Jaime Lerner's Blog, page 24

April 22, 2021

Collective

Filme de Alexander Nanau – Romênia – 2019.

Collective, indicado ao Oscar em duas categorias (melhor documentário e melhor filme internacional – o antigo filme estrangeiro), tem dois pontos de ligação com o Brasil. Um deles tem a ver com a carreira do filme: ele foi o vencedor do Festival É Tudo Verdade (2020), festival internacional de documentários realizado no Brasil, que qualifica o vencedor a disputar o Oscar. O outro elo tem a ver com seu ponto de partida: uma tragédia na danceteria Collective em Bucareste, muito semelhante ao incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ocorrido dois anos antes (2013). A tragédia no Brasil teve proporções muito maiores em números de vítimas (242 mortos e 680 feridos) e muito menores na apuração das responsabilidades e na reação da sociedade. Na Romênia, o incêndio que matou 27 jovens na noite da tragédia e outros 37 nos meses seguintes (além de um grande número de feridos), foi o estopim para um protesto maciço contra a corrupção que impregnava o sistema. Os desdobramentos políticos da tragédia e das intensas manifestações de rua culminaram nas renúncias do prefeito e do primeiro-ministro. Um gabinete de tecnocratas, composto por ministros que não eram oriundos de partidos políticos, foi nomeado interinamente até as eleições parlamentares. A sociedade voltou a acreditar que a pressão popular poderia ser um agente de mudanças. Esse clima foi o catalisador do filme.

O documentário está articulado em três eixos. Na primeira parte, acompanha o trabalho do jornalismo investigativo conduzido por Catalin Tolontan, redator-chefe da Gazeta Sporturilor (sim, a investigação partiu de um jornal esportivo, a partir da denúncia de duas fontes internas). Suas revelações e questionamentos acabam derrubando o ministro da Saúde interino e Collective passa a seguir de perto o trabalho do novo ministro. Em paralelo, ao longo de toda a obra, a equipe acompanha os sobreviventes e familiares das vítimas do incêndio. Essa estruturação em torno de imprensa, governo e sociedade cria um painel vigoroso sobre democracia e poder, que extrapola a realidade romena e fala sobre o mundo atual. Que controle temos sobre os representantes que elegemos e qual o controle que eles exercem sobre as nossas vidas? Essa é a grande reflexão de Collective.

Nanau é um adepto do cinema direto. A câmera registra os acontecimentos com o mínimo de interferência. Não há depoimentos, muito menos narração. Em Collective, um texto curto nos créditos iniciais expõe o contexto. A partir daí é puro cinema direto. O ponto forte do filme é o grau de penetração que sua equipe conseguiu nos bastidores. As cenas das reuniões entre os jornalistas e seus informantes são impressionantes, assim como as discussões no gabinete do novo ministro. É espantoso como lograram ter esse acesso e filmar coisas que normalmente permanecem em off. Para o diretor, era fundamental atingir esse nível de inserção para conferir autenticidade ao filme e ao trabalho dos jornalistas investigativos. Para os encontros entre jornalistas e informantes, pessoas que corriam risco de morte se fossem identificadas, Nanau era avisado em cima da hora e tinha 5 minutos de conversa com a fonte para conseguir autorização para filmar. Se não conseguisse, não filmavam. Comprometeu-se a manter segredo sobre suas identidades até o lançamento do filme, e mostrá-lo antes a cada informante para obter a autorização final, algo extremamente arriscado do ponto de vista da produção. Alexander comenta que teve sorte de deparar-se com pessoas corajosas e que realmente almejavam mudanças, ainda que arriscando carreiras e vidas.

O cinema direto de Collective joga o espectador no meio do turbilhão político que marcou o período, e o torna parte da investigação, como se desvelasse junto com os jornalistas o que está acontecendo. As ações da investigação e apuração se desenrolam aos nossos olhos com a dramaticidade e suspense de um thriller.

Para atingir essa qualidade foram mais de cem diárias de filmagem num período de 14 meses, mais de 400 horas de material gravado. Muita coisa interessante ficou de fora, como a história do vocalista que se apresentava na hora do incêndio, o único sobrevivente de sua banda. O filme foi lançado ainda em 2019 e circulou em festivais um pouco antes de a Covid-19 parar tudo. Voltou a circular online e chegou à indicação dupla para o Oscar. Com a pandemia, o tema saúde pública e corrupção ganhou relevância mundial, reforçando ainda mais o impacto de Collective, um ótimo documentário político-investigativo.

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Published on April 22, 2021 07:45

April 15, 2021

Inacreditável

Série – criação de Susannah Grant, Michael Chabon e Ayelet Waldman – EUA – 2019.

Inacreditável é uma das melhores minisséries exibidas na Netflix. O título tem duplo sentido. É inacreditável, no sentido de inconcebível, como a denúncia de estupro de uma jovem torna-se, de repente, não crível. Além de desacreditada, Marie é processada por falsa denúncia. Três anos depois se descobre que ela foi a presa inaugural de um meticuloso estuprador em série. Se o seu caso houvesse sido devidamente apurado, talvez ela fosse a única.

