Jaime Lerner's Blog, page 5

December 19, 2024

O Amanhã e Eu

Série, direção de Paween Purijitpanya – Tailândia, 2024

O Amanhã e Eu me atraiu por dois motivos: o primeiro, por ser uma série tailandesa, país cuja produção audiovisual é totalmente desconhecida para mim. Além disso, é um seriado no formato Black Mirror, que fala de futuros distópicos e possíveis ameaças da revolução tecnológica que vivemos nos últimos tempos, porém no contexto e cenários da cultura local. O conjunto desses dois elementos aguçou ainda mais a minha curiosidade.

São quatro episódios independentes, alguns com duração de um longa-metragem, muito diferentes em termos de proposta estética e abordagens dramáticas, ainda que todos apresentem dilemas éticos e o contraste entre tradição e avanços tecnológicos.

O primeiro e melhor deles, Diferentes (Black Sheep = Ovelha Negra no original), amarra uma grande história de amor com clonagem e impressão 3D de órgão sintéticos + identidade de gênero. Apresenta um roteiro sofisticado com uma virada surpreendente que provoca inúmeras reflexões.

O segundo, Padecendo no Paraíso (Paradistopia, no original, título que tem muito mais a ver com o episódio), traz um tema local, já que a Tailândia tornou-se um grande centro de atração de turismo sexual, com a prostituição crescendo assustadoramente nas últimas décadas.  Na trama, a proprietária da startup Paradise X enfrenta corrupção, hipocrisia e conservadorismo quando busca financiamento e autorização dos órgãos públicos para criar robôs sexuais inteligentes. Há cenas hilárias como o “treinamento” de uma das robôs por uma profissional do sexo humana. Cena que evidencia bem a diferença entre analógico e digital, ou melhor, natural e sintético. Há cenas pesadas como a humilhação da protagonista por um perverso e hipócrita comandante do exército, ou o enfrentamento dela com uma multidão de protestantes moralistas.

O terceiro episódio, Buda Digital  mistura fé e tecnologia, tendo como protagonista um monge que decide combater uma plataforma/aplicativo que é virtualmente um Buda da inteligência artificial. Traz uma reflexão sobre gurus, influencers e os rebanhos da fé. Faz uma homenagem discreta à Star Wars com a figura do robô Buddy, fiel companheiro do monge.

O quarto episódio, Muitos Braços (Octopus Girl = Menina Polvo) é uma sátira ácida que fala do aniquilamento do futuro no contexto do aquecimento global. Por isso tem como protagonistas duas crianças, eterno símbolo do futuro. Embora seja uma distopia fortemente integrada no contexto tailandês, em muitos momentos parece que é uma sátira ao Brasil da pandemia.

Aliás, todos os episódios trazem (de forma mais ou menos evidentes), críticas ao militarismo, lembrando que a história do país é recheada de golpes de estado e governos militares. Mas no quarto episódio, em que um ex-militar é o primeiro ministro (a Tailândia hoje é uma monarquia parlamentarista), e até os professores nas escolas trajam uniformes do exército, essa crítica é muito mais evidente. Isso mostra que nós, brasileiros, não estamos sozinhos na promoção de líderes reacionários corruptos e negacionistas, o que não serve de consolo nenhum, muito antes pelo contrário.

Oito roteiristas assinam a série, porém todos os episódios são dirigidos por Paween Purijitpanya, o que surpreende, devido às diferenças nas abordagens e estéticas. Os dois primeiros são consideravelmente mais fortes na qualidade de direção do que os dois últimos. Mas o último tem uma pegada que envolve mais, emocionalmente. Todos acontecem em um futuro não muito distante e fazem critica social e política, ainda que de maneiras muito distintas, por meio de drama, farsa e sátira. Todos apresentam criatividade na construção de seus futuros, futuros que falam sobre o presente.

A série pode ser vista na Netflix.

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Published on December 19, 2024 05:50

December 12, 2024

Os Visitantes

Livro de B. Kucinski, Brasil 2016.

Os Visitantes é uma sequência de K, publicado três anos antes. É uma sequência diferente, pois o livro não narra o que aconteceu depois do descrito em K, mas o que aconteceu após a publicação do mesmo. Então, dá para dizer que mais do que uma sequência, Os Visitantes é um livro consequência.

