Jaime Lerner's Blog, page 23
June 3, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A copa da América é nossa!

Aviso: esta série é uma obra coletiva, escrita por vários roteiristas. Alguns se conhecem, outros não. O fato é que um não sabe o que o outro está fazendo.
Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
Maio foi malo para o capitão de artilharia, o presidente B.
A oposição finalmente entendeu o novo “normal” na política brasileira e logrou empurrar a CPI da Covid goela abaixo do presidente do senado que não via, até então, “o momento como propício”. Emplacou ainda os cargos de presidente, vice e relator, deixando os senadores governistas – em minoria – a ver navios. Dia após dia, com transmissão ao vivo para todo o Brasil, foi escancarada a política do governo de sabotar o combate à pandemia para infectar todo mundo e liquidar logo com o vírus, junto com boa parte da população. Não é ainda um processo de impeachment, mas é uma exposição que faz o presidente sangrar. B ficou tão perturbado, que esqueceu de comprar presente para o dias das mães. Em vez disso, foi passear de moto no Rio de Janeiro.
A polícia federal também aprendeu a lidar com o novo “normal” da intromissão palaciana. Mesmo com o superintendente do Amazonas afastado do cargo após denunciar o ministro do meio ambiente Amazon-is-for Salles, a PF continuou a investigar na surdina, driblou o engavetador geral da república e foi direto ao STF. A procuradoria geral da república, com o rabo entre as pernas, foi obrigada a aceitar a notícia-crime contra o ministro. Denunciado por tráfico de influência no tráfico de madeira ilegal, crime que envolve o Ibama e o escritório de advocacia no qual é sócio com a mãe, For Salles é o primeiro investigado de corrupção nas entranhas do governo B.
Como se não bastasse tudo isso daí, o feitiço virou contra o feiticeiro no tocante às eleições. O presidente, em permanente campanha desde sua posse, conseguiu mais uma vez pautar o debate no Brasil com as eleições de 2022, como se não houvesse pandemia, desemprego, ano letivo paralisado, economia afundando e fome. O anacrônico voto impresso e o resultado do pleito distante viraram temas recorrentes, como se as eleições fossem para amanhã. B se divertiu muito com a manobra diversionista, subindo em palanques e provocando aglomerações. Eis que em maio as pesquisas de intenção de voto apontaram para a vitória de seu arqui-inimigo L, de forma peremptória. B sentiu as hemorroidas latejarem.
O pior, no entanto, ainda estava por vir. E aconteceu no sábado, dia 29. Centenas de milhares de brasileiros foram às ruas, deixando de lado o dilema como protestar sem aglomerar, ardil que entregava as ruas praticamente nas mãos dos Bapoiadores. Percebendo que a letalidade de um negacionista no poder era maior que a do vírus, o povo arrebentou o nó e tomou as cidades em protestos maciços. Foi de arrepiar, e não só as hemorroidas presidenciais.
Mas B é um campeão. Medalha de ouro em rachadinhas, artilheiro de gols de placa com mergulho de barriga, unificador dos cinturões nas categorias Exterminador do Futuro, do Presente e do Passado, recordista na troca de ministros da saúde em plena pandemia, é imbatível, também, na modalidade desvio da atenção. Com a CPI da Covid apertando, a PF encurralando, L crescendo nas pesquisas e o povo nas ruas exigindo o seu impeachment, o que ele faz? Traz a Copa América para o Brasil.
Embarcará o país nessa nova cortina de fumaça? Erguerá o presidente, ao final do torneio, mais essa taça? Ou essa copa acabará sendo para B o que a copa do mundo foi para a ex-president@ D? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!
May 27, 2021
A Febre

