Jaime Lerner's Blog, page 18
May 12, 2022
A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Golpe

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.
O que antes era apenas um seguro, virou a principal estratégia para o presidente B manter-se no cargo: esculhambar com o processo eleitoral. Assim como planejou explodir bombas no quartel em 1986, em operação que chamou de beco sem saída (e que lhe rendeu ser saído do exército), planeja agora detonar as urnas eletrônicas.
A poucos meses do pleito, mesmo tendo distribuindo benesses ao Centrão, via orçamento secreto, e benesses à população, por meio do auxilio isso, auxilio aquilo, permanece atrás nas pesquisas. Ao que parece, não foi o suficiente para que o povo esquecesse as barbaridades do seu governo. O único jeito para se garantir de uma derrota é gritar lobo!!! No caso, fraude na apuração dos votos. E nisso aposta todas suas cartas. Para não parecer apenas papo de mau perdedor, ele grita antes de sair o resultado do pleito. Falou de fraude inclusive após ter sido eleito, dizendo que foi isso que o impediu de ganhar já no primeiro turno. Só que agora, como chefe da nação, colocou as forças armadas nesse jogo perigoso, com os militares questionando o Tribunal Superior Eleitoral sobre todo o processo. Com isso, o cheiro de golpe ficou insuportável.
Não é a primeira vez na história do Brasil que se alega fraude nas eleições para dar um golpe. Mas é a primeira vez que este golpe é aplicado pelo… próprio governo. É como se o CEO de uma multinacional de refrigerantes, por exemplo, declarasse que a fórmula do seu refrigerante não é confiável. E isso com o intuito de não perder o cargo! Só na Casa do Baralho. E falando em embaralhar, a estratégia tem outra grande vantagem: enquanto os militares acuam a justiça eleitoral com seus questionamentos e a justiça tenta contra-atacar, não sabendo bem como, não se fala mais da inflação, do desemprego, da pandemia, do meio ambiente, da educação, dos ataques aos indígenas, enfim, de todos os temas importantes que deveriam ser discutidos às vésperas da eleição.
Para piorar a situação, o candidato da oposição, que lidera as pesquisas, anda soltando umas “perolas” de quando em vez, só para manter a disputa em patamar de suspense.
Apesar do mau cheiro, a elite continua tapando discretamente o nariz, fingindo que ninguém empestou a sala. Isso pode se revelar uma grande cagada.
Até onde irá o exército no jogo do presidente? Até onde irá a PF no inquérito desse golpe? Até quando continuará a elite a tapar o nariz? E o mais importante, conseguirá o Brasil não sair derrotado desse próximo pleito? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho!
May 5, 2022
Boneca Russa

Série, duas temporadas, criação Leslie Headland, Natasha Lyonne, Amy Poheler – EUA, 2019/22
Finalmente estreou a segunda temporada de Boneca Russa, três anos após o lançamento da primeira. O início promissor e a curiosidade despertada pelo argumento excêntrico/ousado geraram grande expectativa, esticada demasiadamente pela Covid.
Na primeira temporada Nadia faz 36 anos. Ao sair da festa que celebra seu aniversário, na casa de sua melhor amiga, ela sofre um acidente e acaba morrendo. Desperta no banheiro da mesma casa, na mesma festa para tornar a morrer logo em seguida, até entender que está presa em um ciclo temporal que inicia nesse misterioso banheiro e culmina com sua morte. Nadia, que é programadora de games, tenta desesperadamente descobrir o bug que a está aprisionando. Nessa jornada detetivesca conhece Alan que sofre a mesma situação. Alan é uma espécie de antítese de Nadia, uma sarcástica nova-iroquina com visão cética sobre o mundo.

