Jaime Lerner's Blog, page 24
March 25, 2021
A Última Noite

Filme de Spike Lee – EUA – 2002.
Spike Lee ganhou notoriedade por seus filmes polêmicos sobre temas sociais altamente sensíveis, principalmente na abordagem da explosiva relação inter-racial nos Estados Unidos. Faça a Coisa Certa; Malcolm X; Infiltrado na Klan são alguns exemplos. A Última Noite (25th Hour) foge desse padrão. É um dos primeiros longas em que Lee atua como diretor convidado e que não tem um roteiro assinado por ele. O fato de não ser um projeto original do cineasta não resulta em uma abordagem menos autoral ou em uma obra menor em sua cinematografia. Ao contrário, é um dos seus melhores filmes.
O roteiro foi adaptado do livro de estreia de David Benioff, The 25th Hour. Benioff estreou duplamente, pois foi ele quem roteirizou a adaptação de seu próprio romance, iniciando uma carreira nas letras e no audiovisual. David é um dos criadores da série The Games of Thrones.
Em A Última Noite, Spike Lee encara o desafio de tratar de um drama íntimo, num tom diferente do clima barril de pólvora de Malcolm X, Faça a Coisa Certa e O Verão de Sam. O filme acompanha o protagonista Monty nas últimas vinte e quatro horas de liberdade, antes de ter que se apresentar para cumprir pena de sete anos. Essa jornada é feita de despedidas e acerto de últimas pendências. A linha narrativa, que se estende entre dois amanheceres, é acompanhada por um prólogo e poucos flashbacks que contextualizam a situação. Monty revisita o passado para angariar lembranças que o apoiem no inferno que o aguarda, mas também para tentar entender como se deixou levar até esse inferno. Nas últimas horas de liberdade Monty já está preso numa encruzilhada temporal, assombrado pela 25ª hora. Um elenco fenomenal encabeçado por Edward Norton e Philip Seymour Hoffman ajuda Lee a mergulhar em zonas profundas do trabalho do ator, onde predominam nuances, pequenos gestos e silêncio. Isso não esmaece o vigor, nem a dinâmica spikeleeniana. Eventuais arroubos dramáticos reforçam, através do contraponto, o tom mais contido.

Nova York tem uma presença importante no romance. Spike sempre reservou um papel especial para a cidade em seus filmes. De acordo com Benioff, esse foi um dos motivos do convite para dirigir a adaptação. Entre a publicação do livro e as filmagens aconteceu o 11 de setembro. E a relação da cidade com o filme ganhou outra dimensão. Lee integra as cicatrizes recentes da tragédia ao filme como um tributo à cidade que ele ama e por vezes odeia, assim como o protagonista. Os créditos iniciais são projetados sobre feixes de luz que, logo perceberemos, são os dois refletores colocados no lugar das torres gêmeas. A trilha que acompanha essa revelação é absolutamente perfeita. O Marco Zero volta à cena quando os dois melhores amigos de Monty discutem o que será de seu amigo de infância na prisão, mesclando as tragédias, as histórias e o luto.
A “festa de despedida” na boate superlotada é quase um filme dentro do filme, sequência repleta de eventos paralelos, subtramas e uma revelação fatal. Lee articula esses elementos com maestria e originalidade ímpares. Rodrigo Prieto, o diretor de fotografia, também se esbalda nessa sequência, principalmente na maneira como aproveita as luzes coloridas do recinto para marcar, através da monocromia, distintos espaços dramáticos nos eventos paralelos. A intervenção da música diegética nos conflitos é genial.
Mas o ponto alto da obra está reservado para a sequência final. Benioff e Lee criam um desfecho que não é exatamente um desfecho, tampouco um final aberto, é uma terceira dimensão narrativa que une texto e filme de forma especial. Ali o espectador compreende na plenitude a 25ª hora.
March 18, 2021
Kingdom

Série – criação de Kim Eun-hee – Coreia do Sul – 2019 – duas temporadas.
O que há em comum entre Shakespeare, zumbis e samurais? A série sul-coreana Kingdom. A roteirista Kim Eun-hee e o diretor Kim Seong-hun usam elementos desses três universos para erguerem os pilares da saga medieval. A mescla de linguagens e gêneros tão distantes é uma ousadia repleta de riscos; e é essa ousadia que torna a série especial.
A trama, recheada de conspiração e intrigas palacianas, lembra muito Júlio César, Hamlet, Rei Lear e Macbeth, tragédias que abordam a ambição desenfreada pelo poder. Macbeth ganha ainda uma homenagem visual: em uma das cenas de maior suspense, as árvores da floresta ao lado de Sangju parecem se mover, lembrando a profecia das bruxas na obra shakespeariana: Macbeth jamais será vencido enquanto a floresta de Birnam não marchar contra ele sobre a colina de Dusinam. Assim como na peça, o aparente movimento da floresta antecipa a revelação de um erro que se mostrará fatal.
Se O Bardo não se furtava de convocar fantasmas e bruxas para auxiliá-lo em seus dramas, Eun-hee recruta seus auxiliares no mundo dos mortos-vivos. Os zumbis, na série, encarnam a desgraça produzida pela sanha de poder. Consequência de um plano ardiloso para usurpar o trono do príncipe herdeiro, pessoas que parecem mortas ganham vida durante a noite e saem em busca de carne humana. Suas vítimas são “contaminadas” e também se tornam mortos-vivos. Kingdom supera, no entanto, os clichês dos filmes de zumbis. Não apresenta essas criaturas como um fenômeno sobrenatural, nem as utiliza apenas como elemento aterrorizante. Trata-as como vítimas e sua condição como praga, como símbolo de uma doença contagiosa que pode rapidamente aniquilar um povoado inteiro. Enquanto o príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) e seus generais tentam exterminar a ameaça zumbi pela força da espada, a médica Seo-bi (Bae Doona) busca entender a doença. Há uma relação de colaboração (evidente) e disputa (sutil) entre as artimanhas militares e a ciência, na luta contra a ameaça zumbi.

