Jaime Lerner's Blog, page 20
January 20, 2022
Valentina

Filme de Cássio Pereira dos Santos – Brasil, 2020
Valentina é o longa de estreia de boa parte de sua equipe e elenco, a começar pelo diretor e pela atriz protagonista. É um filme de baixo orçamento, contemplado no edital do Ministério da Cultura para longa B.O de 2016, último ano em que houve esse edital. Foi rodado todo no interior de Minas Gerais. Não é um filme de planos espetaculares, trama complexa ou linguagem inovadora, mas é uma obra que cativa desde o primeiro fotograma.
Quais são os elementos que a tornam tão cativante? A simplicidade, o tom naturalista e discreto da interpretação que aproxima dos personagens; a delicadeza na abrodagem do tema e do universo adolescente e trans; e acima de tudo, o carisma da atriz principal e por consequência da protagonista. Thiessa Woinbackk encarna Valentina com uma verdade, com imensa autenticidade, e com um charme singular. Não é a toa que o filme abre (e por isso escrevi que cativa desde o primeiro fotograma) com um plano frontal de Valentina, caminhando em direção à câmera. Há um magnetismo fotogênico, uma empatia imediata. Seu andar, semblante e expressão conquistam o espectador, mesmo antes de saber qualquer coisa sobre a personagem.
Thiessa, assim como Valentina, é uma mulher trans e passou na pele vários dos conflitos de seu personagem. Isso certamente a ajuda na construção da autenticidade. O que surpreende é que a atriz tem 31 anos e faz papel de uma adolescente de 17. E está perfeita. Guta Stresser interpreta a mãe de Valentina, Márcia, confirmando seu enorme talento. Além das duas, o elenco todo mantém o mesmo tom e um alto nível de interpretação, entre estreantes, experientes e não atores. Esse é um mérito da direção, da produção e preparação de elenco.
Uma das ótimas escolhas do diretor e roteirista foi situar o conflito da protagonista (a afirmação de sua identidade sexual) no universo da escola, espaço e ambiente de formação, onde se formam também os preconceitos. A relação entre os diferentes círculos – pais, educadores e alunos– que compõem esse ambiente é muito bem construída. O clímax do confronto final perde um pouco da autenticidade que marca todo o filme, mas isso não abala nossa fascinação por Valentina, seus amigos e sua história.
Valentina teve uma intensa participação em festivais no Brasil e no exterior, com várias premiações, principalmente nas categorias de melhor atriz e melhor filme do júri popular o que confirma seu encanto sobre diferentes plateias. O filme pode ser visto na Netflix.
January 13, 2022
Torto Arado + 7 prisioneiros

Livro de Itamar Vieira Junior + filme de Alexandro Morrato, Brasil 2019, 2021
Duas obras que abordam o mesmo tema porém são muito distintas. Ler o romance e assistir ao filme (ou vice-versa) cria uma dimensão interessante de reflexão e olhar sobre a espécie humana e sobre o Brasil, no contexto do tema que ambas tratam.
Torto Arado nos leva para o interior baiano. Matas, rios, campos, roças e seres míticos são os elementos que compõem um cenário que parece aferrado ao passado. Um passado de grandes fazendas e senzalas. A escravidão foi legalmente abolida, há anos, mas a servidão, uma versão hipócrita da mesma, reina absoluta. Os lavradores, em troca de seu trabalho podem erguer uma casa de barro e ter uma pequena roça num pedaço de terra que cultivarão em seu tempo livre. Trabalham de sol a sol e de domingo a domingo. Podem ir embora, se o desejarem, e podem ser mandados embora à vontade do patrão. 7 Prisioneiros começa em um cenário parecido, um ambiente rural interiorano, mas imediatamente desloca seus personagens para a urbe e de lá não sai mais. Os jovens que deixam suas casas em busca de uma vida melhor ignoram o fato que foram “comprados”. Parte desse dinheiro é dado às suas famílias como um adiantamento, uma promessa dos proventos que terão na grande cidade, a outra parte fica com o aliciador. Ao chegarem em SP os rapazes têm seus documentos sequestrados e terão que trabalhar para pagar o parco alojamento e a comida fornecida pelo patrão, mais o valor investido em sua compra. Ao se rebelarem, dão-se conta que são cativos no seu local de trabalho.