A segunda temporada, na qual Nádia completa quarenta anos, aumenta a dose de surrealismo, e nos leva para uma viagem ao passado que lembra muito Buñuel e Freud, com situações surrealistas que só o cinema oportuniza, inseridas na regressão psicanalítica. É uma combinação explosiva que a série articula muito bem na condução narrativa e na construção do inusitado, principalmente no entendimento da realidade que é transmitido ao espectador a conta gotas, como se revela aos protagonistas. Faltou uma pitada a mais de aprofundamento, digna das genialidades do cineasta espanhol e do pai da psicanálise, para tornar a série uma obra absolutamente… fora de série. Mas como Boneca Russa faz uma reflexão sobre o contemporâneo, é provável que houve um cuidado para não “exagerar” na profundidade. Ainda assim, é um prato cheio para quem gosta de fugir da mesmice, sem ter que sair da poltrona. Uma das interessantes provocações é o tema da mãe (mais uma vez Freud), abordado de maneira muito peculiar. Ótimo programa para o dia das mães.
Natasha Lyonne, uma das criadoras da série, faz também o papel principal, além de escrever e dirigir alguns episódios. Conhecida como uma das protagonistas do grande elenco de Orange is The New Black, aprofunda-se agora na direção, produção e roteiro. Boneca Russa pode ser vista na Netflix.
April 25, 2022
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Um Cabo e um Soldado

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.
Um cabo e um soldado estão passeando em Brasília. Já subiram na Torre da Televisão e viram a cidade de cima. Não acharam parecida com um avião. Foram na catedral, acharam meio esquisita. Circularam pela esplanada dos três poderes que o presidente B planeja transformar na esplanada do poder único, e tiraram selfies. Mas na real, estão decepcionados com a capital do país. Imaginaram ela mais divertida. Entediados, pensam no que fazer.
— E se a gente fechasse o STF? — sugere o soldado.
— Boa! — anima-se o cabo, precisam mesmo de um pouco de ação. — Bora lá.
Dirigem-se ao prédio desenhado pelo Niemeyer, que projetou tanta coisa arrojada, tanto prédio fora da casinha, mas até ele ficaria espantado com o Brasil atual. Na entrada encontram-se dois engravatados com porte de seguranças.
— Pois não? — perguntam aos militares em licença.
— Aqui é o Superior Tribunal Federal? — devolvem a pergunta com outra. Uma manobra diversionista.
Os seguranças confirmam meneando a cabeça.
— A gente queria entrar.
— Sinto muito. Impossível.
— Impossível, como assim?
— O STF está fechado para visitações, devido à medidas sanitárias. Semana passada mesmo vieram dois deputados, um deles mais marombado do que a gente e que estava sendo julgado. O outro era o filho do presidente, aquele mesmo que falou que bastava um cabo e um soldado pra fechar o STF, lembram? Mas nem eles puderam entrar. Só os Juízes e advogados dos casos. E hoje, nem isso. Os ministros suspenderam tudo, se fecharam lá dentro, deliberando…
— Quer dizer que tá fechado?
Os seguranças confirmam, meneando as cabeças.
— Lacrado mesmo?
— Podes crer.
Os militares se entreolham desacorçoados. Chegaram tarde. Alguém se adiantou e fez o serviço por eles.
— E agora, o que a gente faz? — resmunga o cabo. O segurança, com peninha deles, sugere:
— Os deputados da semana passada, eles também ficaram com essas caras desenxabidas. Aí foram falar com o presidente, logo ali no Palácio do Planalto. Foram pedir uma graça.
— Uma graça?
— Uma graça presidencial.
Os valorosos soldados não fazem ideia do que seja isso, mas parece bem divertido.
— Ah, e será que lá a gente consegue entrar?
— Vocês são vacinados?
— Negativo.
— Usam máscara para entrar em locais fechados?
— Negativo!
— Fizeram exame para Covid?
— Negativo.
— Fizeram o exame e deu negativo, ou negativo para a pergunta se fizeram o exame?
— Negativo. Nem mortos a gente faz o exame.
— Então podem ir que vocês, lá, serão bem recebidos.
Enquanto isso, fechados no prédio da Justiça, os ministros seguem debatendo como reagir à nova afronta do presidente em forma da graça presidencial, ou seja, o indulto relâmpago ao deputado que eles recém haviam condenado após ter atacado o STF veementemente. Como se não bastasse, o Ministério da Defesa emitiu nota classificando como ofensa grave a fala do ministro do STF dizendo que as forças armadas estão sendo orientadas a desacreditar o processo eleitoral. Em meio ao caloroso debate, nenhum dos excelentíssimos faz a reflexão que não estariam sentados agora, com mais essa bomba nas mãos, se houvessem reagido à altura quando o filho do presidente (que ainda nem era filho do presidente) vaticinou que para fechar o STF nem precisava de um jipe, bastava mandar um cabo e um soldado.
Seguirá B ultrajando cada vez mais o STF, neste ano de eleições? Será esse mais um ensaio para o golpe, caso seja derrotado nas urnas? Seguirão o cabo e o soldado procurando diversão em Brasília? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
April 21, 2022
A Sombra de Stalin