As diversas batalhas trazem para a série o universo samurai. Kingdom tem sua trama localizada na Coreia medieval, durante o período da dinastia Joeson, nos anos de instabilidade e fome que surgiram após as invasões japonesas, ao final do século XVI. Impecável na reconstituição de época, a obra desenha muito bem a distinção de classes do período. A fome da população plebeia é um tema forte ao longo da primeira temporada, bem como o canibalismo. Praticamente toda a ação de Kingdom é composta de lutas ao estilo oriental. Há cenas épicas de batalhas grandiosas e coreografias muito bem orquestradas de duelos entre vilões e heróis. Alguns princípios sagrados de filmes de samurai são colocados à prova, como os códigos de lealdade e justiça.
Kingdom apresenta uma qualidade cinematográfica raramente vista em obras seriadas. A direção de arte e a fotografia criam um visual espetacular no trabalho de luz, texturas e cores. Os contrastes entre o universo ocre e cinzento dos zumbis e os tons exuberantes do mundo “normal”; o contraponto entre os cenários e roupas dos nobres e dos plebeus; e a contraposição dos palácios e templos em seu esplendor e depois em ruínas, ajudam a compor o clima de alta tensão que permeia a série. A arquitetura das locações escolhidas a dedo contribui enormemente para o impacto estético.

Apesar de Kingdom ter sido concebida em 2011, na Coreia do Sul, ela me parecia, a cada episódio assistido, mais e mais uma alegoria tragi/absurda sobre o Brasil atual, sufocado pela pandemia e por um projeto de poder perverso e mórbido. Obviamente, não foi essa a intenção da autora (o que prova que a obra ganha vida própria ao encontrar os olhos do espectador), mas há uma declaração reveladora de Eun-hee: “Venho trabalhando na série desde 2011. Quis escrever uma história que reflete os medos e ansiedades dos tempos modernos, abordados, no entanto, pelo prisma da fascinação romântica do período Joseon.” Conseguiu fazê-lo melhor do que imaginava.
Kingdom tem uma terceira temporada prevista. As duas primeiras temporadas podem ser assistidas na Netflix.
March 11, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: Spray Nasal

