Jaime Lerner's Blog, page 10

January 18, 2024

O Melhor Está Por Vir

Filme de Nanni Moretti, Itália 2023

Há muito tempo não vejo uma obra que lembra a época em que cinema italiano era sinônimo de magia, poesia e sensibilidade. Seguindo a tradição dos neorrealistas e depois, dos grandes diretores como Fellini, Antonioni, Visconti, Pasolini, Bertolucci, os irmãos Taviani e Ermanno Olmi, entre outros, Moretti cria uma obra poderosa, que é cinema de arte puro e comovente. De quebra, homenageia a sétima arte e a utopia dos comunistas italianos do pós-guerra e pós Mussolini.

O título original é Il Sol dell´ Avenirre, que significa o sol do amanhã, ou o sol do futuro e é uma frase tirada de uma canção da resistência italiana contra o nazi/fascismo que diz o seguinte: Sopra o vento e a tempestade castiga/sapatos rotos mas precisamos seguir/a conquistar a primavera vermelha/ onde surge o sol do amanhã.

No entanto, não se trata de um filme saudosista ou de apologia ao comunismo. Uma ironia sagaz une os dias atuais com o ano de 1956, quando tanques soviéticos esmagaram o clamor dos húngaros por liberdade, e o partido comunista italiano, bem como os partidos na maioria dos outros lugares, se alinharam com Moscou. O que une os dois períodos distintos na mesma trama é o ponto de partida da obra: um diretor de cinema tenta fazer um filme que passa em 1956.

Assim, temos duas tramas “paralelas” a da feitura do filme (tempos atuais) e a do filme em si (1956). O paralelas está entre aspas pois muitas vezes elas se encontram. Moretti bates as duas tramas em um liquidificador com imensa criatividade, e acima de tudo, com muito humor. Há um manancial de cenas hilárias, muitas delas tem como alvo o próprio diretor que é interpretado por… Nanni Moretti.

Outras histórias paralelas que se cruzam são as dos problemas de produção/viabilização do filme com o processo criativo do autor. É interessante como O Melhor Está Por Vir trabalha esse conflito colaborativo presente em todos os sets do planeta. Neste caso, a produtora do filme é também a esposa do diretor, o que complica ainda mais o imbróglio. E o produtor associado, que deve entrar com o dinheiro, é preso por estelionato no meio da produção.

Moretti reflete sobre o tempo e o “prazo de validade” das coisas e nos esclarece, em um final apoteótico, o quanto arte e utopia, ambas aparentemente de pouca utilidade prática, são elementos essenciais em nossas vidas.

Vá e veja, de preferência no cinema, enquanto o filme está em cartaz.

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Published on January 18, 2024 04:57

January 11, 2024

A Sociedade da Neve – O Ocultamento

Filme de Juan Antonio Bayona, Espanha 2023

Em agosto de 2018 fiz um post sobre o documentário uruguaio A Sociedade da Neve de 2007. De repente, esse post começou a ganhar inúmeros acessos. Isso se deve, evidentemente, à estreia na Netflix do filme homônimo do diretor espanhol Juan Antonio Bayona. Trata-se de um filme de ficção, sobre o mesmo tema. O filme é baseado no livro de Pablo Verci sobre os sobreviventes da queda de um avião nos andes nevados em 1972.

Em 2007, trinta anos depois do acidente, o cineasta Gonzalo Arijon fez um trabalho muito sério com os sobreviventes que resultou no maravilhoso documentário (para ler a resenha clique aqui). Tinha mais de 50 horas de material gravado com os sobreviventes, familiares e demais envolvidos com o acidente. Muito desse material, obviamente, ficou fora do filme. Gonzalo passou esse acervo ao jornalista Pablo Verci para que escrevesse um livro. O filme da Netflix se baseia nesse livro, que se baseou, por sua vez, no material do documentário. As três obras com o mesmo nome.

