Jaime Lerner's Blog, page 3

May 29, 2025

A Baleia

Filme de Darren Aronofsky – EUA, 2022

Confesso que demorei para assistir A Baleia, por receio. Fã dos primeiros filmes de Aronofsky, principalmente o do Requiem para um Sonho, senti que ele se perdeu em obras mais recentes como Cisne Negro e Mother. Sabendo que A Baleia tem como personagem principal um obeso mórbido que mal consegue se deslocar dentro da própria casa, fiquei com um pé atrás em relação à exploração do grotesco que poderia encontrar.

Uma das surpresas agradáveis foi descobrir que A Baleia é título do ensaio de uma estudante sobre o livro Moby Dick. Um ensaio cuja leitura e releitura ajuda o protagonista se recuperar de suas crises, cada vez mais frequentes dado o seu estado de saúde. No decorrer do filme é revelado porque esse ensaio é o seu favorito,  tem um poder de cura quase milagrosa, não necessariamente por sua qualidade literária, nem pelo tema abordado.

Outa grande surpresa agradável é a atuação de Brendan Fraser. É maravilhoso ver como Brendan dá vida a Charles, muitas vezes apenas com uma expressão dos olhos, preso num corpo imenso e prensado por uma culpa gigantesca. O ator, mais conhecido pelos filmes da franquia A Múmia, que envolvem terror com fantasia, estava a tempos fora da tela grande. Foi resgatado de volta para o cinema por Daren (e no mesmo ano também por Soderbergh) e apresenta um trabalho dramático sensível e cheio de nuances, que infelizmente é interrompido volta e meia por um mal-estar súbito, um engasgue ou queda. Armadilhas colocadas por sua condição, porém usadas exageradamente.

Aliás, o resgate de atrizes e atores “aposentados” virou uma tradição do diretor. Ellen Burstin em Requiem para um Sonho e Mickey Rourke, em O Lutador, são dois exemplos. Darren parece saber trabalhar muito bem essa volta pós afastamento desses atores.

A Baleia é adaptação de peça de teatro homônima de Daniel Hunter que assina também o roteiro do filme junto com Darren.  Um dos problemas do filme é justamente a teatralidade de algumas misancenes e performances de atores coadjuvantes, como o da ex-mulher de Charles. A grande virtude da obra é a abordagem corajosa de tema complexo e sensível, o “suicídio” por engorde, causado por um luto e uma culpa.

O filme estreou no festival de Veneza, ovacionado em pé por seis minutos. Ganhou dois Oscars em 2023: o de Melhor Maquiagem e de Melhor Ator para Brendan. Gerou polêmica ao ser taxado nas redes de gordofóbico e ser acusado do uso de Fat Suit (engordar um personagem com uso de próteses e efeitos de maquiagem).

A Baleia está disponível na Netflix (assinatura) e para aluguel na Amazon Prime, Google Play e Apple TV.

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Published on May 29, 2025 06:38

May 22, 2025

Reality

Filme de Tina Satter, EUA – 2023

Reality Winner, nome e sobrenome que parecem de personagem de quadrinhos, mas pertencem à uma pessoa muito real. Seu pai escolheu o nome Reality por que queria que ela fosse uma real winner, uma verdadeira vencedora na vida. Não podia imaginar o que o destino lhe reservava.

Reality estudou pashto e dari, idiomas falados no Irã, Paquistão e Afeganistão. Serviu na inteligência da força área norte americana por seis anos. Depois seguiu trabalhando em empresa privada que fornecia serviços de inteligência para a NSA, a Agência Nacional de Segurança norte americana, que lida principalmente com criptologia e segurança Cyber. O título do filme é, portanto, o nome da sua protagonista, mas ganha ainda outra dimensão pelo experimento de linguagem que faz.

Reality não é uma obra biográfica. Retrata o dia em que Winner chega em casa do supermercado e é abordada por agentes do FBI. O singular no filme é que os diálogos são rigorosamente extraídos da gravação em áudio feita por um dos agentes. Em outras palavras, o roteiro do filme é estruturado por um documento oficial, porém o filme não é um documentário. Ele é completamente encenado, os atores representam personagens reais, não de maneira que alguns realities de TV usam atores para reconstituição, mas da maneira como atores interpretam personagens, reais ou fictícios, em dramas de ficção.

