Jaime Lerner's Blog, page 9
February 29, 2024
Zona de Interesse

Filme de Jonathan Glazer, Inglaterra, Polônia 2024
Zona de Interesse era o local onde separavam os recém-chegados ao campo de Auschwitz para o trabalho ou para a morte. O apelido foi alcunhado pelos próprios “funcionários”. E é sobre o chefe desses funcionários e sua família, o comandante dessa fábrica de extermínio que Jonathan Glazer lança suas lentes num filme muito diferente.
Zona de Interesse é livremente inspirado no romance homônimo de Ian Amis de 2014. Porém no tema que aborda se aproxima mais de Eichmann em Jerusálem (1963), livro que trata das impressões da filósofa Hannah Arendt ao acompanhar o julgamento do engenheiro do esquema de extermínio em massa dos judeus, o que os nazistas chamavam de a solução final. Neste livro Hannah cunhou o termo a banalidade do mal. Este poderia ser também o título do filme de Glazer.
Zona de Interesse retrata o cotidiano de uma família alemã em sua casa com um lindo pátio e um imenso jardim, um lugar que poderia ser paradisíaco, não fosse separado por apenas um muro do mais terrível campo de concentração, peça chave na máquina arquitetada por Eichmann. As lentes de Glazer não adentram o campo. Mas os sons do campo invadem as cenas do filme, e as chaminés dos crematórios espiam como papagaios de pirata através do muro, ao fundo do maravilhoso jardim da senhora Höss, a Rainha de Auschwitz.
Se no tema Glazer se inspira em Arendt, na abordagem ele se inspira em Brecht, que criou o distanciamento na dramaturgia teatral, tentando despir a emoção para despertar a reflexão junto ao espectador. Zona de Interesse rejeita qualquer recurso que possa acentuar o medo, a revolta, o sofrimento ou outros sentimentos que os filmes em geral, e os do holocausto em particular, costumam trabalhar. Recria assim a indiferença, o olhar gélido dos algozes em relação à suas vítimas. O grande sofrimento está implícito, o horror que envolve o espectador provém principalmente desse olhar gélido e da rotina, do dia a dia “normal” dessa família, vizinha (e operadora) das chaminés.
O terceiro elemento que diferencia o filme é a ausência de trama. Há uma narrativa, mas ela não é o fio condutor da obra e nela não há grandes conflitos e viradas dramáticas. O filme é quase um reality show que acompanha a família do comandante do campo. Há momentos em que ele se torna monótono, mas o impacto que ele causa é como o de uma droga de lenta liberação. Ao sair do filme você ficará horas, senão dias, pensando sobre ele.
No meio dessa estética monástica, despida de emoção, há um contraponto nas cenas da jovem que espalha comida durante a noite, nos lugares onde os prisioneiros passarão para seu trabalho escravo. Essas cenas foram filmadas sem luz artificial (como todo o filme), à noite, mas com uma câmera térmica do exército polonês que capta o calor, filmando em infravermelho. O resultado é um efeito onírico perturbador.
Zona de Interesse foi quase todo rodado no local do campo, onde hoje há um museu/memorial. O filme, premiado em Cannes em 2023, concorre à cinco Oscars: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Direção, Melhor Roteiro adaptado e Melhor Som. O desenho de som, sob a batuta de Johnnie Burn, é peça chave no filme. A atriz alemã Sandra Hüller, protagonista também de Anatomia de Uma Queda, tem o privilégio de ter dois filmes entre os cinco finalistas.
February 22, 2024
Casa Do Baralho, episódio de hoje: O Pacificador