Vieira Junior foca no universo feminino: Belonísia e Bibiana, as duas irmãs que conduzem a trama (como protagonistas e narradoras), a mãe (Salu), a avó (Donana) e uma série de outras mulheres desenham uma linhagem de dor e coragem ao longo de gerações. Esse ponto de vista feminino não ignora o papel do homem e destaca Zeca Chapéu Grande e Severo como figuras centrais na vida da comunidade de Águas Negras. Já Morrato aborda o universo masculino. Seus protagonistas e o antagonista são todos homens, mas a figura da mãe tem papel importante nas relações e conflitos travados nesse universo.
As duas obras traçam caminhos opostos nos processos que abordam. Apesar de todo o calvário que marca os personagens, Torto Arado descreve como se forja uma comunidade, como se cria uma consciência através do fortalecimento do coletivo calcado na solidariedade, na cultura e na fé que argamassam essa união. 7 prisioneiros, na contramão, trata de desagregação, da vitória do egoísmo, do salve-se quem puder numa cidade de ferro e concreto onde não há lugar para a empatia, muito menos para os encantados de Torto Arado. Dane-se o outro e viva eu, parece ecoar do labirinto de ruas e esquinas e corroer a frágil união do grupo, a consciência coletiva e o ímpeto de lutar pelo que é certo.
As duas obras desenham faces distintas do mesmo mal, o trabalho escravo, mal que o Brasil não conseguiu erradicar em quinhentos anos e segue carcomendo o tecido social na surdina, no subterrâneo. Lançar esse tema à superfície já é um grande mérito dessas obras impactantes. Torto Arado ganhou o Premio Leya, o Jabuti para Romance literário e o Oceanos. Foi publicado em Portugal pela editora Leya e no Brasil pela Todavia. 7 Prisioneiros, com Rodrigo Santoro e Christian Malheiros nos papeis principais, foi premiado no Festival de Veneza e está licenciado pela Netflix.
January 6, 2022
A Casa do Baralho, ep. de hoje – Rectumspectiva do Anus 2021

Entre episódios tensos, alguns até explosivos de A Casa do Baralho, os meses passaram voando e chegou o tempo da cerimônia mais badalada, da mais tradicional entrega de prêmios do planeta, A Rectumspectiva do Anus, 2021. Desta vez o evento não ocorreu na última semana do anus, porque o banco de dados da A Casa do Baralho sofreu um ataque de hackers que estranhamente, até agora, não pediram resgate, ou coisa parecida. Esse atraso, no entanto, foi providencial, pois nos derradeiros dias de 2021 as férias do presidente produziram um rico material para a disputa.
Sem mais delongas vamos às categorias, aos indicados e tcham, tcham, tcham… aos premiados.
Na categoria Queda Espetacular concorreram:
O Ministro Amazon is for Salles, mentor do estouro da boiada que, em 2021, escorregou na própria malandragem e caiu do Meio Ambiente para o baixo ambiente da JP.
O Chanceler Honesto Sabujo que tanto se preocupou com a China e acabou levando a maior rasteira do Centrão.
O Ministro da Defesa (ninguém nem lembra o nome) que caiu no esquecimento junto com os três comandantes das forças armadas.
O Presidente B que foi derrubado por uma onda ao descer do jet ski.
E o vencedor: O Ministro da Saúde Pançuelo que caiu duas vezes no mesmo ano: da cadeira e da moto.
Na categoria Ator Coadjuvante, também conhecida como Puxa Saco do Presidente:
O ex-Ministro da Saúde Pançuelo
O atual Ministro da Saúde QuemRoga
O senador da CPI da Covid Circo Topeira
A deputada Carma Zenbelly.
