito central, de um olhar autoral. Ele nasceu inicialmente como um registro, ideia de Roberto Oliveira, empresário de Elis que articulou junto com a gravadora esse disco de encontro de Elis com o Tom. O material filmado foi editado para uma promo que passou na TV bandeirantes na época do lançamento do disco e dos dois shows que aconteceram no Rio e em São Paulo em 1974. Também foi usado sendo inserido em outros trabalhos e o seu extrato mais visto é o sensacional clip de Águas de Março. Mas grande parte do filme ficou na lata, por quase meio século, até que Roberto decidiu que era hora de fazer o filme sobre esse encontro, com toda a perspectiva histórica.
Ao material original foram acrescidos outros materiais de arquivo das carreiras dos dois e um grande número de depoimentos. Os depoimentos testemunhais (dos músicos que tocaram, do empresário da gravadora na época) são ótimos, os depoimentos de análise e contexto parecem explicativos demais e os vários depoimentos que dizem o quanto cada um deles era genial são completamente desnecessários. Esse acumulo de elementos de entorno acaba esmaecendo a qualidade das filmagens do nascimento do disco nesse dueto de titãs. E frustrando o interesse do espectador.
E ainda assim, não dá para deixar de ver o filme. Os momentos (raros de se ver em outros filmes musicais) de composição dos arranjos, dos ensaios, das tensões criativas e soluções mostram uma Elis movida à música, literalmente, e uma dinâmica entre ela, Tom e Cesar Camargo Mariano que é pura manifestação da magia que a arte contém, e que nem os próprios artistas sabem explicar. Mas magia a gente não explica. Apenas tira da cartola.
October 26, 2023
A Queda da Casa dos Ushers + Edgar Alan Poe

Série, criação de Mike Flanagan – EUA, 2023
A Queda da Casa dos Ushers é fruto de um projeto ousado, que abrange a obra de Edgar Alan Poe como um todo e não apenas o conto homônimo como o título da série pode sugerir. A série tão pouco é uma adaptação da obra literária de Poe, está mais para uma grande homenagem ao escritor/poeta, reunindo motivos, elementos e o estilo gótico, numa trama original, que permeia vários contos, poemas e personagens do mais britânico dos escritores norte-americanos.
Dito isto, pode se assistir A Queda da Casa dos Ushers de duas maneiras: como uma série de terror contemporânea que narra a dissolução da família de um Tycoon corrupto da indústria farmacêutica, ou como uma ópera que precisa de um libreto para sua melhor fruição. Vendo a obra da primeira maneira, é apenas mais uma série, com determinados méritos e alguns problemas de atuação e roteiro. Assistindo-a após a leitura do “libreto”, a série ganha em vulto e profundidade, principalmente pela engenhosa reunião dos elementos do universo literário de Poe e sua inserção na trama que acontece em tempos atuais.
O que seria, exatamente, esse libreto? O ideal seria ler todas as obras Poeanas e em seguida assistir a série, mas se isso não for possível é imprescindível conhecer os poemas O Corvo e Anabelle Lee; os contos: A Queda da Casa dos Usher, A Máscara da Morte Vermelha, O Assassinato na Rua Morgue, O Gato Preto, O Coração Delator, O Escaravelho de Ouro, O Poço e o Pêndulo; e a novela (única narrativa mais longa que Poe escreveu) A Narrativa de Arthur Gordon Pym, de preferência nessa ordem.
O Corvo, além de fornecer o elemento icônico de toda a série, dá nome ao primeiro e ao último episódio e à personagem mais enigmática da obra: Verna (anagrama de Raven, corvo em inglês), e explica a importância de Lenore, neta de Usher na série, como personagem que representa o bem, o puro e inatingível. A Máscara da Morte Vermelha dá nome ao segundo episódio, mas o conto está representado em toda a série, pois trata de uma elite que festeja orgasticamente enquanto o povo padece e das consequências desse egoísmo hedonista, caso da família Usher na série. Os outros contos dão nome aos cinco episódios restantes, e a novela, ao personagem complexo de Pym, advogado-faz-tudo dos Usher. É super interessante acompanhar como os elementos de cada um dessas obras são orquestrados em cada episódio e na sinfonia da série como um todo.
Além de enriquecer absurdamente a experiência de assistir a série, a leitura (ou a releitura) de Poe vale a pena por si só. Ali pode se perceber a origem de vários gêneros que conquistaram gerações de leitores e depois espectadores com uma pena vigorosa e impressionista. E a série, consegue imprimir esse mesmo vigor?
A Queda da Casa dos Ushers está disponível para ser assistida na Netflix.
As obras de Poe você pode encontrar em várias antologias como essa:
October 19, 2023
Via Ápia