Filme de Maya Da-Rin – Brasil – 2019.
A Febre é um filme surpreendente. Sem arroubos dramáticos, planos mirabolantes ou uma trama intrincada, vai envolvendo o espectador como uma corrente de águas profundas que correm silenciosas sob os nossos pés. Há tempos não assistia uma combinação tão bem sucedida de ousadia e sensibilidade. Maya Da-Rin, em seu primeiro longa de ficção, consegue imprimir uma marca autoral muito forte na estética e nas temáticas que aborda.
Nos créditos iniciais, a obra já apresenta seu cartão de visitas: uma orquestra de grilos e ruídos da mata, antecipando que se trata de um filme que valoriza o som. A orquestra segue sua sinfonia junto a primeira imagem, um plano frontal do protagonista na frente de uma textura metálica. A câmera recua aos poucos, não em travelling contínuo, mas em pequenos afastamentos e paradas. À medida que o close de Justino torna-se um plano médio, agrega-se aos zumbidos da floresta o som metálico de trabalho da cidade. A textura do fundo ganha vida num enigmático jogo de luzes. Logo entenderemos que é um contêiner na noite movimentada do porto de Manaus. Justino, com seu capacete de operário, tem uma expressão sofrida, sonolenta. Há claramente um processo interior fervilhando por baixo daquele capacete. Processo pronunciado pelo duelo/dueto entre os zunidos da floresta e o som da cidade. A Febre dispensa o uso de música na construção do clima emocional da obra e de seus personagens; sua trilha sonora, composta de ruídos de ambiente, assume essa função e expressa o mundo interior de Justino ao longo de todo o filme. Felippe Schultz Mussel assina o desenho de som.
Justino é um ser territorial e A Febre é um filme territorial. A cidade de Manaus é o espaço/ringue dos conflitos do protagonista. O desenho de luz e, principalmente, a composição dos quadros constroem (como uma poesia) a tensão entre asfalto e floresta; mapeiam, desenham e embaralham os territórios e fronteiras dos dois mundos que se digladiam no coração de Justino. Nos enquadramentos de A Febre, o porto é uma coreografia de contêineres e máquinas que escondem o rio, e a cidade parece estar prestes a ser invadida pela mata. A direção de fotografia é da uruguaia-argentina Barbara Alvarez.

O trabalho de atores soma-se ao som, à direção de arte e à fotografia na tessitura deslumbrante de A Febre. Todos – indígenas e não indígenas, profissionais ou atores de primeira viagem – atuam muito bem, mas Regis Myrupu (Justino) e Rosa Peixoto (sua filha Vanessa) são os grandes destaques. Constroem personagens singularmente carismáticos, interessantes e profundos. Suas falas e silêncios, olhares, expressões e movimentos dão esteio ao ritmo lento do filme, aos planos de longa duração; conferem importância dramática a ações corriqueiras e conversas aparentemente banais. Além disso, pai e filha personalizam a diferença das duas gerações em relação à “integração” ao mundo dos brancos, ou ao afastamento do seu modo de vida. Regis e Rosa colaboraram também na qualificação do roteiro, trazendo o ponto de vista Desana para uma obra de realizadora não indígena.

A Febre é bilíngue, mais uma entre várias ousadias. O português e tukano se misturam nas conversas de Justino e seus familiares. Uma das cenas mais tocantes que remete à riqueza linguística indígena é o diálogo entre Vanessa e uma índia mais velha trazida ao hospital onde a jovem trabalha. As duas falam idiomas diferentes e uma não entende a outra. No entanto, se estabelece uma conexão que perpassa o entendimento da conversa.
A Febre é um drama intimista sobre um homem em crise existencial. Sendo este homem um indígena, que deixou sua aldeia há 20 anos para viver em Manaus, o drama intimista ganha outra dimensão e se torna representativo de um povo e um meio de vida que vem sendo massacrado há meio milênio. Na sensibilidade do olhar sobre o outro e na abordagem do processo de aculturação, o filme me lembrou outra obra impactante, o israelense Tempestade de Areia.
A Febre foi premiado no festival de Brasília com os candangos de melhor filme, melhor direção, melhor som, melhor fotografia e melhor ator principal. Regis Myrupu ganhou também o prêmio de melhor ator no Festival de Locarno, na Suíça. A Febre pode ser visto na Netflix.
May 20, 2021
Fuga