E o vencedor: Afé MeEndossa, o terrivelmente evangélico ex-ministro da justiça e atual Ministro no STF, que além do presidente, teve que puxar o saco de 47 senadores para conseguir a vaga.
Na categoria Abalo Sismico Hemorróidico:
A CPI da Covid
O Sete de Setembro
As Queimadas na Amazônia
As férias do presidente em pleno flagelo na Bahia
e a vencedora: A obstrução intestinal.
Nessa categoria houve um recurso das demais concorrentes, alegando que a obstrução aconteceu já em 2022 e tecnicamente estaria fora da disputa. Após muito debate, a comissão do prêmio deliberou: “O que ocorreu em 2022 foi a internação, mas o que conta é quando se deu a obstrução, ou seja, quando o Presidente engoliu o camarão sem mastigá-lo, causa declarada da oclusão intestinal. Apesar do sigilo estabelecido sobre o histórico alimentar do mandatário, tudo indica que isso aconteceu ainda em 2021 e B atravessou o anus com o camarão já entalado, qualificando, portanto, a concorrente a disputar e a vencer.” A CPI da Covid ainda tentou derrubar a decisão no STF, mas este estava em recesso.
Na categoria Personalidade do Anus:
Moro Num País Tropical, o candidato por um dia da terceira via.
O deputado Reicardo Lamas que em vez de ficar chorando com a paralisação, mostrou que é possível faturar na pandemia.
O Ministro da Economia Pau-no-Deles que garantiu que 2021 seria o ano da virada e virou o Brasil num país com recessão e inflação ao mesmo tempo.
A mutação Omicron, que chegou sem muito alarde no final do ano e acabou com o natal e réveillon de muita gente, mostrando que enquanto o mundo todo não for vacinado, ninguém vai poder se sentir livre da pandemia.
E o vencedor: Mais uma vez o presidente B, que balança, dança, mas não cai e fatura o bi na categoria mais prestigiada da competição!!!
Você concorda com as categorias, indicações e os premiados? Tem alguma sugestão? Deixe seu comentário para que a gente possa avacalhar.
Um feliz 2022! Se quiser maratonar a série, basta ir à aba Casa do Baralho e rolar os episódios de baixo para cima.
December 30, 2021
Não Olhe Para Cima

Filme de Adam McKay – EUA 2021
Um cometa se precipita em direção à Terra. O choque, tudo indica, será fatal. Ele já pode ser visto no céu noturno do planeta, a olho nu. Olhe para cima!, clamam os cientistas em uma campanha para tentar conscientizar as pessoas. Não olhe para cima! é o lema da contracampanha, orquestrada pela presidente norte americana e seu patrocinador.
Não Olhe Para Cima não é um filme de ficção científica ou uma distopia apocalíptica, nem um blockbuster de catástrofe. É uma sátira mordaz sobre a humanidade, muito adequada a este fim de ano, início da terceira década do século XXI, época em que a idiotice uniu-se à superficialidade para tomar conta da espécie.
O cometa que irá despencar sobre nossas cabeças, olhemos ou não para cima, é o aquecimento global. Mas o filme aborda outros temas que se relacionam com o negacionismo explícito: a derrocada da democracia pela eleição de líderes fascipopulistas, a polarização e o pós verdade através da desinformação, a revolução tecnológica que criou novos multibilionários e a sensação que podem brincar de Deus, e a Covid que tanto no Brasil como nos EUA de Trump mostrou que o filme, frente à realidade, nem chega perto do farsesco.
