Jaime Lerner's Blog, page 6

October 10, 2024

Nobel de Literatura

Surpresa muito agradável: o Nobel de literatura de 2024 vai para a escritora sul-coreana Han Kang. A comissão do prêmio destacou “sua intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”.  Concordo com a primeira parte, mas acho que ela vai muito além de expor a fragilidade da vida humana. Ela expõe a crueldade do ser humano como espécie e cria uma outra dimensão para a vida como refúgio dessa crueldade, utilizando as asas da imaginação artística.

O Blog fez resenha de duas das suas obras traduzidas para português: A Vegetariana e Atos Humanos. Clique nos nomes para ser direcionado a elas. Há um terceiro livro, O Livro Branco. Todos publicados aqui no Brasil pela Todavia. Han tem vários outros livros publicados entre contos, ensaios poesias e romances, desde 1995. O mais recente é de 2021 e será lançado em inglês em 2025.

É o primeiro Nobel de literatura da Coreia do Sul e deve abrir as portas do mundo para outros autores locais e para uma prosa ousada e inovadora.

Alerta: as obras são lindas, e profundamente tristes.

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Published on October 10, 2024 06:22

October 3, 2024

Tudo Pede Salvação

Série, duas temporadas, criação de Francesco Bruni, Itália 2022, 2024

Você desperta de manhã. Acorda em uma cama estranha. Tenta se lembrar de como chegou nesse lugar. Não consegue. Tenta se levantar. Descobre que está amarrado na cama. À sensação de estranheza junta-se um medo que vai crescendo. Foi um sequestro?

Isso é o que sente o jovem Danielle, na abertura de Tudo Pede Salvação, série dramática italiana que aborda o universo manicomial, ou melhor, o universo de uma clínica para doentes mentais. Ao ser informado que está hospitalizado e em que tipo de hospital, tem certeza que há um engano. Mas o engando é dele.

A primeira temporada lida com esse baque do protagonista, não aceitando inicialmente o fato de que está internado porque precisa de internação, a mudança do olhar dele sobre os outros pacientes e sobre si mesmo e o processo gradual de avanços e retrocessos rumo à tentativa de alta. Na segunda temporada Danielle começa a trabalhar na instituição como estagiário de enfermagem, tentando voltar a vida “normal”.

A série, assim como o processo de seu protagonista, tem altos e baixos. Diferente de inúmeras obras audiovisuais que retratam o hospício como um lugar de opressão, a clínica, pelo olhar de Danielle, transmuda-se de uma espécie de prisão para um espaço de tratamento e cura.  Às vezes Tudo Pede Salvação coloca açúcar demais e torna-se quase melada, lembrando o tom forçado de feel good movie de A Vida é Bela, por exemplo; às vezes beira o genial na sensibilidade com que trata seus personagens e como aborda seus conflitos mentais. No geral, é um drama que envolve, sem mergulhar em águas profundas, mas tem na leveza de abordagem e na estética algo muito italiano, que, enfim, dá prazer de assistir.

A segunda temporada termina com um gancho, ou seja, há intenção de ter uma terceira temporada. A série pode ser assistida na Netflix.

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Published on October 03, 2024 07:48

September 26, 2024

Ilha do Medo

Filme de Martin Scorsese – EUA, 2010

Scorsese dispensa apresentações. É um dos diretores mais prestigiados dos EUA, egresso da geração brilhante de cineastas oriundos de escolas de cinema que explodiram nos anos 1970, amigo de Brian de Palma, George Lucas, Copolla e Spielberg.

“Cinema é a minha religião” frase cunhada por ele, que representa muito bem o espirito dos então chamados The Movie Brats (os pirralhos do cinema),que revolucionaram o cinema estadunidense na estética, mas também na relação do diretor-autor com os grandes estúdios.

Ilha do Medo (Shutter Island) é um de seus filmes mais conhecidos que não tratam de ao menos uma de suas duas grandes obsessões: a cidade de Nova York e Gangsters. Embora seu protagonista seja um agente do FBI (ou assim somos levados a acreditar), o que ele investiga é o sumiço de uma paciente de um manicômio de segurança máxima. E o que o filme investiga, através de um thriller de perder o fôlego, é o processo mental de desconexão com a realidade. A cena inicial, uma travessia em águas revoltas a caminho da ilha, é uma alegoria perfeita para o início desse processo.

