Jaime Lerner's Blog, page 9
March 28, 2024
O Problema dos Três Corpos

Livro de Cixin Liu, China, 2008 + Série, criadores D & D, EUA, 2024
Tão logo publicado no Brasil, o livro de Cixin Liu me chamou a atenção de cara, pela capa e pelo nome. Não havia ouvido nada sobre o romance nem sobre o autor, mas aquela capa, incluído o título, transmitia algo irresistível.
O romance inicia com narrativa impactante centrada no auge da revolução cultural na China, mostrando o quanto a política, aliada à ignorância, destroçou a comunidade científica.
Após uma elipse no tempo vai revelando personagens interessantes e fragmentos de uma trama que oculta mais do que revela, tecendo um suspense denso. Junta a isso um cabedal de ideias muito interessantes sobre a aparente ordem do universo que pode ser apenas uma ilusão de ótica e como, sobre essa ilusão, é construída toda nossa história de civilização.
A partir da metade do livro o estilo, a qualidade da trama e dos personagens cai rapidamente e o texto lembra a literatura pulp norte-americana sobre ataques de civilizações alienígenas mais avançadas e maléficas.
A sociedade do planeta trisolar, tão bem descrita através do jogo na primeira metade do livro, perde em densidade. O protagonismo se transfere de uma cientista obstinada para um policial grosseiro (e também obstinado). É difícil entender como uma narrativa inicial arrebatadora se perde tão radicalmente no meio do caminho. Em outras palavras, é um livro bipolar sobre um planeta trisolar.
Independente da minha opinião, o romance de ficção científica virou uma trilogia, rompeu as barreiras do gênero e da distância entre oriente e ocidente e tornou-se cult após a tradução para o inglês. Na China ele já havia estourado, pouco depois de sua publicação. O presidente Obama elogiou o livro e isso impulsionou-o ainda mais.
A Netflix comprou então os direitos de adaptação para uma série e contratou os showrunners de The Games of Thrones David Benioff e D.B Weiss, conhecidos como a dupla D &D. Vale mencionar que Benioff foi o roteirista também do inteligentíssimo, A Última Noite de Spike Lee. A eles juntou-se o roteirista Alexander Woo.
A Netflix investiu alto, não apenas na produção, mas na divulgação pré-lançamento, gerando enorme expectativa. A primeira temporada, com 8 episódios, acabou de estrear. A série inicia fiel ao livro, não apenas na trama mas na qualidade narrativa e da construção dos personagens. O primeiro episódio é absolutamente cativante e também o melhor. O que significa, que assim como no livro, a qualidade narrativa cai, mas por motivos diferentes.
O conflito principal é exposto bem cedo, no segundo ou terceiro episódio. O mistério da morte de cientistas sai de cena após a sua exposição e dá lugar a como lidar com a ameaça iminente (o iminente, no caso, significa daqui a uns 400 anos). O problema dos três corpos do planeta trisolar não é tão bem explorado como no romance, e a partir da metade, a série empurra a ficção científica para o pano de fundo e vira uma espécie de Friends. Ou seja, foca na relação entre cinco amigos, todos cientistas, que acabam se envolvendo na luta contra a ameaça iminente.
Os cinco amigos, formados em Oxford.Como em Friends, os personagens são queridos, geram empatia, assim como os relacionamentos que os envolvem, mas a série perde em profundidade. Inclusive os elementos visuais seguem essa pegada: a direção de fotografia e os efeitos especiais se apresentam muito interessantes no início da série, e vão perdendo a originalidade do meio para a frente. A direção de arte se mantém impecável ao longo de toda a temporada.
Em resumo, a obra não corresponde às altas expectativas criadas em seu entorno, mas igual, é uma série boa de assistir que promove, ao lado de elementos de entretenimento, ideias interessantes e algumas reflexões.
Uma curiosidade: Obama foi convidado para uma participação especial na série, mas recusou. Sua resposta: “Caso haja uma verdadeira invasão alienígena, prefiro resguardar a minha participação para essa crise.”
Os oito episódios já estão disponíveis na Netflix. Caso queria dar uma olhada no livro, clique abaixo.
March 21, 2024
Rojst Milênio

Série, criação de Jan Holoubek – Polônia – 2024 – terceira temporada.