Meryl Streep arrasa como a presidente dos EUA, um Trump feminino.O governo, os políticos, a mídia, as grandes corporações e as redes sociais são os alvos dessa sátira mordaz, mas no fundo a obra é um reflexo da sociedade atual, um espelho com a imagem de cada um de nós, o que deve ter incomodado muita gente. Isso explica em parte as inúmeras críticas à obra. Dizem que não é um filme profundo, que a sátira é muito óbvia, que os personagens, em sua maioria, são estereotipados. Mas se analisarmos os personagens reais que eles representam, veremos que o estereótipo não é obra do filme, mas das próprias personas. E que os atores que os interpretam incorporam muito bem essa característica, sem se tornarem caricaturescos. Por outro lado, há personagens (como os três cientistas) que embora não sejam altamente complexos, são tampouco superficiais. Os diálogos são inteligentes e a construção do conflito (o negacionismo) é muito bem articulado. Não se pode esperar que um filme que almeja se comunicar com uma sociedade que denuncia como superficial, seja profundo como Bergman, ou sagaz como Billy Wilder. Mas há momentos de irreverência no filme que me lembraram Dr. Fantástico (Dr. Strangelove) de Kubrick. Ambos falam de um perigo de extinção oriundo da estupidez humana. E em nenhum dos dois o humor tem a função de amenizar a seriedade da ameaça, mas realçar o absurdo. Odiado ou amado, criticado ou enaltecido Não Olhe Para Cima é certamente o filme mais comentado nos últimos anos, o que já é um bom sinal. Resta saber se isso será suficiente para levantarmos a cabeça e finalmente agirmos como a espécie inteligente que pretendemos ser, antes que seja tarde.
Recheado de estrelas como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Cate Blanchett, Meryl Streep e Ariana Grande, Não Olhe Para Cima pode ser visto nos cinemas e na Netflix.
December 23, 2021
Mas em que mundo tu vive?

Livro de José Falero – Brasil 2021
Mas em que mundo tu vive? é apresentado como um livro de crônicas. Tecnicamente, é um livro de crônicas. São textos escritos para a revista digital Parêntese desde 2019, pensados e publicados como crônicas. No entanto, a reunião deles em um livro, na ordem e do jeito que estão, aliada à escrita genial de José Falero, transformam as crônicas solitárias em uma obra literária diferente, única. Em outras palavras, Mas em que mundo tu vive? não é lido como um conjunto de crônicas, e sim como uma aventura extraordinária, quixotesca, na qual La Mancha é a Lomba do Pinheiro e Aragon + Catalunha são a cidade de Porto Alegre, com seus moinhos de vento ameaçadores, belas vistas sedutoras e o terreno enfeitiçado da cidade baixa.
Falero é um grande prosador. Conta histórias, traça ideias e expressa sentimentos conversando com o leitor. E o leitor com quem ele conversa é principalmente aquele que vive num outro mundo, diferente do dele, o mundo branco, abastado que cerca a favela, a quebrada. Assim, o título da primeira “crônica”, uma piada interna entre dois manos, ganha outro sentido como título do livro e torna-se um questionamento indignado para o leitor. Humor e indignação são as rodas que movem o buzão Mas em que mundo tu vive?. A qualidade literária é o seu combustível.
Além da intimidade criada na prosa, Falero tem uma escrita sofisticada que amalgama a gíria da quebrada com a língua culta, tecendo uma linguagem própria, poético/dramática como as de Uma Vida Violenta de Pasolini e Cidade de Deus de Paulo Lins. De quebra essa escrita hibrida sugere a possibilidade de uma conexão, uma convivência, ou mais ainda: juntar os mundos, abolindo a exclusão. Pode soar quixotesco, mas na real, o autor-protagonista da Lomba do Pinheiro é o personagem mais lúcido nessa viagem sem freios pelos dois mundos.
A Todavia é a editora que teve o mérito de enxergar a aventura extraordinária no conjunto de crônicas e editá-las em um livro tão especial. É também a a editora de Os Supridores, segundo romance de Falero. Seu romance de estreia, Vila Sapo foi editado pela Venas Abiertas, que se define como editora de autoras/es à margem do mercado editorial. Ambas têm sua parte na construção desse mundo que rejeita a exclusão e abomina o preconceito, dando tela a essa voz prodigiosa que se soma a uma geração de artistas e intelectuais negras e negros na luta sem arrego contra o racismo.
leia uma amostra e adquira:
December 16, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Presidente Omicron

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é por conta da imaginação do próprio leitor.
— Presidente, tem uma nova mutação do Corona fazendo estrago por aí, a Omicron.
— Porra, esses franceses são uns vacilão.
