Jaime Lerner's Blog, page 5

January 16, 2025

Cem Anos de Solidão, a série

Série, direção de Alex Garcia Lopez e Laura Mora Ortega, Colômbia, 2024

Em dezembro de 2024 a Netflix lançou a primeira parte (8 episódios) da super esperada série, adaptada do romance homônimo de Gabriel García Márquez. Desde o grande furor causado por Cem Anos de Solidão após seu lançamento em 1967, o autor recusou inúmeras propostas de adaptação. Achava difícil condensar em um longa-metragem a saga de Macondo e queria que fosse uma  produção colombiana, com equipe e elenco locais falando o idioma do livro.

Oito anos após o falecimento de Márquez a família licenciou os direitos de adaptação para uma série, o que soluciona a questão da duração, e embora seja uma produção da Netflix, a produtora, os diretores, elenco, equipe e locações são colombianos e a série é falada em espanhol. É curioso que Márquez viveu a maior parte de sua vida no México, onde escreveu Cem Anos de Solidão, publicado inicialmente por uma editora argentina e alçado à fama mundial por uma agente literária de Barcelona, porém todo ele é inspirado nas vivências com os avôs, com quem passou boa parte da infância, no interior da Colômbia.

Muitas pessoas manifestaram receio de assistir a série, temendo que estragasse o impacto causado a elas pelo livro. Eu recomendo não a ver pensando ou comparando-a com o romance. Para mim ela apresenta uma estética interessante, que não se equivale em criatividade ao realismo mágico do livro, mas que tem suas próprias qualidades e que confere à obra audiovisual o seu próprio clima. Destaque para a direção de arte, na elaboração dos cenários e na caracterização e maquiagem do envelhecimento dos personagens. Aliás, a passagem de tempo, e a troca de elenco em função disso, tem um conceito bastante ousado.

Dito isso, vale mencionar que a saga dos Buendia e a alma/história latino-americana dos séculos 19 e 20, com seu caudilhismo, paixões desenfreadas, revoluções e um certo anarquismo/banditismo, estão bem representados na série. E que ela integra ao universo Macondiano elementos de outras obras de Márquez, como a personagem Erendira do conto A Incrível e Triste História de Erendira e sua Avó Desalmada (esse conto foi adaptado ao cinema por Ruy Guerra, com Claúdia Ohana como protagonista, em 1983).

Vale também mencionar que ares contemporâneos conferem protagonismo à matriarca dos Buendia, Úrsula Iguaran, um protagonismo maior do que o conferido no romance. Úrsula é, ao menos nessa primeira parte com oito episódios, a grande heroína da obra, o personagem mais basilar.

Como noventa e nove de cada cem obras audiovisuais adaptadas da literatura, a série usa uma narração em voice over.

Cem Anos de Solidão pode ser assistida na Netflix. Não há previsão ainda para o lançamento dos oito episódios restantes.

Assista ao trailer, (infelizmente) dublado em português

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Published on January 16, 2025 06:26

January 8, 2025

A Palavra Que Resta

Livro de Stênio Gardel, Brasil 2021

Romance de estreia que tem o impacto de um abalo sísmico na profundidade dos conflitos, na força do texto, na sensibilidade de capturar um universo inteiro e embalá-lo em poesia.

Stênio não busca agradar o leitor com uma escrita fácil, ao contrário, nos seduz com mistérios oriundos do embaralhamento dos tempos, da fragmentação da narrativa e das vozes que a narram, da mistura de pensamentos e divagações, falas e personagens. Um caos que reflete a tempestade no coração de Raimundo.

Ao pouco vamos tomando pé do que é o que e quem é quem e a linguagem nos assombra com sua precisão poética, sua gramática peculiar e riqueza criativa que fecham perfeitamente (e surpreendentemente) com um personagem que não sabe ler nem escrever.

“Essa história da cabeça feita é que é o perigo, usar a cabeça feita pra ignorar, rejeitar, eu fui me rejeitando, tu sabe como isso é ruim, Cícero?”

