Jaime Lerner's Blog, page 15

January 19, 2023

A Inundação do Milênio

Série, direção de Jan Holoubek, Polônia 2022

Vinte e cinco anos após as trágicas enchentes que assolaram A República Tcheca, a Polônia e a Alemanha, a Netflix apresenta uma séria dramática que trata do fenômeno que foi batizado como a inundação do milênio. O diretor Jan Holoubek já havia usado o tema como pano de fundo de outra série dele, Rojst 97, em que as torrentes de água acabaram expondo um cemitério clandestino. A Inundação do Milênio foca nas enchentes na cidade de Breslávia e arredores e embora seja uma obra dramática, com personagens e tramas ficcionais, a calamidade é tratada com rigor documental. Não apenas pela fidelidade aos dados e autenticidade dos elementos cênicos da época, mas também pela extensa pesquisa que foi feita com moradores e suas histórias para inspirar as subtramas que compõem a grande tragédia.

Um dos grandes acertos da série é o de não seguir a estética de filmes de desastre hollywoodianos. Holoubek não espetaculariza o fenômeno climático, exibindo cenas de ação e pânico reforçadas por efeitos sonoros e trilha exacerbadamente dramática. Ao contrário, constrói a tensão do que está para vir em quatro dos seis episódios, e inunda Breslávia de fato, só nos dois últimos episódios. Para ele é mais importante mostrar como se deu a tragédia, qual parcela dela é desastre natural, qual a parcela humana. Nesse processo, a obra cria quase que um tratado social sobre o individualismo e o coletivismo, sobre a solidariedade e o egoísmo e sobre a relação cidadãos, políticos e militares numa Polônia que há pouco deixou de ser comunista no regime, mas não na mentalidade da burocracia estatal. 

Agnieszka Zulewska interpretando a cientista Jasmina Tremer

É curioso que a grande causadora da inundação, a chuva intensa, não aparece na série. A trama inicia em maio de 1997 com um fax alarmante de uma cientista, advertência que é ignorada pelas autoridades, mais preocupadas com a iminente visita do Papa, ainda mais que estão em plena época de seca. A série pula seis semanas para 9 de julho, um dia após as fortes chuvas de cinco dias que caíram na região. Essas chuvas apenas são mencionadas em um comentário que elogia o papa, como ficou estoicamente abençoando o povo sob o aguaceiro. Esses três dias que antecedem a grande inundação (9-12 de julho) são portanto dias ensolarados, cujo clima contrasta com a tensão das águas que sorrateiramente sobem os níveis dos rios e represas e em breve deixarão 40% da cidade submersa.

Neste 9 de julho, Jasmina Tremer, interpretada por Agnieszka Zulewska,  a hidróloga que mandou o fax de advertência em maio, é trazida às pressas para a cidade para tentar evitar o pior. Enquanto ela tenta desempenhar esse papel da melhor maneira possível, tem que encarar também o drama pessoal que a fez sair da cidade há mais de quinze anos.

Vale destacar os efeitos digitais que criam a cidade submersa, com uma mescla interessante de imagens documentais da época e a estética ocre esverdeada que dá o tom à série, passando a percepção do clima naqueles anos na sociedade polonesa. A Inundação do Milênio pode ser vista na Netflix.

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Published on January 19, 2023 04:10

January 9, 2023

A  Casa do Baralho –  temporada 3, ep. 1: As Quatro Linhas

Neste segundo domingo do ano, os fãs da Casa do Baralho ficaram perplexos com um fenômeno jamais antes conhecido na história das séries: a temporada que findou se recusa a ir embora e invade violentamente o primeiro episódio da nova temporada. Já houve séries canceladas repentinamente, algumas inclusive em plena temporada, mas algo assim é chocantemente inédito no universo serial. Se os espectadores ficaram atônitos, imagine os roteiristas da série, pensando no primeiro episódio e sendo atropelados pelas tramas e protagonistas da temporada finada. E se os roteiristas da série ficaram pasmados, imagine os protagonistas da nova temporada que arregaçavam as mangas para um hercúleo trabalho de reconstruir o país e tiveram que interromper suas ações para trocar as vidraças estilhaçadas dos três poderes.