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
No carnaval do primeiro ano do seu terceiro mandato o presidente L se fantasiou de odalisca e viajou para o Egito cantando Ê Faraó, Faraó. De lá pegou o bloco Rainha do Sabá e deu um pulo na Etiópia onde um espirito burlão tomou conta de sua língua em uma coletiva para a imprensa em que declarou: O que está acontecendo com o povo palestino em Gaza não aconteceu em nenhum outro momento histórico. Aliás, aconteceu sim, quando Hitler resolveu matar os judeus.
Na continuidade, ao ser perguntado sobre a morte de Navalny, opositor de presidente RasPutin que foi envenenado várias vezes e amargava uma prisão política no ártico, onde faleceu após uma “caminhada”, L declarou que era precipitado tirar conclusões, iria esperar o laudo da autópsia das… autoridades russas.
A fala do presidente burlão não foi entendida no contexto do carnaval, que é basicamente uma festa de inversão: homem se fantasia de mulher, rico de mendigo e pobre de sheik. O país dos judeus – povo vítima de um programa de exterminação que gerou a palavra genocídio – ser travestido de Hitler na fala de L, caiu como um coquetel Molotov no já inflamado Oriente Médio. E L, que aspira a um protagonismo de pacificador na arena internacional, juntou-se aos Hutis do Iêmen e ao Hezbollah do Líbano, como agente incendiário do Irã.
O chanceler israelense chamou o embaixador brasileiro e levou-o a uma visita ao museu do holocausto. Declarou o presidente burlão persona non grata e exigiu desculpas. O governo brasileiro achou isso uma afronta. Uma mijada dessas, ainda feita em hebraico, não aconteceu em nenhum outro momento da história, declarou o assessor especial Vimsente Aidemim. Israel alegou que havia intérprete durante a mijada, faziam questão que o embaixador entendesse direitinho a mensagem.
O presidente L ficou indignado com tamanho barulho por uma fala sua. Está acostumado à, de vez por outra, falar Merda, sem maiores consequências. Pensou até na possibilidade de declarar guerra se a coisa continuasse em escalada. Foi consultar, como quem não quer nada, as Forças Armadas.
— Pode tirar o cavalinho da chuva — disseram os milicos — até o B, que era dos nossos, a gente deu um para-te quieto nele quando aventou mandar tropas contra a Venezuela. Imagina, guerrear contra o exército que a gente mais admira no mundo.
L saiu da reunião cabisbaixo e a coisa piorou depois de uma conversa que teve com o chanceler norte americano em que ouviu mais uma reprimenda (em inglês). Ah que saudades do Obama, pensou, lembrando-se de quando foi chamado por ele de O Cara. Mas logo se animou novamente. O assessor Aidemim veio correndo com a boa notícia: o Aiatolá Ali Cumeu Ine lhe outorgou o prêmio funcionário do mês do Eixo da Resistência.
Continuará escalando o incidente entre as duas nações? Aprenderá o presidente L a manter o espirito burlão longe de suas falas?
Não perca no próximo episódio de A Casa do Baralho.
February 16, 2024
Morte Matada

Se um dia uma nova civilização for estudar a vida humana com base nos filmes e principalmente nas séries dos últimos quarenta anos, chegará à conclusão de que a grande maioria das pessoas morria de morte matada, como se diz, e não de morte morrida.
Guerras e assassinatos liquidavam a maior parte dos humanos e pouquíssimos faleciam de doenças e menos ainda de velhice. Viver era uma aventura perigosíssima, em cada esquina poderia estar espreitando um serial killer, uma gangue, ou um exército conquistador sedento de sangue. Talvez cheguem à conclusão de que o ser humano desapareceu, após o último serial killer ter enlouquecido de vez ao constatar que não sobrou mais ninguém para sequestrar/torturar/matar e se auto imolou com um uivo dilacerante.
O que explica esse fetiche pela morte matada no audiovisual? Fetiche que não encontra paralelo em outras expressões artísticas, ao menos não nessas proporções. O que explica haver uma série cujo protagonista é um serial killer bonzinho, que só mata serial killers, ou uma franquia de filmes em que o assassino seriado é também um canibal?
Para tentar responder a isso haveria de se criar um grupo de estudos ultra multidisciplinar. O que não deixa dúvidas é que o sucesso de Dexter, Hannibal e outras obras parecidas se constituem num excelente campo de estudo sobre os humanos nessa época do final do século XX e início do XXI. Principalmente provocando o questionamento se a arte é um meio de sublimação da violência latente do homo sapiens, ou se ela inspira e atiça os piores instintos que milênios de civilização (não) conseguiram esconder.
Seja o que for, talvez essa futura civilização que nos estude a partir de filmes e séries e chegue à conclusão que quase todos morriam de morte matada, entenda o homicídio como uma ferramenta de equilíbrio, de controle do maior predador da terra sobre si mesmo. Neste caso, os supervilões serão considerados heróis e os policiais que os perseguem e atrapalham seus serviços serão os malvados.
E Dexter, um assassino em série de assassinos em série, que trabalha como especialista forense na polícia de Miami, seria a chave para decodificar a triste mensagem: o ser humano é um exterminador em série.
February 7, 2024
Anatomia de uma Queda