A diretora deixa claro desde o princípio que as falas são do áudio original, e lembra isso ao espectador ao longo de todo o filme, usando recursos simples, mas muito criativos, para mesclar realidade e ficção, principalmente em relação aos detalhes que são ocultos para publicação nesse áudio. O resultado vai além de uma grande autenticidade. A sensação é que viramos aquela mosquinha na parede que assiste a toda a interação entre a jovem e os agentes do FBI.

Esse efeito não teria o impacto que tem, não fosse o maravilhoso trabalho de atores, principalmente o da protagonista interpretada por Sidney Sweene, e a direção de cena, na movimentação em quadro e na gramática audiovisual, que evitam que o filme pareça um teatro filmado.

Dessa maneira, junto ao drama de Reality, nos é passada a realidade de um interrogatório de um serviço secreto, com suas táticas e técnicas. E surge uma nova forma de fusão entre realidade e ficção na linguagem cinematográfica. O filme também não deixa de ser uma maneira de trazer à luz, através da arte, um documento do serviço secreto, quando tornar público um documento secreto é justamente o crime do qual Reality é acusada.

O curioso é que essa é a primeira experiência de Tina Satter como diretora de cinema, e que o filme é adaptação da peça de teatro Is This a Room criada e dirigida por ela. É um filme simples em termos de produção (foi rodado em 16 dias, praticamente em uma só locação), mas de grande engenhosidade e que trata de temas absolutamente importantes e atuais. A mim lembrou, em vários momentos, o romance O Processo de Kafka.

Reality estreou no festival de Berlim em 2023, e foi enaltecido pela crítica. Além dos elogios pelo trabalho de Sweene e pela construção do suspense por Tina,  foi ressaltada a importância de lançar luz sobre um episódio pouco conhecido, e extremamente relevante. O filme foi agraciado com o Prêmio Peadboy em 2023 e premiado no festival de cinema de Jerusalém como Melhor Documentário, embora não seja um filme documentário.

É surpreendente que não teve maior impacto na distribuição para as salas de cinema. Foi lançado na TV na HBO e agora Reality pode ser visto na Netflix e na Plataforma MUBI.

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Published on May 22, 2025 06:49

May 15, 2025

O Eternauta

Série, direção de Bruno Stagnaro, Argentina – 2025

O Eternauta é uma aposta ousada, tanto da Netflix como do audiovisual argentino.  É adaptação da novela gráfica homônima, criada em 1957 e retomada nos anos setenta por  Hector German Osterheld (texto) e Solano López (desenho, na década de 70). A HQ é icônica na argentina, mas pouco conhecida internacionalmente. Várias tentativas de adaptação para cinema (animação e live action) ao longo dos anos acabaram não vingando.  Talvez pelo alto custo da produção, talvez pela extensão da obra, ou pela forte tradição do cinema argentino de trabalhar com dramas realistas, enquanto O Eternauta é uma fantasia distópica de ficção científica, com muita ação.

Além da obra em si, a história trágica de Hector Osterheld, desaparecido pela ditadura argentina, assim como suas quatro filhas, em 1977, traz mais um componente de peso para a mística da História em Quadrinhos.  Hector criou uma trama que acabou tendo ligação chocante com seu destino e o de sua família. Para ler mais sobre Osterheld clique aqui.

A série conta com um elenco de peso, com os atores Ricardo Darin e Cesar Troncoso, mais conhecidos também por seus papeis em dramas realistas. Os primeiros episódios têm esse tom realista, e o fenômeno estranho que assola a capital argentina parece um desvio, algo como uma anomalia meteorológica ou física. A série engata numa estética sci-fi e HQ, a partir do terceiro episódio quando surgem os bichos.  No entanto, ela já é prenunciada no primeiro plano do episódio inicial, um plongée radical de um barco parado em águas escuras, seu mastro desnudo da vela quase cutuca a lente, e no fundo, o rosto de uma moça deitada visto pela escotilha.