Um livro e um filme que falam do mesmo tema, um, derivado do outro, é natural que partilhem o mesmo título. Mas dois filmes com o mesmo nome, já é diferente. Ainda mais quando um deles tem muito mais dinheiro e toda uma plataforma internacional por trás de seu lançamento e nem menciona em seus créditos a existência do outro.

Arijon, o diretor uruguaio, comentou em entrevista que está feliz por haver mais um filme sobre o tema e que este filme tenha inclusive sido indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro pela Espanha. Mas o fato de ele ter o mesmo título do seu documentário e não haver nenhuma menção ao documentário nos créditos do filme, se configura, na opinião dele, um ocultamento de sua obra.

Falando do filme em si (o atual, que faz enorme sucesso na Netflix): é um drama do gênero Desastre, com uma pitada de reflexão existencial e um certo aprofundamento psicológico no drama dos personagens que derivam do livro. Mas a dinâmica do filme, o uso de efeitos, principalmente os sonoros, lembra muito os filmes de desastre como Titanic, Inferno na Torre, Volcano, etc. Essas ferramentas são aplicadas em A Sociedade da Neve de maneira muito competente, ainda que espetacular (no sentido do espetáculo), e a luta pela sobrevivência e o retorno dos que não pereceram, geram forte emoção.  No entanto, ele não chega aos pés do documentário homônimo, nos questionamentos provocados pelo filme, no processo de construção da nova dinâmica que se estabeleceu na “sociedade da neve” e na emoção/identificação com os sobreviventes.

Acho interessante assistir aos dois filmes, e comparar as linguagens e recursos de cada gênero. Ambos são trabalhos meticulosos no que se propõem em termos de abordagem.

O filme espanhol, pode ser visto na Netflix. O documentário, estava até certo tempo atrás na Amazon Prime, mas ao menos no Brasil, não está mais disponível.

Cabe lembrar que o incidente nos Andes gerou ainda outros filmes, anteriores e posteriores ao documentário uruguaio, o primeiro foi o mexicano Os Sobreviventes dos Andes, o segundo foi o drama norte americano Alive.

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Published on January 11, 2024 06:01

January 4, 2024

The Crown – 6a temporada

Série- Criação de Peter Morgan, Reino Unido- 2023

Em 1984 morei em Londres. Foi o ano em que nasceu O príncipe Harry, segundo filho de Diana e Charles. Esse foi virtualmente o único assunto dos meios de comunicação naqueles dias, com repórteres entrevistando pessoas nas ruas, perguntando sua opinião inclusive sobre o nome dado para o recém-nascido, Henry Charles Albert David de Gales. Era de estarrecer a importância que davam à família real britânica, especialmente com a popularidade imensa da princesa Diana que era, naquele conto de fadas, a princesa e a fada ao mesmo tempo.

Essa lembrança aflorou agora, ao ver os episódios iniciais da sexta e última temporada de The Crown, quase quarenta anos depois. Isso porque o assunto Diana é certamente um dos catalizadores mais fortes dessa série sobre a família real britânica, que soube recriar com maestria a comoção gerada pelo fenômeno Lady D e todas as consequências e reflexões que dele derivam.

Elizabeth Debicki, na pele de Lady D

A atriz Elizabeth Debicki encarou o desafio gigantesco de interpretar um personagem real que ainda está vivo na memória das pessoas e fez um grande papel como a jovem princesa nas temporadas 5 e 6, dando forma e profundidade ao mito e à pessoa.

Mas Lady D não inspirou apenas a sua interprete. Os episódios em torno de Diana são os mais criativos e sólidos em termos do roteiro, da performance de outros atores (que não estão tão bem em outros momentos da série, como seu marido Charles) e da direção, que chega ao ápice na sequencia que culmina com a morte da princesa. Nesses episódios, principalmente nos que abrem a sexta temporada, há mais questionamentos profundos de ordem social, filosófica e psicológica do que no resto da série. E uma exposição intricada sobre a família real que segue nos episódios sobre Will e Harry, os filhos de Diana.