O ex-presidente B, que fugiu para os Estados Unidos poucos dias antes da posse do presidente L, ou seja, quando ainda era mandatário da nação, apareceu em um supermercado de Orlando, verificando as gôndolas e fazendo um discreto sinal positivo para a câmera com o polegar. No Brasil, seus militantes aloprados, ainda acampados na frente dos quartéis, interpretaram isso como uma senha. A senha para acumularem mantimentos e invadirem a praça dos três poderes, vandalizando suas instituições. Novamente a Casa do Baralho se viu frente a um ato golpista, como os vários que tencionaram a derradeira temporada. Ato que contou com  apoio logístico de “empresários” e o conluio de autoridades da capital. O recém empossado Secretário da Segurança de Brasília, por exemplo, que antes era ministro  da justiça de B, encontrava-se no dia do ato em viagem de férias em…Orlando.

B, após ser citado pelo presidente L, apressou-se a emitir um comunicado, condenando a violência, naquele estilo duplo sentido que lhe é tão peculiar. Recusou qualquer ligação com o ato e usou pela milésima vez a frase: eu sempre atuei dentro das 4 linhas da constituição. Uma esdrúxula metáfora roubada do universo futebolístico.  Para ele, realmente, a Constituição tem apenas quatro linhas:

1. Sou o comandante em chefe das forças armadas.

2. Elas podem atuar como um “moderador” entre os três poderes da republica.

3. Qualquer resultado diferente de uma vitória minha nas urnas é prova de fraude.

4. A família acima de tudo e minhas hemorroidas acima de todos.

Enquanto B segue a sua carta magna na Disneylândia, o presidente L tem que entender que para seguir dando as cartas na Casa do Baralho, além de costurar com o congresso e não deixar nervoso o mercado, vai ter que se livrar dessa herança maldita da temporada passada. Sozinha, ela não vai embora. E para lidar com essa turba bem financiada e organizada, terá que usar maior inteligência do que seus ministros da Justiça e da Defesa vem demonstrando até agora.

Conseguirá a terceira temporada deslanchar sem ser refém da segunda? Logrará o presidente L dançar em tantos casamentos e ainda proteger a sua retaguarda? Não perca nos próximos episódios da nova temporada de A Casa do Baralho.

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Published on January 09, 2023 07:13

January 5, 2023

Adeus 2022

O ano de 2022 se foi e nada melhor para curar a ressaca do que ver ou rever, ler e reler algumas das melhores obras em literatura e audiovisual. Abaixo alguns destaques de filmes/séries e livros que curti no ano passado comentados aqui no blog. Para ler as resenhas completas basta clicar nos respectivos links.

filmes

O ano encerrou em grande estilo com dois lançamentos de peso: Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades de Alejandro Iñárritu que voltou a fazer um filme mexicano depois de 20 anos de carreira internacional;  Nada de Novo no Front do alemão Edward Berger, adaptação do clássico romance de Erich Maria Remarque de 1928. Estes para mim foram os pesos pesados entre os filmes que vi.

Destaques também para o indiano RRR de S.S. Rajamouli; o irlandês Belfast do ator/diretor Kenneth Branaghepara o documentário norte americano Onde eu Moro de Pedro Kos e Jon Schenk. Entre os brasileiros que vi este ano gostei muito de Valentina de Cássio Pereira Santos. Os últimos dois filmes são de 2021 e 2020 respectivamente, mas foram vistos por mim em 2022.

Séries

Neste ano foi exibida a sexta e última temporada de Peaky Blinders, deixando gancho ainda para um filme de longa metragem para encerrar a saga dos Shelby. Foi lançada também a penúltima temporada de The Crown, concomitante com o falecimento da Rainha Elizabeth. Ambas as séries são britânicas. Destaco também a norte americana MO do comediante de origem palestina Mohammed Amer e a espanhola Intimidade, além de O Homem do Castelo Alto, baseado no romance de Philip K. Dick.

Livros

No universo das letras, as obras que mais me impactaram neste ano foram lançadas em anos anteriores. Os absolutamente maravilhosos Pequim em Coma de Ma Jian, escritor chinês que vive há alguns anos na Inglaterra e Escondi Minha Voz da Iraniana Parinoush Saniee. E os brasileiros Marrom e Amarelo de Paulo Scott que chegou este ano à semifinal do prestigiado Prêmio Booker Internacional e Banzeiro Òkòtó, uma viagem dolorosa e delirante pela realidade amazônica, de Eliane Brum.

Estas são minhas dicas para se despedir de 2022. Os filmes e séries podem ser vistos na Netflix ou na Amazon Prime. Que 2023 traga obras inspiradoras, que nos arrebatem o coração.