A cabeça feita, termo que o protagonista usa para pré-conceito que leva ao preconceito, é o verdadeiro antagonista no romance, presente em quase todos os personagens, vítimas e algozes simultaneamente. O gerador de todos os conflitos que conduzem a trama, as tempestades internas e externas. Mas o livro não trata só do preconceito, da homofobia. É um livro sobre identidade, sobre amarras e raízes, sobre amores e paixão.

A Palavra Que Resta foi finalista do Prêmio Jabuti eganhou o National Books Award norte americano na categoria Literatura Traduzida. Traduzir esse livro certamente foi um desafio e tanto, encarado por Bruna Dantas Lobato. Editá-lo também deve ter sido desafiador, não é à toa que o autor agradece no livro a Júlia Bussius, que além da dedicada edição sugeriu o título para o livro. O romance foi publicado pela Companhia das Letras.

Clicando abaixo você poder ler uma amostra e/ou adquirir o livro.

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Published on January 08, 2025 06:57

January 2, 2025

Adeus 2024!

Primeiro blog do ano, em que tradicionalmente destaco as obras do ano passado que foram aqui comentadas. Após vencer vários obstáculos patrocinados pela companhia de energia porto-alegrense, a CEEE- Equatorial (era ruim antes e ficou pior, após a privatização) para concluir e subir esse post, vamos ao que interessa.

Das cinquenta publicações de 2024, vinte e cinco foram sobre filmes. Destaque para a cineasta chilena Maite Alberdi que teve dois filmes comentados: A Memória Infinita (doc, 2023) e No Lugar da Outra (ficção, 2024). Destaque também para o brasileiro Ainda Estou Aqui de Walter Moreira Salles (2024) que fez uma carreira brilhante nos cinemas e está em campanha pelo Oscar. E o filme que mais me impactou, Anatomia de Uma Queda da francesa Justin Triete.

A literatura foi contemplada com 10 posts, sete sobre livros e três sobre escritores como Prêmio Nobel (para Han Kang), Ismail Kadaré  e Cem Anos Sem Kafka.

As séries tiveram 7 publicações, o grande destaque é Ripley, pela ousadia estética.

A Casa do Baralho teve dez episódios, o derradeiro foi Jeca, Joca e Juca.

A enchente que assolou o  Rio Grande so Sul foi comentada em O Arquipélago  e em Entulhos.

O fim de ano foi de leituras, maratonas de filmes e séries, assim que há ótimas obras esperando na fila para serem resenhadas nas próximas semanas. Não perca!

Obrigado pelas leituras, curtidas e comentários. O blog do Lerner deseja a todas e todos um grande 2025, repleto de dramas em livros e filmes, e só alegrias na vida real.

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Published on January 02, 2025 07:01

December 26, 2024

Ferry 2

Filme, direção de Wannes Destoop, Bélgica 2024

Quem pensou que o rei das anfetaminas holandês havia se aposentado das telas, enganou-se. A Netflix resolveu cancelar a aposentadoria de Bauman, escondido em um retiro numa praia espanhola, para jogá-lo de volta à atividade. E há quatro dias do natal lançou o filme Ferry 2, com a missão de surfar na popularidade do personagem. Lembrando que Ferry apareceu inicialmente na série Operação Ecstasy como antagonista (três temporadas), foi alçado a protagonista em Ferry, o filme e na série homônima de 8 episódios.

Infelizmente, o novo filme só lembra a série nos minutos iniciais, justamente aqueles em que Ferry é sacudido de seu canto oculto, trabalhando no bar/restaurante do camping à beira-mar. A partir do momento em que é convocado, ou melhor, empurrado à ação, os diálogos ferinos dão lugar a uma trama rasa de um filme de ação pouco inspirado, inclusive nos quesitos de linguagem audiovisual, ritmo e cinematografia.