As cenas de ação e os efeitos são bem executados, os atores entregam boas performances ainda que não haja grande complexidade nos personagens. Mas há algo estranho na estrutura da primeira temporada que parece incompleta. Normalmente se espera que um ciclo se feche em cada temporada, ainda que com gancho para a continuação. No caso de O Eternauta, a sensação é que há uma interrupção no meio do ciclo. Ainda mais quando esse é um ciclo expositivo. Parece que faltou ainda um ou dois episódios para estabelecer o conflito principal, inclusive esclarecer o título da obra. Há que esperar, portanto, a próxima temporada, para fazer uma análise mais completa.

Apesar dessa anomalia estrutural, o lançamento foi um enorme sucesso, é a série de língua não inglesa mais assistida nos primeiros cinco dias pós estreia na plataforma. É provável, portanto, que a segunda temporada não demore para entrar em produção.

O Eternauta pode ser vista na Netflix.

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Published on May 15, 2025 07:35

May 8, 2025

O Que Resta de Nós

Livro de Virginie Grimaldi, França 2022

O que resta de nós é um livro sobre um triângulo amoroso. Não, não é que você está pensando. É um triângulo e um amor muito diferentes do que o termo normalmente sugere.

Na base do triângulo uma senhora que recém perdeu o marido, aos setenta e quatro anos. Não tiveram filhos, mas tiveram uma vida longa de um casamento feliz, e o luto dilacera Jeanne.

Os outros lados do triângulo: O jovem Theo é aprendiz de padeiro. Recém saiu do abrigo para menores ao completar dezoito anos. Não tem pai e sua mãe, alcoólatra, está numa instituição e não o reconhece mais. Iris, outra jovem, embora mais velha do que Theo, fugiu de um relacionamento tóxico e está grávida. E ainda é stalkeada pelo marido.

Como esses três se encontraram? Você terá que ler para saber. Mas o mais interessante é como os três, perfeitos estranhos uns aos outros – cada um carregando um grande peso, e com forte propensão a não se abrirem para novos relacionamentos – acabam constituindo uma família de laços profundos, ainda que não sanguíneos.

A autora, Virgine Grimaldi, constrói essa relação de tijolos simples, mas muito bem-acabados,  pintados de várias cores com grande delicadeza.  Estrutura sua narrativa intercalando capítulos para Jeanne, Iris e Theo. E esses capítulos individuais, ou individualizados, reforçam a magia da conexão que vai se formando.

Curiosamente, os dois jovens têm suas histórias narradas em primeira pessoa, e Jeanne, a mais velha, tem seu processo narrado em terceira pessoa. Por quê? Essa é uma das surpresas agradáveis do texto que sugere a possibilidade de um quarto lado do triângulo.  Isso não existe na geometria, mas existe no romance de Grimaldi.

O Que Resta de Nós foi lançado na França em 2022, publicado no Brasil pela editora Gutenberg em 2024.

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Published on May 08, 2025 08:07

May 1, 2025

O Quarto ao Lado

Filme de Pedro Almodóvar, Espanha/EUA – 2024

Há um provérbio judaico que diz que ir ao funeral de alguém é a maior prova de amizade desinteressada. Por quê? Porque quem o faz o gesto não espera retorno.  Pedro Almodóvar leva essa ideia à outra dimensão, em um filme que fala sobre o fim da vida, mas no fundo é sobre amizade.

O diretor que elevou o melodrama melado a um estado de arte, encara um desafio interessante ao fazer seu primeiro filme falado em inglês. O tom é de um drama anglo-saxão, bem diferente de seus filmes espanhóis. Tudo é mais sutil, contido, menos extravagante. Porém três qualidades Almovodarianas permanecem:  a situação inusitada criada na trama, a magistral sensibilidade na direção de atores e acima de tudo, as cores de Almodóvar. O diretor usa as cores como se usa a trilha sonora, criando climas e sensações, marcando contrapontos e exclamações. Esse trabalho de cores vivas num ambiente de luz mais austero e suave é de arrepiar.