Filme de Agnieszka Holland, Polônia, Ucrânia, Reino Unido 2019
Mr. Jones é o nome original de A Sombra de Stálin, da cineasta polonesa Agnieszka Holland. Seu protagonista é o jovem Gareth Jones, um talentoso linguista gaulês que chegou a trabalhar como conselheiro para assuntos internacionais de Lloyd George, ex-primeiro ministro britânico, e depois foi jornalista. Mr. Jones é também o nome do fazendeiro na alegoria política de George Orwell, A Revolução dos Bichos, que retrata como a revolução bolchevique acabou traindo seus princípios e sua razão de ser, por um projeto ditatorial totalitário de um de seus articuladores. Agnieszka cria uma ponte ficcional entre dois personagens reais, mas o encontro de Jones com Orwell e a influência dos seus relatos sobre o romance alegórico de George têm menor importância no filme que trata de duas grandes questões: a terrível fome imposta aos camponeses da União Soviética no início da década de 1930, principalmente aos ucranianos, e o jornalismo verdadeiro.
O filme tem alguns problemas de narrativa, principalmente a falha em esclarecer o processo que levou à Ucrânia ao desastre da fome: o programa quinquenal, a coletivização forçada dos camponeses e o valor da exportação do trigo para a industrialização da União Soviética. Há historiadores que apontam também uma intenção de dobrar o espírito nacionalista ucraniano, e que a fome não foi consequência desastrosa de uma política mal conduzida e sim o sucesso de uma política deliberada de extermínio e dominação. O filme, no entanto não entra nesta seara, embora esta seja a ponta do fio do novelo que leva à investigação de Jones, e opta por impactar através das terríveis cenas da fome e do esforço do governo bolchevique para escondê-la, prejudicando a solidez do roteiro que tampouco aprofunda no instigante personagem de seu protagonista.
Gareth Jones, que falava russo fluentemente, descobriu o que estava acontecendo em uma viagem à União Soviética, na qual driblou a proibição de acesso de jornalistas estrangeiros à Ucrânia. Foi o primeiro a denunciar com veemência no ocidente a fome causada pelo regime de Stalin, e sofreu por isso uma enorme campanha de descrédito, orquestrada pelo governo soviético, mas levada à cabo por jornais ocidentais através de seus correspondentes em Moscou. Essa relação entre jornalistas com um propósito político ou que barganham sua independência e o jornalismo que busca a verdade, está muito bem exposta no filme.
O filme foi gestado e rodado muito antes que se pudesse imaginar os acontecimentos atuais, a Guerra entre Rússia e Ucrânia. A União Soviética não existe mais, Stalin saiu faz tempo de cena e agora é Putin quem dá as cartas, mas o episódio conhecido como Holomodor (a grande fome, ou a fome-morte) entre os ucranianos, aprofunda a dimensão histórica do conflito entre as duas nações. A obra vale também pelo resgate de Gareth Jones que caiu no esquecimento, a não ser na Ucrânia, onde é lembrado como herói até os dias atuais. Mais sobre ele em https://www.garethjones.org/.
A Sombra de Stalin estreou no Festival de Berlim de 2019, foi premiado no Festival de Cinema Polonês do mesmo ano como melhor direção de arte e melhor filme. Pode ser assistido na Netflix.
April 14, 2022
Belfast