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Published on January 05, 2023 05:35

December 29, 2022

Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades

Filme de Alejandro Iñárritu, México – 2022

Se você é fã de Genesis. A Genesis do rock progressivo, da era Peter Gabriel, de Foxtrot e de The Lamb Lies Down on Broadway, etc., você não pode perder esse filme. Não, o filme não é sobre a banda, nem é sobre música, mas o diretor, que também já compôs trilhas, faz uma coisa surreal com a abertura de The Cage de Genesis, e depois fará o mesmo truque com Let´s Dance cantada por Bowie. É a gravação original (faltando um “pequeno” detalhe), mas é outra música. Surreal é o adjetivo certo para Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades. Uma obra que parece, inicialmente, uma exibição de virtuosismo do diretor em alinhavar planos complexos  e situações inusitadas, e que se revela, na medida que o filme avança e nos segura atentos, tentando juntar as peças do quebra-cabeças em algum sentido, uma obra profunda, cinema que impacta esteticamente e racionalmente. Pode se  dizer que são dois filmes: o que a gente assiste pela primeira vez e tenta entender; aquele que acabamos de ver, conhecemos o desfecho e com esse conhecimento, as cenas e situações ganham luz diferente. Essa dupla fruição do mesmo filme se dá graças a uma narrativa (incluindo o roteiro) super inteligente e meticulosa. Ganham sentido também a utilização de grandes planos sequencia e principalmente o uso e abuso de lente grande angular que causa um distanciamento, como alguém que está assistindo as cenas do lado de fora e vê a si mesmo. Ganha sentido especial a deslumbrante e intrigante cena inicial.

Inãrritu teve seu talento reconhecido desde seu longa de estreia, Amores Perros (2000) que também revelou para o mundo o ator Gael García Bernal. Dali em diante o diretor partiu para uma carreira em Hollywood, logo ali, ao norte. As questões de identidade, de fronteiras e ambivalência entre primeiro e terceiro mundo que ele encarou ao longos desses vinte anos, são carregadas sobre os ombros do protagonista de Bardo, Silverio Gacho, jornalista que virou documentarista e vive há duas décadas nos EUA, mas com suas reportagens e filmes se considera um cidadão do mundo. Gacho, às vésperas de receber um importante prêmio do sindicato de jornalistas dos EUA, vai revisitar o México com sua mulher e filhos. Esse breve retorno revela-se muito mais do que um deslocamento geográfico. É uma viagem no tempo e no espaço, do inconsciente para fora e vice versa.

Essa obra de primor cinematográfico foi filmada em grande formato (IMAX), mas para quem não viu no cinema (foi lançada no Brasil em novembro), está disponível na Netflix. Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades certamente irá disputar algumas estatuetas no Oscar 2023.

Neste último post de 2022, Blog do Lerner deseja a todos um ótimo ano, repleto de bons filmes, livros e séries para desfrutarmos com saúde e paz.

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Published on December 29, 2022 06:12

December 22, 2022

A Casa do Baralho, episódio final: BolsoNero

Uma dos grandes símbolos do poder desvairado, do despotismo desenfreado, é a imagem do imperador Nero no ano 64 DC, tocando a sua lira enquanto contempla Roma arder em chamas. Historiadores da época afirmam que ele próprio mandou atear fogo na cidade para  culpar os cristãos que não reconheciam a divindade do imperador. Outra tese é que ele sentiu que precisava de um  fogo grandioso como inspiração para compor um poema.

Quase dois mil anos depois, temos no Brasil uma versão pocket desse ditador, um Nero de bolso. Não parece tão louco, nem tem tanto poder como tinha o outro (graças à Deus!) e jamais se atreveria a compor um poema. Mas nem por isso é menos perigoso. Com a derrota nas eleições se recolheu ao Palácio da Alvorada, tão deprimido que nem conseguia vestir as calças. E caiu em profundo silêncio. Isso externamente. Internamente, mesmo deprimido, invocou seus aliados para incitarem militantes a incendiar o Brasil, protestando contra a sua derrota. A ideia era tacar fogo e depois chamar o exército no papel de bombeiro para garantir a sua permanência no poder, incinerando, de vez, a democracia.