Rojst Milênio é a continuação de Rojst e Rojst 97. As tramas entre as temporadas são independentes, porém interligadas, assim que vale a pena ver as três na sequência para um usufruto melhor. Se você já viu as duas anteriores faz um tempo, é bom rever e depois partir para a terceira temporada. Para ler as resenhas sobre as duas primeiras temporadas basta clicar no nome delas acima, na primeira linha do parágrafo.
Milênio, assim como as suas precedentes, trabalha com duas linhas de tempo: o passado e o presente (quando as consequências do passado vêm à luz). O passado são os anos pós-guerra, quando a Polônia começa a se recuperar da ocupação nazista e o regime comunista se instala sob os auspícios da União Soviética. O presente, ou o tempo atual, é justamente as últimas semanas de 1999, ou o fim do segundo milênio. A Polônia já deu adeus ao regime comunista (que é o presente em Rojst), já completou o período de transição para o capitalismo (Rojst 97) e começa a entrar na onda nacional negacionista de extrema direita que tomará oficialmente o poder através do PIS (Partido Lei e Justiça) em 2015. Entretanto, pouco parece ter mudado na aldeia ao lado do pântano que segue chafurdando nas sombras do passado, gênese dos crimes do presente.
A sensação que perpassa durante a série toda é justamente essa: as personagens tentam avançar com suas vidas, mas se movimentam numa areia movediça – a herança de um passado que alguns querem ocultar, outros tentam encarar, mas tanto para uns como para outros, ele não larga do pé.
Rojst Milênio segue a mesma toada das temporadas passadas, mas não têm o mesmo impacto, a mesma pegada dramática e originalidade narrativa. O roteiro segue competente, as tramas e mistérios são bem conduzidos, mas aquele clima de terror sombrio que encobre crimes impronunciáveis nas primeiras temporadas perde muita a força, assim como o jornalista Witek, perde o seu protagonismo. E quando jornalistas cedem protagonismo para a polícia, a obra perde em profundidade, torna-se mais uma série policial, justamente quando o tema do negacionismo, da alteração da narrativa pelo poder oficial, sobe ao palco.
Ainda assim, quem viu e gostou das duas primeiras temporadas, não vai deixar de assistir a terceira, e curtir seus bons momentos. Rojst Milênio, assim como as outras temporadas, pode ser vista na Netflix.
March 14, 2024
Casa de Baralho, episódio de hoje: Chinelos

O naipe mais forte na Casa do Baralho é o Paus, ou melhor, o cara de paus. É assim desde que os portugueses descobriram o pau Brasil. O recorde de ultrapassagem dos limites da cara de pau foi batido em recente sessão do Superior Tribunal Militar, que julgou recurso do Caso Guadalupe de 2019.
Em uma tarde de domingo, um carro rumava a um chá de bebê em Guadalupe, no Rio de Janeiro. Eram cinco pessoas no veículo. O motorista, músico de profissão, a esposa, o filho de sete anos, o sogro e uma amiga. Passaram por um veículo do exército que estava em ação de patrulhamento perto da vila militar. O comandante da patrulha achou tratar-se de um carro roubado por traficantes, ou assaltantes, ou coisa parecida. Pelo sim pelo não, atiraram no carro da família e atingiram o motorista. O carro andou mais um pouco e parou na frente de um prédio. As duas mulheres com a criança saíram do banco de trás desesperadas em busca de socorro. Um cidadão que passava no local, catador de latinhas por ocupação, correu para ajudar o motorista ferido. Nesse momento, os militares resolveram metralhar o carro.
No total, duzentos e cinquenta e sete tiros foram disparados. Sessenta e dois projeteis perfuraram o veículo, nove atingiram o motorista que morreu na hora. O catador de latinhas ficou gravemente ferido e faleceu onze dias depois. O sogro também foi ferido, mas sobreviveu.
Os soldados foram julgados em primeira instância do tribunal militar. Foi o primeiro caso na história da Casa do Baralho em que soldados foram condenados pela justiça militar por matar civis. Parecia que a gravidade do crime ultrapassava a cara de paus do corporativismo. Mas então a defesa recorreu ao STM.
O emérito ministro relator, general da aeronáutica, votou pela absolvição dos militares pelo assassinato do músico, e a troca de doloso para culposo no homicídio do catador, recorrendo a um malabarismo retórico que entortaria até a Nadia Comanesci.