Inacreditável tem oito episódios. Os dois primeiros são de uma densidade massacrante. Apesar ou em função de suas qualidades (direção, roteiro e interpretação impecáveis) são episódios muito difíceis de assistir. O estupro, retratado em flashes repetidos e sem imagens explícitas, e a construção da situação kafkiana que transforma Marie de vítima em ré colocam o espectador no âmago do desespero sofrido pela adolescente e sufocam. Os demais episódios agregam à história de Marie a investigação de outros estupros em distintas localidades. O trabalho abnegado de duas detetives que descobrem, acidentalmente, semelhanças em casos denunciados em suas respectivas delegacias, traz certo alento ao início esmagador.

Merritt Wever e Toni Collette no papel das abnegadas detetives.

O caso de Marie é inacreditável, porém real. A trama é absolutamente fiel aos eventos expostos no artigo An Unbelievable Story of Rape (dezembro de 2015) de T. Christian Miller e Ken Armstrong, publicado na plataforma ProPublica e premiado com o Pulitzer de jornalismo investigativo, artigo que em 2018 virou o livro Falsa Acusação – Uma História Verdadeira. A série, além dos fatos, preserva também o conceito estrutural do artigo, criando uma narrativa paralela do caso de Marie (2008) e da investigação dos outros casos (2011); estrutura que acrescenta dramaticidade e confronta o trabalho relapso de 2008 com o trabalho policial exemplar de 2011. As histórias, embora paralelas, desembocam num ponto de encontro. 

A série denuncia a incredibilidade atribuída às vítimas quando o crime é sexual (“ninguém duvida de uma vítima que relata ter sofrido um assalto”, comenta o advogado de Marie); expõe de forma contundente os traumas e a fragilidade das mulheres violentadas, mas trata também do empoderamento feminino. Mulheres muito diferentes acabam formando uma espécie de confraria, ligadas pelos crimes perpetrados contra elas. Tanto as vítimas como as investigadoras demonstram, cada uma à sua maneira, dignidade e coragem espantosas. A dualidade (trauma/coragem, fragilidade/poder) na condição dessas mulheres é abordada com enorme sensibilidade, e essa é uma das grandes qualidades de Inacreditável.

A série foi feita a muitas mãos: três diretores  Susannah Grant, Lisa Cholodenko e Michael Dinner; e sete roteiristas Jennifer Schuur, Becky Mode, os dois jornalistas e os três criadores já citados. É admirável como todos os episódios mantêm a unidade estética e dramática apesar da autoria compartilhada. Os atores também fazem um trabalho incrível (mas não inacreditável). Destacam-se Kaitlyn Dever, como a jovem Marie, Toni Collette e Merritt Wever, que interpretam as detetives, num elenco em que todos os papéis, principais e secundários, apresentam personagens muito bem construídos e que sustentam o tom de dramaticidade discreta, porém densa, que permeia toda a obra.

Tudo isso torna Inacreditável – uma  série inicialmente difícil de assistir – numa obra imperdível.

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Published on April 15, 2021 08:55

April 8, 2021

Shtisel – terceira temporada

Série – Criação de Ori Elon e Yehonatan Indursky – Israel – 2020.

Exibida na TV israelense em 2013 e 2015, Shtisel rompeu as fronteiras locais em 2018, quando foi licenciada pela Netflix para distribuição internacional. Obteve sucesso estrondoso, surpreendente para uma série sem pancadaria, assassinatos ou sexo e que retrata uma comunidade religiosa que fala hebraico misturado com idish num bairro que parece ter parado no tempo. É uma daquelas obras cuja qualidade aproxima o distante, torna o desconhecido atraente e cumpre com rigor a máxima tolstoiana de ser universal cantando a aldeia. De fato, a comunidade do bairro Geula em Jerusálem mais parece um shtetel, a aldeia judaica na Polônia e Rússia do século XIX. A grande popularidade conquistada pela série resultou na decisão de produzir uma nova temporada. Esta resenha é sobre a terceira temporada, para ler sobre as duas primeiras, clique aqui.

O martelo para uma terceira temporada foi batido em 2019. As filmagens, programadas para abril de 2020, foram adiadas com o surgimento dos primeiros casos de Covid-19 no final de fevereiro. As gravações aconteceram no hiato entre a primeira e a segunda onda da pandemia,  entre dois lockdowns, em julho e agosto, os meses mais quentes do tórrido verão israelense.  Além do calor, que fazia a maquiagem escorrer nos rostos de atores e atrizes usando perucas, longas barbas postiças, enormes chapéus, casacos pretos e meias grossas, os protocolos de segurança equipe com máscaras, testes, transporte e alimentação individual dificultavam a fluidez do trabalho. Os adiamentos, protocolos, seguros adicionais e incertezas encareceram a produção. Talvez por isso a terceira temporada tenha apenas nove episódios em comparação com os doze de cada uma das anteriores e o enredo se restrinja  praticamente ao bairro e arredores, sem os choques e guinadas para o mundo laico, predominantes na primeira e segunda temporadas.

Shtisel, filmando durante a pandemia, no hiato entre dois lockdowns.