Filme de Jonas Poher Rasmussen – Dinamarca – 2021.
Um dos ótimos filmes que pude assistir no Festival É Tudo Verdade foi o documentário em animação Fuga, premiado, entre outros, no Sundance Festival. Documentário e animação são dois formatos que raramente se misturam; de um documentário se espera imagens reais e não desenhos animados, embora se aceite o uso de encenação e atores, em live action, para ilustração de um depoimento, reconstituição de um evento ou para narração.
Dois exemplos de documentários de animação de longa-metragem que revolucionaram conceitos são Valsa Com Bashir (2008) e A Onda Verde (2010). Fuga (ou Flee) junta-se a esses exemplos como um retrato documental da realidade que não poderia ser feito de outra forma a não ser pelo desenho animado. Neste caso o filme é ancorado numa pessoa que deseja permanecer incógnita e ganha, portanto, um avatar animado; sua história cobre um longo período do passado e envolve situações como tráfico humano e contrabando de refugiados, em que são raros os registros de imagens; e, o mais importante, o filme se constitui numa espécie de catarse, de processo terapêutico para seu protagonista. Lembranças, traumas e sonhos compõem essa história e filmar o inconsciente é ainda mais complicado do que registrar a ação ilegal de contrabando de pessoas. No desafio de mergulhar nas profundezas da psique, Fuga tem muito a ver com Valsa com Bashir, dois soberbos escafandristas da alma.

Jonas Rasmussen, então adolescente, conheceu Amin Nawabi (pseudônimo) quando este ingressou na sua escola. Soube que era refugiado do Afeganistão e que chegou sozinho à Dinamarca. O pai desapareceu após ter sido preso em Cabul e sua mãe e irmãs foram assassinadas na sua frente. Jonas e Amin tornaram-se amigos, mas Amin nunca conseguiu falar sobre seu passado. Aos 36 anos, prestes a se casar, Nawabi decidiu contar sua verdadeira história para o amigo cineasta, com a condição de não aparecer no filme. No final surpreendente se entende o motivo do anonimato, motivo que vai além de um bloqueio emocional.
Fuga tem desenhos simples e animação em 2D, mas não se engane, a estética é impactante, tanto na recriação imagética das memórias que se mesclam com imagens de arquivo e filmes caseiros em super 8 e, principalmente, nos momentos dramáticos, quando a animação expressa de maneira sofisticada e visceral os sentimentos do refugiado.
A odisseia de Amin, narrada nesse processo terapêutico, quase detetivesco, lança luz diferente sobre o tema dos refugiados, um dos grandes problemas globais do início do século XXI. O depoimento pessoal, o ponto de vista íntimo, expõe a dimensão mais profunda do processo emocional de quem se vê, de repente, despido de seus direitos, de sua dignidade e, imerso em fragilidade, a mercê de burocratas, criminosos e autoridades abusivas. Telenovelas mexicanas, tesão pelo Van Damme, lembranças da infância e a força dos laços familiares são o contraponto à sucessão de tragédias e à intensidade dramática do calvário de Amin.
Fuga é uma coprodução internacional entre empresas e instituições da Dinamarca, França, Suécia, Noruega, EUA, Eslovênia, Estônia, Espanha e Itália. Os idiomas falados no filme são dinamarquês, inglês, dari e russo. O filme será lançado comercialmente em junho de 2021 na Dinamarca. Esperemos que chegue rapidamente ao Brasil e que possa ser visto, quando aportar por aqui, nas salas de cinema.
May 13, 2021
Pátria