Desprezando a perícia, que não encontrou nenhum projetil que não fosse dos militares e nenhum furo de bala na camionete dos soldados, disse que o primeiro tiro atingiu o músico num contexto de confronto dos soldados com traficantes. E que não há certeza de que o músico não morreu desse primeiro tiro, enquanto o carro estava andando. Se ele morreu desse tiro, não há como condenar os militares por assassinar alguém que já estava morto, quando deram a segunda rajada contra o carro parado. Seria um crime impossível, vaticinou o Juiz Militar. E como não há certeza de que tiro morreu a vítima (mais uma vez desprezando a perícia), in dubio, pro réu.
Mas o catador de latinhas estava vivo na segunda rajada. Ali o ilustre general contorcionista recorreu à legítima defesa imaginária, termo que só poderia ser inventado na Casa do Baralho. “É notório que os apelantes estavam sob forte tensão no dia do ocorrido” concordou o ministro com a tese da defesa. O fato de o catador de latinhas estar sem camisa e de chinelos acentuou a ameaça, esclareceu o juiz, e também: “reforçava a tese de que o catador representava uma ameaça imaginária aos apelantes ao se proteger por trás da porta do veículo, o qual possuía insulfilm nos vidros, podendo gerar a conclusão de que tornaria a usar a arma.”
Só tinha um detalhe: o catador estava desarmado. Mas isso os militares não podiam imaginar.
Já é uma tremenda cara de pau soldados serem julgados por crimes contra civis por um tribunal específico da corporação. Mas como até um passado recente os tribunais militares julgavam inclusive civis, ainda dá para dar um desconto. Outro absurdo é o exército fazer papel de polícia, mas essa também é uma tradição secular brasileira. O absurdo que não dá para aceitar é a pena de morte pra quem está de chinelos e sem camisa, ainda mais se ele se esconde atrás de um carro quando é alvejado por uma patrulha. Se o carro tem insulfilm nas janelas, aí danou-se, é um agravante que permite execução sumária.
O relator comutou a pena de 31 anos de prisão do oficial que comandava a patrulha para três anos e meio em regime aberto, e as penas de 28 anos dos outros sete soldados para 3 anos e dois meses em regime aberto. O ministro revisor seguiu o voto do relator. Há ainda 13 ministros a votar.
Seguirá a maioria o voto do contorcionista relator? Quanto tempo permanecerá inquebrável este novo recorde de cara de Paus? Não perca no próximo episódio de Casa do Baralho.
March 7, 2024
Openheimer

Filme de Christopher Nolan, EUA 2023
Christopher Nolan é um dos cineastas que melhor consegue conjugar arte com entretenimento, crítica com bilheteria. Já no seu segundo longa, Memento (Amnésia, no Brasil) chamou atenção pela inventividade narrativa e a maneira ousada de prender o espectador, através da fragmentação de informação. Em Openheimer, ele traça a biografia do físico que foi alcunhado de o pai da bomba atômica, ou de o Prometheu Americano, título do livro biográfico que serve de base para o filme, dos autores Kay Bird e Martin Jay Sherwin.
Nolan estrutura sua narrativa em duas situações mescladas no filme e diferenciadas pela fotografia em colorido e em preto e branco. Ao pouco nos é revelado que essa estética separa dois pontos de vista. Nas cenas em colorido, Openheimer enfrenta uma audiência da Comissão de Energia Atômica, em que acaba narrando boa parte de sua vida, desde seus estudos universitários até a direção do Projeto Manhattan, que resultou na criação da bomba atômica. Nas cenas em preto e branco o inquirido (perante o senado norte americano), é Lewis Strauss. Lewis, descobriremos no decorrer do filme, é o antagonista, um dos membros da comissão que inquire Openheimer nos anos do Macarthismo. Nas cenas em preto e branco ele expõe o seu ponto de vista sobre seu desafeto. Cria-se assim uma obra sobre um herói injustiçado, em conflito interno com o ato que protagonizou.
Física quântica, intrigas políticas, e um dilema moral de proporções épicas tornam-se o centro da vida do cientista após aceitar o desafio de dirigir o projeto de pesquisa e construção de uma bomba nuclear, numa corrida contra o tempo e contra os esforços dos nazistas. Nolan costura muito bem esses temas num filme em que não se sente as três horas de duração. No entanto, o desafio de destrinchar o personagem, construir um protagonista de carne, osso e, principalmente sentimentos, não é vencido com o mesmo louvor.