A trama dá um salto de quatro anos, acompanhando o hiato temporal entre a produção da segunda e da  terceira temporada. O primeiro episódio mantém a pegada de sensibilidade e, principalmente, de humor que viraram marca registrada da série, humor calcado majoritariamente nas expressões de Shulem, o patriarca dos Shtisel. Embora a pandemia não esteja presente, fica claro, a partir do segundo episódio, que a morte, a perda e o luto serão temas aprofundados. A partir do quarto episódio, as situações e os dramas se repetem, principalmente em torno de encontros e casamentos arranjados; os novos personagens não têm a profundidade e complexidades dos personagens já conhecidos; as histórias paralelas de cada núcleo, que tão bem construíam a trama geral, tornam-se mais episódicas, soltas, sem a integração que dá consistência ao enredo. Há uma situação nova que parece promissora: Lipe, o genro de Shulem, faz o serviço de catering para uma equipe de TV que está rodando uma série dramática no bairro. Abre-se a possibilidade do uso da metalinguagem (a série dentro da série) e de um espelhamento interessante: a série é um olhar secular sobre os ortodoxos, Lipe, ao observar as filmagens e interpretações sobre o seu universo, terá um olhar sobre esse olhar. Infelizmente, nada disso se concretiza. A situação não se desenvolve para além de uma piada interna relacionada a um problema real da produção – conseguir figurantes religiosos para as cenas de rua durante a pandemia –, tornado-se mais um evento de pouca importância no enredo.

Embora não atinja a excelência das duas primeiras, a terceira temporada tem seus bons momentos (principalmente nos primeiros episódios e a penúltima cena, que deveria ser a cena final) e funciona como entretenimento de qualidade. Quem assistiu as temporadas iniciais, obviamente não deixará de ver a terceira e para quem não viu, vale a pena ver as três em sequência. Shtisel termina com um gancho para uma continuação. Se de fato haverá uma quarta temporada, só Deus sabe. Se houver, oremos para que nela seja resgatada a qualidade original.

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Published on April 08, 2021 06:41

April 1, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Dança das Caveiras

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.

Enquanto o Brasil segue batendo recordes de infecções e mortes, o presidente B,  para se divertir um pouco, promoveu uma brincadeira popularmente conhecida como a dança das cadeiras. Chamou seis ministros, uma deputada do consórcio da VacCentrão, um delegado e um diplomata para o salão nobre do Palácio do Planalto. Mandou todo mundo tirar a máscara e circular em torno de seis cadeiras enfileiradas, no ritmo de um hino gospel entoado pela Dámales. A um sinal discreto do regente ela se calou e todos correram para sentar. Na brincadeira dançaram os ministros da Defesa, das Relações Exteriores e da Advocacia-Geral da União. Esses, pode se dizer, caíram de pé.  Cabisbaixos, pegaram suas máscaras e desceram a rampa rumo ao desconhecido. Os outros olharam as etiquetas nas respectivas cadeiras para descobrirem seus novos cargos. O ministro Meendossa voltou à Advocacia-Geral da União, de onde havia sido alçado à pasta da Justiça quando Moro num país Tropical se autodefenestrou e caiu atirando. O ministro-chefe da Casa Civil – um militar – abancou-se no assento do Ministério da Defesa. A Casa Civil foi ocupada por outro general, que antes sentava praça na Secretaria do Governo da Presidência da República, ora tomada pela deputada do VacCentrão. Os outros dois novatos, o diplomata e o delegado, acabaram colocando seus traseiros, respectivamente, no Exterior e na Justiça.

A imprensa entrou no jogo do presidente, campeão mundial em manobras diversionistas, e fez enorme alarido em torno do que chamou de reforma ministerial. No dia seguinte, o alarde se transformou em alarme, quando os três comandantes das Forças Armadas entregaram seus cargos. Isso nunca havia ocorrido, desde a redemocratização. O que estava acontecendo? Estaria B na iminência de cair ou armava um golpe?, indagavam as manchetes, como se uma das hipóteses contrariasse a outra.

O presidente, além de se divertir, conseguiu mais uma vez pautar as redações e diminuir o espaço da calamidade pública nos noticiários. Era péssimo para o moral dos eleitores ver os números das mortes galopando, em contraste com o pinga-pinga da vacinação. Agora estavam todos debatendo os significados ocultos e as possíveis consequências da “reforma”, como se essa fosse a grande crise nacional.  Não perceberam que a dança das cadeiras foi mais um jogo para encobrir a dança das caveiras. Este sim um espetáculo real e macabro, o bailado preferido do presidente.

Tampouco notaram que a verdadeira reforma ministerial não consiste na mudança dos titulares, mas na transformação radical dos ministérios. Ela vem sendo implantada por B desde o dia em que pisou no Planalto: o Ministério da Agricultura virou o Ministério dos Agrotóxicos; o da Justiça e Segurança Pública tornou-se o Ministério da Defesa da Família Presidencial; a pasta da Defesa se converteu no ministério das Garantias Inconstitucionais, ou na Ameaça de Golpe; por sua vez, o Gabinete da Segurança Institucional virou o Apostolado da Arapongagem; a Comunicação transformou-se na Fábrica de Ódio; a Economia – o Ministério da Falência; o Meio-Ambiente virou o QG das Queimadas; a Saúde tornou-se o Ministério da Enfermidade, o SUS mudou para SOS.

