Jaime Lerner's Blog, page 18
June 9, 2022
Marrom e Amarelo

Livro de Paulo Scott, Brasil, 2019
Marrom e Amarelo não é um tratado sobre a estética das cores, mas um romance contundente com uma reflexão multifacetada sobre a ética do cromatismo brasileiro. Preto, pardo, cafuzo, mulato, crioulo, sarará, índio, branco, mameluco, caboclo, são algumas das classificações para a mistura de raças que originou o mito da harmonia racial, a ilusão de que o Brasil, após a abolição, eliminou o racismo. Marrom e Amarelo escancara a esquizofrenia de sermos uma sociedade rica em cores, matizes e misturas, e produtora de tamanha segregação.
Federico, o protagonista, é convidado a participar de uma comissão que discute o destino das cotas raciais. As ideias, argumentos e contra-argumentos apresentados nessas reuniões desenham o labiríntico beco sem saída que o país criou em séculos de exclusão. Em paralelo, o texto expõe o dilema, ou os dilemas que corroem Federico, o irmão “amarelo” em uma família marrom.
Paulo, o irmão André e a mãe. Foto: acervo pessoal do escritor.Subvertendo a pontuação gramatical, fragmentando a linearidade e embaralhando memória e vivência, Paulo Scott vai além do experimento formal, criando um clima de caos que, após a estranheza inicial, nos coloca no coração e mente do protagonista. Essa confusão existencial, esse caos regado de raiva e culpa resulta numa escrita poderosa que conecta magistralmente o individuo e a coletividade no trágico labirinto esquizofrênico. Federico é ele e é também a sociedade brasileira. É parte e é o todo. De quebra, Scott aplica uma subversão surpreendente da máxima de Tchekhov: a arma que aparece no primeiro ato, deve disparar no terceiro.
Para mim, o único defeito do romance é que ele é muito curto. No auge do envolvimento com os protagonistas, a caminho de um ponto de virada importante, o livro acaba, como que dizendo: não espere um desfecho, muito menos uma solução. Entendo a intenção do autor, mas eu esperava, ao menos, seguir na viagem com Federico, seu irmão e sua sobrinha na trama explosiva que os cerca por alguns trechos.
Scott parte de uma situação familiar para tecer sua narrativa ficcional. Ele é filho de família negra, e tem a pele muito mais clara que André, seu irmão mais novo. O pai, delegado de polícia (como no livro), os chamava de Amarelo e Marrom. Mais do que o ponto de partida autobiográfico, o texto, narrado em primeira pessoa e em um fôlego só, passa uma sensação de verdade, uma autenticidade sombria e perturbadora.
Marrom e Amarelo chegou a etapa semifinal do prestigiado Prêmio Booker Internacional de 2022, um merecido impulso para a carreira internacional do livro e do autor. A editora é a Alfaguara, selo da Companhia das Letras.
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June 1, 2022
RESTAURAÇÃO

Iniciaram-se as filmagens da segunda fase do meu novo documentário. Encarando o frio intenso em Pelotas (dois dias gloriosos de magnífica luz, após chuva intensa), lá estava a nossa banda: Alan na Câmera 1 e Drone, Marcelo na câmera 2 e Gimbal, Nina no som, Rapha Pilotando a van e Cartlota na produção e AD. Por controle remoto, Cintia Helena na produção executiva.
Isabel Torino no MALGMais detalhes serão informados no decorrer da gestação. Posso adiantar que em Pelotas fomos dar um mergulho no universo do escultor Antonio Caringi que além de uma vasta obra, teve uma vida muito interessante. Um super agradecimento à família (seus filhos e os netos Antonella e Amadeu), às artistas e acadêmicas Isabel Torino, Neiva Bohns e Myriam Anselmo, que também foi sua aluna, e ao MALG e à SECULT.