Cilian Murphy faz o papel principal. Eu temia, antes de assistir o filme, ver o Thomas Shelby travestido de Robert Openheimer. Não é o que acontece. O ator soube se liberar do peso das seis temporadas de Peaky Blinders, porém tampouco nos apresenta um personagem complexo e real como fez na série britânica. É difícil dizer se o problema reside no roteiro ou no trabalho de ator, provavelmente em ambos, mas com mais peso para as escolhas do roteiro e um fetiche por frases de efeito nos diálogos.
Openheimer, centrado em personagem cativante e evento de grande impacto na história mundial, ainda que interessante, não é dos melhores filmes do diretor. Mesmo assim é o favorito nas casas de apostas ao Oscar. O filme disputa a estatueta em nada menos do que treze categorias, entre elas Melhor Filme, Direção, Roteiro Adaptado, Ator e Atriz Coadjuvante. Em três dias saberemos se de fato será o grande vencedor. Para o meu gosto (não vi todos os candidatos) o melhor filme é Anatomia de Uma Queda.
Openheimer pode ser alugado na Amazon Prime, Claro TV, Apple TV e Google Play. É possível que após o Oscar, volte aos cinemas.
February 29, 2024
Zona de Interesse

Filme de Jonathan Glazer, Inglaterra, Polônia 2024
Zona de Interesse era o local onde separavam os recém-chegados ao campo de Auschwitz para o trabalho ou para a morte. O apelido foi alcunhado pelos próprios “funcionários”. E é sobre o chefe desses funcionários e sua família, o comandante dessa fábrica de extermínio que Jonathan Glazer lança suas lentes num filme muito diferente.
Zona de Interesse é livremente inspirado no romance homônimo de Ian Amis de 2014. Porém no tema que aborda se aproxima mais de Eichmann em Jerusálem (1963), livro que trata das impressões da filósofa Hannah Arendt ao acompanhar o julgamento do engenheiro do esquema de extermínio em massa dos judeus, o que os nazistas chamavam de a solução final. Neste livro Hannah cunhou o termo a banalidade do mal. Este poderia ser também o título do filme de Glazer.
Zona de Interesse retrata o cotidiano de uma família alemã em sua casa com um lindo pátio e um imenso jardim, um lugar que poderia ser paradisíaco, não fosse separado por apenas um muro do mais terrível campo de concentração, peça chave na máquina arquitetada por Eichmann. As lentes de Glazer não adentram o campo. Mas os sons do campo invadem as cenas do filme, e as chaminés dos crematórios espiam como papagaios de pirata através do muro, ao fundo do maravilhoso jardim da senhora Höss, a Rainha de Auschwitz.
Se no tema Glazer se inspira em Arendt, na abordagem ele se inspira em Brecht, que criou o distanciamento na dramaturgia teatral, tentando despir a emoção para despertar a reflexão junto ao espectador. Zona de Interesse rejeita qualquer recurso que possa acentuar o medo, a revolta, o sofrimento ou outros sentimentos que os filmes em geral, e os do holocausto em particular, costumam trabalhar. Recria assim a indiferença, o olhar gélido dos algozes em relação à suas vítimas. O grande sofrimento está implícito, o horror que envolve o espectador provém principalmente desse olhar gélido e da rotina, do dia a dia “normal” dessa família, vizinha (e operadora) das chaminés.
O terceiro elemento que diferencia o filme é a ausência de trama. Há uma narrativa, mas ela não é o fio condutor da obra e nela não há grandes conflitos e viradas dramáticas. O filme é quase um reality show que acompanha a família do comandante do campo. Há momentos em que ele se torna monótono, mas o impacto que ele causa é como o de uma droga de lenta liberação. Ao sair do filme você ficará horas, senão dias, pensando sobre ele.
No meio dessa estética monástica, despida de emoção, há um contraponto nas cenas da jovem que espalha comida durante a noite, nos lugares onde os prisioneiros passarão para seu trabalho escravo. Essas cenas foram filmadas sem luz artificial (como todo o filme), à noite, mas com uma câmera térmica do exército polonês que capta o calor, filmando em infravermelho. O resultado é um efeito onírico perturbador.
Zona de Interesse foi quase todo rodado no local do campo, onde hoje há um museu/memorial. O filme, premiado em Cannes em 2023, concorre à cinco Oscars: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Direção, Melhor Roteiro adaptado e Melhor Som. O desenho de som, sob a batuta de Johnnie Burn, é peça chave no filme. A atriz alemã Sandra Hüller, protagonista também de Anatomia de Uma Queda, tem o privilégio de ter dois filmes entre os cinco finalistas.