E o cargo do Exímio Embaralhador da República? Terá B que se tornar um presidente reformado para o Brasil finalmente debelar a dança das caveiras? Descubra nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on April 01, 2021 08:22

March 25, 2021

A Última Noite

Filme de Spike Lee – EUA – 2002.

Spike Lee ganhou notoriedade por seus filmes polêmicos sobre temas sociais altamente sensíveis, principalmente na abordagem da explosiva relação inter-racial nos Estados Unidos. Faça a Coisa Certa; Malcolm X; Infiltrado na Klan são alguns exemplos. A Última Noite (25th Hour) foge desse padrão. É um dos primeiros longas em que Lee atua como diretor convidado e que não tem um roteiro assinado por ele. O fato de não ser um projeto original do cineasta não resulta em uma abordagem menos autoral ou em uma obra menor em sua cinematografia. Ao contrário, é um dos seus melhores filmes.

O roteiro foi adaptado do livro de estreia de David Benioff, The 25th Hour.  Benioff estreou duplamente, pois foi ele quem roteirizou a adaptação de seu próprio romance, iniciando uma carreira nas letras e no audiovisual. David é um dos criadores da série The Games of Thrones.

Em A Última Noite, Spike Lee encara o desafio de tratar de um drama íntimo, num tom diferente do clima barril de pólvora de Malcolm X, Faça a Coisa Certa e O Verão de Sam. O filme acompanha o protagonista Monty nas últimas vinte e quatro horas de liberdade, antes de ter que se apresentar para cumprir pena de sete anos. Essa jornada é feita de despedidas e acerto de últimas pendências. A linha narrativa, que se estende entre dois amanheceres, é acompanhada por um prólogo e poucos flashbacks que contextualizam a situação. Monty revisita o passado para angariar lembranças que o apoiem no inferno que o aguarda, mas também para tentar entender como se deixou levar até esse inferno. Nas  últimas horas de liberdade Monty já está preso numa encruzilhada temporal, assombrado pela 25ª hora. Um elenco fenomenal encabeçado por Edward Norton e Philip Seymour Hoffman ajuda Lee a mergulhar em zonas profundas do trabalho do ator, onde predominam nuances, pequenos gestos e  silêncio. Isso não esmaece o vigor, nem a dinâmica spikeleeniana. Eventuais arroubos dramáticos reforçam, através do contraponto, o tom mais contido.

Espaços monocromáticos do drama íntimo dentro da boate lotada

Nova York tem uma presença importante no romance. Spike sempre reservou um papel especial para a cidade em seus filmes. De acordo com Benioff, esse foi um dos motivos do convite para dirigir a adaptação. Entre a publicação do livro e as filmagens aconteceu o 11 de setembro.  E a relação da cidade com o filme ganhou outra  dimensão.  Lee integra as cicatrizes recentes da tragédia ao filme como um tributo à cidade que ele ama e por vezes odeia, assim como o protagonista. Os créditos iniciais são projetados sobre feixes de luz que, logo perceberemos, são os dois refletores colocados no lugar das torres gêmeas. A trilha que acompanha essa revelação é absolutamente perfeita. O Marco Zero volta à cena quando os dois melhores amigos de Monty discutem o que será de seu amigo de infância na prisão, mesclando as tragédias, as histórias e o luto.

A “festa de despedida” na boate superlotada é quase um filme dentro do filme, sequência repleta de eventos paralelos, subtramas e uma revelação fatal. Lee articula esses elementos com maestria e originalidade ímpares. Rodrigo Prieto, o diretor de fotografia, também se esbalda nessa sequência, principalmente na maneira como aproveita as luzes coloridas do recinto para marcar, através da monocromia, distintos espaços dramáticos nos eventos paralelos. A intervenção da música diegética nos conflitos é genial.

Mas o ponto alto da obra está reservado para a sequência final. Benioff e Lee criam um desfecho que não é exatamente um desfecho, tampouco um final aberto, é uma terceira dimensão narrativa que une texto e filme de forma especial. Ali o espectador compreende na plenitude a 25ª hora.

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Published on March 25, 2021 09:45

March 18, 2021

Kingdom

Série – criação de Kim Eun-hee – Coreia do Sul – 2019 – duas temporadas.

O que há em comum entre Shakespeare, zumbis e samurais? A série sul-coreana Kingdom. A roteirista Kim Eun-hee e o diretor Kim Seong-hun usam elementos desses três universos para erguerem os pilares da saga medieval. A mescla de linguagens e gêneros tão distantes é uma ousadia repleta de riscos; e é essa ousadia que torna a série especial.