Outro atributo das séries e do filme em torno do barão das drogas são os personagens que o rodeiam. Em Ferry 2 não há nenhum personagem carismático, como os detetives da Operação Ecstasy, ou Danielle, a mulher por quem Ferry é apaixonado, ou seu cunhado John. A tentativa de passar o bastão para sua jovem sobrinha não funciona, justamente pela falta de carisma desse e dos outros personagens, com exceção da dona do bar onde Ferry trabalha no início do filme, personagem que some logo após os primeiros minutos. E mesmo Frank Lammers, o ator que alçou Ferry ao protagonismo, não consegue segurar o filme que está alguns níveis abaixo das outras peças audiovisuais.

Talvez um dos motivos seja que Nico Moolenaar, criador de ambas as séries e roteirista do primeiro filme, não participa da equipe de Ferry 2. Ele está à frente da série Amsterdam Empire, ainda em produção, que deve estrear em 2025. Outro motivo pode ser que a frankia/personagem já deu o que tinha para dar.

Ferry 2 poder se visto na Netflix, assim como as duas séries e o filme anterior que são um bom pedido para maratonar. Para ler as resenhas sobre essas obras clique nos links em azul no parágrafo inicial.

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Published on December 26, 2024 04:19

December 19, 2024

O Amanhã e Eu

Série, direção de Paween Purijitpanya – Tailândia, 2024

O Amanhã e Eu me atraiu por dois motivos: o primeiro, por ser uma série tailandesa, país cuja produção audiovisual é totalmente desconhecida para mim. Além disso, é um seriado no formato Black Mirror, que fala de futuros distópicos e possíveis ameaças da revolução tecnológica que vivemos nos últimos tempos, porém no contexto e cenários da cultura local. O conjunto desses dois elementos aguçou ainda mais a minha curiosidade.

São quatro episódios independentes, alguns com duração de um longa-metragem, muito diferentes em termos de proposta estética e abordagens dramáticas, ainda que todos apresentem dilemas éticos e o contraste entre tradição e avanços tecnológicos.

O primeiro e melhor deles, Diferentes (Black Sheep = Ovelha Negra no original), amarra uma grande história de amor com clonagem e impressão 3D de órgão sintéticos + identidade de gênero. Apresenta um roteiro sofisticado com uma virada surpreendente que provoca inúmeras reflexões.

O segundo, Padecendo no Paraíso (Paradistopia, no original, título que tem muito mais a ver com o episódio), traz um tema local, já que a Tailândia tornou-se um grande centro de atração de turismo sexual, com a prostituição crescendo assustadoramente nas últimas décadas.  Na trama, a proprietária da startup Paradise X enfrenta corrupção, hipocrisia e conservadorismo quando busca financiamento e autorização dos órgãos públicos para criar robôs sexuais inteligentes. Há cenas hilárias como o “treinamento” de uma das robôs por uma profissional do sexo humana. Cena que evidencia bem a diferença entre analógico e digital, ou melhor, natural e sintético. Há cenas pesadas como a humilhação da protagonista por um perverso e hipócrita comandante do exército, ou o enfrentamento dela com uma multidão de protestantes moralistas.

O terceiro episódio, Buda Digital  mistura fé e tecnologia, tendo como protagonista um monge que decide combater uma plataforma/aplicativo que é virtualmente um Buda da inteligência artificial. Traz uma reflexão sobre gurus, influencers e os rebanhos da fé. Faz uma homenagem discreta à Star Wars com a figura do robô Buddy, fiel companheiro do monge.

O quarto episódio, Muitos Braços (Octopus Girl = Menina Polvo) é uma sátira ácida que fala do aniquilamento do futuro no contexto do aquecimento global. Por isso tem como protagonistas duas crianças, eterno símbolo do futuro. Embora seja uma distopia fortemente integrada no contexto tailandês, em muitos momentos parece que é uma sátira ao Brasil da pandemia.