Filme de Kenneth Branagh, Reino Unido 2022
Agosto de 1969, um dia lindo de verão em Belfast, Irlanda do Norte. Buddy, um guri de nove anos, brinca nas ruas de seu bairro, em escaramuça com dragões imaginários, até ouvir um terrível barulho que precede uma horda furiosa de pessoas armadas de paus e pedras. Atônito, vê seu bairro se transformando, do nada, numa praça de guerra. Era o estouro de um conflito que ceifaria vidas por quase quarenta anos.
Março de 1920. O ator e diretor Kenneth Branagh passeia com seu cachorro nas ruas estranhamente silenciosas de Londres. Em função das restrições da Covid ele pode novamente ouvir os sons de pássaros, como na sua infância em Belfast há 50 anos. Essa lembrança sonora evoca outras memórias que ele percebe que estão presas, guardadas feito fantasmas num armário. Ele pensa que está na hora de lidar com elas, deixá-las sair. No dia 23 de março assiste na TV o primeiro ministro decretar lockdown na Inglaterra. Decide que neste período de confinamento irá desconfinar os fantasmas, escrevendo o roteiro de Belfast.

O filme não é estritamente autobiográfico, mas as memórias de Kenneth sedimentam fortemente a obra, principalmente o início impactante, o momento de ruptura do menino com a sua vida anterior, quando o parque de diversões que era seu bairro e a fortaleza protetora que era sua comunidade, viram caos. As lembranças de dias cinzentos predominantes, pelos raros momentos de sol, ditaram a opção por filmar em preto e branco as ruas que se fixaram monocromáticas em sua mente. O cinema e o teatro, no entanto, são coloridos, seus tons exuberantes contrastam com a realidade gris, refletindo o fascínio que exerciam sobre o garoto. Se as cenas de tumulto no início mostram um diretor virtuose na misancene e na elaboração de planos complexos, esses momentos mais íntimos revelam sutilezas, como o reflexo do filme colorido nos óculos da avó de Buddy em preto e branco. A avó, interpretada magistralmente por Judi Dench, protagoniza outro dos momentos impactantes, o final do filme. É uma cena intimista, muito diferente do alvoroço inicial, mas não menos arrepiante.
Belfast foi rodado no relaxamento do primeiro lockdown com um protocolo severo que tornava os dias de filmagens mais curtos, o que exigia decisões rápidas e uma grande disciplina no set. Com a experiência do diretor e um time de colaboradores talentosos na equipe e elenco (e uma boa dose de sorte, principalmente de dias bonitos nas externas), o filme foi rodado em 35 dias. Muitos o classificam como um filme coming of age (um filme de formação) no qual o protagonista passa pela transição de infância para a juventude, ou de adolescente para um jovem adulto. No entanto, apesar do protagonismo de Buddy, Branagh consegue inserir um olhar adulto nos dramas que os pais e avôs do menino enfrentam. É como se ao lado da perspectiva infantil surgisse um olhar em retrospecto de um adulto sobre si como criança; ao lado dos idealizados Ma e Pa, apresentam-se conflitos dolorosamente mundanos. O plano de abertura, uma Belfast atual, moderna e filmada em cores que antecede o mergulho no passado, já sugere essa dualidade de perspectivas. E isso confere ao filme uma dimensão dramática instigante. Falando em dualidade, há que se destacar outro momento alto de Belfast, a sequencia que interliga luto e celebração à vida, ao som de Everlasting Love. Nessa sequencia o diretor consegue evitar as armadilhas do adocicamento exagerado, presente em alguns momentos.
Belfast obteve vários prêmios, entre eles o prêmio BAFTA de melhor filme britânico, o Globo de Ouro e o Oscar para melhor roteiro original. É um filme para ser visto na grande tela dos cinemas.
April 7, 2022
The Falls