No começo parecia que o negócio ia dar certo. Estradas foram bloqueadas e turbas exaltadas acendiam pneus, carros e outros combustíveis. Ninguém mencionava o presidente, para não poderem acusá-lo de incitação. Era um protesto popular inorganizado, brotando simultaneamente em todo o país, uma combustão espontânea.

O circo  pegando fogo, só faltava o Nero de bolso tocar a lira. Foi então que ele descobriu que a lira (ou mais precisamente, o Lira) já estava negociando com o presidente eleito. E não era só a lira. Outro instrumento muito importante desafinou na hora H: o exército. Este tentou jogar para os dois lados, mas no fim deixou claro que não faria o papel de “bombeiro” nessa farsa. O presidente derrotado convocou então os ministros do STF, aqueles que ele pretendia culpar pelo incêndio, assim como Nero culparia os cristãos, para negociar a blindagem de suas hemorroidas. Estava convencido que defenestrado do poder acabaria preso. E na prisão, sabia ele, cu não tem dono. Os ministros do STF se recusaram a ir até o palácio. Que venha ele à Canossa, retrucaram. BolsoNero, então, finalmente botou as calças e se dirigiu ao judiciário, onde teve que fazer um pronunciamento. Foi uma fala ambivalente, não admitindo explicitamente a derrota, mas determinando o início da  transição entre os dois governos, o que botou água na fervura dos incendiários.

Já que estava novamente de calças tentou voltar ao trabalho, ou seja, abrilhantar com sua presença cerimônias de formação de cadetes. Mas volta e meia rompia em choro. Tendo a lira desafinado em suas mãos, trocou-a pelo Neto, o presidente do seu partido. Este respondeu ao dedilhar, mas como consequência, rompeu as cordas e foi inutilizado.

O presidente vê os dias passarem e o fim do ano, que é também o fim do seu mandato, se aproximar. Viu seu próprio filho tirar férias no Catar curtindo a copa, com o pretexto de que foi para lá distribuir pen drives para autoridades mundiais. Um dia ouviu o potente motor de um caminhão e achou que era um amigo caminhoneiro, quiçá Zé Trovão, vindo buscá-lo para um protesto, mas era um caminhão de mudanças que chegava para recolher as primeiras tralhas presidenciais. Isso aprofundou mais ainda a depressão. Seus aliados mais próximos segredaram que temem pelo futuro de sua sanidade mental. Pena que não temiam a sua insanidade enquanto ele governava o Brasil.

Qual será o recurso derradeiro de B? Terá o mesmo destino do Imperador Romano? Cometerá o em breve ex-presidente uma grande loucura? Não perca na próxima temporada de A Casa do Baralho.

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Published on December 22, 2022 05:56

December 15, 2022

Nada de Novo no Front

Filme de Edward Berger – Alemanha, 2022

Filmes de Guerra é um assunto cabeludo. A guerra é um prato cheio para o cineasta. Os conflitos dramáticos são literalmente uma questão de vida ou morte; o movimento – um dos grandes motores da sétima arte, é super potencializado pela ação das tropas e dos combates. Além disso, a guerra é o cenário perfeito para apresentar heróis e vilões, cenas de camaradagem e de violência, efeitos especiais e planos espetaculares.

Há filmes de guerra que se contentam com o básico: a ação e o conflito primário das batalhas, embalados em uma história de sobrevivência. Há filmes que se colocam desafios estéticos como 1917, O Resgate do Soldado Ryan e Reparação. Há os que questionam a guerra, no discurso verbal, mas fazem apologia a ela através da linguagem cinematográfica, como Apocalipse Now e Platoon. E há filmes de guerra que são verdadeiramente pacifistas como Além da Linha Vermelha e Nada do Novo no Front.

Na verdade é muito difícil fazer um filme de guerra verdadeiramente pacifista. O cinema pode chocar o espectador com a crueldade da guerra, transmitir o medo e a tensão. Mas a armadilha de cenas grandiosas, das manifestações de bravura e camaradagem, do espetáculo, enfim, que vangloria essa explosão de violência (ainda que num nível mais profundo do inconsciente) está sempre a espreita.