O filme foi gestado pelo projeto Construção Cultural do SINDUSCON-RS e tem o patrocínio da Gerdau, através da LIC-RS. As fotos (de cima para baixo) são de Alan Mendonça, Carlota Araujo, Nina Mayer.
O Sentinela Farroupilha de Antonio Caringi.
May 26, 2022
42 dias na Escuridão

Série, criação de Claudia Huaiquimilla e Gaspar Antillo – Chile, 2022
A primeira série chilena da Netflix parte, como muitas outras séries, do misterioso desaparecimento de uma pessoa. E como muitas outras séries, tem como base uma história real. O diferente, em 42 dias de Escuridão, é que o desaparecimento de Verônica não conduz a obra ao gênero thriller policial, dando ênfase ao crime e aos policiais que o tentam desvendar, mas às consequências do acontecimento nas vidas dos familiares da desaparecida. O mistério, obviamente, tem função importante, mas o carro chefe da narrativa é o drama familiar. Ao tecer os meandros desse drama e as intricadas relações que o conduzem, os criadores/diretores da série abandonam a história real e criam seu universo de personalidades e conflitos. É por isso que eles declaram que a obra é apenas inspirada e não baseada no desparecimento de Viviana Hager em 2010, ainda que os fatos permaneçam fieis ao que ocorreu naquele caso. É por isso também que dão nomes fictícios aos personagens e Viviana torna-se Verônica.
É muito interessante como os realizadores integram esses dois elementos: o mistério do crime e as relações familiares, um alimentando a fogueira do outro, principalmente com a inserção de flashbacks da irmã Cecília (Laudia di Girolamo) e da filha mais velha Karen (Julia Lubert) evocando suas relações com a desaparecida. A história paralela do advogado fracassado que tenta investigar o caso com seus dois “assistentes” igualmente marginalizados, também reforça essa correlação. Os dois episódios finais perdem um pouco da pegada criativa no roteiro, principalmente quando o eixo do mistério transita do desparecimento de Verônica para o julgamento. Ainda assim, é um drama instigante do início ao fim.
O que mais me impressionou na direção da série é o tratamento quase documental que confere à obra uma autenticidade incrível. Essa qualidade é atingida pelo tom das interpretações, pela escolha do elenco e sua caracterização, principalmente na maquiagem que sugere ausência de maquiagem. Os tipos, as caras, as falas parecem as dos vizinhos ao lado e esse é um grande diferencial de 42 dias na Escuridão. O cenário exuberante da região dos lagos chilena tem uma importância muito grande no impacto da obra, criando um contraponto estético com a caracterização quase documental dos personagens e com o clima de tensão estabelecido. Outro diferencial é o desfecho, muito distinto do que se espera de séries sobre casos como este. Pode agradar a uns e decepcionar a outros, mas é uma solução muito interessante dentro do conceito que norteia 42 dias na Escuridão.
May 19, 2022
Nomad Land – Sobrevivendo aos Estados Unidos no século XXI
Jessica Bruder a bordo do Van Hallen. Foto de Julia MoburgLivro de Jessica Bruder – EUA, 2017.
Nomad Land – Sobrevivendo aos Estados Unidos no século XXI é um livro reportagem escrito pela jornalista Jessica Bruder. Uma reportagem feita em três anos de pesquisa nas estradas dos Estados Unidos. Jessica, que escreve sobre subculturas, ou “novas tribos”, pegou a estrada para conhecer uma tribo que começou a surgir no seu país após a crise de 2008: pessoas que estavam prestes a se aposentar, perderam tudo e viram-se obrigadas a reinventar suas vidas nessa idade avançada. Partiram para uma mudança radical: morar dentro de um veículo em busca de novas paisagens, de empregos temporários e companheiros de jornada. São os novos nômades, a maioria com mais de sessenta anos no lombo.
