Jaime Lerner's Blog, page 14
March 30, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Volta do Fujão

E não é que ele voltou? Após três meses de refúgio na terra do Camundongo Mickey, do Pato Donald e do Pateta, o ex-presidente B desembarcou novamente na Casa do Baralho. Dizem que ele escolheu a data em que o presidente L estivesse bem longe, na China, e ficou decepcionado pelo presidente ter adiado sua viagem por motivos de saúde. Já outros dizem que a leve pneumonia foi uma desculpa, L adiou a viagem justamente para não estar longe do país quando B desembarcasse.
Nesses três meses de sua ausência, nem deu para sentir saudades, toda semana pipocava um novo escândalo envolvendo o seu nome. O mais recente e mais falado é o escândalo dos kits de joias da Arábia Saudita que ele e a primeira dama ganharam, após a venda de uma refinaria da Petrobrás para os sheiks. Foram vários kits, um deles não conseguiu passar contrabandeado no aeroporto na mochila de um assessor e ficou retido na alfândega, o que acabou revelando todo o imbróglio. Inclusive um dos primeiros compromissos na agenda de B em solo brasileiro é ser interrogado na Policia Federal sobre o caso.
Mas não é este o maior dos escândalos. O maior dos escândalos, por incrível que pareça, está passando despercebido. Enquanto na Casa do Baralho só se fala das joias e armas que ele ganhou dos saudistas, o STF está arquivando todos os pedidos de indiciamento do ex-presidente em função de sua conduta durante a pandemia. Os pedidos oriundos da CPI da Covid e a queixa crime protocolada pela Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 foram todos arquivados. Talvez essa sinalização de que ele não será responsabilizado por suas estripulias durante a pandemia é o que o fez voltar, já que fugiu temendo ser preso, tão logo perdesse o foro privilegiado. As outras investigações e inquéritos são fichinha perto disso.
B, tão logo aterrissou, foi agraciado com o o cargo de presidente de honra do PL, o partido pelo qual disputou a eleição. O que faz um presidente de honra? O que B fez de melhor em toda sua carreira política: nada. E por esse trabalho árduo ele ganhará um salário de 40 mil reais. É possível que crie até um Instituto B para dar palestras Brasil afora ensinado o que ele sabe como ninguém: como se safar da responsabilidade legal.
Por que o STF, tão bravo quando atacado pelo ex-presidente, alivia a mão na questão da pandemia? Logrará o ex-presidente fujão liderar uma oposição contra o governo de L? O país sentirá saudades dos três meses que B passou na terra do Camundongo Mickey? Não perca nos próximos episódios de A casa do Baralho.
March 23, 2023
Breve História de Sete Assassinatos

Livro de Marlon James, Jamaica/EUA – 2014
Breve História de Sete Assassinatos me atraiu desde o seu lançamento. Muitos comparavam o romance com Ulysses de James Joyce, pelo tamanho e a complexidade da leitura. Além disso, era um romance jamaicano, ainda que seu autor vivesse há anos nos Estados Unidos, e eu conhecia muito pouco da realidade e nada da literatura daquele país. O terceiro elemento que me atraiu foi o núcleo central da trama, a história verídica do atentado a Bob Marley, dois dias antes do concerto pela paz que ele faria numa Jamaica polarizada às vésperas da eleição. Quem e porque estava por trás do atentado e como, apesar da enorme quantidade de tiros, alguns à queima-roupa, ninguém foi morto, é algo que despertou minha curiosidade, assim como a do autor que escolheu construir sua ficção em cima desse mistério verídico. O cantor e o atentado ao cantor são o centro da narrativa, ao menos na primeira parte e desse centro irradia-se tramas para todos os lados. Na segunda e, principalmente na terceira parte, os personagens dessas tramas seguem adiante, navegando por outros mares, porém ainda ligados ao evento longínquo.