— A origem não é francesa, presidente, é da África do Sul.
— Que que a África tem a ver com o Micron? Tinham que chamar de o Omandela.
— Parece ser a mais contagiosa das variantes até agora, Presidente. Pior que a Beta e a Delta. A ANVISA recomenda proibir a entrada de estrangeiros do sul da África e exigir de todos os outros o passaporte vacinal.
B, só de ouvir o termo, teve um chilique. Lembrou-se como foi tratado em Nova Iorque, tendo de comer sua fatia de pizza em pé, na rua, após um dia de labuta extasiante falando merda na ONU. Esperto como só ele, transformou o limão em limonada, posando para fotos como homem do povo. Mas igual, foi duro de engolir – a pizza e a humilhação. Odeia vacinas e abomina o passaporte vacinal.
– De novo isso daí? – bradou – a ANVISA, ficou maluca? Vocês tão querendo fechar o espaço aéreo brasileiro? Nem a pau Nicolau!!!!
– Mas o mundo todo tá se protegendo com o passaporte da vacina! – argumentou o diretor da ANVISA que, para sua sorte, não pode ser guilhotinado pelo presidente.
É aí que reside o pulo do gato: fazer diferente de todo mundo! B, um dos políticos mais coerentes do planeta, quando o assunto é matar a sua própria população, teve altos delírios imaginando o país virando a Meca dos negacionistas da vacina. Turistas pela liberdade do mundo todo se reuniriam aqui para gastar seus dólares, usufruir das belezas brasileiras e infectá-las. Esse cenário assombrou políticos, autoridades de saúde e finalmente o STF que barrou a ideia, determinando a aplicação, pelo governo, do passaporte da vacina.
Antes dessa decisão, o governador de SP, Calcinha Apertada declarou que seu estado iria aplicar a medida nos aeroportos paulistas e exortou outros governadores a fazerem o mesmo. Ainda tirou sarro do presidente dizendo que era óbvio B ser contra o passaporte da vacina já que ele, se saísse do país, não poderia mais entrar.
Pra completar o imbróglio, o site do Ministério da Saúde sofreu um suposto ataque de hackers e o conecta SUS, que emite os certificados de vacinação, saiu do ar. Há indícios que esse ataque, que era para parecer um ransomeware (sequestro de dados para exigir resgate), foi feito de dentro do próprio ministério. Parece que neste governo até os ataques cibernéticos são fake.
B ficou irritado com todo esse barulho em torno de uma variantezinha, justamente no momento em que surge uma ameaça muito mais séria: a ascensão de Moro num País Tropical. O sujeito, que tinha performance pífia nas pesquisas eleitorais, só de entrar no Phodemos e lançar um livro disparou para o terceiro lugar na intenção de votos. Isso acelerou o ingresso de B no Partido L, após dois anos sendo o presidente sem partido, mas no caso dele, só piorou a situação. M almeja conquistar o título de o candidato da terceira via, mas B sabe que ele irá roubar votos seus e não do ex-presidente L. Pela primeira vez lhe ocorreu a possibilidade aterradora de não chegar ao segundo turno e um friozinho percorreu suas hemorroidas. Menos mal que falta quase um ano para as eleições e muita coisa vai rolar até lá, pensou. É um absurdo que a mídia só se preocupe com pesquisas eleitorais há tantos meses do pleito, rezingou, como se ele não vivesse permanentemente em campanha.
Quanto à variante, o mandatário não se preocupa, até tem simpatia pela Omicron, quase assim uma identificação. A política brasileira produziu vários dirigentes nocivos ao longo de sua história. Houve loucos, fracos, ignorantes, vendidos, sanguinários. Seria B a mutação mais monstruosa dessa chaga? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
December 9, 2021
O Fio Invisível

Filme de Claudia Llosa – Peru, argentina, Chile, EUA, Espanha –2021
“Preste atenção nos detalhes, Amanda, os detalhes são muito importantes.” Essa afirmação, quase exortação é sussurrada no ouvido de Amanda por Davi, enquanto os dois tentam entender, identificar o momento em que tudo desmoronou. A cineasta peruana Claudia Llosa (sobrinha do escritor Vargas Llosa) segue à risca este conselho e fixa-se nos detalhes. Planos detalhe de orelhas, olhos, lábios, braços e pernas compõem uma gramática cinematográfica muito peculiar que constrói, em conjunto com a trama, um clima intrigante, cheio de sensualidade e mistério ao tratar da relação de duas mulheres – duas jovens mães, e o quanto são capazes de proteger seus filhos.