Jessica escreve em estilo jornalístico, porém desde o início se insere como personagem. As relações que trava com os sujeitos de sua pesquisa, principalmente Lynda May, sua “protagonista” dão um tom humano à narrativa, criam uma empatia entre o leitor e as pessoas reais que povoam o livro, como nas melhores obras de ficção. Através do mosaico de seus personagens, Jessica desenha magistralmente o fenômeno, objeto de sua reportagem, e analisa/aborda vários temas doloridos: o etarismo, o fracasso do sonho americano e o efeito do capitalismo predatório nas vidas das pessoas.
Linda May a bordo do Squeeze in, foto de Jessica BruderApesar de apresentar o lado aventureiro e da camaradagem e solidariedade dessa nova tribo, cujo território é tão vasto quanto o próprio país; apesar de apresentar pessoas que rejeitam o coitadismo e se recusam a se sentir vitimadas, não se rotulam como Homeless (sem teto, ou sem lar) e sim como Houseless (sem casa), o livro emana tristeza. E esse tom contido de tristeza profunda que borbulha por toda a narrativa se configura numa das grandes belezas do texto.
São raros os livros reportagem que se tornam filmes de ficção. Nomad Land foi adaptado para o cinema pela diretora Clohé Zaho, um filme hiperpremiado que ganhou o Leão de Ouro de Cannes, os Oscars de melhor filme, direção e atriz em 2021. Poucas pessoas sabem que há um trabalho jornalístico de grande profundidade por trás do texto que originou o filme. No Brasil, o livro foi publicado pela editora Rocco.
Leia uma amostra:
May 12, 2022
A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Golpe

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.
O que antes era apenas um seguro, virou a principal estratégia para o presidente B manter-se no cargo: esculhambar com o processo eleitoral. Assim como planejou explodir bombas no quartel em 1986, em operação que chamou de beco sem saída (e que lhe rendeu ser saído do exército), planeja agora detonar as urnas eletrônicas.
A poucos meses do pleito, mesmo tendo distribuindo benesses ao Centrão, via orçamento secreto, e benesses à população, por meio do auxilio isso, auxilio aquilo, permanece atrás nas pesquisas. Ao que parece, não foi o suficiente para que o povo esquecesse as barbaridades do seu governo. O único jeito para se garantir de uma derrota é gritar lobo!!! No caso, fraude na apuração dos votos. E nisso aposta todas suas cartas. Para não parecer apenas papo de mau perdedor, ele grita antes de sair o resultado do pleito. Falou de fraude inclusive após ter sido eleito, dizendo que foi isso que o impediu de ganhar já no primeiro turno. Só que agora, como chefe da nação, colocou as forças armadas nesse jogo perigoso, com os militares questionando o Tribunal Superior Eleitoral sobre todo o processo. Com isso, o cheiro de golpe ficou insuportável.
Não é a primeira vez na história do Brasil que se alega fraude nas eleições para dar um golpe. Mas é a primeira vez que este golpe é aplicado pelo… próprio governo. É como se o CEO de uma multinacional de refrigerantes, por exemplo, declarasse que a fórmula do seu refrigerante não é confiável. E isso com o intuito de não perder o cargo! Só na Casa do Baralho. E falando em embaralhar, a estratégia tem outra grande vantagem: enquanto os militares acuam a justiça eleitoral com seus questionamentos e a justiça tenta contra-atacar, não sabendo bem como, não se fala mais da inflação, do desemprego, da pandemia, do meio ambiente, da educação, dos ataques aos indígenas, enfim, de todos os temas importantes que deveriam ser discutidos às vésperas da eleição.
Para piorar a situação, o candidato da oposição, que lidera as pesquisas, anda soltando umas “perolas” de quando em vez, só para manter a disputa em patamar de suspense.
Apesar do mau cheiro, a elite continua tapando discretamente o nariz, fingindo que ninguém empestou a sala. Isso pode se revelar uma grande cagada.