Mais de uma dezena de personagens narra a epopeia marloniana, alguns mudam de nome ao longo de suas trajetórias, o que desafia o leitor ainda mais. O primeiro narrador é um fantasma e nesse primeiro capitulo o autor já apresenta um texto poderoso e altamente sofisticado, um sarrafo alto que nem sempre será alcançado no restante do livro. O livro altera gírias, jargões e idiomas, boa parte dele é narrado na linguagem das favelas de Kingston. Eu li em inglês, mas me auxiliei inicialmente da tradução em português, até pegar os sentidos das gírias e termos. Na tradução perde-se bastante dos duplos sentidos, trocadilhos e referências às letras de músicas, mas principalmente perde-se a sonoridade do texto na qual reside boa parte de sua força. Se você lê em inglês recomendo aplicar o mesmo método: ler o original com o auxílio da tradução nos primeiros capítulos e depois seguir em frente. O dicionário do Kindle também ajuda em termos de inglês mais antigo e de algumas gírias.
Além de muitas subtramas e personagens, o romance é recheado de violência. Violência radical, explícita, cruel e chocante. Violência que irriga os canais de comunicação entre as favelas, o poder político, a polícia, a CIA e os cartéis colombianos. Canais que ligam a geopolítica global da Guerra Fria dos anos 1970 e 80 com as disputas territoriais nas zonas mais esquecidas da empobrecida Jamaica. E questiona qual o papel da arte no meio de tanto conflito, ou melhor, se a arte chega a conseguir desempenhar um papel, ou acaba sendo tragada pelas forças em conflito. O sangue, terror e dores vertidos aos borbotões não são violência pela violência, mas parte de uma profunda reflexão sobre identidade e a herança da colonização/escravidão nas Américas.
Breve História de Sete Assassinatos obteve vários prêmios importantes, entre eles o Man Booker Award de 2015. No Brasil, o livro foi publicado pela editora Intrínseca em 2017, com tradução de André Czarnobai.
Leia uma amostra e/ou adquira o livro.
March 13, 2023
OSCAR 2023

Dois filmes se destacaram na premiação do Oscar 2023. Dois filmes absolutamente diferentes. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo mescla comédia com drama familiar e fantasia e, de quebra, presta homenagem ao fazer cinematográfico. Há uma porção reflexão e uma porção entretenimento nessa obra sui generis. Nada de Novo no Front é um filme de guerra, denso, clássico e magistralmente antibelicista.
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo foi indicado em onze categorias e venceu em sete: Melhor Filme, Direção (Os Daniels), Roteiro (Idem), Montagem (Paul Rogers), Atriz principal (Michelle Yeoh), Atriz Coadjuvante (Jamie Lee Curtis), Ator Coadjuvante (Ke Huy Quan).
O filme alemão Nada de Novo no Front de Edward Berger, faturou quatro das sete indicações que teve: Melhor Filme Internacional, Fotografia (James Friend), Direção de Arte (Christian Goldbeck e Ernestine Hipper) e Trilha Sonora original (Hauschka).
São dois filmes que eu gosto muito. É difícil comparar entre duas obras tão diferentes nas propostas de gênero, de conteúdo e principalmente, nas propostas estéticas. No entanto, acho Nada de Novo no Front um filme mais completo. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é um filme ousado, mas tem pontos altos e pontos fracos. Nada de Novo no Front é extremamente impactante, do primeiro ao último fotograma, em cada departamento.
Você pode ler as resenhas completas desses filmes clicando em Nada de Novo no Front e em Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Também pode ler a resenha completa do vencedor de melhor Canção Original o exuberante filme indiano RRR. Os três filmes estão disponíveis nas plataformas de streaming Netflix e Amazon Prime.
A estatueta dessa resenha não é a do Oscar, mas de Omama, protetor dos Yanomami e da floresta. A estatueta, feita pelos indígenas brasileiros, será enviada a cada um dos vencedores como parte da campanha conscientizadora O Custo do Ouro, assim como vídeo abaixo.
March 9, 2023
Harmonia e o Carnaval.

Filme – Roteiro, foto e direção de Jaime Lerner, Brasil , 2000.