Kucinsky segue alternando entre ficção e fatos reais como em K, mas vai além: revela alguns trechos do livro (K) que eram pura ficção e passaram como realidade e vice-versa, e a dor de cabeça que isso lhe causou. Tampouco sabemos com certeza o que nesses relatos é real, ou fruto da liberdade ficcional do autor que entra num debate interno (por meio dos visitantes que batem à sua porta para cobrar satisfações sobre o texto) muito instigante sobre arte, jornalismo e ética.

Além das consequências, Kucinsky revela também as angustias com a carreira do livro. K levou um tempo para conseguir o destaque que acabou ganhando. Inicialmente foi publicado por uma editora pequena e o autor procura na imprensa, todos os dias, menções ou críticas ao livro. Em vão.

Assim, em paralelo à história da irmã desaparecida pela ditadura militar e a história de uma família destroçada (que já não era muito unida antes da tragédia), Os Visitantes trata também das dores de parto de uma criação/publicação, ainda que sejam dores do pós-parto.

Se você não leu K, leia-o antes de Os Visitantes. O segundo não faz sentido sem o primeiro. Se você leu K e gostou, não deixe de ler Os Visitantes publicado pela Companhia das Letras.

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Published on December 12, 2024 05:26

December 5, 2024

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Jeca, Joca e Juca

Os militares adoram criar abreviações, códigos e codinomes. É um verdadeiro fetiche dos fardados, em nível mundial. Os oficiais latino-americanos tem outro fetiche, não menos fetichoso: aplicar golpes de estado. Como esse último virou anacrônico em décadas recentes, generais saudosistas tiveram que se contentar em elucubrar planos golpistas, como os civis fazem palavras cruzadas ou sudoku. Só pra não enferrujar a mente.

Evidente que esses planos são recheados de códigos, abreviações e codinomes, unindo dois grandes fetiches numa orgia só.

Acontece que em 2018 foi eleito na Casa do Baralho um presidente que foi da turma desses saudosistas, e o que era anacrônico voltou à moda com renovado vigor. E quando esse presidente perdeu a eleição, alguns desses planos pulularam do papel para as ruas, principalmente as ruas adjacentes a quartéis.

Com a prisão do ajudante de ordens do ex-presidente B, por falsificar cartões de vacinação para que o mandatário e sua trupe pudessem entrar nos EUA, alguns conluios golpistas foram revelados. E o presidente e outras 37 pessoas foram indiciadas. Em seus computadores e celulares encontraram-se, entrou outros, dois planos para evitar a posse do novo presidente.

No plano Punhal Verde Amarelo, os três alvos da operação a serem “neutralizados” eram Jeca, Joca e Juca. Jeca seria o presidente L. Joca, o seu vice e Jeca, ainda não se sabe quem. É descrito no plano como “iminência parda do Jeca”. Iminência está com i no original. Não foi um erro, foi um ato falho. A urgência era tanto que o golpe acontecesse, que estivesse na iminência de acontecer, que o eminência foi liquidado antes do tempo.

No vácuo de poder com os assassinatos, o exército tomaria conta, criaria uma comissão de governo para chamar novas eleições. Nessa comissão estariam os golpistas (claro), entre eles dois generais de reserva que foram os ministros mais próximos do ex-presidente B.

O plano acabou não sendo executado, provavelmente porque seus operadores viviam se confundindo entre os codinomes. Era Jeca que tinha que ser envenenado? Era o Juca pra ser passado à bala? Era Joca a eminência parda do Jeca ou do Juca que seria vice do Jeca?

Já o plano Copa 2022 para sequestrar e quiçá eliminar o presidente do STF, chegou a ser colocado em ação, mas foi abortado. Os participantes eram todos Kids Pretos, soldados de Forças Especiais, com codinomes dos países da copa de 2022 como Argentina, Gana, Japão, Brasil, Alemanha. Bem criativo. Parecia La Casa de Papel. Mas era A Casa do Baralho.

Já as mensagens entre os participantes lembram um roteiro de Os Trapalhões, começando pelo fato de serem trocadas num aplicativo de mensagens de uso comum, já que o sistema de comunicação secreto do exército que pretendiam utilizar, tava estragado. O advogado de um deles nega a participação do seu cliente, alegando que o “amadorismo” da suposta tentativa de golpe prova que não foi feita por membros das Forças Especiais. É um argumento jurídico muito profissional. Como ele explica que o plano e a troca de mensagens estejam no celular de seu cliente? Pois seu cliente recebeu esse celular como um cavalo de Tróia, de alguém que o queria incriminar dentro das forças armadas.