Até onde irá o exército no jogo do presidente? Até onde irá a PF no inquérito desse golpe? Até quando continuará a elite a tapar o nariz? E o mais importante, conseguirá o Brasil não sair derrotado desse próximo pleito? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho!
May 5, 2022
Boneca Russa

Série, duas temporadas, criação Leslie Headland, Natasha Lyonne, Amy Poheler – EUA, 2019/22
Finalmente estreou a segunda temporada de Boneca Russa, três anos após o lançamento da primeira. O início promissor e a curiosidade despertada pelo argumento excêntrico/ousado geraram grande expectativa, esticada demasiadamente pela Covid.
Na primeira temporada Nadia faz 36 anos. Ao sair da festa que celebra seu aniversário, na casa de sua melhor amiga, ela sofre um acidente e acaba morrendo. Desperta no banheiro da mesma casa, na mesma festa para tornar a morrer logo em seguida, até entender que está presa em um ciclo temporal que inicia nesse misterioso banheiro e culmina com sua morte. Nadia, que é programadora de games, tenta desesperadamente descobrir o bug que a está aprisionando. Nessa jornada detetivesca conhece Alan que sofre a mesma situação. Alan é uma espécie de antítese de Nadia, uma sarcástica nova-iroquina com visão cética sobre o mundo.
Nadia (Natasha Lyonne) e Alan (Charlie Barnett), presos no mesmo labirinto.A segunda temporada, na qual Nádia completa quarenta anos, aumenta a dose de surrealismo, e nos leva para uma viagem ao passado que lembra muito Buñuel e Freud, com situações surrealistas que só o cinema oportuniza, inseridas na regressão psicanalítica. É uma combinação explosiva que a série articula muito bem na condução narrativa e na construção do inusitado, principalmente no entendimento da realidade que é transmitido ao espectador a conta gotas, como se revela aos protagonistas. Faltou uma pitada a mais de aprofundamento, digna das genialidades do cineasta espanhol e do pai da psicanálise, para tornar a série uma obra absolutamente… fora de série. Mas como Boneca Russa faz uma reflexão sobre o contemporâneo, é provável que houve um cuidado para não “exagerar” na profundidade. Ainda assim, é um prato cheio para quem gosta de fugir da mesmice, sem ter que sair da poltrona. Uma das interessantes provocações é o tema da mãe (mais uma vez Freud), abordado de maneira muito peculiar. Ótimo programa para o dia das mães.
Natasha Lyonne, uma das criadoras da série, faz também o papel principal, além de escrever e dirigir alguns episódios. Conhecida como uma das protagonistas do grande elenco de Orange is The New Black, aprofunda-se agora na direção, produção e roteiro. Boneca Russa pode ser vista na Netflix.
April 25, 2022
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Um Cabo e um Soldado

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.
Um cabo e um soldado estão passeando em Brasília. Já subiram na Torre da Televisão e viram a cidade de cima. Não acharam parecida com um avião. Foram na catedral, acharam meio esquisita. Circularam pela esplanada dos três poderes que o presidente B planeja transformar na esplanada do poder único, e tiraram selfies. Mas na real, estão decepcionados com a capital do país. Imaginaram ela mais divertida. Entediados, pensam no que fazer.
— E se a gente fechasse o STF? — sugere o soldado.
— Boa! — anima-se o cabo, precisam mesmo de um pouco de ação. — Bora lá.
Dirigem-se ao prédio desenhado pelo Niemeyer, que projetou tanta coisa arrojada, tanto prédio fora da casinha, mas até ele ficaria espantado com o Brasil atual. Na entrada encontram-se dois engravatados com porte de seguranças.
— Pois não? — perguntam aos militares em licença.
— Aqui é o Superior Tribunal Federal? — devolvem a pergunta com outra. Uma manobra diversionista.
Os seguranças confirmam meneando a cabeça.
— A gente queria entrar.
— Sinto muito. Impossível.
— Impossível, como assim?