Livro – Fernando Aramburu – Espanha – 2016.
Pátria é um crime perfeito. Sua narrativa é tão envolvente que chega a encobrir a sofisticação do texto e a genialidade de sua estrutura, como um crime perfeito encobre os rastros do autor. Em outras palavras, o leitor se esquece que está lendo e é absorvido pela trama e pelas vidas de Miren, Bittori, Nerea, Txato, Joxe Mari, Arantxa, Joxian, Gorka e Xabier. Como um crime perfeito, o livro evidencia o drama das vítimas e nos desafia com seus mistérios.
Normalmente, os romances de vulto dão maior importância aos personagens, usando a história como elemento para testá-los e expô-los, enredando-os em problemas e conflitos. Em Pátria, os protagonistas também parecem ter maior importância do que o enredo, porém mais do que um romance de personagens a obra é um tratado sobre as relações, ou sobre os mecanismos ocultos que criam (e destroem) vínculos entre amigos, vizinhos, amantes, cidadãos, pais, filhos, companheiros, cúmplices. Pátria coloca esses laços à prova no contexto da luta armada do ETA, num vilarejo do País Basco em um período de três décadas. Seu evento central é o assassinato de um dos protagonistas e suas consequências na vida das famílias da vítima e a do algoz.
Fernando recheia seu texto em espanhol com termos em euskera (o idioma basco, proibido na Espanha durante a ditadura franquista). O euskera, de raiz desconhecida, é muito diferente de todos os outros idiomas europeus e sua sonoridade traz um tempero especial ao texto e confere autenticidade aos diálogos e personagens. O autor utiliza ainda, na condução da história, um narrador onisciente em terceira pessoa. Esse narrador observador transforma-se, de repente, e apenas por instantes, em cada um dos nove personagens, através de breves expressões em primeira pessoa. O recurso soaria estranhamente esquizofrênico se não fosse articulado de forma genial. Outro elemento sofisticado é a aplicação meticulosa de dosagens de humor, por um lado, e de melodrama, por outro, na tragédia que envolve as duas famílias.
Aramburu estrutura seu romance como uma obra de Gaudí: arquitetura arrojada e construção sólida. A impressão é que não há regra ou planejamento por trás da quebra da cronologia do texto, nem da determinação dos capítulos e sequências em que cada personagem assume e reassume o protagonismo. Impressão enganosa. Esse vai e vem no tempo e entre os personagens é uma aula de como envolver o leitor e enriquecer o painel de relações, aspirações e conflitos através da estrutura. O romance oferecido em fragmentos, num encadeamento que preserva a fluidez, acaba nos tornando cúmplices do crime perfeito.
O assassinato de Txato – um crime ou ação terrorista, para alguns, e um ato patriótico para outros – suscita questões sobre nacionalismo, independência e fanatismo. E reflete sobre como a luta por uma causa justa pode se desvirtuar, quando a causa é colocada acima de tudo e de todos.
A narrativa envolvente de Pátria, a sofisticação da escrita e os temas que aborda resultaram num casamento perfeito entre sucesso comercial e reconhecimento literário. O livro virou série da HBO, a primeira série original espanhola da emissora. O autor se emocionou ao assistir a adaptação televisiva, e revelou que não consegue mais pensar em seus personagens sem enxergar os atores que dão cara e voz às suas criaturas.
May 6, 2021
Presidente
Filme de Camilla Nielsson – Dinamarca/EUA/Noruega – 2021.
Em 2013, o Zimbábue promulgava uma nova constituição. Governado pela mão de ferro de Mugabe, desde sua independência em 1980, o país via na carta magna um passo enorme rumo à democracia e a tão almejada alternância no poder. A nova constituição limitava o mandato presidencial a um período de cinco anos com possibilidade de uma única reeleição. A regra, porém, passaria a valer a partir da eleição seguinte e Mugabe, portanto, continuava no poder. A cineasta dinamarquesa Camilla Nielsson foi ao país africano cobrir o processo constituinte, cobertura que resultou no documentário Democrats, seu primeiro longa. O filme fez boa carreira em festivais, mas foi proibido de exibição no Zimbábue.
Em 2017, o presidente foi preso pelo exército num golpe orquestrado pelo seu vice Emmerson Mnangagwa. Mugabe então negociou a liberdade em troca da renúncia e o vice assumiu, prometendo convocar eleições democráticas e transparentes para o ano seguinte.
Camilla voltou ao país em 2018 para pleitear na justiça a liberação de seu filme. Conseguiu bem mais do que isso. Em meio ao turbilhão pré-eleitoral, dez anos após o último pleito cercado de violência e fraude, um dos participantes de Democrats sugeriu que filmasse a disputa entre o presidente Mnangagwa, da União Nacional Africana do Zimbábue (partido de Mugabe), e o jovem Nelson Chamisa, do Movimento pela Mudança Democrática (MDC). A grande questão que pairava no ar não era quem seria o vencedor, mas se o pleito seria conduzido de maneira limpa, como prometera Mnangagwa. Presidente é a resposta a essa pergunta.
O documentário é articulado como um thriller. Apesar de ser um puro sangue da escola do documentário direto (apresentação dos eventos filmados com a mínima intervenção da câmera e do diretor), a carga dramática parece a de um filme de ficção. A equipe em campo era mínima (Henrik Bohn Ipsen como diretor de fotografia e operador de câmera e a diretora, que também operava o som), num formato que remete ao jornalismo. No entanto, o olhar e a construção narrativa do filme vão muito além da reportagem. A edição é fundamental nessa construção e na dinâmica avassaladora. Nos 130 minutos que passam voando, Presidente apresenta um mosaico de personagens instigantes, um vislumbre de uma nação multicultural com 16 idiomas oficiais, conflitos políticos, éticos e morais e a descoberta de um crime. Ingredientes captados em três meses intensos de filmagem, acompanhando a disputa eleitoral, o resultado da votação e seus desdobramentos.
Presidente levanta questões complexas, algumas apresentadas explicitamente, outras provocadas nas entrelinhas. Em mim despertou a reflexão sobre o quanto o modelo de democracia representativa forjado no ocidente se encaixa em outras culturas e sociedades, e o quanto esse modelo faz parte do pacote da herança do colonialismo europeu e por ele é aviltado. Camilla comentou em entrevista que, apesar do sucesso do filme, sente-o como uma crônica do fracasso. Fracasso que atribui fortemente à atuação da comunidade internacional e seus observadores, que acabaram legitimando o processo. Comunidade na qual ela, como cineasta europeia filmando na África, se reconhece como parte.
Presidente ganhou a competição internacional do festival É Tudo Verdade e o Prêmio Especial do Júri por Cinema Vérité no festival de Sundance, em 2021. Distribuido pela Cinephil, em breve deve marcar presença nas telas.
April 29, 2021
Os Curtas no Oscar 2021