Filme de Chung Mong-hong, Taiwan 2021
O substantivo the falls tem duplo sentido. Significa as cachoeiras/cataratas, ou as quedas. Ambos significados têm tudo a ver com o filme. The Falls retrata uma jornada de uma adolescente e sua mãe. Uma jornada de inúmeros tropeços que resultam numa enorme queda. E num esforço maior ainda para tentar se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Um dos maiores atributos do filme é o uso das viradas. Não se trata das viradas clássicas de roteiro na trama ou de transformação do personagem, mas viradas no olhar do espectador, que julga estar acompanhando um determinado enredo e descobre, de repente, que as aparências enganam. Uma dessas “aparências enganosas” é a importância da Covid-19 para o contexto da filme. A Covid se encontra no pano de fundo, tem sua função na obra, mas a doença da qual o filme trata se revelará outra, bem diferente.
Mais uma característica marcante da obra é a delicadeza com que The Falls trata seus personagens, sem poupar-lhes das crueldades e dos tapas da vida, mas com uma sensibilidade ímpar na compreensão de seus conflitos. Essa delicadeza se expressa principalmente no trabalho de atores, em especial o das duas protagonistas Alyssa Chia e Gingle Wang. Em tom contido elas navegam por grandes dramas, torrentes turbulentas por baixo da superfície.
Chung Mong-hong, também conhecido como Nagao Nakashima, é um realizador que vem se destacando por seu estilo singular. Nessa grande sinfonia do fazer cinematográfico ele, além de reger a orquestra, toca os instrumentos de roteiro e direção de fotografia. É um cineasta de olho apurado, texto afinado e grande sinergia com seus atores. Dele é também o intrigante A Sun (2019), disponível na Netflix, assim como The Falls, ambos representando o cinema feito em Taiwan.
Trailer com legendas em inglêsMarch 31, 2022
O Tapa na Cara do Oscar

O Oscar da convalescênça, cuja cerimônia voltou a ser transmitida quase nos moldes pré-pandemia, com os filmes da retomada após a Covid, será lembrado por um tapa.
Poderia ter sido marcado pela premiação, pela primeira vez, de um ator surdo e pelo magnífico discurso que fez ao receber a estatueta de melhor ator coadjuvante. Ou pela avalanche dos prêmios do filme CODA (no Brasil: No Ritmo do Coração), que traz no elenco vários atores e atrizes nessa condição. Poderia ficar marcado pelo aumento considerável de indicados negros e mulheres nas diversas categorias, e a premiação de Jane Campion na melhor direção. Ou pelas manifestações contra a invasão russa da Ucrânia. Mas todos esses momentos notáveis foram obscurecidos por um tapa que Will Smith deu em Chris Rock, quando este estava no palco apresentando o prêmio de melhor documentário de curta metragem e fez uma piada sobre Jada Pinkett, a mulher de Smith. Piada que nem seria tão ácida, em comparação às outras normalmente praticadas nessa cerimônia, não fosse a doença que a fez raspar os cabelos. A careca de Jada foi o alvo do comediante (que não sabia da doença).
Curiosamente, Will ganhou o prêmio de melhor ator, alguns minutos depois da cena bizarra, e misturou em seu discurso pedidos de desculpas e um choro pela emoção do prêmio e pelo episódio. Não chegou nem aos pés do discurso proferido na linguagem dos sinais de seu colega Troy Kotsur, premiado como ator coadjuvante, e que merecia naquela noite ser protagonista. O tapa de Will conseguiu roubar a cena de sua própria premiação, o único troféu de King Richard. Em outras palavras, a cerimônia do Oscar, que deveria ser uma celebração do cinema, especialmente em convalescênça da Covid, virou um episódio de Big Brother. E o entrevero todo, com as piadas tóxicas, o tapa e os palavrões proferidos após o tapa, e acima de tudo o fato de ter obscurecido todo o resto, mostra que o mundo ainda está bem doente. Haja divã.
March 24, 2022
Escondi Minha Voz