Harmonia é o nome de um parque no centro de Porto Alegre. Parque que gerou um conflito entre os dois movimentos culturais mais populares de Porto Alegre, o tradicionalismo gaúcho e o carnaval. Os tradicionalistas se opunham a um projeto da prefeitura de construir no local uma pista de eventos que servisse para o desfile de carnaval em fevereiro e para o desfile em comemoração da revolução farroupilha em setembro. Até então o desfile das escolas de samba de Porto Alegre se dava numa rua lindeira ao parque que era fechada para o trânsito nas semanas que antecediam o carnaval. Curioso para entender o que havia por trás desse conflito, se havia realmente um antagonismo entre os dois movimentos, fiz um documentário sobre o assunto. A obra acabou virando um profundo mergulho na história, alma e identidade do Rio Grande do Sul. Era para ser um filme de 50 minutos, mas na edição vimos que tínhamos um longa. Harmonia foi rodado (na bitola de 16mm) em 1996 e lançado no ano 2000, após termos conseguido a grana para a finalização. Descobrimos que era o primeiro documentário gaúcho de longa-metragem.

Todo projeto que a gente faz, acaba nos enriquecendo como pessoas. Mas Harmonia mudou e mexeu com muitas coisas dentro de mim. Além da satisfação pela repercussão do filme em 2000, ele ampliou e aprofundou minha visão sobre o racismo no Brasil e me fez entender o que o carnaval significa, em sua essência, para os brasileiros descendentes de africanos.
No próximo domingo, dia 12/03, às 18 horas, o filme será exibido em sessão especial na Cinemateca Capitólio, encerrando uma mostra de filmes sobre carnaval. Eu não vejo o filme faz no mínimo 15 anos (estamos tentando, o produtor Cícero Aragon e eu, a atualização da matriz para formato digital) e estou ansioso para reassistir e ver como ele funciona para o público depois de tantos anos. Após o filme haverá debate mediado pela historiadora Laura Galli.
Estão todos convidados.
March 2, 2023
Tudo no Mesmo Lugar ao Mesmo Tempo

Filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, EUA 2022
O título já sugere uma obra sui generis. Na verdade, o filme da dupla de diretores The Daniels (ou simplesmente Daniels para os íntimos) é uma obra multi generis. O filme parodia e faz referência a vários outros filmes e gêneros: ficção científica, fantasia, surrealismo, comédia (que se desdobra em comédia inteligente, nonsense, e paródia escrachada), aventura, drama familiar e melodrama. Tudo junto e misturado. Os heróis dessa aventura fogem de todos os estereótipos e protótipos de heróis. Evelyn e seu marido são dois imigrantes chineses de meia idade, donos de uma lavanderia quase falida nos EUA que tentam sobreviver ao mar de contas e burocracia. Os vilões, principalmente a grande vilã, fogem mais ainda das fórmulas pré-estabelecidas, e de maneira surpreendente.
A trama não é bem uma trama, é mais uma situação: Evelyn descobre, no meio de uma reunião tensa com o pessoal do Imposto de Renda, que existem vários universos paralelos, e que um deles, o universo Alfa precisa dela para derrotar uma enorme ameaça a todos os universos. Numa clara alusão à Matrix, ela é a escolhida, a única que poderia vencer esse desafio. Evelyn é jogada na água sem saber nadar e aprende a se conectar com as várias Evelyns dos outros universos para adquirir poderes e habilidades visando o terrível embate. No meio de desafios e escaramuças que parecem quase um vídeo game, entende-se que os vários universos são na verdade vidas alternativas dos protagonistas, aquelas que poderiam ter vivido caso fizessem outras escolhas nas encruzilhadas do destino. Essa reflexão sobre o que poderia ter sido se…e o niilismo da vilã mor junto com seu fascínio pelo caos, se constituem no lado filosófico existencial do filme, que compensa (e muito) a falta de uma história arrumadinha como fio condutor e justificam a estrutura (aparente) de um carrossel desgovernado.