Nada de Novo No Front dribla essa armadilha com louvor. Há nele cenas grandiosas de combate, manifestações de ternura e camaradagem, mas essas, como todo o resto, escancaram a brutal inutilidade da guerra, da estupidez do conflito armado e do pensamento militarizado que alimenta, sempre, este conflito. Como ele faz isso? Em primeiro lugar, a obra acompanha uma turma de colegiais que decide se alistar, orgulhosos e impulsionados pelo espírito nacionalista, presente desde o colégio. Um deles, Paul, o protagonista, inclusive falsifica a assinatura dos pais que não querem que ele se aliste. A transformação que ocorre em Paul e seus amigos, de jovens sedentos de aventuras no alistamento para recrutas apavorados no campo de batalha e soldados trapos humanos nas trincheiras, expõe as vísceras da insanidade da guerra, despe-a de qualquer manto heroico. Esse processo de desumanização é expresso através de um trabalho de atores magistral, de direção de arte, luz e maquiagem fenomenais. E de um trilha sonora genial. Paralelo à absurda luta de trincheiras, o filme traz os bastidores das negociações para terminar a guerra, e expõe o espírito militarista prussiano que colocou a Alemanha nesse caminho e que, com a iminente derrota, “abandona” o poder, faz o kaiser abdicar para que os políticos, tão desprezados por eles, assinem o tratado da paz, que nada mais é que uma humilhante rendição.

O filme é absolutamente fiel, no espírito pacifista e no esmiuçar árido do processo de desumanização, ao livro homônimo de Erich Maria Remarque. Este romance foi um dos pioneiros da literatura pacifista que aflorou após a Primeira Guerra Mundial e tornou-se um clássico. Erich Maria, assim como Paul, deixou os bancos escolares para se alistar orgulhoso e enfrentar a mais insana das invenções humanas: a guerra. Foi ferido três vezes e sobreviveu a essa insanidade. Cinco anos depois da publicação de Nada de Novo no Front, sucesso imediato na Alemanha e no exterior, Hitler tomou o poder. Remarque, na véspera, mudou-se para Suíça. Seu livro antimilitarista foi, obviamente, banido pelos nazistas. Nada de Novo no Front – o filme, é a terceira adaptação do livro para cinema, a primeira de um cineasta alemão. Este grandiosa obra pode ser vista na Netflix.

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Published on December 15, 2022 06:08

December 8, 2022

O Amante de Lady Chatterley

Livro de DH Lawrence, Inglaterra 1928 + Filme de Laure de Clermont-Tonnerre, 2022

“Nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a vê-la tragicamente. O cataclismo já aconteceu e nos encontramos em meio às ruínas, começando a construir novos pequenos habitats, a adquirir novas pequenas esperanças.”

Assim começa um dos romances mais polêmicos do século passado, banido em vários países e permitido para publicação na Inglaterra, seu país de origem, somente em 1960. O escândalo em torno da obra, classificada por muitos na época como obscena, eclipsou as temáticas nela abordadas: a hipocrisia da sociedade pós-victoriana, a tentativa de reconstrução de um novo mundo  após a calamidade da Primeira Guerra Mundial e a eterna  luta pela relação de poder entre homens e mulheres. Não era o primeiro livro que criava um romance tórrido (e proibido)  entre uma nobre e um plebeu, mas a descrição explícita dos encontros carnais entre os amantes, a carga erótica que deixava de lado eufemismos tão comuns à época, alvorotou os guardiões da moral e dos bons costumes.

Noventa anos depois a obra ganha uma adaptação para o cinema, dirigida por uma mulher. A cineasta francesa Laure de Clermont-Tonnerre. O tema e a história de amor proibido são datados (ninguém hoje em dia sabe o que seria um guarda-caça), mas Laure explora a obra para fazer um tratado estético sobre a paixão. Essa é a maior qualidade do filme, a orquestração das imagens, misancene, trabalho de atores e trilha para tratar de sensualidade, amor e natureza, temas que também eram caros e interligados na visão de Lawrence, filho de um mineiro, que galgou os degraus da sociedade e casou com uma nobre de origem alemã, com quem teve uma relação bem distante da convencional.

Protagoniza o filme Emma Corin como Connie Reid, ou Lady Chatterley. Corin recentemente fez o papel de Lady D, no seriado The Crown. Jack O´Connell interpreta o amante, Oliver Mellors. E no papel do marido, Clifford Chatterley, Matthew Duckett.

O filme pode ser visto na Netflix. Quanto ao livro, recomendo o que tem a introdução de Doris Lessing (clique abaixo) e a terceira versão do romance, reescrita pelo autor pouco antes de morrer.