— O STF está fechado para visitações, devido à medidas sanitárias. Semana passada mesmo vieram dois deputados, um deles mais marombado do que a gente e que estava sendo julgado. O outro era o filho do presidente, aquele mesmo que falou que bastava um cabo e um soldado pra fechar o STF, lembram? Mas nem eles puderam entrar. Só os Juízes e advogados dos casos. E hoje, nem isso. Os ministros suspenderam tudo, se fecharam lá dentro, deliberando…
— Quer dizer que tá fechado?
Os seguranças confirmam, meneando as cabeças.
— Lacrado mesmo?
— Podes crer.
Os militares se entreolham desacorçoados. Chegaram tarde. Alguém se adiantou e fez o serviço por eles.
— E agora, o que a gente faz? — resmunga o cabo. O segurança, com peninha deles, sugere:
— Os deputados da semana passada, eles também ficaram com essas caras desenxabidas. Aí foram falar com o presidente, logo ali no Palácio do Planalto. Foram pedir uma graça.
— Uma graça?
— Uma graça presidencial.
Os valorosos soldados não fazem ideia do que seja isso, mas parece bem divertido.
— Ah, e será que lá a gente consegue entrar?
— Vocês são vacinados?
— Negativo.
— Usam máscara para entrar em locais fechados?
— Negativo!
— Fizeram exame para Covid?
— Negativo.
— Fizeram o exame e deu negativo, ou negativo para a pergunta se fizeram o exame?
— Negativo. Nem mortos a gente faz o exame.
— Então podem ir que vocês, lá, serão bem recebidos.
Enquanto isso, fechados no prédio da Justiça, os ministros seguem debatendo como reagir à nova afronta do presidente em forma da graça presidencial, ou seja, o indulto relâmpago ao deputado que eles recém haviam condenado após ter atacado o STF veementemente. Como se não bastasse, o Ministério da Defesa emitiu nota classificando como ofensa grave a fala do ministro do STF dizendo que as forças armadas estão sendo orientadas a desacreditar o processo eleitoral. Em meio ao caloroso debate, nenhum dos excelentíssimos faz a reflexão que não estariam sentados agora, com mais essa bomba nas mãos, se houvessem reagido à altura quando o filho do presidente (que ainda nem era filho do presidente) vaticinou que para fechar o STF nem precisava de um jipe, bastava mandar um cabo e um soldado.
Seguirá B ultrajando cada vez mais o STF, neste ano de eleições? Será esse mais um ensaio para o golpe, caso seja derrotado nas urnas? Seguirão o cabo e o soldado procurando diversão em Brasília? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
April 21, 2022
A Sombra de Stalin

Filme de Agnieszka Holland, Polônia, Ucrânia, Reino Unido 2019
Mr. Jones é o nome original de A Sombra de Stálin, da cineasta polonesa Agnieszka Holland. Seu protagonista é o jovem Gareth Jones, um talentoso linguista gaulês que chegou a trabalhar como conselheiro para assuntos internacionais de Lloyd George, ex-primeiro ministro britânico, e depois foi jornalista. Mr. Jones é também o nome do fazendeiro na alegoria política de George Orwell, A Revolução dos Bichos, que retrata como a revolução bolchevique acabou traindo seus princípios e sua razão de ser, por um projeto ditatorial totalitário de um de seus articuladores. Agnieszka cria uma ponte ficcional entre dois personagens reais, mas o encontro de Jones com Orwell e a influência dos seus relatos sobre o romance alegórico de George têm menor importância no filme que trata de duas grandes questões: a terrível fome imposta aos camponeses da União Soviética no início da década de 1930, principalmente aos ucranianos, e o jornalismo verdadeiro.