Aliás, todos os episódios trazem (de forma mais ou menos evidentes), críticas ao militarismo, lembrando que a história do país é recheada de golpes de estado e governos militares. Mas no quarto episódio, em que um ex-militar é o primeiro ministro (a Tailândia hoje é uma monarquia parlamentarista), e até os professores nas escolas trajam uniformes do exército, essa crítica é muito mais evidente. Isso mostra que nós, brasileiros, não estamos sozinhos na promoção de líderes reacionários corruptos e negacionistas, o que não serve de consolo nenhum, muito antes pelo contrário.

Oito roteiristas assinam a série, porém todos os episódios são dirigidos por Paween Purijitpanya, o que surpreende, devido às diferenças nas abordagens e estéticas. Os dois primeiros são consideravelmente mais fortes na qualidade de direção do que os dois últimos. Mas o último tem uma pegada que envolve mais, emocionalmente. Todos acontecem em um futuro não muito distante e fazem critica social e política, ainda que de maneiras muito distintas, por meio de drama, farsa e sátira. Todos apresentam criatividade na construção de seus futuros, futuros que falam sobre o presente.

A série pode ser vista na Netflix.

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Published on December 19, 2024 05:50

December 12, 2024

Os Visitantes

Livro de B. Kucinski, Brasil 2016.

Os Visitantes é uma sequência de K, publicado três anos antes. É uma sequência diferente, pois o livro não narra o que aconteceu depois do descrito em K, mas o que aconteceu após a publicação do mesmo. Então, dá para dizer que mais do que uma sequência, Os Visitantes é um livro consequência.

Kucinsky segue alternando entre ficção e fatos reais como em K, mas vai além: revela alguns trechos do livro (K) que eram pura ficção e passaram como realidade e vice-versa, e a dor de cabeça que isso lhe causou. Tampouco sabemos com certeza o que nesses relatos é real, ou fruto da liberdade ficcional do autor que entra num debate interno (por meio dos visitantes que batem à sua porta para cobrar satisfações sobre o texto) muito instigante sobre arte, jornalismo e ética.

Além das consequências, Kucinsky revela também as angustias com a carreira do livro. K levou um tempo para conseguir o destaque que acabou ganhando. Inicialmente foi publicado por uma editora pequena e o autor procura na imprensa, todos os dias, menções ou críticas ao livro. Em vão.

Assim, em paralelo à história da irmã desaparecida pela ditadura militar e a história de uma família destroçada (que já não era muito unida antes da tragédia), Os Visitantes trata também das dores de parto de uma criação/publicação, ainda que sejam dores do pós-parto.

Se você não leu K, leia-o antes de Os Visitantes. O segundo não faz sentido sem o primeiro. Se você leu K e gostou, não deixe de ler Os Visitantes publicado pela Companhia das Letras.

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Published on December 12, 2024 05:26

December 5, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Jeca, Joca e Juca

Os militares adoram criar abreviações, códigos e codinomes. É um verdadeiro fetiche dos fardados, em nível mundial. Os oficiais latino-americanos tem outro fetiche, não menos fetichoso: aplicar golpes de estado. Como esse último virou anacrônico em décadas recentes, generais saudosistas tiveram que se contentar em elucubrar planos golpistas, como os civis fazem palavras cruzadas ou sudoku. Só pra não enferrujar a mente.

Evidente que esses planos são recheados de códigos, abreviações e codinomes, unindo dois grandes fetiches numa orgia só.

Acontece que em 2018 foi eleito na Casa do Baralho um presidente que foi da turma desses saudosistas, e o que era anacrônico voltou à moda com renovado vigor. E quando esse presidente perdeu a eleição, alguns desses planos pulularam do papel para as ruas, principalmente as ruas adjacentes a quartéis.

Com a prisão do ajudante de ordens do ex-presidente B, por falsificar cartões de vacinação para que o mandatário e sua trupe pudessem entrar nos EUA, alguns conluios golpistas foram revelados. E o presidente e outras 37 pessoas foram indiciadas. Em seus computadores e celulares encontraram-se, entrou outros, dois planos para evitar a posse do novo presidente.