February 22, 2024
Casa Do Baralho, episódio de hoje: O Pacificador

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
No carnaval do primeiro ano do seu terceiro mandato o presidente L se fantasiou de odalisca e viajou para o Egito cantando Ê Faraó, Faraó. De lá pegou o bloco Rainha do Sabá e deu um pulo na Etiópia onde um espirito burlão tomou conta de sua língua em uma coletiva para a imprensa em que declarou: O que está acontecendo com o povo palestino em Gaza não aconteceu em nenhum outro momento histórico. Aliás, aconteceu sim, quando Hitler resolveu matar os judeus.
Na continuidade, ao ser perguntado sobre a morte de Navalny, opositor de presidente RasPutin que foi envenenado várias vezes e amargava uma prisão política no ártico, onde faleceu após uma “caminhada”, L declarou que era precipitado tirar conclusões, iria esperar o laudo da autópsia das… autoridades russas.
A fala do presidente burlão não foi entendida no contexto do carnaval, que é basicamente uma festa de inversão: homem se fantasia de mulher, rico de mendigo e pobre de sheik. O país dos judeus – povo vítima de um programa de exterminação que gerou a palavra genocídio – ser travestido de Hitler na fala de L, caiu como um coquetel Molotov no já inflamado Oriente Médio. E L, que aspira a um protagonismo de pacificador na arena internacional, juntou-se aos Hutis do Iêmen e ao Hezbollah do Líbano, como agente incendiário do Irã.
O chanceler israelense chamou o embaixador brasileiro e levou-o a uma visita ao museu do holocausto. Declarou o presidente burlão persona non grata e exigiu desculpas. O governo brasileiro achou isso uma afronta. Uma mijada dessas, ainda feita em hebraico, não aconteceu em nenhum outro momento da história, declarou o assessor especial Vimsente Aidemim. Israel alegou que havia intérprete durante a mijada, faziam questão que o embaixador entendesse direitinho a mensagem.
O presidente L ficou indignado com tamanho barulho por uma fala sua. Está acostumado à, de vez por outra, falar Merda, sem maiores consequências. Pensou até na possibilidade de declarar guerra se a coisa continuasse em escalada. Foi consultar, como quem não quer nada, as Forças Armadas.
— Pode tirar o cavalinho da chuva — disseram os milicos — até o B, que era dos nossos, a gente deu um para-te quieto nele quando aventou mandar tropas contra a Venezuela. Imagina, guerrear contra o exército que a gente mais admira no mundo.
L saiu da reunião cabisbaixo e a coisa piorou depois de uma conversa que teve com o chanceler norte americano em que ouviu mais uma reprimenda (em inglês). Ah que saudades do Obama, pensou, lembrando-se de quando foi chamado por ele de O Cara. Mas logo se animou novamente. O assessor Aidemim veio correndo com a boa notícia: o Aiatolá Ali Cumeu Ine lhe outorgou o prêmio funcionário do mês do Eixo da Resistência.
Continuará escalando o incidente entre as duas nações? Aprenderá o presidente L a manter o espirito burlão longe de suas falas?
Não perca no próximo episódio de A Casa do Baralho.
February 16, 2024
Morte Matada
Cães de Aluguel de Quentin Tarantino.Se um dia uma nova civilização for estudar a vida humana com base nos filmes e principalmente nas séries dos últimos quarenta anos, chegará à conclusão de que a grande maioria das pessoas morria de morte matada, como se diz, e não de morte morrida.
Guerras e assassinatos liquidavam a maior parte dos humanos e pouquíssimos faleciam de doenças e menos ainda de velhice. Viver era uma aventura perigosíssima, em cada esquina poderia estar espreitando um serial killer, uma gangue, ou um exército conquistador sedento de sangue. Talvez cheguem à conclusão de que o ser humano desapareceu, após o último serial killer ter enlouquecido de vez ao constatar que não sobrou mais ninguém para sequestrar/torturar/matar e se auto imolou com um uivo dilacerante.
O que explica esse fetiche pela morte matada no audiovisual? Fetiche que não encontra paralelo em outras expressões artísticas, ao menos não nessas proporções. O que explica haver uma série cujo protagonista é um serial killer bonzinho, que só mata serial killers, ou uma franquia de filmes em que o assassino seriado é também um canibal?