O filme tem alguns problemas de narrativa, principalmente a falha em esclarecer o processo que levou à Ucrânia ao desastre da fome: o programa quinquenal, a coletivização forçada dos camponeses e o valor da exportação do trigo para a industrialização da União Soviética. Há historiadores que apontam também uma intenção de dobrar o espírito nacionalista ucraniano, e que a fome não foi consequência desastrosa de uma política mal conduzida e sim o sucesso de uma política deliberada de extermínio e dominação. O filme, no entanto não entra nesta seara, embora esta seja a ponta do fio do novelo que leva à investigação de Jones, e opta por impactar através das terríveis cenas da fome e do esforço do governo bolchevique para escondê-la, prejudicando a solidez do roteiro que tampouco aprofunda no instigante personagem de seu protagonista.
Gareth Jones, que falava russo fluentemente, descobriu o que estava acontecendo em uma viagem à União Soviética, na qual driblou a proibição de acesso de jornalistas estrangeiros à Ucrânia. Foi o primeiro a denunciar com veemência no ocidente a fome causada pelo regime de Stalin, e sofreu por isso uma enorme campanha de descrédito, orquestrada pelo governo soviético, mas levada à cabo por jornais ocidentais através de seus correspondentes em Moscou. Essa relação entre jornalistas com um propósito político ou que barganham sua independência e o jornalismo que busca a verdade, está muito bem exposta no filme.
O filme foi gestado e rodado muito antes que se pudesse imaginar os acontecimentos atuais, a Guerra entre Rússia e Ucrânia. A União Soviética não existe mais, Stalin saiu faz tempo de cena e agora é Putin quem dá as cartas, mas o episódio conhecido como Holomodor (a grande fome, ou a fome-morte) entre os ucranianos, aprofunda a dimensão histórica do conflito entre as duas nações. A obra vale também pelo resgate de Gareth Jones que caiu no esquecimento, a não ser na Ucrânia, onde é lembrado como herói até os dias atuais. Mais sobre ele em https://www.garethjones.org/.
A Sombra de Stalin estreou no Festival de Berlim de 2019, foi premiado no Festival de Cinema Polonês do mesmo ano como melhor direção de arte e melhor filme. Pode ser assistido na Netflix.
April 14, 2022
Belfast

Filme de Kenneth Branagh, Reino Unido 2022
Agosto de 1969, um dia lindo de verão em Belfast, Irlanda do Norte. Buddy, um guri de nove anos, brinca nas ruas de seu bairro, em escaramuça com dragões imaginários, até ouvir um terrível barulho que precede uma horda furiosa de pessoas armadas de paus e pedras. Atônito, vê seu bairro se transformando, do nada, numa praça de guerra. Era o estouro de um conflito que ceifaria vidas por quase quarenta anos.
Março de 1920. O ator e diretor Kenneth Branagh passeia com seu cachorro nas ruas estranhamente silenciosas de Londres. Em função das restrições da Covid ele pode novamente ouvir os sons de pássaros, como na sua infância em Belfast há 50 anos. Essa lembrança sonora evoca outras memórias que ele percebe que estão presas, guardadas feito fantasmas num armário. Ele pensa que está na hora de lidar com elas, deixá-las sair. No dia 23 de março assiste na TV o primeiro ministro decretar lockdown na Inglaterra. Decide que neste período de confinamento irá desconfinar os fantasmas, escrevendo o roteiro de Belfast.
Belfast, Buddy observa a transformação do bairro numa praça de guerra.O filme não é estritamente autobiográfico, mas as memórias de Kenneth sedimentam fortemente a obra, principalmente o início impactante, o momento de ruptura do menino com a sua vida anterior, quando o parque de diversões que era seu bairro e a fortaleza protetora que era sua comunidade, viram caos. As lembranças de dias cinzentos predominantes, pelos raros momentos de sol, ditaram a opção por filmar em preto e branco as ruas que se fixaram monocromáticas em sua mente. O cinema e o teatro, no entanto, são coloridos, seus tons exuberantes contrastam com a realidade gris, refletindo o fascínio que exerciam sobre o garoto. Se as cenas de tumulto no início mostram um diretor virtuose na misancene e na elaboração de planos complexos, esses momentos mais íntimos revelam sutilezas, como o reflexo do filme colorido nos óculos da avó de Buddy em preto e branco. A avó, interpretada magistralmente por Judi Dench, protagoniza outro dos momentos impactantes, o final do filme. É uma cena intimista, muito diferente do alvoroço inicial, mas não menos arrepiante.