Mas foi o advogado do ex-presidente B quem se superou na criatividade e abalou ainda mais os militares envolvidos. Para ele, o documento demonstra claramente que o plano era de criar um golpe dentro do golpe, sem a participação do seu cliente. A prova é que o nome dele não figura na comissão que tomaria o poder.

Em outras palavras, a estratégia da defesa do ex-presidente é jogar seus generais mais fiéis aos leões, para preservar as suas hemorroidas.

Como terminará esse tsunami? Quem é Joca, iminência parda de Jeca? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on December 05, 2024 06:43

November 28, 2024

Ainda Estou Aqui

Livro de Marcelo Ruben Paiva 2015 + Filme de Walter Salles 2024

A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida.

Numa dessas coincidências do destino, dois eventos muito distintos, mas nada distantes aconteceram quase simultaneamente: o lançamento do Filme Ainda Estou Aqui; o indiciamento do ex-presidente e mais 35 militares por conspiração para golpe, com a exposição do plano de matar o presidente atual, seu vice e o presidente do STF como parte desse golpe.

O que um evento tem a ver com o outro? O filme é adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado cassado Rubens Paiva, “desaparecido”, assassinado nos porões de um quartel do Rio de Janeiro, na ditadura militar. Os militares tiveram a cara de pau de negar que deu entrada no quartel, mesmo com o seu carro estacionado lá dentro. Devolveram o veículo à viúva com recibo e tudo, mas seguiram insistindo que seu marido nunca esteve lá. Passaram-se vinte e cinco anos (nove com o Brasil de volta ao regime democrático) para a família receber do estado um atestado de óbito.

O livro, no entanto, não é sobre o deputado, embora sua ida a interrogatório e posterior desaparecimento seja um eixo importante na história. Ainda Estou Aqui tem como protagonista Eunice, a mãe do escritor e reflete sobre presença e ausência, memória e esquecimento. O livro começa em tempos atuais (2008), com Eunice já sofrendo de Alzheimer. Advogada, ela vai mais uma vez ao fórum, mas dessa vez é para um processo diferente: sua interdição como pessoa capaz e a nomeação do filho como curador. Com essa cena e uma reflexão sobre memória e lembranças, o livro começa avassalador. Ele inicia com o momento da mãe embarcando rumo à ausência, ela que foi presença multiplicada após perder o marido. A partir dali o texto retrocede no tempo para 1971.

O filme opta pela linearidade, começa na exposição de uma família feliz, às vésperas de Rubens (Selton Mello) ser chamado para o interrogatório do qual nunca mais voltou. De lá segue avançando com dois pulos no tempo, até encontrar dona Eunice (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro) distante de tudo e de todos, a não ser em raros momentos. O filme não tem um narrador envolvido, como no livro, e perde um tanto da força da escrita pessoal e sincera de Marcelo. Curiosamente, seu impacto dramático maior não é nas cenas de prisão, interrogatório e aflição e sim ao final, quando lida com a memória da família e acompanha com fotos reais os créditos de encerramento. Perder a memória, nas duas obras, é o momento mais forte.

Ainda Estou Aqui é um sucesso de bilheteria, e isso tem uma importância enorme num país que após 2016 parece ter entrado em demência em relação aos anos de chumbo da ditadura militar. A consequência dessa amnésia coletiva vem mais uma vez à tona, coincidentemente com o lançamento do filme, pelo indiciamento de Bolsonaro e a revelação do plano de um grupo de militares de assassinar os chefes de estado que o venceram na eleição. Não é à toa que esse campo organizou uma campanha de boicote ao filme, campanha que, pelos números do filme, teve o efeito contrário do pretendido.

Vá ao cinema ver o candidato do Brasil ao Oscar 2025, e leia o livro. São duas experiências muito diferentes, embora contem a mesma história.

Leia uma amostra e adquira o livro:

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Published on November 28, 2024 08:08

November 21, 2024

No Lugar da Outra

Filme de Maite Alberdi, Chile – 2024

Há tanta coisa instigante nesse filme de estreia de Maite Alberdi na ficção, que é difícil escolher por onde começar.