Michelle Yeoh e Ke Huy Quan criando personagens profundos em meio ao caos.O que também dá estofo ao filme no meio de tantas alegorias, referências e situações surrealistas, é a performance dos protagonistas, principalmente a de Michelle Yeoh, que mesmo sem uma trama que se aprofunde nos conflitos pessoais, cria uma personagem de carne, osso e muito coração. Suas expressões (faciais e corporais), seus silêncios e a maneira como entrega suas falas geram grande empatia com o espectador, assim como a caracterização precisa da família de imigrantes e seu conflito geracional.
Tudo no Mesmo Lugar ao Mesmo Tempo é um filme extravagante, no ritmo, nos figurinos, nas opções satíricas. Para mim os únicos exageros que pesam na obra são o verborrágico e a repetição exacerbada de lutas e situações. Há muitas falas, várias delas com a função de explicar o filme, explicitar seus temas e as regras do jogo, subestimando o espectador. Muitas das situações são repetidas também para tornar claro o que não precisa de mais explicação. Sem estes exageros o filme seria mais fluente, enxuto e impactante. O ponto alto dos diálogos é o fato de serem bilíngue, algo natural em famílias de imigrantes, e que é muito bem explorado nesse ambiente de simultaneidade e mundos paralelos.
Uma história que não está no filme, mas é totalmente do filme é a história real de Ke Huy Quan, que interpreta Waymond, marido de Evelyn. Quan começou cedo na grande tela. Aos treze anos atuou em Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984) e um ano depois fez Os Goonies. Mas acabou abandonando a carreira por falta de oportunidades no final dos anos 1990. Formou-se em cinema e trabalhou em algumas produções como coordenador de dublês (é mestre em artes marciais) e assistente de direção. Aos 51 anos, o ator de origem vietnamita resolveu tentar voltar às telas e contratou um agente. E assim surgiu o convite para Tudo no Mesmo Lugar ao Mesmo Tempo, papel que lhe rendeu vários prêmios e a indicação ao Oscar, uma das onze estatuetas que o filme disputa. Tudo no Mesmo Lugar ao Mesmo Tempo pode ser visto nos cinemas (recomendado!!!) e na Amazon Prime Vídeo.
February 23, 2023
Athena

Filme de Romain Gavras, França 2022.
Athena é um filme incendiário. Parte de uma situação incendiária: a violência policial que resulta na morte de um jovem muçulmano do conjunto habitacional que dá nome ao filme. O coquetel molotov divide o protagonismo com os dois irmãos da vítima, Abdel (Dali Benssalah) e Karim (Sami Slimane). Karim inflama outros adolescentes do conjunto a declararem guerra contra a polícia. Exige que os responsáveis pelo assassinato (registrado em vídeo), sejam presos e julgados. Abdel, um pouco mais velho, quer acalmar os ânimos, preocupa-se que não haja mais vítimas. Ele serve no exército e confia que as autoridades irão descobrir os assassinos de seu irmão. A sonoridade dos nomes, Karim e Abdel, que lembra Caim e Abel, sugere que o conflito irá além do clássico comunidade versus polícia. Para complicar ainda mais, um terceiro irmão é traficante e sua única preocupação é com seu “empreendimento”. Ele e sua quadrilha tentam sair do conjunto habitacional sitiado, levando suas mercadorias, mas são impedidos pelos jovens inflamados liderados por Karim.
O roteiro de Athena tem todos os ingredientes de uma tragédia. Mas a alta intensidade do filme remete mais a um filme de ação, aliviando um pouco o peso da tragédia e criando, ao lado dela, uma obra tensa e densa, de tirar o fôlego. A mim o filme fez lembrar, na intensidade, no tema e no uso de referências mitológicas, o The Warriors de Walter Hills, de 1979.