O primeiro ensaio do diretor nessa viagem por uma mente deteriorada deu-se em Taxi Driver de 1976, filme que catapultou sua fama. No entanto, os dois filmes são muito diferentes. Taxi Driver tem uma forte carga de crítica social, falado de um indivíduo engolido pela urbe, e cara de filme independente, quase underground. Ilha do Medo tem a estética de uma grande produção e vai mais fundo no labirinto psicológico que constrói. Em ambos, no entanto, estão presentes o estilo frenético do diretor e um arsenal de recursos visuais criativos que conduzem o filme, como a alegoria visual citada acima.

A direção de fotografia, assinada por Robert Richardson, é um dos fortes pilares do impacto fílmico que a obra produz, buscando o look dos filmes de estúdio dos anos 1950, época em que a trama acontece, tanto na densidade das cores nas cenas mais iluminadas, como no alto contraste de cenas noturnas.

Esse é também um dos raros filmes em que Leonardo DiCaprio consegue produzir na tela um personagem de carne e osso e não apenas apresentar um papel representado por… Leonardo DiCaprio.

O filme é adaptação do romance homônimo de Dennis Lehane, autor também de Sobre Meninos e Lobos (magistralmente adaptado por Clint Eastwood) e pode ser visto atualmente na Netflix.

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Published on September 26, 2024 06:29

September 19, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Guerra das Cadeiras

O dia 15 de setembro vai entrar na história dos debates eleitorais na TV. Foi o dia em que finalmente esse importante instrumento transmitiu para o eleitor, com alta fidelidade, a baixa integridade de seus candidatos.

Esse marco foi atingido no debate na TV Cultura, entre os que pleiteiam ocupar a cadeira de prefeito de São Paulo, maior e mais rica cidade do Brasil. O candidato MauSal, até então um desconhecido, resolveu seguir o exemplo do ex-presidente B para se destacar, com agressões e afirmações infundadas contra os adversários, só que elevando o nível da baixaria a outro patamar. Provavelmente aprendeu isso durante o período em que foi preso, aos 18 anos, como membro de uma quadrilha que invadia contas bancárias pela internet.

Essa estratégia logo o catapultou às primeiras posições nas pesquisas. Incentivado por esses resultados, deitou e rolou nas provocações no debate transmitido ao vivo. E levou uma cadeirada de um dos candidatos provocados, um apresentador de TV que começou no esporte, mas fez fama em programa sensacionalista criminal. O candidato Dá na Telha simplesmente pegou a cadeira da candidata ao lado dele a lançou-se com ela (a cadeira, não a candidata) contra o provocador. O âncora do debate, apavorado, mal teve tino de chamar o break comercial.

Após a cadeirada que mal o pegou de raspão, MauSal passou a noite em um hospital. Seu agressor foi expulso do programa e após o intervalo comercial o debate seguiu com os demais candidatos.

Há muito tempo que os debates entre os candidatos não vinham tratando de ideias e propostas, focando-se mais em desqualificar os concorrentes. Mas ainda que quentes, foram sempre duelos verbais. As provocações do MauSal (“você não é homem para me dar um tapa…”) e a reação do provocado tornaram a disputa pela cadeira numa briga de cadeiras.

Essa deterioração preocupou cientistas políticos e a mídia como um todo, afinal, é mais um risco à democracia. No entanto, a emissora do debate que ocorreu apenas dois dias depois, encontrou rapidamente uma solução: as cadeiras dos candidatos foram parafusadas ao chão.

O que impulsiona os candidatos da baixaria? Seria o baixo nível do eleitor? É um fenômeno apenas brasileiro ou é uma praga mundial? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on September 19, 2024 07:42

September 12, 2024

K – Relato de uma Busca

Livro de B. Kucinski, Brasil, 2011

K é sem dúvida uma peça literária singular. Alguns a classificam como autoficção, gênero em que o autor embaralha autobiografia e ficção. Mas não é bem isso, ou não é só isso. Kucinski amalgama duas linguagens, o texto seco e factual do jornalismo com o mergulho profundo na alma de personagens, sociedades e situações da alta literatura. Isso cria uma peça hibrida, por vezes esquisita, porém com um impacto acachapante ao final.