Em primeiro lugar, a escolha da linha narrativa. Pode se dizer que a trama é secundária, é o pano de fundo para uma situação inusitada. A situação é a mesma do filme O Inquilino de Roman Polanski (1976): a transmutação da/do protagonista numa outra pessoa.  A obra de Polanski é um terror psicológico, frio e sombrio, a de Alberdi é uma sátira social, iluminada, de cores vivas. Em ambas, o apartamento da pessoa na qual os protagonistas se transmudam, tem grande importância no processo.

No Lugar da Outra é uma adaptação muito peculiar de um livro de não ficção, Las Homicidas de Allia Trabuco Zeran.  Por que a adaptação é peculiar? Porque o livro é um ensaio/investigação sobre quatro mulheres condenadas por homicídio no Chile no século passado. O filme usa o caso real de uma delas, a escritora Maria Colina Geel, como fio condutor, porém a personagem principal, Mercedes, é ficcional, assim como a relação que se estabelece entre elas.

Alberdi e suas roteiristas criam vários jogos de relações no filme: a do passado (1955) e do presente, deixando claro o que mudou e o que permanece estagnado; as relações entre homens e mulheres, no trabalho, na família e no amor; a relação de classes, e entre fãs anônimos e celebridades; a relação entre ficção e realidade, tanto pela mescla de materiais que emprega na obra, como pelos devaneios e imaginação de Mercedes. Todos esses jogos estão permeados pela questão feminina, e feminista.

Já dissemos que o filme é uma sátira social que reflete sobre o espaço da mulher na família e na sociedade. Espaço é um termo mais adequado do que lugar. O espaço – físico, simbólico e mental – tem significado importante na obra.

Embora seja um filme de época, é também uma inteligente paródia ao gênero True Crime, fenômeno que virou febre nos últimos anos. A paródia se dá brincando com o “escândalo”: a repercussão na mídia do crime de uma mulher da alta sociedade que matou seu amante no prestigiado Hotel Crillon. Todas as manchetes, termos e adjetivos atribuídos à acusada, são extraídos dos jornais da época.

Algumas cenas dos devaneios de Mercedes podem sugerir uma apologia do filme ao assassinato de homens, mas não é nada disso. O que o filme propõe, de forma muito sagaz, é o assassinato do machismo.

No Lugar da Outra pode ser visto na Netflix.

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Published on November 21, 2024 05:59

November 14, 2024

A Extraordinária Vida de Ibelin

Filme de Benjamin Ree – Noruega – 2024

Quem tem filhos nascidos nos últimos dez anos do século XX provavelmente passou por uma preocupação em comum: o tempo que o filho, a partir da pré-adolescência, ficava na frente de uma tela, jogando RPG. A gurizada deixava de jogar bola, sair, socializar para ficar presa na cadeira, olhos grudados no computador. E nós, pais, não gostávamos nada disso.

O documentário de Benjamin Ree traz um olhar diferente sobre esse mundo de avatares e games em ambientes virtuais, através da comovente história de Mats Steen, que sofria de grave doença muscular degenerativa e das histórias de algumas pessoas que jogaram online com ele.

O documentário constrói sua narrativa com vários elementos: depoimentos; material de acervo da família (por sorte o pai e a família adoravam filmar tudo, desde a gravidez da mãe de Mats, até as viagens e encontros familiares); material gravado de Mats jogando na frente do computador (por sorte o jovem se ofereceu para testar um aparelho experimental de acessibilidade e o teste incluía  filmá-lo em sua casa jogando com esse aparelho); e o blog que Mats criou, uma espécie de diário sobre seus pensamentos e sentimentos.

Além desse material documental, o filme recria em animação o mundo virtual do jogo de Mats e assim dá vida a Ibelin, o personagem que ele criou e aos personagens com quem interagiu. Todas as cenas animadas são baseadas em arquivos em texto das conversas da comunidade do jogo (milhares de páginas), assim que os diálogos da animação são falas documentais nas vozes de atores.

Com essa quantidade enorme de material Ree levou quatro anos para fazer o filme, dois deles na ilha de edição. Só entrou em contato com a Blizzard, detentora dos direitos do game, pedindo autorização para usar os cenários e personagens do jogo, quando o filme tinha um corte final. Foi um grande risco que decidiu correr (uma negativa jogaria todo seu trabalho no lixo) para garantir a total independência do filme. Usou modelos do material do World of Warcraft extraídos do Youtube na edição. E viajou, nervoso, exibir o corte em reunião na sede da empresa na Califórnia. Só respirou ao final da projeção quando o proprietário da Blizzard, com lágrimas nos olhos, disse que era um filme fenomenal.