Tilda Swinton é a protagonista do filme. Teve várias experiências de estar próxima a pessoas que encaravam o final de suas vidas com coragem, e levou essa atitude delas para Martha, sua personagem. Um deles foi o cineasta Derek Jarman que morreu de Aids em 1994, o outro foi seu pai, falecido mais recentemente.

O trabalho de Tilda é impressionante em vários aspectos. Sua figura física que vai se afinando a cada estágio da doença, e depois surge como uma jovem saudável, no papel da filha de Martha; sua expressividade de comunicação não verbal, falando com os olhos, com uma postura de corpo, com um esgar da boca; a tensão instigante que às vezes cria entre seu texto verbal e essa comunicação silenciosa.

Tilda conta que o diretor a convidou para o filme e pediu que sugerisse um nome para o papel da amiga Ingrid. Ela de imediato visualizou o rosto de Julianne Moore. O

Outro ator que tem um papel menor, em termos dramáticos, mas se destaca pela atuação é John Turturro como Damian.

Uma curiosidade: a trama acontece toda nos EUA e várias cenas foram rodadas em Nova York e New Jersey. A maior parte do filme, porém, foi rodada em Madri e arredores, inclusive a locação principal, uma casa maravilhosa no meio da natureza que lembra Woodstock no estado de Nova York.

Baseado no romance What Are You Going Trough de Sigrid Nunez, publicado no Brasil como O que Você Está Enfrentando, o filme foi vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza. Tilda foi indicada como Melhor Atriz para o Globo de Ouro, mas como noventa de cada cem brasileiros sabem, a vencedora foi Fernanda Torres por Ainda Estou Aqui.

O Quarto ao Lado pode ser visto na Netflix.

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Published on May 01, 2025 06:16

April 24, 2025

Tokyo Vice

Série, criação de JT Rogers, EUA, 2022, 2024

Uma das séries mais interessantes que vi recentemente é Tokyo Vice. Sob o manto cativante de uma investigação criminal, a obra toca em temas importantes como choque cultural e xenofobia; pátria – carreira e família; e acima de tudo, ética.

O protagonista não é um policial ou detetive, é um repórter investigativo. E não é apenas um repórter investigativo, é um judeu norte-americano que se apaixonou pelo Japão e logra a façanha de ser aceito para trabalhar no maior jornal japonês. O suspense na prova de admissão é tão forte quanto nas futuras cenas de trama criminal.

Jack começa a investigar o estranho suicídio de uma pessoa que ateia fogo em si mesma na rua, e logo se vê transitando por vias perigosas que parecem levar para a Yakuza.

Mas não é só a trama que cativa em Tokyo Vice. Todos  os componentes da orquestra audiovisual trabalham juntos para produzir uma obra impactante. A direção de arte e fotografia criam um look noir/neon que combina os altos contrastes de filmes sombrios com as cores e a atmosfera elétrica do submundo do Japão. Os atores, tanto os japoneses como os gaijins, entregam um trabalho magistral e personagens multidimensionais. Os diálogos que transitam do japonês para o inglês e vice-versa, acrescentam um ar cosmopolita. O suspense é mantido em alto nível o tempo inteiro, as eventuais cenas de ação são muito bem coreografadas. A montagem cadencia a densidade dramática ao longo das duas temporadas.

A série é baseada no livro de memórias de Jack Adelstein, personagem real que se apaixonou pelo Japão e trabalhou em Tóquio como repórter do Yomiuri Shimbun (o principal jornal japonês) entre 1993 e 2005. Essa base real é mais um componente que confere autenticidade. No Brasil o título do livro é Tóquio Proibida: Uma Viagem Perigosa Pelo Submundo Japonês.

O quarteto de atores protagonistas: Ansel Elgort (como Jack), Ken Watanabe, Rachel Keller e Shô Kasamatsu.

A série foi rodada toda em Tóquio e arredores. A segunda temporada foi ao ar em 2024, são dezoito episódios no total das duas temporadas, e foi um grande sucesso também no Japão, o que atesta a sua genuinidade.

Tokyo Vice pode ser vista na plataforma de streaming Max.