Livro de Parinoush Saniee – Irã, 2004
O romance mais surpreendente que li este ano, Escondi Minha Voz é simultaneamente um mergulho poderoso na alma humana e um olhar crítico sobre a sociedade. Num estilo discreto, sem grandes arroubos literários, Saniee dá voz a um menino de quatro anos que por algum motivo não consegue, ou não quer, falar. A narrativa dele é entremeada pela narrativa de outra personagem, também em primeira pessoa, sua mãe. A sensibilidade que Saniee revela ao entrar na mente (e nos corpos) de seus personagens, principalmente na do menino Shahab, e descrever processos psicológicos complexos através de pensamentos infantis, é arrebatadora. É uma escrita sofisticada com trajes simples, que envolve o leitor gradativamente, mas com enorme força, nos conflitos do menino. Na superfície desse oceano emocional, do lado de fora do casulo de Shahab, mas lançando ondas de grande impacto sobre seus mais profundos sentimentos, encontra-se a família, e num raio maior está a sociedade.
Com a mesma maestria que mergulha na psique de Shahab a autora retrata o Irã, com seus códigos sociais e suas leis morais que não toleram o diferente, o indivíduo que não anda estritamente da linha. Ali imperam a hierarquia patriarcal e a honra da família, que enfrentam uma resistência silenciosa mas contundente de mulheres que não se deixam curvar. Conscientes ou não, elas representam o feminino islâmico. Esse embate silencioso se dá entre as linhas do romance, nas relações familiares. Mas seu sentido mais amplo, sua conexão com o regime dos aitaloás é clara, ainda que não explícita. Por trás da família e da sociedade, quase nos bastidores, encontra-se o Estado opressor.
Saniee é psicóloga e socióloga, funcionária pública aposentada do Ministério do Trabalho iraniano. Sua experiência profissional é basilar na escrita de Escondi Minha Voz, mas acima desse conhecimento (e aliado a ele) paira um talento fabuloso para criar dramas envolventes, ficções que expressam verdades fundamentais.
Escondi Minha Voz foi lançado em 2004 e publicado no Brasil em 2017 pela Bertrand Brasil. Apesar de ser traduzida da tradução italiana e não diretamente do persa, a edição brasileira esbanja qualidade.
March 17, 2022
Guerra, Cultura e Cancelamento