O Oscar em 2021 teve que se reinventar. A pandemia não modificou apenas a data e o formato da cerimônia de premiação, isso foi o de menos, mas fechou as salas de cinema no mundo inteiro durante quase todo o ano de 2020. Além disso, por vários meses, paralisou a atividade de produção audiovisual. Atividade que está sendo retomada, com maior ou menor intensidade, em vários pontos do planeta. Entre outras coisas, a Academia teve que abrir mão de uma de suas regras de ouro: filme concorrente ao Oscar tem de ser exibido, previamente, em um cinema de Los Angeles. O golpe duro da reclusão social na já combalida exibição cinematográfica acabou fortalecendo outros meios de distribuição, principalmente as grandes plataformas de streaming que nos “entregam” os filmes em casa, na hora que quisermos. Frances McDormand, ao receber a estatueta de melhor atriz por Nomadland, conclamou as pessoas a verem o filme nos cinemas, quando for possível, e trazer o máximo de pessoas para encher as salas. Discurso que reforça o receio de que esse ritual pessoal/coletivo possa estar em vias de extinção.
Por outro lado, o fortalecimento dos serviços de streaming ampliou o acesso aos curtas indicados ao Oscar. O curta-metragem, formato não comercial e por isso quase invisível aos olhos do público em geral, é muito mais do que um degrau para um cineasta chegar ao longa. É um espaço de ousadia e experimentação, livre das amarras comerciais, muitas vezes avessas ao risco.
Os vencedores Dois Estranhos (melhor curta-metragem de ficção) e como Se Algo Acontecer… Te Amo (melhor curta-metragem de animação) são ótimos exemplos dessa experimentação e ousadia. Ambos tratam de questões atuais da sociedade norte-americana, com abordagens e narrativas nada convencionais.
Dirigido por Travon Free e Martin Desmond Roe, Dois Estranhos aplica de maneira genial a prisão do personagem em um loop temporal para ilustrar o surrealismo kafkiano da relação polícia x jovens negros. Esse loop temporal encarcera, em sua prisão simbólica, não só o protagonista, mas a nação inteira. Apesar da dimensão trágica do tema, o filme é recheado de humor expresso em diálogos inteligentes e situações surpreendentes.