Livro de Geovani Martins, Brasil 2022
Geovani Martins tem vinte e seis anos. Os protagonistas de seu romance de estreia também são jovens como ele. Apesar de tanta juventude há uma sabedoria contida na escrita de Geovani, aquela de mestres anciãos que dominam a medida certa das frases, a dose precisa de drama, humor e tristeza e conhecem a fórmula de tornar o banal em especial.
Martins nos leva pelas ruas, becos e “bairros” da Rocinha, nos introduz nas histórias e na linguagem singular de seus jovens moradores a ponto de sentirmos que estamos no estrangeiro, e ainda assim num mundo conhecido. Segue à risca a máxima tolstoiana de cantar sua aldeia e ser universal, e o caminho de Pasolini, Welsh, Marlon James e do conterrâneo Paulo Lins no uso da gíria como poesia. Martins não o faz apenas nos diálogos, mas na própria escrita.
Se for puxar o fundamento, eles nem se lembravam mais da última vez que Dona Marli divulgou uma janta. Ela chegava sempre cansada do trabalho e achava muito abuso ainda ter que cozinhar pra dois marmanjos daqueles.
O romance se estrutura em capítulos curtos e independentes, quase como contos, cada capítulo narrando um episódio, ou um dia na vida dos protagonistas que se juntam (os capítulos e os protagonistas) para formar a saga de vivência na favela no período entre 27 de julho de 2011 e 26 de outubro de 2013.
Em 27 de julho de 2011 Santos e Flamengo fizeram um jogo histórico no campeonato brasileiro. Neymar de um lado e Ronaldinho Gaúcho de outro, protagonizaram uma disputa sensacional que terminou em vitória dos cariocas por 5X4. O jogo e a vitória deixaram a Rocinha em polvorosa. E o que houve em 26 de outubro de 2013? Você terá que ler Via Ápia para saber.
Neste período, porém, são implantadas as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, na maior favela do Brasil. Visando garantir a segurança de milhares de turistas esperados para a Copa do Mundo (2014) e para as Olimpíadas no Rio de Janeiro (2016), o governo cunha essa figura de Polícia Pacificadora que ocupa os morros da cidade maravilhosa.
O que para o pessoal da “pista” é segurança, para os habitantes dos territórios abandonados pelo estado é mais uma ameaça, mais um estágio de deterioração em suas vidas. Essa violência praticada pelo estado num momento de euforia para o Brasil, mascarando ainda a repressão como pacificação, é abordada de forma contundente em Via Ápia, ao lado das questões da droga e do racismo.
O autor, no entanto, não aplica em sua obra a superdose de violência explícita de Cidade de Deus, outro romance genial sobre a vida nas favelas cariocas, escrito com um olhar de dentro. Via Ápia é sobretudo uma obra sobre amizade, amizade forjada em condições de vida desafiadoras. E o contraste entre a força e a beleza da amizade e o cenário de repressão e de pobreza onde ela floresce é o que dá o tom nesse romance tão especial.
O Romance foi publicado pela Companhia das Letras. Leia uma amostra e adquira o livro em:
October 13, 2023
O Espetáculo da Barbárie

Como escrever sobre filmes, livros e séries logo após o ataque bárbaro à Israel no último sábado? Como analisar tramas, dramas e estética com as imagens da brutalidade marcando ainda a retina? Imagens feitas e divulgadas pelos próprios perpetradores, orgulhando-se de matar, aterrorizar, estuprar, vilipendiar os corpos de civis indefesos, de crianças, bebês, idosos e mulheres? Como absorver tamanha violência que levará, que já está levando à uma nova escalada de violência num ciclo que parece não ter fim, apenas hiatos entre um massacre e outro?
Vendo os vídeos, as fotos, não há como não se lembrar dos pogroms que os judeus sofreram na Europa, pogroms que aconteciam antes da existência do Estado de Israel.
Dando-se conta de que os próprios terroristas produziram essas imagens não há como não se lembrar das infinitas fotos e filmes que os nazistas produziram do holocausto, material que seria usado no museu sobre os judeus que o Reich de mil anos ergueria para contar para as gerações futuras como livraram o mundo dessa praga. Acontece que o Reich só durou 12 anos e as fotos e vídeos acabaram servindo como provas no tribunal de Nuremberg.
O Hamas não fez os vídeos pensando num futuro museu, mas no atual terror que isso causaria no mundo civilizado (ainda que haja gente no mundo “civilizado” apoiando essa ação) e no frisson que isso causaria entre sujeitos perdidos, frustrados ou desiquilibrados, o que atrairia novos militantes para a “causa”. Esta é a escola do Estado Islâmico.
Eles sentem que os atos que perpetraram e mais a captura de reféns são uma vitória momentânea que os registros imagéticos, não importa o que venha a acontecer depois, tornarão eterna.
Só resta torcer que encontrem o mesmo destino dos nazistas e dos Jihadistas do EI, para que um dia seja possível o retorno do processo de paz na região.