No plano Punhal Verde Amarelo, os três alvos da operação a serem “neutralizados” eram Jeca, Joca e Juca. Jeca seria o presidente L. Joca, o seu vice e Jeca, ainda não se sabe quem. É descrito no plano como “iminência parda do Jeca”. Iminência está com i no original. Não foi um erro, foi um ato falho. A urgência era tanto que o golpe acontecesse, que estivesse na iminência de acontecer, que o eminência foi liquidado antes do tempo.

No vácuo de poder com os assassinatos, o exército tomaria conta, criaria uma comissão de governo para chamar novas eleições. Nessa comissão estariam os golpistas (claro), entre eles dois generais de reserva que foram os ministros mais próximos do ex-presidente B.

O plano acabou não sendo executado, provavelmente porque seus operadores viviam se confundindo entre os codinomes. Era Jeca que tinha que ser envenenado? Era o Juca pra ser passado à bala? Era Joca a eminência parda do Jeca ou do Juca que seria vice do Jeca?

Já o plano Copa 2022 para sequestrar e quiçá eliminar o presidente do STF, chegou a ser colocado em ação, mas foi abortado. Os participantes eram todos Kids Pretos, soldados de Forças Especiais, com codinomes dos países da copa de 2022 como Argentina, Gana, Japão, Brasil, Alemanha. Bem criativo. Parecia La Casa de Papel. Mas era A Casa do Baralho.

Já as mensagens entre os participantes lembram um roteiro de Os Trapalhões, começando pelo fato de serem trocadas num aplicativo de mensagens de uso comum, já que o sistema de comunicação secreto do exército que pretendiam utilizar, tava estragado. O advogado de um deles nega a participação do seu cliente, alegando que o “amadorismo” da suposta tentativa de golpe prova que não foi feita por membros das Forças Especiais. É um argumento jurídico muito profissional. Como ele explica que o plano e a troca de mensagens estejam no celular de seu cliente? Pois seu cliente recebeu esse celular como um cavalo de Tróia, de alguém que o queria incriminar dentro das forças armadas.

Mas foi o advogado do ex-presidente B quem se superou na criatividade e abalou ainda mais os militares envolvidos. Para ele, o documento demonstra claramente que o plano era de criar um golpe dentro do golpe, sem a participação do seu cliente. A prova é que o nome dele não figura na comissão que tomaria o poder.

Em outras palavras, a estratégia da defesa do ex-presidente é jogar seus generais mais fiéis aos leões, para preservar as suas hemorroidas.

Como terminará esse tsunami? Quem é Joca, iminência parda de Jeca? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on December 05, 2024 06:43

November 28, 2024

Ainda Estou Aqui

Livro de Marcelo Ruben Paiva 2015 + Filme de Walter Salles 2024

A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida.

Numa dessas coincidências do destino, dois eventos muito distintos, mas nada distantes aconteceram quase simultaneamente: o lançamento do Filme Ainda Estou Aqui; o indiciamento do ex-presidente e mais 35 militares por conspiração para golpe, com a exposição do plano de matar o presidente atual, seu vice e o presidente do STF como parte desse golpe.

O que um evento tem a ver com o outro? O filme é adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado cassado Rubens Paiva, “desaparecido”, assassinado nos porões de um quartel do Rio de Janeiro, na ditadura militar. Os militares tiveram a cara de pau de negar que deu entrada no quartel, mesmo com o seu carro estacionado lá dentro. Devolveram o veículo à viúva com recibo e tudo, mas seguiram insistindo que seu marido nunca esteve lá. Passaram-se vinte e cinco anos (nove com o Brasil de volta ao regime democrático) para a família receber do estado um atestado de óbito.