Romain Gavras, filho do premiado diretor grego Costa Gavras, revela-se um mestre para filmar ação. Trabalha com uma série de planos longos, a câmera em constante movimento em meio a coreografias complexas de atores, figurantes e veículos em escaramuças, fuga e perseguição. Enquadra inicialmente seus protagonistas em planos próximos ou médios, transita com eles e se afasta para revelar o contexto e criar uma relação interessante entre indivíduo e multidão. Se o coquetel molotov é um elemento importante, a câmera é outro protagonista do filme, conduzindo nosso olhar atônito pelo labirinto caótico do conflito estabelecido. Os operadores de câmera, Myron Mance, e de steadycam, Aymeric Colas, têm grande responsabilidade nessa condução magistral.
Athena peca justamente no ato final, quando ocorre a virada em Abdel. Há uma dose exagerada de violenta dramaticidade nessa transformação que a mim fez desembarcar da frenética viagem antes de chegar à última estação. Os eventos nessa derradeira jornada não apresentam a mesma autenticidade, a mesma qualidade imersiva para o espectador, em contraste com o que acontece até aquele momento. Mesmo assim, é um filme impressionante, pelo ritmo, pela estética e pela técnica. Por isso vale muito a pena assistir também ao making of, disponível, assim como o filme, na Netflix, que resgata um fenômeno muito bacana da época do DVD. Muito mais do que uma peça promocional, o making of nos dá um vislumbre sobre o trabalho hercúleo na feitura de Athena e na feitura de um filme em geral.
February 16, 2023
Caleidoscópio

Série, criação de Eric Garcia, EUA 2023.
Uma boa história tem que ter começo, meio e fim. É o que prega boa parte dos adeptos da narrativa linear, tanto na literatura como no cinema. Há tempos que essa máxima vem sendo questionada com obras instigantes, em algumas delas a quebra da linearidade é elemento fundamental na conquista do leitor ou do espectador. Em primeiro lugar, as histórias de filmes e livros são quase sempre um recorte, recorte de uma história maior que iniciou antes da trama da obra e continua depois dela. Muitas vezes essa “zona externa” é um território fértil para autores e atores entenderem melhor o personagem e seus conflitos. Portanto, pode se dizer que qualquer enredo de uma obra, ainda que de estrutura linear, não começa no começo, nem termina no fim. Além disso, a quebra de linearidade e a fragmentação tornaram-se ferramentas muito utilizadas na estruturação das narrativas a partir da segunda metade do século XX.
Na literatura podemos destacar dois exemplos radicais, O Jogo da Amarelinha de Julio Cortazar (1963) e O Dicionário Kazar de Milorad Pavic (1984). Nessas duas obras singulares a estrutura se sobrepõe ao que podemos chamar de história ou de histórias. Na primeira, o leitor pode ler na ordem dos capítulos numerados, ou numa outra ordem sugerida pelo próprio autor. O Dicionário Kazar é alfabeticamente ordenado por verbetes, mas também pode ser lido na sequencia que o leitor desejar. Como se não bastasse, foi publicado em duas versões, a feminina e a masculina, com uma diferença entre elas apenas em um dos parágrafos. Compor uma trama que pode ser exposta de maneira clara e instigante, em sequencias diferentes, é um exercício pra lá de complexo e normalmente acompanha um enredo não menos sofisticado.
Caleidoscópio é uma série de oito episódios não numerados, cada um tem o nome de uma cor. A Netflix enviou esses episódios em ordem distinta para cada assinante. Ao que parece, apenas o episódio branco mantém-se como episódio derradeiro, embora ele não seja o final da trama, e sim seu ponto central. A Netflix também avisa que você pode assisti-los na ordem sugerida ou em qualquer outra ordem. Eu a recebi assim: Amarelo (6 semanas antes do evento principal); Verde (7 anos antes do evento principal); Azul (5 dias antes do evento principal), Laranja (3 semanas antes do evento principal); Violeta (24 anos antes do evento principal); Vermelho (a manhã após o evento principal); Rosa (6 meses após o evento principal) e Branco (o dia do evento principal). O evento principal é o roubo de títulos de valor bilionário de um cofre que se diz impenetrável. Em torno desse assalto orbitam motivos e conflitos de mais de duas décadas, ou seja, para o ladrão (e protagonista), o dinheiro é o menos importante. Infelizmente, não se aplicou na elaboração da trama e nas interpretações o mesmo esmero criativo investido no exercício da estrutura, o que torna a obra que poderia ser genial apenas uma série interessante de assistir. Isso também é válido. Dependendo do humor e da necessidade do dia, uma série de entretenimento com uma estrutura sofisticada e viradas inesperadas, pode cair bem. Mas não espere um O Dicionário Kazar, nem um O Jogo da Amarelinha.