Kucinski conta a história de seu pai, um imigrante judeu da Polônia, através da história do desaparecimento de sua irmã pela ditadura militar brasileira. Curiosamente, o desaparecimento torna-se um descobrimento, pois a busca pelo paradeiro acaba revelando a K coisas que ele nunca imaginava sobre a filha.  A trama é construída de retalhos, pois é de retalhos que o pai busca entender a história completa do que aconteceu com sua filha. Essa junção de cacos de informação, essa peregrinação atrás de pistas, algumas falsas, vira a vida de K ao avesso e acaba o “integrando” à sociedade brasileira, ou a realidade do país em que vive. 

Na sombra do enredo principal, há outro desaparecimento do qual o livro fala. O desaparecimento da cultura judaica do centro e leste europeu, expressa principalmente pela literatura em idish. Não é à toa que K, de Kucinski, remete a K de Kafka e de Joseph K. Kafka não escrevia em idish, mas é um dos representantes dessa linhagem de escritores judeus europeus.  E suas obras criaram o termo kafkiano, termo que serve sob medida para a jornada de K em busca de sua filha.

O próprio idish, idioma dos judeus ashkenazim está desaparecendo, e essa é a principal preocupação do protagonista de K, até que o desparecimento da filha invade seu mundo e torna-se o centro de suas apreensões. A extinção da cultura idish acaba trazendo à tona o holocausto e liga os nazistas de Hitler aos fascistas da ditadura brasileira, através dos dois desaparecimentos.

K- Relato de uma Busca é um memorial, uma homenagem a quem não teve tumulo. Mas é também um acerto de contas com uma sociedade que não quer lembrar, prefere não ter que encarar responsáveis e responsabilizações com o pretexto da pacificação. Pacificação impossível de acontecer com a tentativa de esquecimento, de varrer os crimes para baixo do tapete.

É também um livro sobre identidade, e sobre a impotência e a culpa, sensações infligidas como uma tortura adicional pelos algozes aos parentes dos torturados nos porões. A maneira como K  traz à tona essa vivência dos familiares é o que o torna tão especial.

Bernardo Kucinski escreveu K aos setenta anos, foi sua estreia na literatura. O livro foi publicado inicialmente pela editora Expressão Popular, dois anos depois ganhou nova edição pela saudosa Cosac Naify e em 2016 pela Companhia das Letras. De lá para cá o autor publicou outros seis livros. K, em poucos anos virou um clássico/cult contemporâneo.

Leia uma amostra:

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Published on September 12, 2024 08:03

September 5, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O X da Questão

As casas de apostas lamberam os beiços. Fazia séculos, desde os tempos do Império Romano, que não surgia um ringue tão interessante. Seria a luta entre um mamute e um crocodilo? Um gigante gladiador e uma iguana? Melhor do que isso: era a disputa entre um juiz todo poderoso no Brasil, e um multibilionário multinacional viciado em holofotes, nutrido pela crença de que dinheiro resolve tudo.

O magistrado brasileiro foi alçado ao Supremo Tribunal Federal, o mais alto cargo no judiciário, pela mão do então presidente T. Era seu Ministro de Justiça e T, temente que fosse preso tão logo passasse a faixa presidencial, colocava ali alguém de confiança para garantir sua tranquilidade.

Eis que a faixa foi passada para o capitão paraquedista B, e os escândalos de corrupção de T na presidência tornaram-se pálidos perto  da nova realidade e logo foram esquecidos.

Ironia do destino, ou dos roteiristas de A Casa do Baralho, o ex-ministro de T, promovido a Juiz Superior numa nomeação um tanto malvista, acabou assumindo o heroico papel de defensor da democracia brasileira. Ganhou imensa musculatura e o apelido de Xandão no combate às fake News. Seu mote: Hay que ser democrático, pero sin perder la autoridade.