Na calada da noite, um avião da Força Aérea Brasileira atravessa os céus do mediterrâneo rumo a uma missão da maior importância. À bordo, dez intrépidos patriotas, liderados pelo chanceler Honesto Sabujo e pelo filho do presidente, o deputado EB. Sua missão é ir à Terra Santa e trazer de lá o Santo Graal, ou seja, o spray nasal. Por que o EXO-CD24 tornou-se o novo fetiche do presidente? Nas palavras do próprio B: “Como é pra ser usado em quem tá na UTI, não acho que tenha problema nenhum usar esse spray no nariz do cara. O que é esse spray? Não sei. Mas esse produto estava sendo, há 10 anos, estudado em Israel pra combater outro tipo de vírus. Parece até que é um produto milagroso. Parece.”
Ao aterrissar, nossos heróis preparam-se para o primeiro sacrifício: colocar a máscara. Esse é o costume local, em tempos de pandemia. Só a ideia de ter que se sujeitar a essa violência, fez o chanceler arrepiar quando foi convocado para a missão.
— Israel? — choramingou Sabujo — Adoro aquele pessoal, Presidente, mas a coisa lá tá feia. Quem é pego sem máscara leva multa na hora. E não tem jeitinho, nem carteiraço. O lockdown, então, não é o faz-de-conta que os prefeitos e governadores aplicam aqui: fingem que fecham tudo e o cidadão finge que fica em casa. Os caras lá tão vacinando todo mundo e ainda lacram tudo?!? Aí não tem como ser feliz. Eu sou formado pela escola do Nolavo o’Caralho, Presidente, como vou me sujeitar a botar máscara? É uma afronta à minha liberdade de contaminar e ser contaminado.
— Corta esse mimimi. Sei que é complicado, mas tu vai ter que ir e aguentar no osso. Tô mandado junto pro sacrifício o meu próprio filho, ele também tem o diploma lá do Caralho, mas entende que é por um bem maior. Porra, depois de muita luta conseguimos botar a pandemia no estágio que a gente queria, tá morrendo gente que é uma beleza. Mas agora o povo tá me pressionando pra ter vacina. Não querem mais saber de cloroquina. A gente tem que bolar um substituto. Me tragam a porra desse spray milagroso. Pra ontem.
E em busca desse milagre, a comitiva peregrinou a Jerusalém, levando no alforje a proposta de um acordo de colaboração.
“Temos muito conhecimento a trocar”, discursa nosso chanceler no encontro com seu colega israelense, no qual é lembrado pelo mestre de cerimônias que deve colocar a máscara. “Israel tornou-se um exemplo para o mundo em termos de vacinação, e o Brasil… tornou-se um grande laboratório a céu aberto para estudar o que acontece com o vírus correndo solto.” Em outras palavras, no acordo proposto Israel entra com o know-how e o Brasil entra como cobaia.
Mas há um lado oculto nessa história, um documento secreto no fundo do alforje, revelado com exclusividade pela Casa do Baralho.
Como Israel, destaque no combate à pandemia, permite o ingresso, em plena vacinação, da comitiva vinda do maior reprodutor mundial de mutações do vírus? Eis que seu Primeiro-ministro, duas vezes Bi, está mais uma vez em campanha eleitoral. Assolado por denúncias de corrupção e ameaçado de prisão, ele não pode perder o cargo, mas não conseguiu, nas recentes eleições, maioria para governar tranquilamente. O presidente B oferece a ele, como troca pelo spray nasal, a tecnologia da VacCentrão. Foi para essa negociação secreta que mandou o rebento presidencial.
Duas vezes Bi dá risada ao ouvir a oferta.
— Eu tô no poder há doze anos seguidos. Teu pai mal passou do segundo e quer me ensinar a comprar deputados? Fala sério. Daqui a 15 dias meu destino será decidido nas urnas. O que eu quero de vocês é que me cedam, por duas semanas, todos os robôs. Das redes sociais, whatsapp, telegram, tudo, full time a meu dispor, a partir de hoje.
EB faz muxoxo enquanto puxa a máscara pouco abaixo do nariz. É uma birra oculta contra a ditadura científica.
— Mas Primeiro-ministro, não tem como a gente ficar sem os nossos robôs todo esse tempo. Quem vai alimentar o gado? Todo dia, a toda hora, meu pai é atacado pela imprensa-lixo e pelos comunistas.
— Que comunistas, rapaz? O comunismo se evaporou quando você tinha seis aninhos. Só no Brasil ainda se acredita em ameaça comunista.
— Bibingo! É pra isso que a gente precisa tanto dos robôs.
Conseguirá o líder israelense esse incremento estratégico para sua campanha? Em caso positivo, sobreviverá B duas semanas sem a sua artilharia virtual? E o spray nasal, operará o milagre de aliviar a pressão sobre o presidente? Não perca no próximo episódio de A Casa do Baralho.
March 4, 2021
Pelé

Filme de David Tryhorn e Ben Nicholas – Inglaterra – 2021.
O Brasil é o país do futebol. Embora os ingleses tenham inventado o jogo, nós o adotamos com amor de mãe. Importamos também o nome e o abrasileiramos; mas a magia do futebol ou o futebol arte, como chamamos, é nosso. O Brasil conquistou cinco títulos mundiais. Feito único, por enquanto. A Inglaterra foi campeã do mundo uma única vez, em 1966, em sua própria casa. Nas duas copas que o Brasil sediou (1950 e 2014), a seleção, embora favorita, deu vexame. A Inglaterra, tirando a vitória caseira, nunca chegou sequer a ser finalista. Nesse contexto, é curioso que uma equipe britânica faça um documentário sobre Pelé, protagonista do domínio brasileiro no cenário futebolístico, documentário que levanta questões tão pertinentes ao Brasil como sociedade e nação.
O nome do Rei do Futebol está ligado a dezenas de filmes, ficcionais ou documentais, de distintas nacionalidades e gêneros. Alguns tentam desvendar o fenômeno; outros tomam emprestada a persona para atrair espectadores. David Tryhorn e Ben Nicholas propõem uma abordagem instigante ao confrontar homem e mito, ao trazer à tona a dimensão humana de Edson Arantes e como enfrentou o status de hiperestrela ao qual foi alçado aos 17 anos de idade. Essa questão se aprofunda (ou acirra) em 1970, quando o rei atinge o ápice da carreira ao liderar o Brasil na conquista do tricampeonato mundial, enquanto o país vive os anos de repressão mais ferrenhos da ditadura militar.