E você, em qual ordem recebeu os episódios, em qual ordem assistiu? Deixe seus comentários e sua impressão.
February 9, 2023
O Romance da Minha Vida

Livro de Leonardo Padura, Cuba – 2002
Pegue um ou dois personagens reais, um maço de fatos históricos de épocas diferentes, uma trama repleta de mistérios e um bom coprotagonista ficcional. Misture, ou melhor, amalgame tudo isso, acrescentando um ar de tragédia salpicado de sensualidade e coloração tropical. Leve ao fogo por umas trezentas páginas de tirar o folego. Sirva quente, ou frio. Ninguém prepara melhor esse manjar do que o chef Leonardo Padura, autor do delicioso Hereges e do absolutamente genial O Homem que Amava os Cachorros. E antes desses dois (embora no Brasil tenha sido publicado depois) o esplendido O Romance da Minha Vida, a primeira grande obra de Padura utilizando essa receita. Nela pode se perceber a estrutura, a pesquisa meticulosa e a inteligência que figurariam também na história do assassinato de Trotsky pelo agente soviético Ramon Mercader, a mando de Stálin, e na saga do sumido quadro de Rembrandt que quase desembarcou em Havana trazido por refugiados judeus da Alemanha à bordo do navio Saint Louis.
Em O Romance da Minha Vida, Cuba adquire o protagonismo que em O Homem que Amava os Cachorros é dividido com México, Espanha e União Soviética. E a figura histórica, personagem trágico e real que protagoniza o romance é um poeta, José María Heredia y Heredia, considerado hoje o grande nome da formação da poesia cubana. José María viveu trinta e cinco anos, deles apenas sete, em quatro períodos diferentes, em solo cubano. E mesmo assim tem o título de poeta nacional da ilha caribenha. Além de longos anos exilado, Heredia morreu pobre e foi enterrado em um tumulo sem lápide no México. Só voltou a ser reconhecido em Cuba após a independência da mesma do jugo espanhol.
Padura narra essa tragédia latino-americana, através de três histórias paralelas: a de Fernando, personagem ficcional dos tempos atuais, também um desterrado que volta à Cuba em busca de um misterioso romance que Heredia teria escrito e nunca foi encontrado; a história do próprio suposto romance que na verdade é uma autobiografia e cobre a primeira metade do século XIX; e a história do sumiço do tal manuscrito que engloba várias gerações, fazendo a ponte entre passado e presente. Juntas essas histórias pintam um quadro desolador sobre tirania, desterro, escravidão e prisão que confere a essa história uma dimensão universal.
Um dos pontos interessantes das reflexões despertadas pelo romance é a ligação da Independência com a questão da escravidão, ou mais precisamente, como a elite cubana sempre recuava da ideia de independência, com medo de uma rebelião de escravos como aconteceu no Haiti. Outro ponto para reflexão que o livro desperta é o tema sobre amizade e traição. E sobre o medo que os tiranos têm das palavras, ou da cultura e da arte.
O Romance da Minha Vida, assim como outras obras de Padura, foi publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2019.