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Published on April 24, 2025 06:24

April 17, 2025

O Reformatório Nickel

Livro de Colson Whitehead, 2019 + Filme de Ramell Ross, 2024, EUA

Em 2011, o reformatório para jovens Dozier, no estado da Florida, foi desativado, após cento e onze anos de funcionamento. Denúncia de abusos, torturas físicas e psicológicas ao longo de quase toda sua história decretaram, finalmente, o fechamento. Corpos mutilados, baleados, com sinais de desnutrição foram encontrados por pesquisadores forenses em um cemitério improvisado no próprio terreno da instituição, e outros em covas clandestinas fora desse cemitério.

A maioria desses abusos e mortes aconteceram nos anos 1960, no auge da era Jim Crow, quando se exacerbou a luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos causando uma forte reação dos racistas, principalmente nos estados sulinos.

A notícia do escândalo em Dozier inspirou Colson Whitehead a escrever um romance sobre a amizade entre dois internos negros de personalidades e antecedentes muito diferentes.  Elwood é inspirado pelos discursos de Martin Luther King que ouvia quase diariamente de um disco de sua avó, antes de ser preso. Turner é um cético, um sobrevivente desde sua mais tenra infância.

A escrita de Whitehead é áspera, seca, de frases curtas e sem enfeites, como era a vida daqueles personagens naquela época e lugar. E mesmo assim é uma escrita cativante, que impacta emocionalmente, como foram impactadas todas as vidas que passaram naquele “reformatório”, como impacta a revelação que lugares como esses existem. O romance faturou o prêmio Pulitzer em 2020.

Impactado ficou também o cineasta Ramell Ross, ex-jogador de basquete que teve que abandonar a carreira prematuramente em função de várias lesões. Inicialmente migrou para a fotografia, mas um documentário seu, Hale County, This Morning This Evening, vencedor de Sundance e nomeado ao Oscar, alçou-o definitivamente para o cinema. Estreou na ficção com a adaptação do livro de Whitehead. Filme que também teve duas indicações ao Oscar de 2025: Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme, embora não tenha sido premiado em nenhuma delas.

O filme é ousado no uso da linguagem audiovisual, porém difícil. O trabalho de câmera se amalgama com o trabalho de ator, representando o protagonista. A primeira parte é filmada toda como ponto de vista de Elwood. O espectador vê o que os olhos dele enxergam, ou o que ele sonha. Conseguimos ver seu rosto muito pouco, através de um reflexo no ferro de passar roupa, ou no retrovisor do carro em que pega carona rumo ao seu destino trágico.

Assim que encontra Turner, no refeitório do reformatório Nickel, a câmera divide-se em representar o ponto de vista dos dois. Através das câmeras subjetivas de ambos, conseguimos enxergar mais os protagonistas, um através do olhar do outro. Uma forma interessante de falar sobre amizade.

O filme é também rodado em uma janela quase quadrada, como dos antigos aparelhos de TV. E a narrativa acaba sendo muito fragmentada, despertando mais dúvidas do que entendimentos. O curioso é que para conseguir desfrutar plenamente da estética ousada do filme, é melhor ter lido o romance antes.

Com o conhecimento da trama e dos personagens, o espectador fica livre para apreciar os artifícios fílmicos, sem ficar se perguntando se entendeu bem o que aconteceu na cena.  E consegue se impactar da qualidade artística do discurso audiovisual de Ross. Nesse caso, a subjetividade da câmera nos aproxima dos personagens, em vez de nos afastar.

O nome original de ambas as obras é Nickel Boys, os garotos Nickel, muito mais apropriado do que o título em português, já que nenhuma delas é sobre o reformatório e sim sobre dois adolescentes negros na América racista dos anos 1960. O trocadilho do nome da instituição com a moeda de 5 centavos é explicitado no livro, mostrando o quanto valia a vida do jovem que ali ingressava.

O filme pode ser visto na Amazon Prime Vídeo. Antes, porém, leia o romance publicado pela Harper Collins, você não vai se arrepender.

Ao adquirir o livro através do link abaixo você estará ajudando o blog, sem pagar nada a mais por isso.