Além da entrevista com o próprio Pelé, o filme traz depoimentos de ex-jogadores, companheiros do Santos e da seleção, jornalistas e comentaristas de futebol. Traz ainda depoimentos de sua irmã Maria Lúcia, de Gilberto Gil, de Benedita da Silva, Delfim Netto e Fernando Henrique Cardoso. Delfim Netto fala como insider do regime militar. Chega a dar arrepios quando declara que assinou o AI-5. Mas quem melhor aborda a relação copa 1970 e anos de chumbo não são os políticos, são os comentaristas Juca Kfouri e José Trajano, e o músico Gilberto Gil. É uma pena que todos esses depoimentos rendem menos do que poderiam ter rendido. Não sei se a profundidade foi sacrificada em prol da dinâmica da edição ou se os entrevistadores não souberam (ou quiseram) levar seus entrevistados para águas mais profundas. O fato é que as falas se resumem, muitas vezes, a frases de efeito ou ao reforço/complementação da fala anterior, sem desenvolver o tema. Esse toque na superfície, sem avançar, dá a sensação de que Pelé, um filme bom de assistir, poderia ter sido um filmaço.
Ao lado dos vários depoimentos, o doc. promove um reencontro de Pelé com seus ex-companheiros do Santos e exibe imagens de arquivo preciosíssimas, muitas delas fogem das imagens costumeiras quando se trata do Rei. Não são apenas filmes dos jogos e treinamentos, há imagens de Três Corações em 1940, local de nascimento de Edson; cenas do enfrentamento à ditadura, entrevistas de João Saldanha, entre outras preciosidades. O Pelé envelhecido, usando andador ou cadeira de rodas, é uma imagem poderosa que não apaga o fulgor estelar, mas ajuda a trazer à tona o lado humano. Para os amantes da bola, vale mencionar que o filme mostra como questões que consideramos contemporâneas já eram debatidas nos anos 1960, sendo a principal: o talento brasileiro consegue superar a organização tática e a dura marcação europeia?
Ainda que não atinja plenamente o potencial sugerido por seus temas e elementos, Pelé é um filme que vale ser visto, e não só por quem gosta de futebol. A obra evoca um passado recente e o compara com o presente, faz refletir sobre a sociedade que se forjou neste imenso país, seus mitos e seus heróis de verdade.
Pelé pode ser visto na Netflix.
February 25, 2021
Ethel & Ernest

Filme de Roger Mainwood – Inglaterra – 2016.
Raymond Briggs é um dos artistas gráficos mais reconhecidos na Inglaterra. Ilustrador e quadrinista de histórias para crianças e adultos. Em 1998, aos 64 anos de idade, publicou a novela gráfica Ethel & Ernest, uma homenagem aos seus pais, falecidos em 1971. “Não é uma história extraordinária, mas é a história dos meus pais”, diz ele na abertura do filme licenciado recentemente pela Netflix. Essa é a grande qualidade do longa de animação: mostrar como o banal pode ser especial.
O escritor Dyonélio Machado comentou que o século XX revolucionou o olhar (principalmente por influência de Marx, Freud e Darwin), direcionando os holofotes para o homem comum. É interessante que Ethel & Ernest narra, pelo cotidiano de um casal britânico pra lá de comum – um leiteiro e uma dona de casa –, parte da história deste século XX, de 1928 a 1971. Briggs conta uma história pessoal e singela, inserida naqueles anos de grandes abalos e transformações. Consegue envolver, estender a sua carga emocional íntima a cada um dos leitores. Isso se chama arte.

O filme, muito fiel ao livro na estética e no conteúdo, mantém a magia de universalizar o privado. Mas diferente do livro, o filme é um trabalho coletivo, um processo fragmentado entre mais de uma centena de animadores, ilustradores, atores, técnicos em efeitos especiais, roteiristas, músicos, atores e artistas de foley. Isso torna a façanha de narrar uma história íntima e autoral ainda mais desafiadora. O diretor e roteirista Roger Mainwood optou por combinar técnicas tradicionais e modernas nos processos de trabalho. No filme há 61200 desenhos, todos feitos à mão, mantendo o traço artesanal do autor, porém em uma tela digital, o que facilitou a coordenação entre os vários desenhistas e entre som e imagem, principalmente no desenho do sincronismo labial nas falas dos personagens. Muitos cenários e fundos foram pintados em papel (aquarela) e depois escaneados, para manter a textura e os tons retrô da novela gráfica. A computação e o 3D foram usados principalmente na animação de veículos (aviões, carroças, trens, ônibus e carros) e para dar profundidade aos planos com efeitos de luz, neblina e fumaça. O tipo de movimento, a animação, encontra um caminho de ouro entre a fluidez cinematográfica e a composição mais estática de histórias em quadrinhos. A direção de arte é absurdamente meticulosa na recriação de cenários e figurinos nas distintas épocas e se encarrega, com a luz, de desenhar o ápice dramático dos eventos nos anos da Segunda Guerra Mundial. É interessante que o pico dramático da história pessoal (e do filme) dá-se em outro momento e é retratado em outro tom. Um tom absolutamente britânico, como os protagonistas.