A trama, recheada de conspiração e intrigas palacianas, lembra muito Júlio César, Hamlet, Rei Lear e Macbeth, tragédias que abordam a ambição desenfreada pelo poder. Macbeth ganha ainda uma homenagem visual: em uma das cenas de maior suspense, as árvores da floresta ao lado de Sangju parecem se mover, lembrando a profecia das bruxas na obra shakespeariana: Macbeth jamais será vencido enquanto a floresta de Birnam não marchar contra ele sobre a colina de Dusinam. Assim como na peça, o aparente movimento da floresta antecipa a revelação de um erro que se mostrará fatal.

Se O Bardo não se furtava de convocar fantasmas e bruxas para auxiliá-lo em seus dramas, Eun-hee recruta seus auxiliares no mundo dos mortos-vivos. Os zumbis, na série, encarnam a desgraça produzida pela sanha de poder. Consequência de um plano ardiloso para usurpar o trono do príncipe herdeiro, pessoas que parecem mortas ganham vida durante a noite e saem em busca de carne humana. Suas vítimas são “contaminadas” e também se tornam mortos-vivos. Kingdom supera, no entanto, os clichês dos filmes de zumbis. Não apresenta essas criaturas como um fenômeno sobrenatural, nem as utiliza apenas como elemento aterrorizante. Trata-as como vítimas e sua condição como praga, como símbolo de uma doença contagiosa que pode rapidamente aniquilar um povoado inteiro. Enquanto o príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) e seus generais tentam exterminar a ameaça zumbi pela força da espada, a médica Seo-bi (Bae Doona) busca entender a doença. Há uma relação de colaboração (evidente) e disputa (sutil) entre as artimanhas militares e a ciência, na luta contra a ameaça zumbi.

A ciência representada pela médica Seo-bi ( Bae Doona).

As diversas batalhas trazem para a série o universo samurai. Kingdom tem sua trama localizada na Coreia medieval, durante o período da dinastia Joeson, nos anos de instabilidade e fome que surgiram após as invasões japonesas, ao final do século XVI. Impecável na reconstituição de época, a obra desenha muito bem a distinção de classes do período. A fome da população plebeia é um tema forte ao longo da primeira temporada, bem como o canibalismo. Praticamente toda a ação de Kingdom é composta de lutas ao estilo oriental.  Há cenas épicas de batalhas grandiosas e coreografias muito bem orquestradas de duelos entre vilões e heróis. Alguns princípios sagrados de filmes de samurai são colocados à prova, como os códigos de lealdade e justiça.

Kingdom apresenta uma qualidade cinematográfica raramente vista em obras seriadas. A direção de arte e a fotografia criam um visual espetacular no trabalho de luz, texturas e cores. Os contrastes entre o universo ocre e cinzento dos zumbis e os tons exuberantes do mundo “normal”; o contraponto entre os cenários e roupas dos nobres e dos plebeus; e a contraposição dos palácios e templos em seu esplendor e depois em ruínas, ajudam a compor o clima de alta tensão que permeia a série. A arquitetura das locações escolhidas a dedo contribui enormemente para o impacto estético.

O príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) em meio a luz e arte impecáveis

Apesar de Kingdom ter sido concebida em 2011, na Coreia do Sul, ela me parecia, a cada episódio assistido, mais e mais uma alegoria tragi/absurda sobre o Brasil atual, sufocado pela pandemia e por um projeto de poder perverso e mórbido. Obviamente, não foi essa a intenção da autora (o que prova que a obra ganha vida própria ao encontrar os olhos do espectador), mas há uma declaração reveladora de Eun-hee: “Venho trabalhando na série desde 2011. Quis escrever uma história que reflete os medos e ansiedades dos tempos modernos, abordados, no entanto, pelo prisma da fascinação romântica do período Joseon.” Conseguiu fazê-lo melhor do que imaginava.

Kingdom tem uma terceira temporada prevista. As duas primeiras temporadas podem ser assistidas na Netflix.

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Published on March 18, 2021 06:24

March 11, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: Spray Nasal

Na calada da noite, um avião da Força Aérea Brasileira atravessa os céus do mediterrâneo rumo a uma missão da maior importância. À bordo, dez intrépidos patriotas, liderados pelo chanceler  Honesto Sabujo e pelo filho do presidente, o deputado EB. Sua missão é ir à Terra Santa e trazer de lá o Santo Graal, ou seja, o spray nasal. Por que o EXO-CD24 tornou-se o novo fetiche do presidente? Nas palavras do próprio B: “Como é pra ser usado em quem tá na UTI, não acho que tenha problema nenhum usar esse spray no nariz do cara. O que é esse spray? Não sei. Mas esse produto estava sendo, há 10 anos, estudado em Israel pra combater outro tipo de vírus. Parece até que é um produto milagroso. Parece.”

Ao aterrissar, nossos heróis preparam-se para o primeiro sacrifício: colocar a máscara. Esse é o costume local, em tempos de pandemia. Só a ideia de ter que se sujeitar a essa violência, fez o chanceler arrepiar  quando foi convocado para a missão.