Por fim, o último episódio volta a ter a Rainha Elisabete como personagem central, alguém ciente de que sua vida está se aproximando ao fim, nos preparatórios de seu jubileu como monarca. Ela pensa inclusive em se “aposentar”, porém continuará reinando por vinte anos ainda até sua morte em 2022. Este último episódio, refletindo sobre o começo do fim, fecha a série com chave de ouro.

The Crown pode ser vista na Netflix. Para ler a resenha sobre as 5 temporadas anteriores clique aqui.

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Published on January 04, 2024 04:46

December 28, 2023

Bye 2023

E lá vai 2023.

Um ano difícil na ficção e mais ainda na realidade.  Começou com a bárbara invasão do dia 8 de janeiro ao palácio presidencial, ao congresso e ao prédio do STF, uma semana após a festiva posse que celebrou a eleição de um novo presidente no Brasil. Leia em As Quatro Linhas.

Seguiu com os avanços e retrocessos dos direitos indígenas, principalmente na questão do Marco Temporal abordada em Embaralhados e em A Casa Caiu? Questão que segue embaralhando as nossas mentes e embrulhando o estômago.

Em 7 de outubro, um ataque sem precedentes no alcance, na surpresa e na selvageria contra o Estado de Israel detonou uma guerra e flagelo que não parecem próximos do fim, ao contrário, há uma ameaça constante de ampliação do conflito para outras frentes e um aumento acirrado em manifestações antissemitas pelo mundo. Leia em O Espetáculo da Barbárie.

No âmbito da ficção, se destacaram aqui no blog os filmes mexicanos Ruído e Família, o chileno 1976 e o francês Athena. A série brasileira Manhãs de Setembro e a derradeira temporada de The Crown (em breve resenha). Nas letras, o romance Louças de Família, mais uma obra visceral e contundente de autoras e autores negras/os que estão conquistando seu espaço no universo editorial brasileiro, um ponto de luz nesse ano difícil.

Despedindo-se deste ano triste, o Blog do Lerner deseja a todos um 2024 pacífico na realidade e emocionante nas artes.

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Published on December 28, 2023 04:42

December 21, 2023

Família

Filme de Rodrigo Garcia, México 2023

Ao ver Família não pude deixar de compará-lo a Festen (Festa de Família) do dinamarquês Thomas Vinterberg de 1998, sem dúvida um dos melhores filmes do movimento Dogma 95. Tanto Família como Festen acontecem em torno de um evento de reunião familiar, ambos são ancorados em torno de uma figura patriarcal e o drama é todo movido pela relação dessa figura com seus filhos e/ou filhas. Ambos são filmes que mexem fortemente com os sentimentos do espectador e no entanto, são obras completamente opostas.

Festen tem o impacto de um terremoto, com as trágicas revelações que são feitas durante a comemoração dos 60 anos do patriarca. E de fato, sobram apenas ruínas após a explosão do conflito principal, explosão muito bem construída ao longo do filme, expressando uma visão ácida sobre a instituição família.

O filme mexicano é dirigido por Rodrigo Garcia, filho do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez e de Mercedes Bachra. Sua visão sobre a família é um tanto mais complexa do que a do colega dinamarquês. Rodrigo exibe maestria na direção e no roteiro (escrito em conjunto com Bárbara Collio), principalmente na maneira como conduz o jogo entre tensão e idílio, sensações que se apresentam e se mesclam durante o filme todo; e na sensibilidade de tocar sentimentos profundos sem atravessar a fronteira do piegas. Rodrigo erige um local para essa instituição, uma casa em meio a um olival esplendoroso (em Festen, a celebração se dá em um hotel, um espaço frio e muito distante do lar). E uma possível ameaça ao local torna-se também ameaça à família, ou à vivência familiar que floresceu ali junto com as olivas.