Embora a obra seja sobre seus pais, há um personagem que, a meu ver, merecia um pouco mais de exposição. Jane, a mulher de Raymond, aparece no filme como uma figura intrigante, mas quase sem voz. Jane sofria de esquizofrenia e foi casada com Raymond de 1963-73. Faleceu de leucemia dois anos após a morte dos sogros.
Raymond, que inicialmente tinha dúvidas se liberava o livro para adaptação, assina o filme como produtor executivo. Conta que, ao ouvir a dublagem pela primeira vez, chorou por dois dias seguidos. Lá estavam seus pais, falando com ele novamente. Briggs abre o filme em um breve e único momento live action, que introduz o elemento da autenticidade, da história pessoal. E, de quebra, revela parte da magia: o esboço do desenho inicial ganhando vida e alma.
February 18, 2021
Brasil Sem Carnaval

Meu primeiro contato com o Carnaval foi praticamente como turista, em 1985, em Salvador. Havia recém-retornado ao Brasil, depois de morar dezoito anos fora, dos sete aos vinte e cinco anos. Cheguei à capital baiana no Natal, após mais de 30 horas num ônibus lotado de baianos saudosos e saudosistas que iam visitar a terrinha nos dias de feriado. A festa começou ali no veículo, mal saímos do Rio. E seguiu por três meses numa maratona de festejos e lavagens, um esquenta para a grande folia.
O segundo contato foi como cineasta, dez anos depois. Este foi bem mais profundo. Vivia em Porto Alegre, onde se instaurou uma polêmica em torno do projeto da construção de uma pista de eventos no Parque da Harmonia para os desfiles do Carnaval e do Vinte de Setembro, entre outras atividades. Fiquei curioso para investigar a essência do conflito travado entre tradicionalistas e carnavalescos. Durante a pesquisa e filmagens, mergulhei no universo carnavalesco e pude compreender a dimensão dessa festa nos corações e mentes dos que dela participam. Aprendi que a definição do tema, a composição do samba-enredo, a criação das coreografias, a confecção dos carros alegóricos e fantasias são partes de uma produção cultural sui generis, pela efemeridade e, principalmente, pelo envolvimento que mescla profissionalismo com devoção quase religiosa. Conheci talentos geniais e artistas de mão-cheia que, no dia a dia, eram humildes zeladores, costureiras, garis, trabalhadores da indústria e comércio.

Nessa imersão, que resultou no documentário de longa-metragem Harmonia, entendi porque a festa de Momo, de origem europeia, acabou tornado-se o maior espetáculo da terra justamente no Brasil. O Carnaval, em suas várias metamorfoses, nunca deixou de ser uma festa de inversão em sua essência e pagã na origem. Aqui, no país dos excluídos, foi abraçada por pobres, oprimidos, ex-escravizados e virou a sua desforra. Não uma vingança, mas uma explosão de alegria, beleza e ritmo. A história do Brasil me fez compreender melhor o Carnaval, e o Carnaval me fez conhecer melhor o Brasil.
Difícil, senão impossível, imaginar este país sem Carnaval. Mas essa é a realidade em 2021. Temos um presidente que teme a alegria e venera o ódio. No segundo mês de mandato manifestou seu desprezo pela festa, em um tuíte obsceno e eivado de preconceitos. Este ano publicou, na véspera da data, um decreto para ampliar ainda mais a circulação de armas. Mas não foi ele quem cancelou a folia, foi um vírus ainda mais letal. Este ano não há turistas lotando as nossas ruas, não há desfiles, marchas, puxadores, bonecos gigantes, nem trios elétricos e blocos fazendo o chão tremer. A pandemia também atingiu fortemente os membros das comunidades que fazem o Carnaval em todo o país. No Rio, a Marquês de Sapucaí ficou vazia, mas ganhou iluminação especial para homenagear as vítimas da Covid-19. A chave da cidade, tradicionalmente entregue ao Rei Momo, foi por ele repassada aos profissionais da saúde.
É compreensível que o festejo tenha sido cancelado. O Carnaval celebra a vida e, no estágio atual, aglomeração prenuncia a morte. O que não dá para entender é como, nos dias do Carnaval cancelado este ano por causa da pandemia, as praias estão liberadas, abarrotadas de gente, enquanto hospitais operam no limite e o número diário de mortes segue batendo recordes.
O Brasil, nesses últimos tempos, se tornou uma interminável quarta-feira de cinzas. Há que se cuidar para tentar ficar vivo até o dia da desforra.
February 11, 2021
A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Re(vira)volta da Vacina