— Israel? — choramingou Sabujo — Adoro aquele pessoal, Presidente, mas a coisa lá tá feia. Quem é pego sem máscara leva multa na hora. E não tem jeitinho, nem carteiraço. O lockdown, então, não é o faz-de-conta que os prefeitos e governadores aplicam aqui: fingem que fecham tudo e o cidadão finge que fica em casa. Os caras lá tão vacinando todo mundo e ainda lacram tudo?!? Aí não tem como ser feliz. Eu sou formado pela escola do Nolavo o’Caralho, Presidente, como vou me sujeitar a botar máscara? É uma afronta à minha liberdade de contaminar e ser contaminado.

— Corta esse mimimi. Sei que é complicado, mas tu vai ter que ir e aguentar no osso. Tô mandado junto pro sacrifício o meu próprio filho, ele também tem o diploma lá do Caralho, mas entende que é por um bem maior. Porra, depois de muita luta conseguimos botar a pandemia no estágio que a gente queria, tá morrendo gente que é uma beleza. Mas agora o povo tá me pressionando pra ter vacina. Não querem mais saber de cloroquina. A gente tem que bolar um substituto. Me tragam a porra desse spray milagroso. Pra ontem. 

E em busca desse milagre, a comitiva peregrinou a Jerusalém, levando no alforje a proposta de um acordo de colaboração.

“Temos muito conhecimento a trocar”, discursa nosso chanceler no encontro com seu colega israelense, no qual é lembrado pelo mestre de cerimônias que deve colocar a máscara. “Israel tornou-se um exemplo para o mundo em termos de vacinação, e o Brasil… tornou-se um grande laboratório a céu aberto para estudar o que acontece com o vírus correndo solto.” Em outras palavras, no acordo proposto Israel entra com o know-how e o Brasil entra como cobaia.

Mas há um lado oculto nessa história, um documento secreto no fundo do alforje, revelado com exclusividade pela Casa do Baralho.

Como Israel, destaque no combate à pandemia,  permite o ingresso, em plena vacinação, da comitiva vinda do maior reprodutor mundial de mutações do vírus? Eis que seu Primeiro-ministro, duas vezes Bi, está  mais uma vez em campanha eleitoral. Assolado por denúncias de corrupção e ameaçado de prisão, ele não pode perder o cargo, mas não conseguiu, nas recentes eleições, maioria para governar tranquilamente. O presidente B oferece a ele, como troca pelo spray nasal, a tecnologia da VacCentrão. Foi para essa negociação secreta que mandou o rebento presidencial.

Duas vezes Bi dá risada ao ouvir a oferta.

— Eu tô no poder há doze anos seguidos. Teu pai mal passou do segundo e quer me ensinar a comprar deputados? Fala sério. Daqui a 15 dias meu destino será decidido nas urnas. O que eu quero de vocês é que me cedam, por duas semanas, todos os robôs. Das redes sociais, whatsapp, telegram, tudo, full time a meu dispor, a partir de hoje.

EB faz muxoxo enquanto puxa a máscara pouco abaixo do nariz. É uma birra oculta contra a ditadura científica.

— Mas Primeiro-ministro, não tem como a gente ficar sem os nossos robôs todo esse tempo. Quem vai alimentar o gado? Todo dia, a toda hora, meu pai é atacado pela imprensa-lixo e pelos comunistas.

— Que comunistas, rapaz? O comunismo se evaporou quando você tinha seis aninhos. Só no Brasil ainda se acredita em ameaça comunista.

— Bibingo! É pra isso que a gente precisa tanto dos robôs.

Conseguirá o líder israelense esse incremento estratégico para sua campanha? Em caso positivo, sobreviverá B duas semanas sem a sua artilharia virtual? E o spray nasal, operará o milagre de aliviar a pressão sobre o presidente? Não perca no próximo episódio de A Casa do Baralho.

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Published on March 11, 2021 06:46

March 4, 2021

Pelé

Filme de David Tryhorn e Ben Nicholas – Inglaterra – 2021.

O Brasil é o país do futebol. Embora os ingleses tenham inventado o jogo, nós o adotamos com amor de mãe. Importamos também o nome e o abrasileiramos; mas a magia do futebol ou o futebol arte, como chamamos, é nosso. O Brasil conquistou cinco títulos mundiais. Feito único, por enquanto. A Inglaterra foi campeã do mundo uma única vez, em 1966, em sua própria casa. Nas duas copas que o Brasil sediou (1950 e 2014), a seleção, embora favorita, deu vexame. A Inglaterra, tirando a vitória caseira, nunca chegou sequer a ser finalista. Nesse contexto, é curioso que uma equipe britânica faça um documentário sobre Pelé, protagonista do domínio brasileiro no cenário futebolístico, documentário que levanta questões tão pertinentes ao Brasil como sociedade e nação.

O nome do Rei do Futebol está ligado a dezenas de filmes, ficcionais ou documentais, de distintas nacionalidades e gêneros. Alguns tentam desvendar o fenômeno; outros tomam emprestada a persona para atrair espectadores. David Tryhorn e Ben Nicholas propõem uma abordagem instigante ao confrontar homem e mito, ao trazer à tona a dimensão humana de Edson Arantes e como enfrentou o status de hiperestrela ao qual foi alçado aos 17 anos de idade. Essa questão se aprofunda (ou acirra) em 1970, quando o rei atinge o ápice da carreira ao liderar o Brasil na conquista do tricampeonato mundial, enquanto o país vive os anos de repressão mais ferrenhos da ditadura militar.