O livro, no entanto, não é sobre o deputado, embora sua ida a interrogatório e posterior desaparecimento seja um eixo importante na história. Ainda Estou Aqui tem como protagonista Eunice, a mãe do escritor e reflete sobre presença e ausência, memória e esquecimento. O livro começa em tempos atuais (2008), com Eunice já sofrendo de Alzheimer. Advogada, ela vai mais uma vez ao fórum, mas dessa vez é para um processo diferente: sua interdição como pessoa capaz e a nomeação do filho como curador. Com essa cena e uma reflexão sobre memória e lembranças, o livro começa avassalador. Ele inicia com o momento da mãe embarcando rumo à ausência, ela que foi presença multiplicada após perder o marido. A partir dali o texto retrocede no tempo para 1971.

O filme opta pela linearidade, começa na exposição de uma família feliz, às vésperas de Rubens (Selton Mello) ser chamado para o interrogatório do qual nunca mais voltou. De lá segue avançando com dois pulos no tempo, até encontrar dona Eunice (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro) distante de tudo e de todos, a não ser em raros momentos. O filme não tem um narrador envolvido, como no livro, e perde um tanto da força da escrita pessoal e sincera de Marcelo. Curiosamente, seu impacto dramático maior não é nas cenas de prisão, interrogatório e aflição e sim ao final, quando lida com a memória da família e acompanha com fotos reais os créditos de encerramento. Perder a memória, nas duas obras, é o momento mais forte.

Ainda Estou Aqui é um sucesso de bilheteria, e isso tem uma importância enorme num país que após 2016 parece ter entrado em demência em relação aos anos de chumbo da ditadura militar. A consequência dessa amnésia coletiva vem mais uma vez à tona, coincidentemente com o lançamento do filme, pelo indiciamento de Bolsonaro e a revelação do plano de um grupo de militares de assassinar os chefes de estado que o venceram na eleição. Não é à toa que esse campo organizou uma campanha de boicote ao filme, campanha que, pelos números do filme, teve o efeito contrário do pretendido.

Vá ao cinema ver o candidato do Brasil ao Oscar 2025, e leia o livro. São duas experiências muito diferentes, embora contem a mesma história.

Leia uma amostra e adquira o livro:

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Published on November 28, 2024 08:08

November 21, 2024

No Lugar da Outra

Filme de Maite Alberdi, Chile – 2024

Há tanta coisa instigante nesse filme de estreia de Maite Alberdi na ficção, que é difícil escolher por onde começar.

Em primeiro lugar, a escolha da linha narrativa. Pode se dizer que a trama é secundária, é o pano de fundo para uma situação inusitada. A situação é a mesma do filme O Inquilino de Roman Polanski (1976): a transmutação da/do protagonista numa outra pessoa.  A obra de Polanski é um terror psicológico, frio e sombrio, a de Alberdi é uma sátira social, iluminada, de cores vivas. Em ambas, o apartamento da pessoa na qual os protagonistas se transmudam, tem grande importância no processo.

No Lugar da Outra é uma adaptação muito peculiar de um livro de não ficção, Las Homicidas de Allia Trabuco Zeran.  Por que a adaptação é peculiar? Porque o livro é um ensaio/investigação sobre quatro mulheres condenadas por homicídio no Chile no século passado. O filme usa o caso real de uma delas, a escritora Maria Colina Geel, como fio condutor, porém a personagem principal, Mercedes, é ficcional, assim como a relação que se estabelece entre elas.

Alberdi e suas roteiristas criam vários jogos de relações no filme: a do passado (1955) e do presente, deixando claro o que mudou e o que permanece estagnado; as relações entre homens e mulheres, no trabalho, na família e no amor; a relação de classes, e entre fãs anônimos e celebridades; a relação entre ficção e realidade, tanto pela mescla de materiais que emprega na obra, como pelos devaneios e imaginação de Mercedes. Todos esses jogos estão permeados pela questão feminina, e feminista.

Já dissemos que o filme é uma sátira social que reflete sobre o espaço da mulher na família e na sociedade. Espaço é um termo mais adequado do que lugar. O espaço – físico, simbólico e mental – tem significado importante na obra.