Outro fato curioso da produção do filme é que os atores que dublam Mats e os personagens animados, são todos pessoas com deficiência. Foi uma escolha inclusiva do diretor, homenageando seu protagonista.

A Extraordinária Vida de Ibelin é um filme de arrancar lágrimas pela história que conta, mas vai além de comover. Foi uma ferramenta importante no processo de luto da família, tanto na participação no filme, como ao assisti-lo. É um memorial para o jovem Mats, e joga luz sobre o mundo interno de um adolescente e jovem adulto alijado cada vez mais pela doença, do mundo “normal”. Não conseguiu recriar a vida oculta dele, a ponto de nos colocar em seu lugar, mas certamente dá um vislumbre importante desse universo interior e levanta questões interessantes sobre amizade e empatia na era digital.

Após o sucesso do filme no festival de Sundance, no qual levou os prêmios do público e de melhor direção na categoria Documentários do mundo, a Netflix o licenciou para seu catálogo.

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Published on November 14, 2024 04:52

November 6, 2024

A Casa do Baralho, episódio de Hoje: O Fim

Kalma Lá Harris tomou um calmante junto com o café da manhã. Hoje é o dia, pensou, nervosa. Poderia terminá-lo como a primeira mulher a governar a maior potência mundial. O único obstáculo era o candidato Trampo, que poderia terminar o dia como o primeiro réu condenado a ser eleito presidente da maior potência mundial.

Por isso a eleição não interessava apenas os norte-americanos. Quem a ganhasse teria enorme influência sobre os destinos do planeta inteiro.

Então, por que não ampliar o pleito para todo o mundo? Perguntou o assessor especial da presidência do Brasil, o senhor Zero Aidemim, na reunião do BRICS em Kazan, sugerindo uma moção do bloco para que os Estados Unidos abrissem o direito de voto para todos os cidadãos do mundo.

— Imaginem a bagunça que isso vai dar — respondeu o representante da Índia.

— A eleição deles já é uma bagunça, — gargalhou o líder do Irã — aliás, toda democracia é naturalmente uma bagunça.

RasPutin e Chi Jinhpong se entreolharam. Aos dois o tema eleições provocava brotoejas. E assinar essa moção seria admitir os EUA como o grande império global, o que era totalmente inaceitável. Já iriam descartar essa ideia como absurda, quando RasPutin pensou melhor. Há anos vinha tentando interferir nas eleições norte-americanas via hackers e fake news, em 2016 funcionou, em 2020 eles já estavam em alerta. Imagina se tivesse o poder de computar todos os votos russos e ainda os chineses para eleger um desastre como o Trampo para líder do inimigo. Seria a glória.

Chamou Chi para uma sala reservada.

— É a nossa chance de liquidar de vez com esse império capitalista.

— Sei não. Imagina se essa onda pega. Aí vão querer votar também nas eleições na Rússia e pedir eleições na China.

Rasputin, só de imaginar ficou pálido. Como iria conseguir manipular as urnas do mundo inteiro? Melhor era continuar aprimorando o trabalho dos hackers na surdina para influenciar o pleito rumo à vitória tramposa.

Voltaram para a reunião ridicularizando a proposta brasileira, e ainda derrubaram o apoio do bloco para dar ao Brasil um assento fixo na Conselho da Segurança da ONU. O Brasil, magoado, se vingou no regime do Mauduro, vetando a entrada da Venezuela no bloco. A Venezuela, magoada, ameaçou declarar Aidemim como persona non grata.

E você, se pudesse votar nessa eleição tão importante, colocaria o mundo nas mãos da primeira presidente mulher, ou do primeiro réu condenado eleito presidente?

Os norte-americanos escolheram o condenado.  

Será mesmo o fim do Império, ou apenas o fim do mundo? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on November 06, 2024 07:01

October 31, 2024

As Aventuras de Huckleberry Finn

Livro de Mark Twain, Estados Unidos, 1884

É incrível como uma obra escrita há cento e cinquenta anos mantém o frescor da linguagem e da narrativa até os dias de hoje.  Isso se deve, claro, ao imenso talento do autor, e a alguns recursos por ele aplicados.