Para tentar responder a isso haveria de se criar um grupo de estudos ultra multidisciplinar. O que não deixa dúvidas é que o sucesso de Dexter, Hannibal e outras obras parecidas se constituem num excelente campo de estudo sobre os humanos nessa época do final do século XX e início do XXI. Principalmente provocando o questionamento se a arte é um meio de sublimação da violência latente do homo sapiens, ou se ela inspira e atiça os piores instintos que milênios de civilização (não) conseguiram esconder.
Seja o que for, talvez essa futura civilização que nos estude a partir de filmes e séries e chegue à conclusão que quase todos morriam de morte matada, entenda o homicídio como uma ferramenta de equilíbrio, de controle do maior predador da terra sobre si mesmo. Neste caso, os supervilões serão considerados heróis e os policiais que os perseguem e atrapalham seus serviços serão os malvados.
E Dexter, um assassino em série de assassinos em série, que trabalha como especialista forense na polícia de Miami, seria a chave para decodificar a triste mensagem: o ser humano é um exterminador em série.
February 7, 2024
Anatomia de uma Queda

Filme de Justin Triete, França 2023
Anatomia de uma Queda é uma tempestade perfeita. Todos seus elementos atingem uma excelência sincronizada que envolve o espectador ora em um suspense, ora em uma turbulência emocional, como se a fada da inspiração atingisse todos seus setores com a mesma potência, no mesmo instante. Até mesmo a cena da briga do casal, que no início parece um pouco artificial, vai ganhando força impressionante que revela que o que parecia estranho é absolutamente coerente com os personagens.
O roteiro, escrito pela diretora e por Arthur Harari que também colaborou no processo da edição do filme, desvela aos poucos os elementos da trama e quem de fato são os personagens. Há surpresas e pontos de virada a cada esquina do labirinto arquitetado em torno da questão: a protagonista matou o seu marido, ou sua morte foi acidental ou suicídio? Mas não se engane, não se trata de um suspense policial. O mistério da morte é o ponto de partida para um profundo drama familiar, que analisa/disseca/reflete sobre amor, honestidade realidade e ficção. Eu diria que acima de tudo a obra é um drama filosófico existencial fantasiado de filme de tribunal. Os diálogos são sublimes e o filme ser bilingue, trocando constantemente entre o francês e o inglês, também funciona como elemento dramático.
Os atores, todos eles, desde o fiel Snoop (interpretado pelo cachorro Messi), passando pelos atores secundários, o advogado (Swan Arlaud), o filho de 11 anos Daniel (Milo Graner) e claro, a protagonista Sandra (Sandra Hüller), entregam personagens reais, críveis e ao mesmo tempo surpreendentes.
A direção, além do ótimo trabalho na direção de atores, filma de maneira peculiar. Assim como o roteiro desvela aos poucos a trama e os personagens, ela usa vários planos fechados para não situar de cara o espectador e com isso acirrar o suspense. Não há trilha incidental, a música é toda diegética, elemento importante, inclusive, nas circunstâncias do crime (ou acidente, ou suicídio). Em dado momento a trilha se transmuda para extra diegética de uma forma muito comovente.
Outra das inúmeras sacadas geniais de Hüller é a cena em que Daniel relata ao tribunal uma conversa com o pai. É um relato, uma memória e uma re-vivência do momento e vemos o pai falando em sinc com a voz do menino que narra o diálogo. Isso cria uma ponte entre o relato e o flashback e, ao mesmo tempo, provoca uma dúvida se Daniel não está inventando essa memória, colocando palavras na boca de seu pai.
O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2023, mas não foi o escolhido para representar a França na categoria Melhor filme Internacional (nessa categoria, cada país escolhe o seu candidato) no Oscar. O filme escolhido, O Sabor da Vida, ficou entre os 15, mas não entre os 5 indicados finais. Já Anatomia de Uma Queda está entre os 5 finalistas nas categorias Melhor Filme, Atriz, Montagem, Roteiro Original e Direção. Seja contemplado ou não, o filme tem tudo para se tornar um clássico do cinema contemporâneo.
February 1, 2024
The Kitchen

Filme de Kibwe Tavares e Daniel Kaluuya, Inglaterra 2024
The Kitchen é uma produção britânica e seus diálogos são, naturalmente, em inglês, mas o filme fala, na verdade, o mais fino cinemês. Cinemês, ou como chama-se hoje, a linguagem audiovisual, é aquele idioma que comunica pela imagem, pelo som, pelo ritmo dos cortes e da ação. E impressiona como esse idioma é refinadamente usado por um estreante na direção, o ator e roteirista Daniel Kaluuya e outro estreante no longa-metragem, o cineasta e arquiteto Kibwe Tavares.