Filme de Justin Triete, França 2023
Anatomia de uma Queda é uma tempestade perfeita. Todos seus elementos atingem uma excelência sincronizada que envolve o espectador ora em um suspense, ora em uma turbulência emocional, como se a fada da inspiração atingisse todos seus setores com a mesma potência, no mesmo instante. Até mesmo a cena da briga do casal, que no início parece um pouco artificial, vai ganhando força impressionante que revela que o que parecia estranho é absolutamente coerente com os personagens.
O roteiro, escrito pela diretora e por Arthur Harari que também colaborou no processo da edição do filme, desvela aos poucos os elementos da trama e quem de fato são os personagens. Há surpresas e pontos de virada a cada esquina do labirinto arquitetado em torno da questão: a protagonista matou o seu marido, ou sua morte foi acidental ou suicídio? Mas não se engane, não se trata de um suspense policial. O mistério da morte é o ponto de partida para um profundo drama familiar, que analisa/disseca/reflete sobre amor, honestidade realidade e ficção. Eu diria que acima de tudo a obra é um drama filosófico existencial fantasiado de filme de tribunal. Os diálogos são sublimes e o filme ser bilingue, trocando constantemente entre o francês e o inglês, também funciona como elemento dramático.
Os atores, todos eles, desde o fiel Snoop (interpretado pelo cachorro Messi), passando pelos atores secundários, o advogado (Swan Arlaud), o filho de 11 anos Daniel (Milo Graner) e claro, a protagonista Sandra (Sandra Hüller), entregam personagens reais, críveis e ao mesmo tempo surpreendentes.
A direção, além do ótimo trabalho na direção de atores, filma de maneira peculiar. Assim como o roteiro desvela aos poucos a trama e os personagens, ela usa vários planos fechados para não situar de cara o espectador e com isso acirrar o suspense. Não há trilha incidental, a música é toda diegética, elemento importante, inclusive, nas circunstâncias do crime (ou acidente, ou suicídio). Em dado momento a trilha se transmuda para extra diegética de uma forma muito comovente.
Outra das inúmeras sacadas geniais de Hüller é a cena em que Daniel relata ao tribunal uma conversa com o pai. É um relato, uma memória e uma re-vivência do momento e vemos o pai falando em sinc com a voz do menino que narra o diálogo. Isso cria uma ponte entre o relato e o flashback e, ao mesmo tempo, provoca uma dúvida se Daniel não está inventando essa memória, colocando palavras na boca de seu pai.
O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2023, mas não foi o escolhido para representar a França na categoria Melhor filme Internacional (nessa categoria, cada país escolhe o seu candidato) no Oscar. O filme escolhido, O Sabor da Vida, ficou entre os 15, mas não entre os 5 indicados finais. Já Anatomia de Uma Queda está entre os 5 finalistas nas categorias Melhor Filme, Atriz, Montagem, Roteiro Original e Direção. Seja contemplado ou não, o filme tem tudo para se tornar um clássico do cinema contemporâneo.
February 1, 2024
The Kitchen

