Kingdom

Série – criação de Kim Eun-hee – Coreia do Sul – 2019 – duas temporadas.

O que há em comum entre Shakespeare, zumbis e samurais? A série sul-coreana Kingdom. A roteirista Kim Eun-hee e o diretor Kim Seong-hun usam elementos desses três universos para erguerem os pilares da saga medieval. A mescla de linguagens e gêneros tão distantes é uma ousadia repleta de riscos; e é essa ousadia que torna a série especial.

A trama, recheada de conspiração e intrigas palacianas, lembra muito Júlio César, Hamlet, Rei Lear e Macbeth, tragédias que abordam a ambição desenfreada pelo poder. Macbeth ganha ainda uma homenagem visual: em uma das cenas de maior suspense, as árvores da floresta ao lado de Sangju parecem se mover, lembrando a profecia das bruxas na obra shakespeariana: Macbeth jamais será vencido enquanto a floresta de Birnam não marchar contra ele sobre a colina de Dusinam. Assim como na peça, o aparente movimento da floresta antecipa a revelação de um erro que se mostrará fatal.

Se O Bardo não se furtava de convocar fantasmas e bruxas para auxiliá-lo em seus dramas, Eun-hee recruta seus auxiliares no mundo dos mortos-vivos. Os zumbis, na série, encarnam a desgraça produzida pela sanha de poder. Consequência de um plano ardiloso para usurpar o trono do príncipe herdeiro, pessoas que parecem mortas ganham vida durante a noite e saem em busca de carne humana. Suas vítimas são “contaminadas” e também se tornam mortos-vivos. Kingdom supera, no entanto, os clichês dos filmes de zumbis. Não apresenta essas criaturas como um fenômeno sobrenatural, nem as utiliza apenas como elemento aterrorizante. Trata-as como vítimas e sua condição como praga, como símbolo de uma doença contagiosa que pode rapidamente aniquilar um povoado inteiro. Enquanto o príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) e seus generais tentam exterminar a ameaça zumbi pela força da espada, a médica Seo-bi (Bae Doona) busca entender a doença. Há uma relação de colaboração (evidente) e disputa (sutil) entre as artimanhas militares e a ciência, na luta contra a ameaça zumbi.

A ciência representada pela médica Seo-bi ( Bae Doona).

As diversas batalhas trazem para a série o universo samurai. Kingdom tem sua trama localizada na Coreia medieval, durante o período da dinastia Joeson, nos anos de instabilidade e fome que surgiram após as invasões japonesas, ao final do século XVI. Impecável na reconstituição de época, a obra desenha muito bem a distinção de classes do período. A fome da população plebeia é um tema forte ao longo da primeira temporada, bem como o canibalismo. Praticamente toda a ação de Kingdom é composta de lutas ao estilo oriental.  Há cenas épicas de batalhas grandiosas e coreografias muito bem orquestradas de duelos entre vilões e heróis. Alguns princípios sagrados de filmes de samurai são colocados à prova, como os códigos de lealdade e justiça.

Kingdom apresenta uma qualidade cinematográfica raramente vista em obras seriadas. A direção de arte e a fotografia criam um visual espetacular no trabalho de luz, texturas e cores. Os contrastes entre o universo ocre e cinzento dos zumbis e os tons exuberantes do mundo “normal”; o contraponto entre os cenários e roupas dos nobres e dos plebeus; e a contraposição dos palácios e templos em seu esplendor e depois em ruínas, ajudam a compor o clima de alta tensão que permeia a série. A arquitetura das locações escolhidas a dedo contribui enormemente para o impacto estético.

O príncipe Lee Chang (Ju Ji-hoon) em meio a luz e arte impecáveis

Apesar de Kingdom ter sido concebida em 2011, na Coreia do Sul, ela me parecia, a cada episódio assistido, mais e mais uma alegoria tragi/absurda sobre o Brasil atual, sufocado pela pandemia e por um projeto de poder perverso e mórbido. Obviamente, não foi essa a intenção da autora (o que prova que a obra ganha vida própria ao encontrar os olhos do espectador), mas há uma declaração reveladora de Eun-hee: “Venho trabalhando na série desde 2011. Quis escrever uma história que reflete os medos e ansiedades dos tempos modernos, abordados, no entanto, pelo prisma da fascinação romântica do período Joseon.” Conseguiu fazê-lo melhor do que imaginava.

Kingdom tem uma terceira temporada prevista. As duas primeiras temporadas podem ser assistidas na Netflix.

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Published on March 18, 2021 06:24
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