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Published on December 08, 2022 06:57

December 1, 2022

O Árabe do Futuro

Romance Gráfico de Riad Sattouf, França 2014- 2022

Desde a Idade Média o Oriente Médio e o Ocidente vêm travando um dos maiores choques culturais da civilização. Protagonizado, inicialmente, por duas religiões derivadas do judaísmo –  o cristianismo e o islã – esse choque vai muito além da religião e da fé.

Riad Sattouf, é um dos “produtos” desse encontro. Filho de pai sírio e mãe francesa, Riad cresceu testemunhando, ou melhor, sentindo na própria pele como as diferenças culturais podem corroer o amor de um casal que parecia alheio a essas diferenças. Sua infância foi passada intercalando paisagens de Paris, Líbia, Síria, e da Bretanha, idiomas como o Árabe e o Frances e, acima de tudo, preconceitos dos habitantes dessas paisagens. Riad narra essa experiência numa série de histórias em quadrinhos O Árabe do Futuro – Uma Juventude no Oriente Médio em 5 volumes que cobrem desde o seu nascimento (1978) até sua adolescência (1994) e um sexto volume que vai de 1994 a 2011.

Os desenhos têm um traço simples e são monocromáticos,  recheados de indicações textuais em setas, como se fossem desenhos infantis. Isso ajuda a colocar o leitor no lugar do protagonista já nos primeiros volumes. A narrativa tem duas grandes qualidades: o humor e a sinceridade. Ambas estão inseridas num olhar que é ao mesmo tempo infantil e maduro, de uma observação profunda. Riad trata seus pais, avós, e a si mesmo, todos os personagens, enfim, como seres humanos, repletos de  fraquezas e dúvidas, ocultas muitas vezes por fortes convicções. É interessante também como o arco dos personagens é construído ao longo de todos esses anos, principalmente o arco dramático do pai e  a mudança de percepção do menino sobre ele. Pode-se dizer que O Árabe do Futuro é um romance gráfico de formação, uma autobiografia permeada pelo mais longevo choque cultural na recente história da humanidade. Pode-se dizer também que a obra é uma espécie de DR entre pai e filho. Um pai que já havia falecido quando foi publicado o primeiro volume.

No Brasil, O Árabe do Futuro é publicado pela Intrínseca, que traduziu apenas quatro dos seis volumes da série. Esperamos que o quinto seja rapidamente publicado (saiu na França em 2020) e em seguida venha o sexto e derradeiro. Riad, além dessa série sensacional é autor de outras obras em quadrinhos e diretor do filme Les Beaux Gosses de 2009.

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Published on December 01, 2022 05:42

November 24, 2022

The Crown

Série – 5 temporadas, criação de Peter Morgan – Reino Unido 2016-2022

A Rainha Elizabeth II faleceu aos 96 anos em setembro de 2022, dois meses antes da estreia da quinta temporada da série em que é personagem principal. Não, não é uma série documental, nem  de cunho biográfico. É uma obra dramática que reflete sobre o papel da monarquia na era moderna, que vai do pós guerra mundial até o fim do século XX, época que coincide com o reinado de Elizabeth. Cada temporada tem dez episódios e cobre mais ou menos uma década. O que significa uma troca de atores para os papeis principais a cada duas temporadas.

Nesse meio século que a obra cobre ela mantém um alto nível na direção de arte e no trabalho das atrizes e (um pouco menos) dos atores. No  entanto há momentos de altos e baixos no roteiro e principalmente na tentativa de passar o significado da realeza para o povo britânico. Quando a série levanta o questionamento se há sentido manter a instituição monárquica em tempos modernos, ela faz isso muito bem. Quando trata de apresentar o contraponto, ou seja transmitir que apesar dos apesares, uma figura como a rainha Elisabeth tem um papel preponderante como elemento de união acima de diferenças políticas/culturais, ela já não é tão convincente. Há também uma variação na profundidade do enredo que migra entre situações dramáticas complexas e episódios que tratam do escândalo pelo escândalo, quase no estilo dos famosos tabloides britânicos.

Para mim, os pontos altos do drama encontram-se na primeira temporada, que aborda todo o contexto de Elisabeth assumindo o trono, muito jovem; na quarta temporada, em que Tatcher é a primeira ministra e a relação entre as duas líderes mulheres entra em descompasso;  e na quinta temporada, quando Lady Diana e seu casamento falido roubam a cena, escancarando o peso de carregar uma coroa, ou de estar próximo a quem a carrega. Essa temporada mostra também como uma instituição de alto prestígio como a BBC pode derrocar para um comportamento de tabloide. O que aprofunda ainda mais o questionamento sobre instituições com  “credibilidade acima de qualquer suspeita”.