Do outro lado do octógono, Hélio Musgo, tycoon de empresas de tecnologia que pretende colonizar o planeta Marte, para quando a terra já não for mais habitável, já que o projeto de aliviar o aquecimento global fabricando carros elétricos à preços de banana, não decolou. Comprou o Twitter, mudou o nome da plataforma para X e causou uma debandada de usuários. Seu lema: Eu chego, compro e arrebento!

E foi justamente no X, o Coliseu de nossa era digital, que se deu todo o imbróglio. No inquérito das fake News e dos ataques aos três poderes deflagrados pelos correligionários de B, aquele que sucedeu T e fez seus escândalos parecerem brincadeirinha de criança, o Juiz exigiu da plataforma fechar as contas de propagadores de fake News e discurso de ódio. 

Musgo se recusou a bloquear os perfis, Xandão devolveu com intimação da companhia. O bilionário então demitiu toda a equipe brasileira para não ter um representante legal que pudesse ser autuado.  Além disso, criou no X um perfil que ataca o desafeto, classificando suas decisões como censura.

Irado, Xandão mandou a Anatel bloquear o acesso dos brasileiros à plataforma e ainda mandou multar pesadamente quem usasse VPN para driblar essa decisão. Só não explicou como fiscalizar o uso das VPNs. Mas já impulsionou, sem querer, um novo golpe na praça: e-mails disparados por estelionatários em nome da Anatel avisando que o destinatário foi multado.

A primeira turma do STF votou em consenso referendando as medidas do Xandão. Musgo bradou que o juiz investia contra a liberdade de expressão. O supremo magistrado devolveu dizendo que o bilionário só defendia a liberdade de agressão.

O planeta, obviamente, logo se dividiu entre fãs e haters de um ou de outro, ansiosos pelo desfecho desse embate de titãs. O X da questão é: quem manda mais, o dono da empresa, ou a Justiça do país onde ela opera?

Para obter essa resposta, não perca os próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on September 05, 2024 07:50

August 29, 2024

Totem

Filme de Lila Avilés – México 2023

O cinema mexicano vem nos brindando com uma geração de mulheres cineastas de muito talento despontado nos últimos anos, qualificando ainda mais um cinema vigoroso, diversificando temas e olhares. Diferente de Ruído de Natalia Berinstain, por exemplo, Avilés não explora os temas do narcotráfico, mortes violentas e desparecimentos de mulheres. Ela constrói seus dramas partindo de material mais rotineiro, porém de forma muito original. O México está presente em seus filmes  por meio de gestos e atitudes, expressões da cultura local.

Totem, seu segundo longa-metragem, não apresenta propriamente uma história e sim uma situação, ou um recorte na vida de uma família. Quem conduz essa situação é o olhar de Sol, uma menina de sete anos, ansiosa para ver seu pai que está enfermo, enquanto perambula pela casa do avô, entre tias e primos. Há momentos em que o filme a deixa para mostrar outras perspectivas até voltar a ela, em movimentos que lembram um minueto.  Essa dança é muito bem desenhada pela câmera passeante de Diego Tenório que assina a direção de fotografia. Ele também opera a câmera cujos movimentos e composições de quadro são grandes responsáveis pela forma sensivelmente diferente e peculiarmente sensível de Totem.

Totem não cativa desde o início. Há certa estranheza nos personagens e nas suas relações, até que, guiados por Sol, começamos a conhecê-los melhor, a eles e a casa que é também um personagem, que me fez lembrar os casarões imponentes/decadentes dos livros de Garcia Marques. Aos poucos, o filme vai nos envolvendo, vai nos abraçando e revelando que é possível fazer um melodrama (mexicano), sem ser melodramático. E é possível lançar uma mirada iluminada, até com humor, sobre uma vivência trágica.

Aviles, que também escreveu o roteiro, dá muita importância aos nomes dos personagens e seus significados, como se verá ao longo do filme. Sua protagonista, Sol, tem a missão de lançar essa luz, enquanto amadurece precocemente pelo evento trágico.

Totem também expressa o lado da cultura mexicana que lida com a morte ou com os mortos em uma festa cheia de cor, oferendas e alegria. Essa dualidade é muito bem trabalhada no filme, e se constitui em um de seus pontos fortes.