Nesse jogo entre amor, ressentimento, calor humano e medo, o pai, interpretado por Daniel Gimenez Cacho, (protagonista de Bardo), tem papel fundamental.  Cacho constrói um personagem carismático e profundo, agraciado com diálogos shakespearianos. Aliás, os diálogos se configuram em outro ponto alto da obra, mérito da dupla de roteiristas.

Por fim, a direção de arte e a fotografia se juntam na construção estética do templo da família, criando um cenário e uma luz idílica como reforço para os momentos de amor e contraponto para os momentos de conflito. Mostrando que amor não pressupõe a ausência de conflito, nem o conflito, a ausência do amor.

No final, um toque sútil de realismo mágico, homenagem ao pai do diretor, criador de um universo literário onde os vivos convivem naturalmente com os mortos.

O maravilhoso Família pode ser visto na Netflix.

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Published on December 21, 2023 04:45

December 14, 2023

Louças de Família

Livro de Eliane Marques, Brasil 2023

Louças de Família é o romance de estreia de Eliane Marques, autora que já se destacou na poesia. O título breve traz uma penca de significados. O mais evidente é o trocadilho com laços de família, que além de termo muito usado é também o título de uma novela da Globo, do início do século XXI. E embora haja momentos de sátira folhetinesca (com vilões bem definidos e super-heroínas sofredoras), o romance de Marques é o exatamente oposto da telenovela. E não só por que no fim os vilões permanecem por cima da carne seca. A autora usa um paralelo dos afamados núcleos dramáticos da telenovela para desenhar/denunciar a estrutura que moldou a sociedade brasileira, molde que ainda segue significativamente intacto apesar de algumas rachaduras e muitas mudanças.

O cenário da novela marquesiana não é a zona sul do Rio de Janeiro, mas é o extremo sul do Brasil, ali na fronteira com o país do Rio dos Pássaros Pintados, numa cidade que não se decide entre o nome de Santa, de Ana, ou da Liberdade. Ali onde se criou um mito mais descarado ainda do que o do Brasil como democracia racial, o mito de um estado que liberou seus escravos cinquenta anos antes da Lei Áurea. No lugar de praias maravilhosas e calçadões estilizados, repletos de corpos dourados, há charqueadas, matadouros e frigoríficos.  É nesse cenário que Eliane junta os cacos das louças de família numa saga regada a sangue e crueldade, que atravessa gerações de mulheres, todas do núcleo servil, protagonistas do invisível.

Louças de Família, portanto, é mais que um romance. É uma prosa poética de acerto de contas na qual a forma e o conteúdo se amalgamam numa escrita muito peculiar, original e doída, regada à imensa ira. A ira e outros sentimentos conduzem essa peça de acusação. Não é por nada que o livro é recheado de momentos em que a narradora quebra a quarta parede e dirige-se diretamente ao leitor, ou melhor, à leitora. Se você é particularmente sensível, ou ainda acredita em um dos mitos acima mencionados, você não pode deixar de ler Louças de Família.

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Published on December 14, 2023 05:57

December 7, 2023

Operação Ecstasy

Série, criação de Nico Moolenaar, Bélgica 2019-21

Há algumas semanas publicamos o post sobre Ferry, o filme e a série. Esta é a resenha prometida sobre o seriado que originou as duas obras. Operação Ecstasy (ou Undercover), tem três temporadas com dez episódios cada, ou seja, umas vinte e cinco horas para maratonar.

A primeira temporada é inspirada em um caso real. Um casal de agentes infiltrados passa a morar no camping que serve de base para um grande produtor de drogas sintéticas. Vizinhos, eles se tornam amigos do barão das drogas e de sua mulher em busca de acesso às provas que podem leva-lo à prisão. Na segunda e terceira temporadas os alvos da infiltração policial são outros, mas Ferry Bouman continua presente; na segunda temporada como uma história paralela que complica a trama principal, na terceira, com protagonismo antagonista dividido com o agente infiltrado. 