Pelé, celebrando o gol 1000 em Brasília, a convite do ditador Médici.

Além da entrevista com o próprio Pelé, o filme traz depoimentos de ex-jogadores, companheiros do Santos e da seleção, jornalistas e comentaristas de futebol. Traz ainda depoimentos de sua irmã Maria Lúcia, de Gilberto Gil, de Benedita da Silva, Delfim Netto e Fernando Henrique Cardoso. Delfim Netto fala como insider do regime militar. Chega a dar arrepios quando declara que assinou o AI-5. Mas quem melhor aborda a relação copa 1970 e anos de chumbo não são os políticos, são os comentaristas Juca Kfouri e José Trajano, e o músico Gilberto Gil. É uma pena que todos esses depoimentos rendem menos do que poderiam ter rendido. Não sei se a profundidade foi sacrificada em prol da dinâmica da edição ou se os entrevistadores não souberam (ou quiseram) levar seus entrevistados para águas mais profundas. O fato é que as falas se resumem, muitas vezes, a frases de efeito ou ao reforço/complementação da fala anterior, sem desenvolver o tema. Esse toque na superfície, sem avançar, dá a sensação de que Pelé, um filme bom de assistir, poderia ter sido um filmaço.

Ao lado dos vários depoimentos, o doc. promove um reencontro de Pelé com seus ex-companheiros do Santos e exibe imagens de arquivo preciosíssimas, muitas delas fogem das imagens costumeiras quando se trata do Rei. Não são apenas filmes dos jogos e treinamentos, há imagens de Três Corações em 1940, local de nascimento de Edson; cenas do enfrentamento à ditadura, entrevistas de João Saldanha, entre outras preciosidades. O Pelé envelhecido, usando andador ou cadeira de rodas, é uma imagem poderosa que não apaga o fulgor estelar, mas ajuda a trazer à tona o lado humano. Para os amantes da bola, vale mencionar que o filme mostra como questões que consideramos contemporâneas já eram debatidas nos anos 1960, sendo a principal: o talento brasileiro consegue superar a organização tática e a dura marcação europeia?

Ainda que não atinja plenamente o potencial sugerido por seus temas e elementos, Pelé é um filme que vale ser visto, e não só por quem gosta de futebol. A obra evoca um passado recente e o compara com o presente, faz refletir sobre a sociedade que se forjou neste imenso país, seus mitos e seus heróis de verdade.

Pelé pode ser visto na Netflix.

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Published on March 04, 2021 06:47

February 25, 2021

Ethel & Ernest

Filme de Roger Mainwood – Inglaterra – 2016.

Raymond Briggs é um dos artistas gráficos mais reconhecidos na Inglaterra. Ilustrador e quadrinista de histórias para crianças e adultos. Em 1998, aos 64 anos de idade, publicou a novela gráfica Ethel & Ernest, uma homenagem aos seus pais, falecidos em 1971. “Não é uma história extraordinária, mas é a história dos meus pais”, diz ele na abertura do filme licenciado recentemente pela Netflix. Essa é a grande qualidade do longa de animação: mostrar como o banal pode ser especial.

O escritor Dyonélio Machado comentou que o século XX revolucionou o olhar (principalmente por influência de Marx, Freud e Darwin), direcionando os holofotes para o homem comum. É interessante que Ethel & Ernest narra, pelo cotidiano de um casal britânico pra lá de comum – um leiteiro e uma dona de casa –, parte da história deste século XX, de 1928 a 1971. Briggs conta uma história pessoal e singela, inserida naqueles anos de grandes abalos e transformações. Consegue envolver, estender a sua carga emocional íntima a cada um dos leitores. Isso se chama arte.

Os Briggs e a eterna gata Susie – o banal tornado especial

O filme, muito fiel ao livro na estética e no conteúdo, mantém a magia de universalizar o privado. Mas diferente do livro, o filme é um trabalho coletivo, um processo fragmentado entre mais de uma centena de animadores, ilustradores, atores, técnicos em efeitos especiais, roteiristas, músicos, atores e artistas de foley. Isso torna a façanha de narrar uma história íntima e autoral ainda mais desafiadora. O diretor e roteirista Roger Mainwood optou por combinar técnicas tradicionais e modernas nos processos de trabalho. No filme há 61200 desenhos, todos feitos à mão, mantendo o traço artesanal do autor, porém em uma tela digital, o que facilitou a coordenação entre os vários desenhistas e entre som e imagem, principalmente no desenho do sincronismo labial nas falas dos personagens. Muitos cenários e fundos foram pintados em papel (aquarela) e depois escaneados, para manter a textura e os tons retrô da novela gráfica. A computação e o 3D foram usados principalmente na animação de veículos (aviões, carroças, trens, ônibus e carros) e para dar profundidade aos planos com efeitos de luz, neblina e fumaça. O tipo de movimento, a animação, encontra um caminho de ouro entre a fluidez cinematográfica e a composição mais estática de histórias em quadrinhos. A direção de arte é absurdamente meticulosa na recriação de cenários e figurinos nas distintas épocas e se encarrega, com a luz, de desenhar o ápice dramático dos eventos nos anos da Segunda Guerra Mundial. É interessante que o pico dramático da história pessoal (e do filme) dá-se em outro momento e é retratado em outro tom. Um tom absolutamente britânico, como os protagonistas.