Boa parte dos quase setenta pedidos de impeachment contra o presidente B tem como tema sua conduta durante a pandemia. No longo roll de denúncias (provocar aglomerações, não usar máscara, forçar o uso da cloroquina, disseminar falsa informação, etc.) destaca-se a negligência/sabotagem na aquisição da vacina. Esta, ao contrário das outras, é uma acusação injusta.
Acontece que o capitão de artilharia B é um estrategista tão astuto que conseguiu enganar todo mundo – inimigos e inimigos (amigos ele não tem) – no tocante à imunização. Enquanto se falava em Pfizer, Moderna, AstraZeneca, Coronovac, Sputnik, ele tratou de garantir uma vacina produzida na própria capital federal, praticamente num puxadinho do planalto. Além de não depender da China, Inglaterra, Rússia, Índia, EUA, muito menos de São Paulo, a VacCentrão havia comprovado seu poder de proteção muito antes das outras começarem a engatinhar. Foi utilizada pelo ex-presidente T, em 2017, assegurando que chegasse ao fim de seu breve mandato.
Inicialmente, o presidente B não pretendia adquirir a VacCentrão. Apesar da eficácia comprovada, ela tem dois senões: é cara e seu efeito imunológico tem curta duração. O ex-presidente T, por exemplo, precisou tomar uma dose em agosto e outra em outubro. Tomou tanto que a vacina ganhou o apelido popular de toma-lá-dá-cá. Conseguiu manter o cargo, mas esvaziou o tesouro. E sua imagem despencou nas pesquisas de opinião. Como essa vacina imuniza inoculando o vírus vivo, em certas condições a carga viral pode fugir do controle. Aí a VacCentrão sai pela culatra: o vacinado não vira jacaré, mas corre o risco de virar refém. É a re(vira)volta da vacina. B, eleito com o discurso contra o toma-lá-dá-cá, havia planejado blindar-se de outra forma, colocando pessoas estratégicas em pontos-chave. Trouxe o herói da Lava Jato para ser seu superministro da justiça, ignorou a lista tríplice e nomeou um comparsa seu como procurador da república, seguindo os mais estritos critérios técnicos. Mas quando a chapa do clã esquentou nas investigações da rachadinha e do gabinete do ódio e B quis colocar seu guarda-costas na chefia da polícia federal, o superministro roeu a corda e se mandou. Não só saiu, como saiu atirando, fazendo a absurda acusação de que B queria proteger a família. Desde quando o sagrado dever de proteger a famiglia é crime? O presidente, proibido pelo STF de nomear seu cupincha para o cargo, sentiu o cerco apertar. Percebeu que se não garantisse a vacina, perigava virar jacaré no pântano do ostracismo. E partiu para negociar com o laboratório que havia desprezado.
Tomou a primeira dose na eleição para presidente da câmara, cargo decisivo no quesito pedidos de impeachment contra o presidente da república. B tinha que emplacar um candidato para chamar de seu. Escolheu a dedo o pustulante, um deputado do baixo clero acusado de enriquecimento ilícito, prática de rachadinha e, de quebra, de ter batido na mulher. Identificação total. B não economizou nem pechinchou preço. E a vacina, potencializada pelo fator voto secreto, fez valer cada centavo. O candidato de B ganhou de lavada, humilhando a oposição. Mal assumiu e já foi agraciado com mais um pedido de impeachment contra o presidente recém-imunizado.
Por todo esse imbróglio e com os cofres minguados no preocupante contexto da crise econômica, B teve que fazer uma escolha: em qual vacina iria depositar o dindim suado do povo (afinal, há um teto de gastos a respeitar). Optaria por entregar dinheiro público a laboratórios estrangeiros ou aqueceria a economia local? Vacinaria a população contra o coronavírus ou a si mesmo contra o impeachment? Fiel ao lema O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos, deixou os brasileiros ao Deus-dará e foi cuidar de interesses mais mundanos. Mas não pode ser acusado de ter negligenciado a aquisição da vacina.
Resta uma grande questão: se B abriu as comportas do tesouro para comprar 300 deputados, quanto não irá gasta na busca dos setenta milhões de votos para a sua reeleição?
Haverá teto para tanto gasto? Quantas doses de toma-lá-dá-cá o presidente vacinado terá que tomar até o final do mandato? E o Brasil, sobreviverá até 2022? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
February 4, 2021
La Jetée

Filme de Chris Marker – França – 1962.
Chris Marker define La Jetée como uma fotonovela. É o que consta nos créditos iniciais. Eu considero a obra uma viagem. Essa foi a sensação imediata que tive ao assistir o filme pela primeira vez, na companhia de meus colegas da escola de cinema. Foi uma provocação inspiradora, uma espécie de choque revigorante me deparar com essa maneira diferente de fazer cinema.
A grande inovação em La Jetée é a ruptura com o princípio fundador do cinema – o registro do movimento. Marker não roda seus planos, fotografa-os. O filme é uma colagem de fotos, com uma narração em voice over, música e efeitos sonoros. Afinal, o cinema não é uma projeção de fotos em 24 quadros por segundo? Marker “congela” esses quadros, priva-nos da ilusão cinematográfica de movimento e reconstrói essa ilusão na montagem das fotos aliada à trilha, à narração e aos efeitos de som. Essa opção estética tem tudo a ver com a proposta temática do filme. La Jetée – cujo protagonista é um adulto obcecado por uma lembrança de infância – é um ensaio sobre memória e imagem. A foto tem essa qualidade do instantâneo, de capturar o momento, de eternizar um fragmento de ação ou movimento no tempo. A imagem estática da fotografia é uma tentativa de parar o tempo. Marker usa o movimento cinematográfico apenas nos 12 segundos iniciais de La Jetée, não como registro de ação mas em truca, um passeio de câmera sobre a foto de aviões estacionados no aeroporto. Esse travelling de distanciamento e o som de aceleração de turbinas dão a sensação de uma decolagem. Todas as outras fotos são estáticas, “movidas” apenas pela dinâmica da montagem. Em alguns momentos há fusões e sobreposições entre elas.