Amanda e Carola, fascinação mútua numa relação cheia de luz, sombras e reflexos.Llosa mescla fenômenos sobrenaturais, denúncia ambiental e uma estrutura que desvela a trama aos estilhaços como num thriller policial, para criar um filme um tanto diferente, onde tudo, desde a esplendorosa fotografia de composições absurdamente meticulosas e luz genial até a história narrada, estão à serviço do clima. Isso lembra um pouco o cinema de outra diretora sul americana, Lucrecia Martel. Esse clima não mantém sua força ao longo de todo o filme, ele perde impacto quando o peso do thriller se sobrepõe à fascinante intimidade criada entre Amanda e Carola e o fio invisível, que deveria ligar todos esses elementos ao final, falha em amarrar perfeitamente o filme. Mesmo assim é uma obra que apresenta muita qualidade nas ideias cinematográficas e filosóficas, como a reflexão de Amanda sobre a distância do socorro – o elo que prende uma mãe a seu filho e a noção de que criamos, sem perceber, um mundo cheio de ameaças para nossos rebentos.
O Fio Invisível é uma adaptação do livro Distancia del Rescate da escritora argentina Samanta Schweblin, que escreveu o roteiro junto com a peruana Claudia Llosa. As atrizes protagonistas são a espanhola Maria Valverde (Amanda) e a argentina Dolores Fonzi (Carola). O filme foi rodado no Chile e finalizado na Espanha. Os EUA também compõem essa coprodução internacional através da Netflix.
December 3, 2021
A Última Floresta

Filme de Luiz Bolognesi e Davi Kopenawa – Brasil – 2021
A Última Floresta é um filme deslumbre. Ele nos leva a um universo exuberante de cores, lendas e conhecimentos, o universo dos Yanomami e de sua floresta, lá onde o Brasil acaba e começa a Venezuela. É fruto da colaboração entre o cineasta branco Luiz Bolognesi que dirige o filme e o xamã Yanomami Davi Kopenawa que co-escreveu e protagoniza boa parte das cenas. A ideia de Davi era criar uma obra que fosse além do filme denuncia, transmitisse aos brancos a realidade e a visão de mundo Yanomami, fosse um filme conexão. E que essa conexão recusasse a imagem de coitadismo dos indígenas – ao contrário, mostrasse a beleza e a força de seu modo de vida. Isso não significa que a ameaça do garimpo seja ignorada ou menosprezada, ela permeia o filme e se apresenta como um dos grandes desafios atuais dos povos originários, inserida, infelizmente, na realidade mágica que nos deslumbra.
Davi convidou Luiz para que passasse duas semanas em sua aldeia, Watoriki, no meio da selva. Essa foi a primeira imersão no universo de A Última Floresta, ali começou a ser gestado o roteiro que se completou durante as cinco semanas de filmagens. A equipe de campo foi composta por seis pessoas: o diretor, o diretor de fotografia, um assistente de câmera, um logger e operador de drone, um técnico de som e uma assistente de direção e diretora de produção.
Sonhos, mitologia e realidade em A Última FlorestaPara captar e transmitir na tela o encanto do local, foram feitas duas opções importantes: mesclar a realidade com o onírico e o mitológico, já que os Yanomami não fazem essa separação; investir na fotografia realçando a exuberância das cores, as texturas das peles e plantas, os rostos e a luz natural. Para isso se trabalhou com uma janela cinemascope (2.35:1), uma grande profundidade de foco nas cenas da selva e com lentes rápidas e câmeras de alta sensibilidade para cenas noturnas e/ou internas, com a luz da lua ou de fogueiras como fontes principais. Há um artigo sensacional do diretor de fotografia, Pedro J. Marquez sobre o trabalho no filme que você pode ler clicando aqui.