Embora seja um filme de época, é também uma inteligente paródia ao gênero True Crime, fenômeno que virou febre nos últimos anos. A paródia se dá brincando com o “escândalo”: a repercussão na mídia do crime de uma mulher da alta sociedade que matou seu amante no prestigiado Hotel Crillon. Todas as manchetes, termos e adjetivos atribuídos à acusada, são extraídos dos jornais da época.

Algumas cenas dos devaneios de Mercedes podem sugerir uma apologia do filme ao assassinato de homens, mas não é nada disso. O que o filme propõe, de forma muito sagaz, é o assassinato do machismo.

No Lugar da Outra pode ser visto na Netflix.

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Published on November 21, 2024 05:59

November 14, 2024

A Extraordinária Vida de Ibelin

Filme de Benjamin Ree – Noruega – 2024

Quem tem filhos nascidos nos últimos dez anos do século XX provavelmente passou por uma preocupação em comum: o tempo que o filho, a partir da pré-adolescência, ficava na frente de uma tela, jogando RPG. A gurizada deixava de jogar bola, sair, socializar para ficar presa na cadeira, olhos grudados no computador. E nós, pais, não gostávamos nada disso.

O documentário de Benjamin Ree traz um olhar diferente sobre esse mundo de avatares e games em ambientes virtuais, através da comovente história de Mats Steen, que sofria de grave doença muscular degenerativa e das histórias de algumas pessoas que jogaram online com ele.

O documentário constrói sua narrativa com vários elementos: depoimentos; material de acervo da família (por sorte o pai e a família adoravam filmar tudo, desde a gravidez da mãe de Mats, até as viagens e encontros familiares); material gravado de Mats jogando na frente do computador (por sorte o jovem se ofereceu para testar um aparelho experimental de acessibilidade e o teste incluía  filmá-lo em sua casa jogando com esse aparelho); e o blog que Mats criou, uma espécie de diário sobre seus pensamentos e sentimentos.

Além desse material documental, o filme recria em animação o mundo virtual do jogo de Mats e assim dá vida a Ibelin, o personagem que ele criou e aos personagens com quem interagiu. Todas as cenas animadas são baseadas em arquivos em texto das conversas da comunidade do jogo (milhares de páginas), assim que os diálogos da animação são falas documentais nas vozes de atores.

Com essa quantidade enorme de material Ree levou quatro anos para fazer o filme, dois deles na ilha de edição. Só entrou em contato com a Blizzard, detentora dos direitos do game, pedindo autorização para usar os cenários e personagens do jogo, quando o filme tinha um corte final. Foi um grande risco que decidiu correr (uma negativa jogaria todo seu trabalho no lixo) para garantir a total independência do filme. Usou modelos do material do World of Warcraft extraídos do Youtube na edição. E viajou, nervoso, exibir o corte em reunião na sede da empresa na Califórnia. Só respirou ao final da projeção quando o proprietário da Blizzard, com lágrimas nos olhos, disse que era um filme fenomenal.

Outro fato curioso da produção do filme é que os atores que dublam Mats e os personagens animados, são todos pessoas com deficiência. Foi uma escolha inclusiva do diretor, homenageando seu protagonista.

A Extraordinária Vida de Ibelin é um filme de arrancar lágrimas pela história que conta, mas vai além de comover. Foi uma ferramenta importante no processo de luto da família, tanto na participação no filme, como ao assisti-lo. É um memorial para o jovem Mats, e joga luz sobre o mundo interno de um adolescente e jovem adulto alijado cada vez mais pela doença, do mundo “normal”. Não conseguiu recriar a vida oculta dele, a ponto de nos colocar em seu lugar, mas certamente dá um vislumbre importante desse universo interior e levanta questões interessantes sobre amizade e empatia na era digital.

Após o sucesso do filme no festival de Sundance, no qual levou os prêmios do público e de melhor direção na categoria Documentários do mundo, a Netflix o licenciou para seu catálogo.

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Published on November 14, 2024 04:52