Aviles dirige Totem como se fosse um grande improviso, não só nos movimentos de câmera já mencionados, como nos diálogos, mis-em-scène e o estilo de atuação. A sensação é de grande espontaneidade e o resultado é que acreditamos totalmente e nos envolvemos profundamente no drama de Sol e de seu pai.

A diretora dedica o filme à sua filha, que quando criança viveu situação semelhante à de Sol.

Totem pode ser visto na Netlfix.

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Published on August 29, 2024 07:48

August 22, 2024

A Caça

Filme de Thomas Vinterberg – Dinamarca, 2012

Thomas Vinterberg é um dos fundadores do Dogma 95, movimento de cineastas dinamarqueses que tentou ressuscitar, no final do século passado, o impacto dos grandes movimentos da cinematografia europeia como o Neorrealismo Italiano e a Nouvele Vague na França. Queriam com isso dar visibilidade a seus filmes e se opor, ainda que apenas ideologicamente e esteticamente, ao cinema dominante de Hollywood. Os diretores que participavam do Dogma faziam um “voto de castidade” que incluía não usar trilha sonora, efeitos especiais, iluminação artificial e filtros,  só trabalhar com câmera na mão, não filmar em estúdio e por aí vai, medidas que visavam despir os filmes de tudo que denominavam ferramentas artificiais.

O primeiro filme do Dogma foi Festen, Festa de Família em português, que fez despontar o talento de Viterberg e para mim é, de longe, o melhor filme desse movimento.

A Caça já não é um filme do Dogma. Mas a obra mantém algumas opções estéticas do movimento. É um filme tenso do início ao fim, porém sem o auxílio de uma trilha sonora para criar ou realçar esse clima. A força do filme está no roteiro e no trabalho de atores, dois elementos que em A Caça se apresentam de forma magistral.

O roteiro constrói, de uma sucessão de situações ordinárias, o pesadelo kafkiano que irá se abater sobre o protagonista. A “antagonista”, deflagradora de toda a situação é uma criança inocente, e fez o que fez por amor. O grande vilão é a comunidade, que assim como a instituição família em Festa de Família, sofre uma crítica atroz sob as lentes de Thomas. Por pressão da comunidade, a amizade é posta à prova em um grupo de amigos, e o grupo não passa no teste, apenas dois indivíduos.

Mas o grupo de amigos não sabe o que o espectador sabe, e o dilema que se apresenta para eles, se apresentaria para cada um de nós se não soubéssemos o que já sabemos. Qual seria nossa opção nessa caçada moral? Nesse sentido, A Caça se aprofunda na questão de o quanto as instituições que erguemos para nos proteger, realmente cumprem essa função, mas de maneira mais complexa do que Festa de Família.

O filme não teria atingido o impacto que atinge, se qualquer um dos atores destoasse da excelência orquestrada pelo diretor no tom da interpretação. Todos entregam uma performance coesa, de alto nível, protagonistas e coadjuvantes, crianças e adultos. Destaque para Mads Mikkelsen como Lucas, que faturou o prêmio de melhor ator em Cannes e Annika Wederkkop como Klara, que na época das filmagens tinha 7 anos.

Acrescente a isso a maneira de Viterberg filmar, usando muitas vezes a câmera viva, ou seja uma câmera na mão, com pequenas oscilações mesmo quando parada, que transmite a tensão que está se construindo na pacata e amigável comunidade. E o desenho de luz, que foge das regras do Dogma, mas constrói os ambientes e as atmosferas das cenas de forma muito orgânica.

A Caça pode ser visto na Netflix.

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Published on August 22, 2024 05:47

August 14, 2024

Os Desorientados

Livro de Amin Maalluf, França/Líbano 2012

Amin é um escritor que nasceu e cresceu no Líbano. Em 1976, durante a guerra civil que assolou o país e praticamente iniciou a sua destruição, ele mudou-se para França. Tinha 27 anos.

O protagonista do livro, Adam, fez o mesmo trajeto. Não é escritor, é um historiador, mas como tal, é autor de vários livros. Nunca mais voltou ao país e nem pretendia, até que um telefonema da mulher de seu ex-melhor-amigo o fez comprar a passagem.