A trama de La Jetée é tão envolvente quanto o ritmo e a montagem das imagens, é tão densamente dramática quanto a narração. A estrutura do roteiro parece linear, mas é um engano de dar um nó na cabeça, porque o filme acaba questionando a própria linearidade do tempo. O enredo integra ficção científica, guerra, política e romance para fazer essa reflexão sobre o tempo e de quebra deixar um alerta sobre as possíveis consequências da estupidez humana. Vale lembrar que, em 1962, o mundo encarava a ameaça de uma guerra nuclear que chegou a seu momento mais tenso com a crise dos mísseis em Cuba, em outubro daquele ano.

O filme, com quase meia hora de duração, virou um marco na história do cinema e influenciou gerações de cineastas. Dois longas-metragens foram inspirados diretamente em La Jetée: Ano Unha, de Jonás Cuarón (México, 2007) e, o mais conhecido, Os Doze Macacos, de Terry Gilliam (EUA, 1995). Em Os Doze Macacos a hecatombe que torna o mundo inabitável para o ser humano não é a radioatividade após uma guerra nuclear, é um vírus letal.
Após o grande impacto de La Jetée, Cris Marker seguiu produzindo em profusão, principalmente documentários, vídeos experimentais, arte multimídia e exposições fotográficas, integrando estéticas e linguagens e provocando reflexão. É considerado um cineasta da Rive Gauche (margem esquerda) do movimento Nouvelle Vague, grupo de diretores cujas obras tinham uma ligação com o movimento, porém não tão direta quanto o grupo da margem direita (Truffaut, Godard, Chabrol e Rohmer). Marker Faleceu em 2012 com 91 anos. La Jetée permanece vivo em DVD e na internet.
January 28, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Fim da Picada

— Ô meu amigo Pançuelo, tudo em cima?
— Graças a Deus, presidente, tudo em dia.
— Mandei pra ti uns leite condensado pra tu “entrar em forma”.
— Que é isso, presidente, muito obrigado. Adoro leite condensado com mortaldela.
— Boa essa. Tu podia enfiar no Kit Covid do tratamento precoce, diz que leite condensado tem zinco.
— Já vou providenciar, hehe. Que que manda, chefe?
— Que que mando? Eu mando e tu obedece, huahuahua.
— Essa é boa presidente, muito engraçado mesmo.
— É o seguinte, temos que pensá aqui numa estratégia, que a coisa não tá boa no momento. O inimigo tá tirando a cabecinha das trincheiras com esse negócio da vacinação.
— Ah não, tirando a cabecinha não! Mas nem te preocupa, agora tá tudo dominado, já começou a vacinação e o povo vai se aquietar. Eu fiz tudo direitinho como o senhor mandou. Vai ter a vacina, mas a conta-gotas.
— Muito bem!
— O Zé Gotinha não é o símbolo da vacinação? Então, vai ser uma gotinha de AstraZeneca aqui, uma de Coronavac ali. O importante é que não vai ter vacinação em massa, nem perto disso.
— Excelente. Imagina que o teu colega da fazenda, Pauno Deles, me larga essa declaração: “a economia só vai se recuperar quanto tiver vacinação em massa”.
— Isso que eu chamo de fogo amigo, presidente.
— Mui amigo… Pena que não tô em condições de mandar ele pra…
— Imagina, é um cara leal, mas é um civil…
— É, tem isso daí. Ninguém é perfeito.
— Perfeito, presidente, falou tudo. Mas nem esquenta, é Zé Gotinha na cabeça.
— Ótimo. Muito melhor gotinha que agulha. Tu sabe que eu tenho horror de agulha.
— Ah, presidente, mas é só uma picada, não dá nada.
— Tá louco? Eu, ninguém me pica. No exército, no dia da vacinação da BCG, malaria, essas coisas, dei um migué e escapei. Mas agora, com toda essa merda de vacinação e a imprensa furungando, tive que esconder meu histórico de vacinação.
— Foi brilhante decretar sigilo da sua carteira de vacinação por cem anos, um nó estratégico!
— Agora quero ver alguém falar que não tomei nenhuma iniciativa no quesito vacinação… Decreto presidencial e tudo.
— Manobra de gênio, presidente!
— E esse negócio do oxigênio em Manaus?
— Ah, presidente, os caras são uns incompetentes, abriram as pernas pro comércio no final do ano e deu no que deu. Agora querem responsabilizar a gente?
— Não é que eles querem responsabilizar. Eles já tão responsabilizando. Isso e o calcinha apertada começando a vacinação em São Paulo é tudo que a esquerda queria. Tu viu as carreata e panelaço que teve nesse fim de semana?
— Ah, mas isso aí o senhor tira de letra. É só achar um coitado pra bode expiatório, meter no dele e tá feito.
— Pois é, é sobre isso daí que eu queria falar contigo. O procurador da república me ligou. Tá rolando muita pressão em cima dele pra abrir uma investigação no tocante a essa história do oxigênio faltante.
— Ótimo. Manda investigar o prefeito de Manaus e o governador. É certo que tem ali corrupção, superfaturamento e tal.
— Mas a pressão é pra investigar a conduta do governo federal. A oposição e essa imprensa suja tão em cima dele. Já tão chamando ele de engavetador da república.
— Como assim investigar o governo federal? Não deixa, não.
— Tive que liberar.
— Pra ele pedir pro STF investigar o senhor?
— Não, Pançuelo, tá maluco? O ministro da saúde é VOCÊ. Quem teve o alerta que ia faltar oxigênio foi VOCÊ. Quem mandou Kit Covid em vez de cilindro foi VOCÊ. Mas não te preocupa, vão abrir inquérito e cozinhar em banho-maria.
— Mas presidente, nem banho-maria, nem banho-joão! Não quero inquérito contra mim. Eu só segui suas ordens direitinho.
— Mas acabou me expondo, general. Tive que babar o ovo da China, lamber as hemorroidas da Índia, engolir a porra da Venezuela mandando oxigênio pra Manaus. A Globolixo transmitiu ao vivo a reunião da ANVISA sobre a vachina, como se fosse final da Copa do Mundo, só pra me humilhar. Mas o pior foi ver o calcinha apertada fazendo o V da Vitória.
— Não era o V da vida? Ou seria o V da vacina?
— A vacina que se foda, a vida que se dane. Eu tenho é que me livrar dessa. Então, só queria te dar a letra pra tu não ficar sabendo pela imprensa.
— Que eu sou o bode expiatório?
– Tá mais pra boi de piranha, general, tô te mandando pra Manaus sem voo de volta. Tu só me aparece em Brasília de novo no dia D.
— No dia de …?
— De prestar depoimento huahuahua. Mas nem esquenta general, é só uma picada, não dói nada.
Será esse o fim da picada para Pançuelo? E o presidente B, sairá de mais esse episódio vacinado? Ou a turma do impeachment conseguirá, finalmente, desengavetá-lo? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.
January 21, 2021
As Rãs