Belfast foi rodado no relaxamento do primeiro lockdown com um protocolo severo que tornava os dias de filmagens mais curtos, o que exigia decisões rápidas e uma grande disciplina no set. Com a experiência do diretor e um time de colaboradores talentosos na equipe e elenco (e uma boa dose de sorte, principalmente de dias bonitos nas externas), o filme foi rodado em 35 dias. Muitos o classificam como um filme coming of age (um filme de formação) no qual o protagonista passa pela transição de infância para a juventude, ou de adolescente para um jovem adulto. No entanto, apesar do protagonismo de Buddy, Branagh consegue inserir um olhar adulto nos dramas que os pais e avôs do menino enfrentam. É como se ao lado da perspectiva infantil surgisse um olhar em retrospecto de um adulto sobre si como criança; ao lado dos idealizados Ma e Pa, apresentam-se conflitos dolorosamente mundanos. O plano de abertura, uma Belfast atual, moderna e filmada em cores que antecede o mergulho no passado, já sugere essa dualidade de perspectivas. E isso confere ao filme uma dimensão dramática instigante. Falando em dualidade, há que se destacar outro momento alto de Belfast, a sequencia que interliga luto e celebração à vida, ao som de Everlasting Love. Nessa sequencia o diretor consegue evitar as armadilhas do adocicamento exagerado, presente em alguns momentos.
Belfast obteve vários prêmios, entre eles o prêmio BAFTA de melhor filme britânico, o Globo de Ouro e o Oscar para melhor roteiro original. É um filme para ser visto na grande tela dos cinemas.
April 7, 2022
The Falls

Filme de Chung Mong-hong, Taiwan 2021
O substantivo the falls tem duplo sentido. Significa as cachoeiras/cataratas, ou as quedas. Ambos significados têm tudo a ver com o filme. The Falls retrata uma jornada de uma adolescente e sua mãe. Uma jornada de inúmeros tropeços que resultam numa enorme queda. E num esforço maior ainda para tentar se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Um dos maiores atributos do filme é o uso das viradas. Não se trata das viradas clássicas de roteiro na trama ou de transformação do personagem, mas viradas no olhar do espectador, que julga estar acompanhando um determinado enredo e descobre, de repente, que as aparências enganam. Uma dessas “aparências enganosas” é a importância da Covid-19 para o contexto da filme. A Covid se encontra no pano de fundo, tem sua função na obra, mas a doença da qual o filme trata se revelará outra, bem diferente.
Mais uma característica marcante da obra é a delicadeza com que The Falls trata seus personagens, sem poupar-lhes das crueldades e dos tapas da vida, mas com uma sensibilidade ímpar na compreensão de seus conflitos. Essa delicadeza se expressa principalmente no trabalho de atores, em especial o das duas protagonistas Alyssa Chia e Gingle Wang. Em tom contido elas navegam por grandes dramas, torrentes turbulentas por baixo da superfície.
Chung Mong-hong, também conhecido como Nagao Nakashima, é um realizador que vem se destacando por seu estilo singular. Nessa grande sinfonia do fazer cinematográfico ele, além de reger a orquestra, toca os instrumentos de roteiro e direção de fotografia. É um cineasta de olho apurado, texto afinado e grande sinergia com seus atores. Dele é também o intrigante A Sun (2019), disponível na Netflix, assim como The Falls, ambos representando o cinema feito em Taiwan.
Trailer com legendas em inglês