Haverá ainda uma sexta e última temporada. As filmagens foram interrompidas por uma semana quando a monarca faleceu e deve estreiar no final de 2023. Você pode ver as cinco temporadas de The Crown na Netflix.

Veja o trailer da 5a temporada

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Published on November 24, 2022 05:47

November 17, 2022

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Patriotas do Iraque

Advertência: essa é uma obra de fricção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.

No penúltimo mês de 2022 o Brasil enfrenta um enorme problema. Não, não se trata do abandono do cargo pelo Presidente da República que após perder a eleição se trancou no banheiro do Palácio da Alvorada e de lá não sai mais; nem tampouco da ameaça de uma nova variante da Omicron oriunda da Amazônia. Em poucos dias começa a Copa do Mundo no Catar e o grande desafio é o seguinte: como distinguir entre os fãs da seleção que ocuparão as ruas do país e os desocupados que ocuparam as praças dos quartéis pedindo por  intervenção militar. Não aceitam o fato que o candidato em quem votaram perdeu a eleição e querem que ele governe por força das baionetas, transformando o país numa mitocracia. Curiosamente,  autodefinem-se como patriotas e proclamam que o seu partido é o Brasil.

Para complicar ainda mais, o uniforme escolhido desses patriotas de araque é a camisa verde amarela da seleção, combinando com uma bandeira brasileira pendurada no pescoço feito capa do zorro, ou poncho de gaúcho. Assim, ao ver um grupo irado, xingando e protestando, o cidadão comum, ou mesmo o policial, não saberá se são os fãs do futebol reclamando do Tite após uma derrota, ou os membros da mais nova seita messiânica soltando cobras e lagartos contra o comunismo ou contra os ministros do STF. E se porventura o grupo exaltado estiver cantando e dançando, a dúvida permanece. Serão torcedores da Brazuca comemorando uma vitória, quiçá uma classificação? Ou lunáticos negacionistas após verem um contêiner entrando no quartel, achando que são os fuzis para a tão ansiada intervenção? O agente da lei, por exemplo, não saberá se vai poder reprimir a manifestação usando de toda sua autoridade, ou pedir por favor que baixem o volume.

Outro grande dilema envolve os torcedores que não são terraplanistas, inclusive votaram no Presidente L, ou em outros candidatos e não querem ser confundidos com os patriotas de araque. Como proceder? Devem abandonar a amarelinha que sempre simbolizou a seleção? Devem colocar uma fita vermelha como braçadeira identificadora? Devem carregar uma faixa com os dizeres Brazil was NOT stolen?

E os próprios revolucionários mitocráticos que também são fanáticos pelo maior torneio do planeta? Como saberão se estão cantando, orando, bufando, chorando em função do futebol, ou pela derrota do Imbrochável? Como irão garantir que na hora da comemoração de um gol, alguém não tome sorrateiramente  a faixa do presidente para entregá-la aos comunistas? E se o Brasil perder na final, devem alegar fraude e pedir intervenção militar na Fifa? É de fato um dilema de proporções labirínticas.

E falando no Imbrochável, é ele sem dúvida o maior perdido nesse emaranhado górdio. Em primeiro lugar, a murchada que sofreu após o resultado proclamado coloca em dúvida sua infalibilidade, o que compromete a tese de que houve fraude nas eleições sustentada pela premissa que seria impossível um mito, ainda mais imbrochável, ser derrotado. Porém, seu grande dilema é outro. Se o Brasil ganhar a taça, deverá ele voltar à ativa, nem que por uns instantes, abandonar o abandono do cargo, só para receber os campões? Não, será muito dolorido. Ainda mais que a copa deveria ocorrer em agosto, antes das eleições, e foi excepcionalmente adiada para novembro. Se o Brasil ganhasse com ele ainda no poder e disputando o pleito, certamente seria reeleito e hoje não estaria vivendo esta humilhação. Por outro lado, se levasse mais um 7×1…

A solução de bom senso para todas esses problemas seria separar claramente entre as coisas: a eleição acabou, patriotas de araque voltam para a casa, agora as ruas são da copa.

Mas será que o bom senso não virou démodé em nossa pátria amada? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on November 17, 2022 07:06