Livro de Mo Yan – China – 2009.
Mo Yan significa não fale em mandarim. Esse foi o pseudônimo que Guan Moye escolheu para assinar seus livros, oriundo do alerta que os pais faziam a ele quando jovem para não expressar suas opiniões em público nos anos da famigerada Revolução Cultural. Guan acabou oficializando o pseudônimo como seu nome, após alguns problemas para obter os direitos autorais. Mo Yan tornou-se um dos mais importantes escritores chineses contemporâneos. Foi publicado no Brasil somente após ser laureado com o Nobel de literatura em 2012. Sobre o autor, a Academia Sueca declarou: “ele, que com realismo alucinatório, funde contos do folclore popular , história e contemporaneidade”.
As Rãs tem todos esses elementos e mais ainda. Na saga, que percorre a história da China desde a invasão japonesa (1937) até o boom econômico do século XXI, há uma gama de personagens icônicos que o autor constrói e desconstrói como heróis, como ocorria nos movimentos revolucionários dentro do regime comunista, mas ao contrário daqueles, suas virtudes e fraquezas não os mitifica ou vilaniza, apenas os humaniza. À frente dos personagens encontra-se a tia do narrador, Wan Coração, a primeira obstetra da região rural de Gaomi, comunista fervorosa que mais tarde torna-se a coordenadora do programa de controle de natalidade na região. O romance épico também apresenta um humor fino, autoirônico. Na aldeia dos protagonistas havia o costume de dar nomes de partes do corpo aos recém-nascidos: Chen Nariz, Li Mão, Zhaou Testa etc. O narrador, Wan Perna, é um dramaturgo que fez carreira no exército vermelho (assim como o próprio Yan). Esse personagem autobiográfico tampouco é poupado de ter suas fraquezas expostas. Frequentemente comparado a Gabriel Garcia Marquez e seu realismo fantástico, o autor brinca com essa comparação em As Rãs. Ao ler trechos de sua nova peça para a tia, seu marido e seu amante, Wan Perna é criticado por usar demasiadamente fatos reais que podem expor as pessoas do povoado. Perna os tranquiliza, garante que todos os personagens terão nomes estrangeiros e que a aldeia se chamará Vila Macondo. Na estruturação de As Rãs, até a metalinguagem torna-se alvo de humor. O romance inicia em forma de cartas a um professor e termina como uma peça de teatro dentro de outra peça de teatro.
Para mim, o elemento mais cativante do livro, além da verve de um exímio contador de histórias, é o contraponto entre as crenças e superstições dos camponeses e as crenças e slogans do regime. Esse contraponto da tradição x revolução (que partilham, no final das contas, da mesma essência: obstinação e fé cega), costura, ao longo da saga, as transformações ocorridas na China desde os meados do século XX até os dias atuais. Mo Yan trabalha esse contraste de maneira magistral, construindo seu ápice em torno da política oficial do filho único e sua ferrenha aplicação. Mais para o final do romance, quando a história da Tia cede protagonismo para a história pessoal do narrador e a saga adentra o novo século, há uma queda na qualidade literária do humor e do texto. Mesmo assim, As Rãs é uma viagem deslumbrante por um universo mágico, colorido e aterrador. Uma viagem que não dá para perder.
No Brasil, As Rãs foi publicado em 2015, pela Companhia das Letras, com tradução de Amilton Reis. Outros livros do autor traduzidos para o português: Mudança (Brasil e Portugal) e Peitos Grandes, Ancas Largas (Portugal).Seu romance Sorgo Vermelho foi adaptado para o cinema por Zhang Yimou.
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