Em 2012, Kibwe fez um curta para sua tese de mestrado em arquitetura: Os Robôs de Brixton. O curta, vencedor do prêmio especial do júri no Festival de Sundance, explorava a relação entre arquitetura, classe social e raça, com uma pegada futurista. Essa é também a essência de The Kitchen, nome de um conjunto habitacional, ou cortiço monumental habitado por negros e asiáticos, imigrantes ou filhos de imigrantes, perseguidos pela polícia por terem invadido (na ótica de uns) ou ocupado (na ótica de outros) as moradias.
Erroneamente classificado como ficção científica por acontecer em 2044, The Kitchen é um drama social e familiar, num contexto atualíssimo. O cenário político em que situa seus conflitos lembra o recente Athena. Mas é muito diferente do filme francês no estilo e na abordagem dos temas.
Em primeiro lugar, ele constrói sua narrativa fortemente na direção de arte, algo raro de se ver. Isso se evidencia no plano em que o protagonista circula na sua moto, passa por baixo de um viaduto e está claro para nós que ele atravessou uma fronteira e saiu de The Kitchen para Londres. É a mesma cidade, mas são dois planetas diferentes. O que marca essa transição é a “poluição” de cartazes coloridos que cobrem a lateral do viaduto e em seguida se apresenta uma avenida limpíssima, estéril, geometricamente perfeita, de tons frios e cinzentos.
Outro momento interessante em que a direção de arte exibe seu poder narrativo é o plano em que Izi e o garoto Benji contemplam da janela o conjunto cercado por prédios em construção e guindastes ameaçadores, esclarecendo que toda a ação policial contra os moradores tem o objetivo de expulsá-los do bairro para liberar o território para a exploração imobiliária.
No meio desse drama os protagonistas enfrentam outro conflito. Izy está prestes a juntar o suficiente para alugar uma moradia legal e se mandar de The Kitchen, o adolescente Billy perde a mãe e acredita que Izy é o seu pai. No encontro entre os diversos conflitos chocam-se o senso de comunidade com o individualismo, o egoísmo com uma consciência moral. E emerge uma reflexão interessante sobre o ser urbano no século XXI.
The Kitchen, filme que merecia ser visto nas salas de cinema, pode ser apreciado na Netflix.
January 25, 2024
Depois da Cabana

Série, criação de Isabel Kleefeld, Alemanha 2023
A cineasta Isabel Kleefeld leu o romance policial Liebes Kind de Romy Hausmann em uma noite. Ela simplesmente não conseguia largar. Esperou o sol raiar, tomou café da manhã e foi atrás dos direitos do livro para adaptação. Nasceram os seis episódios da minissérie Liebes Kind, que traduzindo seria Querido Filho, mas aqui no Brasil se chama Depois da Cabana.
É uma série policial com um criminoso pra lá de psicopata, uma jovem desparecida, pais preocupados, dois detetives, e uma vítima de sequestro que consegue fugir do cativeiro (ou assim ela pensa). Apesar da fórmula um tanto conhecida, Liebes Kind é muito diferente da maioria das séries policiais com essas características. Embora o suspense e o mistério envolvam de maneira eletrizante o espectador, a dimensão psicológica ocupa um espaço importante na série, o que confere a ela uma profundidade rara de ver em outros seriados semelhantes.
Além da abordagem psicológica, a trama é sofisticadamente intricada e a montagem cria uma estrutura fragmentada que acirra o mistério, juntando as micropeças do quebra-cabeças praticamente até o fim. Acrescente a isso cinco(!) protagonistas e mais uns três personagens secundários importantes, com a câmera migrando de uma perspectiva para outra e uma atuação impressionante das duas crianças e tá aí, a receita para uma obra de intensidade quase no nível de The Killing ou de A Ponte.
O quase é por conta do episódio final, o encaminhamento para o desfecho, que não mantém o mesmo nível de complexidade apresentado até então, o que dada e alta expectativa criada decepciona um tanto, mas no frigir dos ovos, ou das peças do quebra-cabeças, não tira os méritos já mencionados.
Depois da Cabana é uma série original Netflix. O livro deve ganhar em breve tradução para o português.