Há dois elementos, ambos ligados ao roteiro, que se contrapõem: ao longo das três temporadas há uma sucessão de eventos que não são críveis, ou não são construídos no roteiro de modo que gere credibilidade. Na contramão desse problema (que aumenta nas segunda e terceira temporadas), há um universo de personagens muito bem construídos e todos, bandidos e mocinhos, têm suas fraquezas e conflitos morais. Os policiais não são aqueles profissionais infalíveis de boa parte de filmes e séries e isso torna o seriado mais humano e envolvente.

Destacam-se os atores Frank Lammers, no papel de Ferry, Anna Drijver como Kim, a agente infiltrada, e Ruth Becquart como Nathalie. O protagonista, Bob Lemmens, o policial infiltrado que muitas vezes ignora os limites éticos da função, é interpretado por Tom Waes.

Outra qualidade que consegue amenizar as costuras por vezes estapafúrdias do roteiro, é a destreza na direção da série. As cenas de ação são bem filmadas, mas o grande destaque é como a gramática cinematográfica constrói, com seus planos, os momentos de suspense, de conspiração, de como alguém de repente entende que caiu numa cilada. Essa construção imagética do estado psicológico dos personagens é certamente um dos elementos principais do sucesso da série, sucesso que gerou outras duas produções.

Pela colaboração entre policias belgas e holandeses (Kim é holandesa, Bob é belga), já que o traficante opera entre esses dois territórios limítrofes, a série lembra a sensacional A Ponte, embora não tenha a mesma sofisticação.

Embora derivados, a série e o filme Ferry são prequels de Undercover, ou seja, é melhor assistir ao filme e depois o seriado Ferry (8 episódios), para depois maratonar as três temporadas de Operação Ecstasy.

As duas séries e o filme podem ser vistos na Netflix.

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Published on December 07, 2023 05:26

November 30, 2023

Ruído

Filme de Natalia Berinstain, México 2022

Ruído não é um filme fácil de assistir. Ele está tão distante de uma obra de entretenimento quanto os desaparecimentos no México estão distantes de uma solução. É um filme seco, cruel, incômodo, como a experiência que sua protagonista atravessa na jornada caótica em busca da filha, sumida há nove meses.

Nove meses, o tempo de uma gestação. Não é um período aleatório que os roteiristas escolheram para o desaparecimento de Ber. Ele remete ao laço forte da maternidade, força que moveu muitos anos atrás as avós da Praça de Maio, na Argentina, e atualmente move as mulheres mexicanas em busca de seus desaparecidos. Julia tatua em seu braço a mesma tatuagem que sua filha tem, ou tinha. Mais um reforço simbólico da relação mãe e filha e uma maneira simbólica também de se colocar dragonas, ou se pintar para a guerra.

Ao partir para a guerra, ou seja, para a ação, Julia descobre os caminhos dos coletivos de mulheres. Essa é uma diferença muito grande entre Ruído e vários outros filmes sobre pais procurando seus filhos sequestrados, desapontados com a inércia das autoridades. A obra de Natalia constrói uma jornada individual que se insere no coletivo. Julia participa, entre outras atividades, de um mutirão das rastreadoras, mulheres que se especializaram em localizar covas coletivas clandestinas.

Toda essa organização nasce da omissão, negligência e corrupção do poder público, realidade que o filme retrata magistralmente, criando um quadro assustador da ligação dos órgãos governamentais, a polícia especialmente, com o crime que ela deve combater. Um terceiro fator nessa jornada é a imprensa, principalmente a imprensa investigativa. A jornalista Abril Escobedo (Teresa Ruiz) conduz Júlia pelos labirintos de sangue, dor e morte, fazendo o papel que a imprensa oficial se omite de fazer. Mais uma heroína feminina nessa narrativa trágica.