Os tons da guerra em Ethel & Ernest.

Embora a obra seja sobre seus pais, há um personagem que, a meu ver, merecia um pouco mais de exposição. Jane, a mulher de Raymond, aparece no filme como uma figura intrigante, mas quase sem voz. Jane sofria de esquizofrenia e foi casada com Raymond de 1963-73. Faleceu de leucemia dois anos após a morte dos sogros.

Raymond, que inicialmente tinha dúvidas se liberava o livro para adaptação, assina o filme como produtor executivo. Conta que, ao ouvir a dublagem pela primeira vez, chorou por dois dias seguidos. Lá estavam seus pais, falando com ele novamente. Briggs abre o filme em um breve e único momento live action, que introduz o elemento da autenticidade, da história pessoal. E, de quebra, revela parte da magia: o esboço do desenho inicial ganhando vida e alma.

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Published on February 25, 2021 07:03

February 18, 2021

Brasil Sem Carnaval

Meu primeiro contato com o Carnaval foi praticamente como turista, em 1985, em Salvador. Havia recém-retornado ao Brasil, depois de morar dezoito anos fora, dos sete aos vinte e cinco anos. Cheguei à capital baiana no Natal, após mais de 30 horas num ônibus lotado de baianos saudosos e saudosistas que iam visitar a terrinha nos dias de feriado. A festa começou ali no veículo, mal saímos do Rio. E seguiu por três meses numa maratona de festejos e lavagens, um esquenta para a grande folia.

O segundo contato foi como cineasta, dez anos depois. Este foi bem mais profundo. Vivia em Porto Alegre, onde se instaurou uma polêmica em torno do projeto da construção de uma pista de eventos no Parque da Harmonia para os desfiles do Carnaval e do Vinte de Setembro, entre outras atividades. Fiquei curioso para investigar a essência do conflito travado entre tradicionalistas e carnavalescos. Durante a pesquisa e filmagens, mergulhei no universo carnavalesco e pude compreender a dimensão dessa festa nos corações e mentes dos que dela participam. Aprendi que a definição do tema, a composição do samba-enredo, a criação das coreografias, a confecção dos carros alegóricos e fantasias são partes de uma produção cultural sui generis, pela efemeridade e, principalmente, pelo envolvimento que mescla profissionalismo com devoção quase religiosa. Conheci talentos geniais e artistas de mão-cheia que, no dia a dia, eram humildes zeladores, costureiras, garis, trabalhadores da indústria e comércio.

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Nessa imersão, que resultou no documentário de longa-metragem Harmonia, entendi porque a festa de Momo, de origem europeia, acabou tornado-se o maior espetáculo da terra justamente no Brasil. O Carnaval, em suas várias metamorfoses, nunca deixou de ser uma festa de inversão em sua essência e pagã na origem. Aqui, no país dos excluídos, foi abraçada por pobres, oprimidos, ex-escravizados e virou a sua desforra. Não uma vingança, mas uma explosão de alegria, beleza e ritmo. A história do Brasil me fez compreender melhor o Carnaval, e o Carnaval me fez conhecer melhor o Brasil.

Difícil, senão impossível, imaginar este país sem Carnaval. Mas essa é a realidade em 2021. Temos um presidente que teme a alegria e venera o ódio. No segundo mês de mandato manifestou seu desprezo pela festa, em um tuíte obsceno e eivado de preconceitos. Este ano publicou, na véspera da data, um decreto para ampliar ainda mais a circulação de armas. Mas não foi ele quem cancelou a folia, foi um vírus ainda mais letal. Este ano não há turistas lotando as nossas ruas, não há desfiles, marchas, puxadores, bonecos gigantes, nem trios elétricos e blocos fazendo o chão tremer. A pandemia também atingiu fortemente os membros das comunidades que fazem o Carnaval em todo o país. No Rio, a Marquês de Sapucaí ficou vazia, mas ganhou iluminação especial para homenagear as vítimas da Covid-19. A chave da cidade, tradicionalmente entregue ao Rei Momo, foi por ele repassada aos profissionais da saúde.

É compreensível que o festejo tenha sido cancelado. O Carnaval celebra a vida e, no estágio atual, aglomeração prenuncia a morte. O que não dá para entender é como, nos dias do Carnaval cancelado este ano por causa da pandemia, as praias estão liberadas, abarrotadas de gente, enquanto hospitais operam no limite e o número diário de mortes segue batendo recordes.

O Brasil, nesses últimos tempos, se tornou uma interminável quarta-feira de cinzas. Há que se cuidar para tentar ficar vivo até o dia da desforra.

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Published on February 18, 2021 07:03