February 2, 2023
Os Reis do Mundo

Filme de Laura Mora Ortega, Colômbia 2022
Cinco garotos deixam as avenidas movimentadas de Medellin, seu habitat nos últimos anos, e empreendem uma viagem para o interior da Colômbia, em busca de seu “Eldorado”: a terra da qual a família de um deles foi expulsa por grupos paramilitares e recentemente, após um longo processo, foi restituída à avó de Rá, já falecida. Com uma foto desbotada de uma casinha no meio do verde e vários documentos amassados, Rá e seus irmãos de infortúnio avançam por um Colômbia desconhecida, encontrando aventuras, empatia e maldade em meio a paisagens deslumbrantes.
Desde Pixote (Héctor Babenco, 1980) que não vejo um filme que mescla tão bem a crueza do mundo cão e a ingenuidade/inocência da infância. Cada um dos cinco membros dessa trupe carrega doses distintas desses dois elementos em sua personalidade, frutos de sua vivencias e de sua tenra idade. Pixote, no entanto, é um filme mais soturno, fechado, pelo fato do protagonista permanecer preso à urbe e sozinho. A trupe de Rá é mais do que um bando de garotos, mais do que uma família. É uma entidade. E em muitos momentos essa convivência é o suficiente para colorir seus dias, trazer uma leveza de esperança ao peso da realidade, permitir respirar acima da turbulenta luta pela sobrevivência.
A estética de Os Reis do Mundo, principalmente a fotografia e a direção de atores, revela a sensibilidade da diretora e do DF, David Gallego, para criar um clima onírico, em uma odisseia movida por um sonho (ou cinco sonhos) e grandes frustrações. Os contrastes com os quais o filme lida são impressos nos enquadramentos, na luz, na coreografia da ação e dos corpos e na gramática cinematográfica, aquela que liga um plano no outro para formar as sequencias e cenas, ou o texto audiovisual. Laura Ortega se revela uma exímia “escritora” através de sua decupagem.
Os Reis do Mundo foi premiado no Festivais de cinema de San Sebastian e de Zurique. Essa delicada joia cinematográfica pode ser vista na Netflix.
January 26, 2023
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Disfunção

Quem vigia os vigilantes? Juvenal – o poeta satírico de Roma
Nunca antes na história desse país, conhecido também como a casa do baralho, um militar sofreu uma queda tão meteórica como o general nomeado pelo presidente L para comandar o glorioso exército brasileiro. O general JCA bateu o recorde de carreira fulminante, ficando no cargo por exatos 22 dias. Ele tomou posse precocemente em 30 de dezembro, dois dias antes do presidente que o nomeou, e foi defenestrado no dia 21 de janeiro, 13 dias após o quebra-quebra em Brasília promovido pela turba golpista. Como bem define o manual da disfunção erétil o fenômeno da ejaculação precoce: nem bem começou, já havia acabado. Em outras palavras, ele gozou do cargo, mas foi um gozo relâmpago.
O exército brasileiro foi precoce na última onda de golpes militares na América do Sul, quando os generais derrubaram o presidente J do poder em 1964. Daquela vez não acabaram tão cedo. Foderam o país por longos vinte anos. Com a inflação na estratosfera e os direitos humanos no fundo do poço, resolveram devolver a bagunça para os civis e ficaram quietinhos nos quartéis por mais de três décadas. A eleição do presidente B em 2018 acendeu, em alguns setores das forças armadas, a velha chama golpista + a fantasia de que a disciplina militar administraria o país melhor do que os civis. Esses oficias foram alimentados com pão de ló na temporada passada de A Casa do Baralho, quando B dava as cartas. O imbrochável dava também, além de cargos em todos os setores do governo, Viagra em doses generosas e farta implantação de próteses penianas. Com isso, o que parecia morto revelou-se apenas adormecido e a sanha do poder voltou a se assanhar junto às forças armadas. Não era mais uma disfunção erétil, era uma disfunção constitucional. É essa chama que o presidente L tem agora que debelar, antes que vire um grande incêndio.
Bastará e demissão enérgica de JCA para passar o recado? Conseguirá o velho novo presidente recolocar as forças armadas em seu quadrado constitucional? Poderá, então, dedicar-se aos outros incêndios? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.