Filme de Kibwe Tavares e Daniel Kaluuya, Inglaterra 2024
The Kitchen é uma produção britânica e seus diálogos são, naturalmente, em inglês, mas o filme fala, na verdade, o mais fino cinemês. Cinemês, ou como chama-se hoje, a linguagem audiovisual, é aquele idioma que comunica pela imagem, pelo som, pelo ritmo dos cortes e da ação. E impressiona como esse idioma é refinadamente usado por um estreante na direção, o ator e roteirista Daniel Kaluuya e outro estreante no longa-metragem, o cineasta e arquiteto Kibwe Tavares.
Em 2012, Kibwe fez um curta para sua tese de mestrado em arquitetura: Os Robôs de Brixton. O curta, vencedor do prêmio especial do júri no Festival de Sundance, explorava a relação entre arquitetura, classe social e raça, com uma pegada futurista. Essa é também a essência de The Kitchen, nome de um conjunto habitacional, ou cortiço monumental habitado por negros e asiáticos, imigrantes ou filhos de imigrantes, perseguidos pela polícia por terem invadido (na ótica de uns) ou ocupado (na ótica de outros) as moradias.
Erroneamente classificado como ficção científica por acontecer em 2044, The Kitchen é um drama social e familiar, num contexto atualíssimo. O cenário político em que situa seus conflitos lembra o recente Athena. Mas é muito diferente do filme francês no estilo e na abordagem dos temas.
Em primeiro lugar, ele constrói sua narrativa fortemente na direção de arte, algo raro de se ver. Isso se evidencia no plano em que o protagonista circula na sua moto, passa por baixo de um viaduto e está claro para nós que ele atravessou uma fronteira e saiu de The Kitchen para Londres. É a mesma cidade, mas são dois planetas diferentes. O que marca essa transição é a “poluição” de cartazes coloridos que cobrem a lateral do viaduto e em seguida se apresenta uma avenida limpíssima, estéril, geometricamente perfeita, de tons frios e cinzentos.
Outro momento interessante em que a direção de arte exibe seu poder narrativo é o plano em que Izi e o garoto Benji contemplam da janela o conjunto cercado por prédios em construção e guindastes ameaçadores, esclarecendo que toda a ação policial contra os moradores tem o objetivo de expulsá-los do bairro para liberar o território para a exploração imobiliária.
No meio desse drama os protagonistas enfrentam outro conflito. Izy está prestes a juntar o suficiente para alugar uma moradia legal e se mandar de The Kitchen, o adolescente Billy perde a mãe e acredita que Izy é o seu pai. No encontro entre os diversos conflitos chocam-se o senso de comunidade com o individualismo, o egoísmo com uma consciência moral. E emerge uma reflexão interessante sobre o ser urbano no século XXI.
The Kitchen, filme que merecia ser visto nas salas de cinema, pode ser apreciado na Netflix.
January 25, 2024
Depois da Cabana

Série, criação de Isabel Kleefeld, Alemanha 2023
A cineasta Isabel Kleefeld leu o romance policial Liebes Kind de Romy Hausmann em uma noite. Ela simplesmente não conseguia largar. Esperou o sol raiar, tomou café da manhã e foi atrás dos direitos do livro para adaptação. Nasceram os seis episódios da minissérie Liebes Kind, que traduzindo seria Querido Filho, mas aqui no Brasil se chama Depois da Cabana.
É uma série policial com um criminoso pra lá de psicopata, uma jovem desparecida, pais preocupados, dois detetives, e uma vítima de sequestro que consegue fugir do cativeiro (ou assim ela pensa). Apesar da fórmula um tanto conhecida, Liebes Kind é muito diferente da maioria das séries policiais com essas características. Embora o suspense e o mistério envolvam de maneira eletrizante o espectador, a dimensão psicológica ocupa um espaço importante na série, o que confere a ela uma profundidade rara de ver em outros seriados semelhantes.
Além da abordagem psicológica, a trama é sofisticadamente intricada e a montagem cria uma estrutura fragmentada que acirra o mistério, juntando as micropeças do quebra-cabeças praticamente até o fim. Acrescente a isso cinco(!) protagonistas e mais uns três personagens secundários importantes, com a câmera migrando de uma perspectiva para outra e uma atuação impressionante das duas crianças e tá aí, a receita para uma obra de intensidade quase no nível de The Killing ou de A Ponte.
O quase é por conta do episódio final, o encaminhamento para o desfecho, que não mantém o mesmo nível de complexidade apresentado até então, o que dada e alta expectativa criada decepciona um tanto, mas no frigir dos ovos, ou das peças do quebra-cabeças, não tira os méritos já mencionados.
Depois da Cabana é uma série original Netflix. O livro deve ganhar em breve tradução para o português.
January 18, 2024
O Melhor Está Por Vir