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Published on April 17, 2025 06:28

April 10, 2025

Cidade Tóxica

Série, criação de Jack Thorne, Reino Unido – 2025

Assim como Adolescência, Cidade Tóxica é uma série britânica de alta densidade dramática, que trata o drama de maneira contida, mas não por isso menos impactante.

A série é baseada em eventos reais na cidade de Corby, no final do século passado, um envenenamento ambiental que levou mais de uma década para ser admitido como tal, após um longo processo judicial.

A obra tem dois fortes pilares: consegue, através da caracterização e trabalho de atores, construir um panorama de pessoas comuns da classe trabalhadora em uma cidade em decadência econômica, e mostra como essas pessoas comuns, transpondo grandes obstáculos, se organizam para lutar por justiça. 

Consegue, através de um roteiro bem estruturado (e engana-se quem pensa que ser baseado em fatos reais facilita esse trabalho), extrair o sumo dramático de um longo processo, com avanços, paralizações e recuos, e mostrar como isso afetou a vida de indivíduos, mas também da comunidade como um todo.

Esse avanço na tessitura dos conflitos integrando o individual (protagonistas e antagonistas) com o coletivo, é um dos pontos de excelência de Cidade Tóxica.

O título, aliás, tem duplo sentido: o envenenamento concreto que ocorreu afetando fetos das mulheres grávidas na época, e a relação da cidade (representada pelo Conselho de Vereadores) com a sua comunidade, uma relação, naquela época e local, para lá de tóxica.

A direção é de Mink Spiro, diretora de Downtown Abbey e Better Call Saul. Cidade Tóxica pode ser vista na Netflix.

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Published on April 10, 2025 06:02

April 3, 2025

Um Defeito de Cor

Livro de Ana Maria Gonçalves, Brasil – 2006

Um livro que ainda não completou vinte anos e já é um clássico, se irmanando com romances históricos seminais como Grande Sertão: Veredas, Viva O Povo Brasileiro, Lavoura Arcaica, O Tempo e o Vento, entre outros. Com uma diferença fundamental: tem a autoria de uma mulher negra.

Um Defeito de Cor narra a epopeia de Kehinde, capturada na África ainda criança e trazida como escrava ao Brasil no início do século XIX. É repleto de mitologia, história, misticismo e reflexões sociais, mas sua maior qualidade é a narrativa envolvente que integra todos esses elementos à vida da protagonista. A escrita cativante perde um pouco  do ritmo a partir da volta de Kahinde à África, mas ainda assim mantêm-se como uma narrativa de fôlego, uma pintura multicolorida do mundo movido pelo comércio de escravos em seus detalhes, desde seus movimentos globais à rotina diária de escravos e patrões.

Kehinde, ou Luísa, como foi chamada por aqui, mesmo que tenha escapado do ritual obrigatório do batismo ao aportar no Brasil, conta sua história como um livro de memórias, que na verdade é uma carta a um filho perdido. Esse episódio do filho perdido é inspirado na história real de Luís Gama, advogado abolicionista, filho de mãe africana e pai português que o vendeu como escravo quando tinha sete anos (apesar de ter nascido livre), para saldar dívidas de jogo. 

Ana Maria Gonçalves trabalhou dois anos só em pesquisa, levou um ano para escrever o primeiro tratamento e mais dois anos reescrevendo. A imensa pesquisa e a integração de fatos históricos e personagens reais na teia ficcional conferem autenticidade, e revelam a grande diversidade de culturas, crenças e origens dos escravizados africanos que foram trazidos para cá, além da diversidade de trabalhos e status a que eram sujeitos. É uma aula cativante sobre um período sombrio que afetou a formação do Brasil como nação e a afeta até hoje.  E afetou também o continente africano. Defeito de cor é um termo jurídico daqueles tempos.

É o segundo romance de Ana Maria e ganhou o prestigiado Prêmio Casa das Américas em 2007. Em 2024 o livro foi adaptado como tema enredo do desfile da Escola de Samba Portela. Também gerou uma exposição com o mesmo nome e tema no SESC Pinheiros. Um Defeito de Cor é publicado pela Record.