Essa mescla entre sonho, lenda e realidade, narradas, encenadas e vividas pelos Yanomami, cria, além de um vislumbre mágico de seu universo, uma linguagem singular que integra documentário direto com uma espécie de docudrama sofisticado. Tudo isso resulta num filme muito especial, espelho do modo de vida que ele retrata. Filme imperdível, que aborda temas pesados, cruciais com imensa originalidade.
Davi Kopenawa e seus guerreiros a caminho de um encontro com garimpeiros.A Última Floresta foi premiado em vários festivais internacionais antes de ser lançado nos cinemas e ser licenciado para exibição na Netflix. Só lamento não tê-lo visto na grande tela das salas de cinema.
November 26, 2021
Consciência Negra

O Dia da Consciência Negra teve origem nos movimentos negros de Porto Alegre em 1971, há exatamente cinquenta anos. Um de seus idealizadores foi o poeta e escritor Oliveira Silveira, filho de pai branco (uruguaio) e mãe negra. A data (dia da morte de Zumbi dos Palmares), tem como objetivo valorizar o negro e sua contribuição ao Brasil, na luta contra a discriminação e o racismo. O Dia da Consciência Negra foi inserido no calendário escolar em 2003 e oito anos depois foi oficializado como Dia Nacional da Consciência Negra pela então presidente Dilma.
Independente da cor da sua pele e da matiz de sua consciência, refletir e se aprofundar sobre o racismo no Brasil e no mundo – há mais de um século após o fim da escravidão – é de suma importância. Nesse final do mês da Consciência Negra o blog indica livros, filmes e séries que tem ligação com o assunto, boa parte deles foram resenhados por aqui, é so clicar sobre o nome para ir à resenha.
A Interessante Narrativa da vida de Olaudah Equiano, ou Gustavus Vassa, o Africanode Oluadah Equiano (1789) – livro que contribuiu enormemente para a a abolição do comércio de escravos no Império Britânico. Autobiografia que é lida como um romance de aventuras e teve imensa popularidade em suas nove edições. Olaudah, africano que foi vendido como escravo aos onze anos e aprendeu de forma autoditadata a ler e escrever, provava, em seu texto cativante, que a noção da época de que a raça negra era inferior em intelecto, é balela (balela que “justificava” escravizar e comercializar os “selvagens”). Infelizmente, o livro não foi traduzido para o português, mas se você lê bem em inglês, é imperdível. The Interesting Narrative of the Life of Oluadah Equiano, Or Gustavus Vassa, The African pode ser baixado gratuitamente no Gutenberg Project ou adquirido na Amazon (links no final do post).
Livros em português
Estela sem Deus e O Avesso da Pele de Jeferson Tenório
Doze Anos de Escravidão de Solomon Northup
Muito Longe de Casa de Ishmael Beah
Torto Arado de Itamar Vieira Junior
A Fortaleza da Solidão de Jonathan Lethem
Coração das Trevas de Joseph Conrad
Filmes:
Dois Estranhos de Travon Free e Martin Desmond Roe
7 Prisioneiros de Alexandre Morrato
The Delivery Boy de Nodash
Presidente de Camilla Nielsson
Eu Não Sou Seu Negro de Raoul Peck
Infiltrado na Klan de Spyke Lee
Identidade de Rebecca Hall
Ganga Zumbá de Cacá Diegues
Remastered: Who Shot The Sherif? de Kief Davidson
A 13a Emenda de Ava DuVernay
Séries:
Quem Matou Malcolm X
Além dessas obras, vale conhecer a produção de intelectuais e acadêmicos como Luiz Gama, Lélia Gonzalez, Milton Santos, Kabengele Munanga, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Silvio de Almeida, Amailton Magno Azevedo e Carla Akotirene, entre outros.