Filme de Nanni Moretti, Itália 2023
Há muito tempo não vejo uma obra que lembra a época em que cinema italiano era sinônimo de magia, poesia e sensibilidade. Seguindo a tradição dos neorrealistas e depois, dos grandes diretores como Fellini, Antonioni, Visconti, Pasolini, Bertolucci, os irmãos Taviani e Ermanno Olmi, entre outros, Moretti cria uma obra poderosa, que é cinema de arte puro e comovente. De quebra, homenageia a sétima arte e a utopia dos comunistas italianos do pós-guerra e pós Mussolini.
O título original é Il Sol dell´ Avenirre, que significa o sol do amanhã, ou o sol do futuro e é uma frase tirada de uma canção da resistência italiana contra o nazi/fascismo que diz o seguinte: Sopra o vento e a tempestade castiga/sapatos rotos mas precisamos seguir/a conquistar a primavera vermelha/ onde surge o sol do amanhã.
No entanto, não se trata de um filme saudosista ou de apologia ao comunismo. Uma ironia sagaz une os dias atuais com o ano de 1956, quando tanques soviéticos esmagaram o clamor dos húngaros por liberdade, e o partido comunista italiano, bem como os partidos na maioria dos outros lugares, se alinharam com Moscou. O que une os dois períodos distintos na mesma trama é o ponto de partida da obra: um diretor de cinema tenta fazer um filme que passa em 1956.
Assim, temos duas tramas “paralelas” a da feitura do filme (tempos atuais) e a do filme em si (1956). O paralelas está entre aspas pois muitas vezes elas se encontram. Moretti bates as duas tramas em um liquidificador com imensa criatividade, e acima de tudo, com muito humor. Há um manancial de cenas hilárias, muitas delas tem como alvo o próprio diretor que é interpretado por… Nanni Moretti.
Outras histórias paralelas que se cruzam são as dos problemas de produção/viabilização do filme com o processo criativo do autor. É interessante como O Melhor Está Por Vir trabalha esse conflito colaborativo presente em todos os sets do planeta. Neste caso, a produtora do filme é também a esposa do diretor, o que complica ainda mais o imbróglio. E o produtor associado, que deve entrar com o dinheiro, é preso por estelionato no meio da produção.
Moretti reflete sobre o tempo e o “prazo de validade” das coisas e nos esclarece, em um final apoteótico, o quanto arte e utopia, ambas aparentemente de pouca utilidade prática, são elementos essenciais em nossas vidas.
Vá e veja, de preferência no cinema, enquanto o filme está em cartaz.
January 11, 2024
A Sociedade da Neve – O Ocultamento

Filme de Juan Antonio Bayona, Espanha 2023
Em agosto de 2018 fiz um post sobre o documentário uruguaio A Sociedade da Neve de 2007. De repente, esse post começou a ganhar inúmeros acessos. Isso se deve, evidentemente, à estreia na Netflix do filme homônimo do diretor espanhol Juan Antonio Bayona. Trata-se de um filme de ficção, sobre o mesmo tema. O filme é baseado no livro de Pablo Verci sobre os sobreviventes da queda de um avião nos andes nevados em 1972.
Em 2007, trinta anos depois do acidente, o cineasta Gonzalo Arijon fez um trabalho muito sério com os sobreviventes que resultou no maravilhoso documentário (para ler a resenha clique aqui). Tinha mais de 50 horas de material gravado com os sobreviventes, familiares e demais envolvidos com o acidente. Muito desse material, obviamente, ficou fora do filme. Gonzalo passou esse acervo ao jornalista Pablo Verci para que escrevesse um livro. O filme da Netflix se baseia nesse livro, que se baseou, por sua vez, no material do documentário. As três obras com o mesmo nome.
Um livro e um filme que falam do mesmo tema, um, derivado do outro, é natural que partilhem o mesmo título. Mas dois filmes com o mesmo nome, já é diferente. Ainda mais quando um deles tem muito mais dinheiro e toda uma plataforma internacional por trás de seu lançamento e nem menciona em seus créditos a existência do outro.
Arijon, o diretor uruguaio, comentou em entrevista que está feliz por haver mais um filme sobre o tema e que este filme tenha inclusive sido indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro pela Espanha. Mas o fato de ele ter o mesmo título do seu documentário e não haver nenhuma menção ao documentário nos créditos do filme, se configura, na opinião dele, um ocultamento de sua obra.
Falando do filme em si (o atual, que faz enorme sucesso na Netflix): é um drama do gênero Desastre, com uma pitada de reflexão existencial e um certo aprofundamento psicológico no drama dos personagens que derivam do livro. Mas a dinâmica do filme, o uso de efeitos, principalmente os sonoros, lembra muito os filmes de desastre como Titanic, Inferno na Torre, Volcano, etc. Essas ferramentas são aplicadas em A Sociedade da Neve de maneira muito competente, ainda que espetacular (no sentido do espetáculo), e a luta pela sobrevivência e o retorno dos que não pereceram, geram forte emoção. No entanto, ele não chega aos pés do documentário homônimo, nos questionamentos provocados pelo filme, no processo de construção da nova dinâmica que se estabeleceu na “sociedade da neve” e na emoção/identificação com os sobreviventes.
Acho interessante assistir aos dois filmes, e comparar as linguagens e recursos de cada gênero. Ambos são trabalhos meticulosos no que se propõem em termos de abordagem.
O filme espanhol, pode ser visto na Netflix. O documentário, estava até certo tempo atrás na Amazon Prime, mas ao menos no Brasil, não está mais disponível.
Cabe lembrar que o incidente nos Andes gerou ainda outros filmes, anteriores e posteriores ao documentário uruguaio, o primeiro foi o mexicano Os Sobreviventes dos Andes, o segundo foi o drama norte americano Alive.
January 4, 2024
The Crown – 6a temporada