A diretora comenta em entrevista que nos casos de desaparecimento a vítima principal é, obviamente, a pessoa desaparecida. Mas a violência é praticada também contra pessoas no entorno dessa vítima. Muitas famílias acabam se desintegrando pelas dúvidas sobre o destino da pessoa desparecida, pela impotência, pela falta de um desfecho, da possibilidade inclusive de praticar o rito de enterrar um corpo. O caráter pandêmico dos desparecimentos que assolou o país nas últimas décadas é que a motivou a fazer o filme, focando nos familiares das vítimas, eles também vítimas.

A sequência impactante que abre o filme escancara esse caráter pandêmico e dá um vislumbre da jornada que transita entre o individual e o coletivo. Julia é representada pela atriz Julieta Egurrola, mãe da diretora. O pai e o irmão de Natalia também são atores e trabalham no filme como pai e irmão da vítima. Seus personagens, Arturo e Pedro, assim como a protagonista, tem os nomes próprios dos atores.

A mim, o filme lembra Antigona, a tragédia de Sófocles (442 AC), e outra obra difícil e muito impactante que trata dos assassinatos de mulheres em Sinaloa, o livro 2666 de Roberto Bolaño. Ruído e 2666 são obras de denuncia, mas sobretudo de espanto frente a uma violência inexplicável. Dois fenômenos distintos, mas profundamente ligados, sintomas de uma sociedade gravemente enferma. Em Ruído há ainda um leve sopro, uma pequena ponta de esperança na organização coletiva. Mas a dor, o medo e o terror são ainda maiores.

O filme pode ser visto na Netflix.

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Published on November 30, 2023 06:00

November 9, 2023

Ferry

Filme + Série, Bélgica/Holanda – 2021 e 2023

O personagem do gangster Ferry Bouman virou, praticamente, uma franquia. Estreando em Operação Ecstasy, Ferry tornou-se protagonista de um filme e uma série com o seu nome que são spin offs (derivados) e prequels (prelúdios) de Operação Ecstasy. A série de três temporadas foi lançada em 2019, depois Ferry o filme (2021), e em 2023, Ferry, a série (dá rima). Na ordem linear dos eventos o filme vem em primeiro lugar; Ferry, a série, logo depois; e Operação Ecstasy no final.

Confuso? É simples: se você quer ver na ordem cronológica da trama veja o filme, depois a série e depois ainda as três temporadas de Operação Ecstasy (ainda não vi, mas está na minha lista). Se você quiser pular o filme,  Ferry, a série começa com um resumo do mesmo, mas você vai ficar curioso para ver igual. Então é melhor ver o filme e depois pular o resumo ao assistir o seriado de oito episódios.

O filme e a série são mais dois produtos do polo de produção de Flandres, a região norte da Bélgica que está muito ligada à vizinha Holanda. Desse polo já comentei aqui a excelente série Os Doze Jurados. Os diálogos são todos em holandês que é o idioma que se fala no Flandres. Os outros três idiomas que se fala na Bélgica são o francês e o flamengo, em regiões distintas do país.

Voltando ao Ferry, ele não é somente o protagonista, como também o dínamo da qualidade das duas obras. Isso se deve principalmente ao ator Frank Lammers que produz um personagem para lá de carismático e, claro, problemático. O filme e a série cobrem o processo de Ferry a caminho de se tornar um chefão das drogas e como seu caso de amor com Danielle acaba sendo um ponto de virada na trajetória de pequeno gangster para grande chefão.

Além do carisma de Ferry, a série é muito bem filmada, mantendo o ritmo entre a ação e os conflitos pessoais, e descortinando com maestria as várias reviravoltas. O filme não exibe o mesmo domínio da gramática audiovisual, mas é importante para entendermos o personagem.