Para acessar o livro de Olaudah no projeto Gutenberg clique aqui, ou na Amazon:
November 18, 2021
Glória

Série – criação de Pedro Lopes e direção de Tiago Guedes – Portugal – 2021
A figura do agente infiltrado e do agente duplo foi alçada a uma dimensão shakespeariana pelo escritor John Lé Carré. Ele lhes conferiu complexidade e profundidade psicológica, ao contrário dos agentes a laJames Bond que singram pela literatura de espionagem como homens invencíveis, despojados de conflitos internos e repletos de conquistas sexuais.
João Duval é um desses personagens complexos que se juntam à linhagem Lecarreana, na série Glória (ou Glória do Ribatejo, título original) – a primeira série portuguesa da Netflix. João é filho de um político no alto escalão da ditadura Salazariana, que voltou da guerra de Angola com a cabeça virada, pronto para ser seduzido pelo comunismo e aliciado por Moscou como seu agente. Há nele algo de Meursault, o protagonista de O Estrangeiro, na ambivalência entre distanciamento e intensidade com que se relaciona com o mundo ao redor.
Engenheiro eletrônico, João deixa um ótimo emprego na Rádio Nacional para trabalhar na RARET (Radio American Retransmission), emissora que visava enfraquecer a União Soviética com conteúdo propagandístico em russo, transmitido para além da cortina de ferro desde o povoado de Glória do Ribatejo de Portugal. Uma verdadeira guerra de frequências é travada entre os soviéticos que tentam barrar as transmissões e os operadores da RARET. João é um dos vários profissionais portugueses que trabalham para os americanos, mas na verdade trabalha para os soviéticos. Como é filho do ministro, é solicitado pela PIDE, a polícia secreta portuguesa, a passar informações sobre os aliados norte americanos, mais precisamente sobre a CIA que opera, em última instância, a RARET.
Miguel Nunes como João.Para complicar ainda mais este cenário de intrigas, o ano é 1968 – da primavera de Praga, dos protestos estudantis em Paris – ano em que o ditador português é hospitalizado após uma queda, sendo afastado do poder (sem saber disso até sua morte, em 1974) por seu braço direito. O pai de João tem esperanças de tornar-se o Presidente do Conselho dos Ministros com o apoio dos americanos. O país, que apesar de afinidades ideológicas com os regimes do eixo havia permanecido neutro durante a Segunda Guerra Mundial, aproximou-se dos aliados ao final do conflito, quando estava claro quem iria sair vitorioso. Na Guerra Fria tornou-se um aliado dos americanos contra o comunismo e em 1968 enfrenta uma longa batalha para manter a posse de suas colônias na África. É o começo do fim do Estado Novo de Salazar e do Império Português.
Glória banha com a luz mediterrânea os cenários normalmente cinzentos de filmes de espionagem, criando um contraponto interessante com as cenas noturnas, mais sombrias. A estrutura não linear do roteiro expõe aos fragmentos o trajeto de João, de filho protegido de um ministro até agente do inimigo, vivendo seus dilemas morais de um “traidor” (da pátria, da família e de Deus, a trindade sagrada do regime português). Às vezes o roteiro escorrega para o caminho Jamesbondiano com situações inverossímeis, ou quando apresenta João como um super sedutor de raparigas. Mas de modo geral os personagens são muito bem desenhados, as intrigas meticulosamente articuladas e os atores, absolutamente todos, estão muito bem. O elenco é multinacional, com americanos fazendo o papel de americanos, brasileiros fazendo o papel de brasileiros, russos de russo etc., criando autenticidade nos sotaques e nas falas em diferentes idiomas. A trilha é recheada de músicas que foram sucesso nos anos sessenta ajudando a compor, junto com a exímia direção de arte, o clima daqueles anos.
Glória é um bom entretenimento, por suas qualidades cinematográficas e trama instigante, mas vale a pena assisti-la também pelo mergulho na história recente da Guerra Fria, e, principalmente, de Portugal, um país que mudou seus rumos drasticamente há menos de cinquenta anos.