O estilo: o livro é narrado em primeira pessoa por um jovem pouco letrado, sendo assim, é escrito em linguagem “falada”, uma mistura de gíria e corruptelas que se acentua ainda mais nos diálogos. É fácil diferenciar o grau de “instrução” dos distintos personagens pela maneira como suas falas são escritas. Não apenas isso, mas até os sotaques se desenham na escrita de Twain (o que se perde, consideravelmente, nas traduções), trazendo vida e cor ao texto. Não é à toa que o romance é considerado revolucionário na literatura norte americana.

Outro recurso aplicado é o humor fino + a habilidade do escritor de meter seus protagonistas em grandes enrascadas. Essa mistura magistral de humor e suspense consegue tornar uma trama repleta de situações dramáticas pesadas (uma criança que forja a própria morte para fugir de um pai abusivo, por exemplo) em uma obra cheia de aventuras excitantes e… alegria.

Acrescente a isso a quantidade de questões importantes que o livro aborda: escravidão e racismo, a ignorância associada à crueldade, a hipocrisia religiosa, temas que permanecem relevantes em dias atuais, apesar das imensas mudanças ocorridas daqueles tempos para cá.

E por último, a criação de dois personagens singulares, Huck e Jim, marginalizados pela sociedade e puros de coração, e a amizade comovente estabelecida entre eles.

As Aventuras de Huckleberry Finn é uma sequência de As Aventuras de Tom Sayer, livro infanto juvenil que obteve grande sucesso. Porém o texto de Huck, nos sete anos em gestação, cresceu para um romance profundo que vai além de entretenimento para o público juvenil. É curioso que na parte final do livro, quando Tom Sayer é inserido na trama, o texto torna-se mais infantil. Hemingway, que idolatrava As Aventuras de Huckleberry Finn crítica essa parte final, aponta-a como desnecessária. Eu a acho importante, apenas poderia ser bem mais breve nos detalhes das artimanhas criadas por Tom e no desfecho final.

O livro foi bem recebido na época, ainda que criticado e banido de algumas livrarias por sua linguagem “mais adequada às favelas do que a um público inteligente”, nas palavras do diretor de uma delas.

Em anos recentes houve polêmica em torno do texto, principalmente na questão do ensino dele nas escolas, pelo uso frequente da palavra nigger, hoje praticamente proibida por sua conotação pejorativa, mas na época normalmente empregada. Outro trecho polêmico é quando Jim  é descrito por Huck  como um negro de alma branca, pela dedicação e abnegação com que cuidou de Sayer, ferido na perna. Evidentemente, o uso do livro nas escolas exige também um estudo sobre a época e o contexto da época, pois não há dúvida de que a obra é um libelo antirracista e antiescravidão.

Estranhamente, As Aventuras de Huckleberry Finn foi publicado primeiro na Inglaterra e no Canadá (dezembro de 1884) e só depois nos EUA. Twain temia muito a pirataria e planejou que o livro fosse lançado nos três países no mesmo dia. Mas a edição americana teve que ser toda reimpressa quando notaram que alguém na gráfica havia feito uma brincadeira maldosa com uma das ilustrações, levando ao lixo toda a 1ª tiragem. O livro, portanto, só saiu em fevereiro de 1885.

Leia uma amostra:

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Published on October 31, 2024 06:34

October 24, 2024

Quo Vadis, Aída?

Filme de Jasmila Zbanic – Bósnia e Herzegovina, 2021

A década de 1990 foi agitada no continente europeu. No leste, o bloco comunista se dissolvia, após a queda do muro de Berlim; no centro e ocidente avançava a pleno vapor o projeto da União Europeia, a criação de um bloco econômico/político que teria moeda única, e devolvesse ao continente a força que suas potencias já tiveram no passado. O tempo parecia o mais propício para a unificação de uma Europa pacificada e alguns historiadores apressaram-se a declarar “o fim da História”.

Mas  a ex-Iugoslávia jogou um balde de água frio nesse cenário. O país, com diversas etnias  mantidas sob união pelo ditador Tito, desintegrou-se em várias repúblicas e originou conflitos armados que duraram cinco anos e evocaram lembranças da última grande guerra na Europa, pelos nacionalismos aflorados e atrocidades cometidas. O termo limpeza étnica voltou a assombrar como um fantasma do passado.