Série- Criação de Peter Morgan, Reino Unido- 2023
Em 1984 morei em Londres. Foi o ano em que nasceu O príncipe Harry, segundo filho de Diana e Charles. Esse foi virtualmente o único assunto dos meios de comunicação naqueles dias, com repórteres entrevistando pessoas nas ruas, perguntando sua opinião inclusive sobre o nome dado para o recém-nascido, Henry Charles Albert David de Gales. Era de estarrecer a importância que davam à família real britânica, especialmente com a popularidade imensa da princesa Diana que era, naquele conto de fadas, a princesa e a fada ao mesmo tempo.
Essa lembrança aflorou agora, ao ver os episódios iniciais da sexta e última temporada de The Crown, quase quarenta anos depois. Isso porque o assunto Diana é certamente um dos catalizadores mais fortes dessa série sobre a família real britânica, que soube recriar com maestria a comoção gerada pelo fenômeno Lady D e todas as consequências e reflexões que dele derivam.

A atriz Elizabeth Debicki encarou o desafio gigantesco de interpretar um personagem real que ainda está vivo na memória das pessoas e fez um grande papel como a jovem princesa nas temporadas 5 e 6, dando forma e profundidade ao mito e à pessoa.
Mas Lady D não inspirou apenas a sua interprete. Os episódios em torno de Diana são os mais criativos e sólidos em termos do roteiro, da performance de outros atores (que não estão tão bem em outros momentos da série, como seu marido Charles) e da direção, que chega ao ápice na sequencia que culmina com a morte da princesa. Nesses episódios, principalmente nos que abrem a sexta temporada, há mais questionamentos profundos de ordem social, filosófica e psicológica do que no resto da série. E uma exposição intricada sobre a família real que segue nos episódios sobre Will e Harry, os filhos de Diana.
Por fim, o último episódio volta a ter a Rainha Elisabete como personagem central, alguém ciente de que sua vida está se aproximando ao fim, nos preparatórios de seu jubileu como monarca. Ela pensa inclusive em se “aposentar”, porém continuará reinando por vinte anos ainda até sua morte em 2022. Este último episódio, refletindo sobre o começo do fim, fecha a série com chave de ouro.
The Crown pode ser vista na Netflix. Para ler a resenha sobre as 5 temporadas anteriores clique aqui.
December 28, 2023
Bye 2023

E lá vai 2023.
Um ano difícil na ficção e mais ainda na realidade. Começou com a bárbara invasão do dia 8 de janeiro ao palácio presidencial, ao congresso e ao prédio do STF, uma semana após a festiva posse que celebrou a eleição de um novo presidente no Brasil. Leia em As Quatro Linhas.
Seguiu com os avanços e retrocessos dos direitos indígenas, principalmente na questão do Marco Temporal abordada em Embaralhados e em A Casa Caiu? Questão que segue embaralhando as nossas mentes e embrulhando o estômago.
Em 7 de outubro, um ataque sem precedentes no alcance, na surpresa e na selvageria contra o Estado de Israel detonou uma guerra e flagelo que não parecem próximos do fim, ao contrário, há uma ameaça constante de ampliação do conflito para outras frentes e um aumento acirrado em manifestações antissemitas pelo mundo. Leia em O Espetáculo da Barbárie.
No âmbito da ficção, se destacaram aqui no blog os filmes mexicanos Ruído e Família, o chileno 1976 e o francês Athena. A série brasileira Manhãs de Setembro e a derradeira temporada de The Crown (em breve resenha). Nas letras, o romance Louças de Família, mais uma obra visceral e contundente de autoras e autores negras/os que estão conquistando seu espaço no universo editorial brasileiro, um ponto de luz nesse ano difícil.
Despedindo-se deste ano triste, o Blog do Lerner deseja a todos um 2024 pacífico na realidade e emocionante nas artes.