Cecilia Verheyden é a diretora do filme, Nico Moolenar é o criador da série e roteirista do filme. No elenco, ao lado de Frank Lammers, brilha também a atriz Elise Schaap como Danielle Van Marken. O criminoso da vida real que inspirou o personagem é Janus Wan Wessenbeeck, também conhecido como o Harry Potter do crime.

As duas séries e o filme podem ser vistos na Netflix.

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Published on November 09, 2023 05:05

November 2, 2023

Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você

Filme, direção de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, Brasil 2023

Elis e Tom – Só Tinha de Ser com Você, documentário que fui ver com uma expectativa enorme, pelos seguintes motivos:

A canção Águas de Março, na versão de Elis e Tom é extraída desse disco, e o “clip” que virou um clássico-cult,  é um plano sequencia do material que foi filmado na gravação do disco, base para o filme atual. Não apenas a música é absolutamente maravilhosa, como a filmagem do dueto é sensacional e te deixa curioso para ver o antes e depois daquele momento único em que músicos, cantores e câmera atingem em sincronia a perfeição.  

Um dos diretores do filme é o Jomico, o Jom Tob Azulay (nome que é corruptela de Iom Tov que significa, em hebraico, bom dia), diretor do esplendoroso Doces Bárbaros (1976), documentário musical no estilo cinema direto que me marcou profundamente quando o assisti com estudante de cinema. Jomico era estudante de cinema na UCLA quando Elis e Tom foi gravado e ele constituiu virtualmente 50% da equipe de filmagem, captando o som direto. A outra metade era Fernando Duarte, o diretor de fotografia que operou a câmera 16mm e que seria o DF também em Doces Bárbaros.

O filme A Música Segundo Tom Jobim de Nelson Pereira dos Santos que para mim é um dos grandes filmes brasileiros de todos os tempos.

Além dessas três referências, havia ali o encontro de dois gigantes da música que eu admiro muito. Em outras palavras, eu esperava sair do cinema absolutamente embevecido. Acontece que essa expectativa alta, acaba sendo uma armadilha. Há elementos no documentário, há momentos no filme que valem muito a pena ter ido assistir, mas esses elementos não se juntam numa obra completa. Ou seja, o impacto positivo é devido a esses momentos e, portanto, um impacto fragmentado.

Elis e Tom – Dueto de titãs

Acredito que um dos problemas do filme é a falta de um conceito central, de um olhar autoral.  Ele nasceu inicialmente como um registro, ideia de Roberto Oliveira, empresário de Elis que articulou junto com a gravadora esse disco de encontro de Elis com o Tom. O material filmado foi editado para uma promo que passou na TV bandeirantes na época do lançamento do disco e dos dois shows que aconteceram no Rio e em São Paulo em 1974. Também foi usado sendo inserido em outros trabalhos e o seu extrato mais visto é o sensacional clip de Águas de Março. Mas grande parte do filme ficou na lata, por quase meio século, até que Roberto decidiu que era hora de fazer o filme sobre esse encontro, com toda a perspectiva histórica.

Ao material original foram acrescidos outros materiais de arquivo das carreiras dos dois e um grande número de depoimentos. Os depoimentos testemunhais (dos músicos que tocaram, do empresário da gravadora na época) são ótimos, os depoimentos de análise e contexto parecem explicativos demais e os vários depoimentos que dizem o quanto cada um deles era genial são completamente desnecessários. Esse acumulo de elementos de entorno acaba esmaecendo a qualidade das filmagens do nascimento do disco nesse dueto de titãs. E frustrando o interesse do espectador.

E ainda assim, não dá para deixar de ver o filme. Os momentos (raros de se ver em outros filmes musicais) de composição dos arranjos, dos ensaios, das tensões criativas e soluções mostram uma Elis movida à música, literalmente, e uma dinâmica entre ela, Tom e Cesar Camargo Mariano que é pura  manifestação da magia que a arte contém, e que nem os próprios artistas sabem explicar. Mas magia a gente não explica. Apenas tira da cartola.

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Published on November 02, 2023 07:01