Quo Vadis, Aída? é um filme que retrata uma dessas atrocidades, o Massacre em Srebrenica,  do ponto de vista de uma mulher bósnia e muçulmana que trabalha como intérprete para as forças da ONU e faz de tudo para tentar salvar seus conterrâneos das forças sérvias, incluindo seus filhos e marido, numa guerra muito particular.

O título remete à celebre frase que virou símbolo dos cristãos perseguidos pelos romanos na época do imperador Nero. Pedro foge da capital e no caminho encontra Jesus se dirigindo ao olho do furacão. Aonde vais? Pergunta o atônito Pedro e Cristo responde que está indo à Roma, ser martirizado mais uma vez. Pedro entende a mensagem e dá meia volta.  Em Srebrinica, quase dois mil anos depois, os perseguidos são muçulmanos, os algozes são cristãos ortodoxos (sérvios) e católicos romanos (croatas).

A enormidade de conflitos morais e éticos que permeiam o filme, o ritmo alucinante e o trabalho da atriz, Jasna Duricic, que emana uma força absurda, prendem nossos olhos e mentes.

A diretora Jasmila não apenas dá vida à tragédia local, mas também levanta um questionamento muito forte sobre o papel das forças da ONU. Aliás, todos os filmes que assisti que envolvem as forças de paz da ONU, fazem uma crítica contundente à essa instituição e sua incompetência em cumprir o papel de forças da paz. Talvez por ser um paradoxo, uma força militar de paz, talvez por ser uma força deliberadamente enfraquecida, ou alheia às particularidades culturais dos conflitos.

O filme tem um impacto brutal, do tamanho da tragédia que ele retrata, e uma intensidade impressionante, desde a primeira, até a cena final.

Quo Vadis, Aída? pode ser visto na Amazon Prime Vídeo.

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Published on October 24, 2024 06:53

October 17, 2024

Ammonite

Filme de Francis Lee, Inglaterra – 2020

Ammonite é um molusco marítimo extinto há sessenta e seis milhões de ano, no dramático evento que originou a Era do Gelo e acabou também com os dinossauros. Como sabemos disso? Graças à paleontologia, o estudo de fosseis. 

Ammonite, no entanto, não é sobre fosseis ou seres pré-históricos. O filme recua no tempo apenas duzentos anos e tem como protagonista Mary Anning, uma paleontologista moradora da costa inglesa conhecida hoje como Costa Jurássica, pela quantidade de fosseis ali encontrados. Na época (1820), recém estavam sendo elaboradas as primeiras teorias sobre as extinções de espécies. E os achados de Anning viriam a ser importantes para essas teorias assim como mais tarde para a teoria da evolução.

O aspecto, porém, que menos interessa ao autor do filme é a biologia. Ele aborda a reclusão de Mary, seu obscurecimento como mulher e como pessoa pobre que se auto educou e ganhou prestígio no meio científico, embora sem o reconhecimento merecido, justamente por essas duas condições. E o tórrido romance que teve com outra mulher, algo escandaloso para a época, é o evento condutor da trama.

Saoirse Ronan (Charlotte) à esquerda e Kate Winslet (Anning) em trabalho primoroso.

Charlotte Murchison também é um personagem real e foi amiga próxima da Mary, mas não há nas várias cartas que trocaram, evidências que tiveram um caso amoroso. O filme, no entanto, toma essa liberdade para aprofundar a reflexão sobre o “lugar” da mulher na época, e a opressão social à quem não se encaixava.

Há uma aridez no filme, um tom cinzento e frio que expressa não só o ambiente da praia de Lyme, mas a condição de vida de Anning, externa e interna, até conhecer Mutchinson. Duas cenas filmadas de forma espetacular quebram essa monotonia cinzenta: a cena do banho de mar de Charlotte e a cena de sexo entre as duas. A primeira é quase uma cena de filme de horror, a segunda é a estonteante expressão de dois corpos finalmente livres do cativeiro. Creio que não vi uma transa tão bem filmada desde O Jogador de Robert Altman. A luz, principalmente como o filme usa a suavidade e o tom quente das velas naquele ambiente quase sem cor, tem também um trabalho primoroso como o das duas atrizes Kate Winslet (Mary) e Saoirse Ronan (Charlotte).

Outro ponto alto do filme, para mim é o final. Um final suspenso, que não entrega nada, entregando tudo.

Ammonite pode ser visto na Netflix.

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Published on October 17, 2024 08:06