A narrativa dessa jornada de Adam por sua antiga terra me tocou profundamente. Os temas do personagem que tem duas pátrias e se sente deslocado em ambas, o choque cultural e religioso entre ocidente e oriente e entre árabes cristões e muçulmanos, a vontade de resgatar um tempo (e as amizades daquele tempo) perdido são entrelaçados com extrema sensibilidade.

Apesar do peso das questões e situações abordadas, há uma leveza no texto, regada de humor, amor, ironia e sensualidade. O peso e a leveza desenham o emaranhado kafkiano daquela guerra civil que enredou a geração de Adam. Há ingenuidade em algumas subtramas e genialidade em outras, como na história de Albert que foi sequestrado quando estava a caminho de casa para… suicidar-se. Curiosamente, o autor não menciona o nome do país uma única vez, mas deixa claro de que nação se trata.

Os Desorientados foi publicado em 2012 (no Brasil, em 2014), mas lendo-o nesses dias em que o oriente médio ameaça incendiar uma nova guerra mundial, dá a impressão de que foi escrito na semana passada.

Amin fala muito bem o árabe, mas escreve em francês. Desde 2011 é membro da Academia Francesa de Letras e atualmente (desde 2023), seu dirigente. Você pode ler uma amostra e/ou adquirir o livro em:

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Published on August 14, 2024 05:48

August 8, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Caindo de Maduro

Enquanto Trampo e Calma Lá Harris se digladiam em turbulenta campanha eleitoral (ver episódio anterior), na Venezuela, o presidente vitalício Mauduro mostra por que é mau e o quanto é duro. 

No final do ano passado, após longas negociações que resultaram no acordo de Barbados, ele conseguiu a seguinte barbada: a comunidade internacional aliviava as sanções econômicas e ele prometia fazer eleições livres e transparentes na Venezuela. Até soltou das prisões o pessoal da oposição para que achassem um candidato. Marcou as eleições e jogou o jogo até poucos dias antes do pleito, quando bradou em comício que se não ganhasse as eleições o país teria um banho de sangue.

O presidente L, que pagou pau para Mauduro no passado recente, dizendo que a Venezuela vivia em pleno regime democrático, levou um susto. Seu protegido tava querendo exatamente o quê? Declarou que num regime democrático se leva um banho de votos e não de sangue e quem perde dá tchau e vai pra casa.

“Quem levou um susto que tome chá de camomila” – foi a reação dura de Mauduro, sem mencionar nomes.

O ex-presidente da Argentina, também um líder da esquerda, que iria como observador internacional, foi desconvidado após também criticar as falas do presidente venezuelano.

Eis que chegou o dia das eleições e as pessoas foram às urnas. Para evitar o banho de sangue prometido em campanha, o CNE, Conselho Nacional Eleitoral, proclamou o presidente novamente vencedor.

A oposição exigiu que o CNE apresentasse as atas das sessões eleitorais. As que eles tinham apontavam a vitória do candidato da oposição. Mauduro não gostou e mandou prender o pessoal novamente. As pessoas saíram às ruas em protesto. Levaram pau da polícia, com mortos e feridos. Observadores internacionais botaram o resultado em suspeição. Países que condenaram a atitude presidencial ou que reconheceram a vitória da oposição, tiveram seus diplomatas expulsos do país. Em outras palavras, Mauduro seguiu sendo Mauduro.

E o Brasil?

Bom, o governo ficou quieto, um silêncio longo e estranho. Mas o partido do presidente L correu a parabenizar MauDuro por sua vitória, fazendo coro com países de longa tradição democrática como China, Rússia e Cuba. MauDuro tentou ligar para L, mas este deixou a secretária eletrônica atender. Com medo de que o venezuelano o mande tomar chá de camomila, ou coisa até pior, decidiu que só fala com ele em conjunto com os presidentes do México e da Colômbia. Tudo que ele não precisa agora, há dois meses das eleições municipais, é ser identificado como paga pau de ditador.

Mas assim como o mundo espera que Mauduro entregue as atas, ou melhor, entregue o cargo, os brasileiros esperam que seu presidente, vítima de uma tentativa de golpe no oitavo dia de seu mandato, se manifeste.

Será que L, um político tão maduro, irá cair na esparrela do líder venezuelano? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on August 08, 2024 05:31