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Published on April 03, 2025 06:12

March 25, 2025

Adolescência

Série, criação de Stephen Graham e Jack Thorn, Inglaterra 2025

É incrível como britânicos e norte-americanos trabalham diferente a condução da dramaticidade em seus filmes e séries. Os americanos usam e abusam de “fogos de artifício”, ou seja, o uso de recursos que não fazem parte da cena, como efeitos de som e trilha sonora, entre outros, para espetacular a situação, ajudar (ou sugestionar?) o espectador a entrar no clima pretendido. Os britânicos economizam nos extradiegéticos e se concentram mais na profundidade do roteiro e nas atuações.

Duas séries britânicas de alta densidade dramática lançadas na Netflix recentemente demonstram muito bem essa diferença. Uma delas é Cidade Tóxica, que será abordada em post futuro e Adolescência dirigida por Philip Barantini.

A série poderia muito bem ser chamada de Pais e Filhos. Ela reflete sobre a perigosa influência das redes sociais e influenciadores digitais entre os jovens, num contexto da desconexão entre pais (homens) e seus filhos (homens).  É ousada ao abordar o sensível tema do feminicídio entre adolescentes e tentar entender o processo mental do perpetrador.

O roteiro é sofisticadamente estruturado. A série, no princípio, parece uma série policial, até que na metade fica claro que a investigação proposta vai além (e mais fundo) do que a da solução de um crime e ela desemboca num drama familiar, após passar pela crítica social. Há quatro personagens principais que se alternam no protagonismo nos episódios: o investigador policial que também é pai de um adolescente; Jamie, o  garoto suspeito do assassinato; a psicóloga designada a fazer sua avaliação; e o pai de Jamie.

É curioso que os dois pais tem um biotipo parecido, homens musculosos, caras que resolvem as coisas com as próprias mãos. Seriam tipificados como machos alfa no código INCEL. O policial tem uma relação complicada com seu filho de 15 anos, mas é este rapaz, inseguro e frágil, que lhe decifra os códigos adolescentes para esclarecer o caso.

É interessante que nesse mesmo episódio sua parceira comenta quanto é injusto que nesses feminicídios  toda a atenção vai para o assassino e a vítima é quase posta de lado. É praticamente uma autocrítica que a série faz, já que praticamente tira a vítima e sua família da equação dramática da obra. O terceiro episódio é o ponto alto na série, em que a sessão de avaliação psicológica acaba virando um duelo de titãs entre a psicóloga e Jamie.

A maneira como Adolescência é filmada também é diferenciada. Cada episódio é rodado em um único plano sequência de cerca de uma hora, mesmo quando a ação se desloca entre várias locações.  Cada dia de filmagem rendia duas tomadas, após ensaios que construíam a ação, a coreografia dos planos e a movimentação técnica da câmera, que muitas vezes saia de um steadycam para um drone, ou para um carro, sem parar de rodar. Isso exigiu um grau de planejamento e preparação fora do comum. Qualquer errinho de um ator ou de alguém da equipe, invalidaria todo o episódio, tudo deveria ser feito do início.

Essa forma dificulta, por um lado, o trabalho dos atores, pois aumenta a pressão de não errar ao longo de uma hora, mas também traz uma vantagem a eles, já que é tudo filmado na ordem do roteiro e sem cortes, o que ajuda a manter o personagem. E é no trabalho de atores que reside o elemento mais impactante da série, esse que se junta a todos os outros para criar uma obra genial. Os atores, todos, entregam personagens reais que você encontra diariamente no seu entorno. Não há nenhum maneirismo de interpretação e esse naturalismo nos suga para dentro da série, como se fosse a vida real.

Em toda essa excelência destaca-se Owen Cooper de 13 anos como Jamie. É difícil acreditar que é sua primeira experiência frente às câmeras. Erin Doherty, que faz o papel de Brioni, a psicóloga, também é fundamental em seu trabalho de atriz o que ajuda também Owen a brilhar. O pai de Jamie é interpretado pelo criador da série, Stephen Graham, e o policial Luke, por Ashley Walters. O altíssimo nível de interpretação de todo o elenco, obviamente, tem também a mão do diretor.

Adolescência pode (e deve!) ser vista na Netflix.

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Published on March 25, 2025 06:46