Em 1917, a Rússia se retirava da Primeira Guerra Mundial. O regime do Tzar havia caído e os bolcheviques assumiram o poder. Eram contra o imperialismo e a guerra entre os povos. Sua luta era contra os nobres, os latifundiários e industriais que exploravam camponeses e operários. Seu esforço de guerra era focado em defender a revolução recém instaurada que ostentava, entre outras, a bandeira do pacifismo. Dois anos depois, o regime comunista soviético fazia sua primeira incursão de guerra invadindo a Polônia. O objetivo era levar a revolução comunista a outros países europeus, chegando à Alemanha. Nesta guerra, a Polônia teve o apoio de várias nações ocidentais e a participação efetiva da Ucrânia lutando ao seu lado. Ao final do conflito Lenin reconheceu a independência da Polônia, mas a Ucrânia foi anexada à União Soviética como a República Socialista Soviética da Ucrânia. Um dos destacamentos invasores, os cossacos da cavalaria vermelha, foi acompanhado por um comissário político que mais tarde escreveria o livro Contos da Cavalaria, apresentando a guerra de uma forma cruel e quase banal, despindo-a de toda aura de bravura e heroísmo que lhe conferiam outros obras. O autor, Isaac Babel tornar-se-ia um dos escritores mais promissores da União Soviética, até ser preso e assassinado por Stalin.
Um século e muitas reviravoltas depois, a invasão da Ucrânia pela Rússia encontra-se em sua terceira semana. O objetivo de Putin é derrubar o regime ucraniano atual e instaurar um governo fantoche, que distancie a Ucrânia de seus sonhos ocidentais e, principalmente, de aproximação com a OTAN. Ele chama isso de uma ação para desarmar e desnazificar o país vizinho. O contexto pode ser melhor entendido vendo o filme Winter on Fire. Assim como no caso da invasão da Polônia há cem anos, a Ucrânia conta com apoio de vários países ocidentais, que lhe fornecem armamentos e aplicam sanções econômicas contra a Rússia. Nesses tempos de redes sociais e extrema polarização junta-se às sanções econômicas um chamado para o boicote cultural. Algo que desvia um mecanismo de pressão não bélico para a xenofobia. Chegou-se ao absurdo de uma prestigiada universidade de Milão ter cancelado um curso sobre Dostoievsky (que após protestos foi devidamente descanelado). Em Florença houve pedidos que a Câmera Municipal retirasse a estatua desse mesmo autor, inaugurada há três meses para marcar o seu segundo centenário. Justo Dostoievsky que foi condenado à morte pelo regime do Tzar por ter lido em público uma carta à Gogol. Segundos antes da execução, já na praça de fuzilamento, chegou a ordem imperial de comutar a pena para prisão com trabalhos forçados. Apesar do susto, a vida do escritor foi poupada. Não foi o caso de Babel. Estes são apenas dois exemplos de artistas que foram severamente castigados por expressões contra ações e condutas ditatoriais. Hoje na Rússia há várias pessoas presas por protestar contra a guerra de Putin. Houve várias manifestações de artistas contra a invasão. Sem falar que há anos as obras de autores como Puschkin, Gogol, Tolstoi, Gorki, Tchekhov, Svetlana, Pasternak, Grossman, Bulgákov, além dos acima mencionados e muitos outros, tornaram-se um patrimônio da cultura universal.
Em outras palavras, um cancelamento da cultura russa é tão absurdo, tão impróprio e despropositado quanto à guerra que Putin resolveu protagonizar.
March 10, 2022
Onde Eu Moro

Filme de Pedro Kos e Jon Shenk– EUA 2021
Onde Eu Moro, título original: Lead me Home (encaminhe-me para casa), é um filme sobre a crescente crise dos sem-teto que assola as grandes cidades nos Estados Unidos. O tema cinzento, no entanto, é tratado com uma abordagem repleta de lirismo, algo que pouco se vê em documentários políticos/sociais.
A intenção dos realizadores era justamente humanizar o tema, dar voz e cara aos personagens que são vistos normalmente como marginais, viciados e/ou doentes mentais, como se eles fossem o problema e não suas vítimas. O filme apresenta vários personagens em três cidades, São Francisco, Los Angeles e Seatlle, com histórias diferentes, mostrando que há vários fatores que podem levar um indivíduo, ou uma família a perder sua casa e morar nas ruas.

Filmando da rua o interior de algumas casas, como quem espia através de janelas e cortinas pessoas escovando os dentes ou tomando o café da manhã, o documentário cria uma relação interessante entre a condição de ter ou não um lar, expressando o sentimento, o olhar dos sem-teto. Planos gerais das cidades, dos prédios modernos em construção contrastam com imagens das praças e locais onde acampam os sem-teto, contraste que sugere que há algo errado com o sistema, não com as pessoas que não têm onde morar.

A sensibilidade no trato dos personagens e na estética do filme (enquadramentos e montagem) marca toda a obra, confere a ela um tom poético. É provavelmente isso que a levou a ser um dos cinco finalistas indicados ao Oscar de melhor curta documentário. Embora concorra como curta, o filme tem 40 minutos (não há no Oscar categoria para média metragem) .
Pedro Kos, um dos diretores e montador do filme, é brasileiro, que vive desde os 12 anos nos Estados Unidos. Tem outros dois documentários como diretor e assina vários outros trabalhos como montador, entre eles Lixo Extraordinário de 2010. Onde Eu Moro pode ser visto na Netflix.