Se Algo Acontecer…Te Amo, direção de Michael Govier e Will McCormack, retrata um casal em luta e em luto. Não há diálogos no filme, e os desenhos – quase sempre sombras em carvão – se movimentam e se transformam em torno e no interior dos personagens para expor o desespero, expressar a impossibilidade de lidar com a perda e com lembranças que aliviam e dilaceram. O filme é uma experiência puramente sensorial e estética, e essa estética carrega toda a força dramática da obra.
Colette, dirigido por Anthony Giacchino (melhor curta documentário), não tem a ousadia formal dos dois curtas mencionados, mas documenta um ato de coragem excepcional. A visita de Colette Marin-Catherine, de noventa anos, ao campo de prisioneiros no qual seu irmão morreu na Segunda Guerra Mundial. Ambos, muito jovens, faziam parte da resistência à ocupação nazista na França. Acompanhada de uma jovem pesquisadora, o impacto da viagem tece uma relação especial entre as duas.

O filme que mais me tocou foi A Concerto is a Conversation, indicado na categoria de curta documentário. O filme, dirigido por Kris Bowers e Ben Proudfoot, é uma conversa muito especial entre neto e avô, interação repleta de sensibilidade e de pequenas grandes surpresas. O avô, Horace Bowers, 91 anos, é um personagem fantástico, embora real. Os temas individuais e sociais são entremeados de forma muito perspicaz nos treze minutos do filme. Dizer mais do que isso estragaria algumas das surpresas.
É interessante que os documentários Colette e A Concerto is a Conversation, embora muito diferentes, são construídos em torno da relação entre nonagenários e jovens, e acabam se configurando numa espécie de legado, de passagem de bastão e conhecimento.
Dois Estranhos e Se Algo Acontecer…Te Amo podem ser vistos na Netflix. Colette e A Concerto is a Conversation podem ser vistos no Youtube, por enquanto, com legendas em inglês. São ótimas oportunidades de curtir o formato de curta duração.

April 22, 2021
Collective

Filme de Alexander Nanau – Romênia – 2019.
Collective, indicado ao Oscar em duas categorias (melhor documentário e melhor filme internacional – o antigo filme estrangeiro), tem dois pontos de ligação com o Brasil. Um deles tem a ver com a carreira do filme: ele foi o vencedor do Festival É Tudo Verdade (2020), festival internacional de documentários realizado no Brasil, que qualifica o vencedor a disputar o Oscar. O outro elo tem a ver com seu ponto de partida: uma tragédia na danceteria Collective em Bucareste, muito semelhante ao incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, ocorrido dois anos antes (2013). A tragédia no Brasil teve proporções muito maiores em números de vítimas (242 mortos e 680 feridos) e muito menores na apuração das responsabilidades e na reação da sociedade. Na Romênia, o incêndio que matou 27 jovens na noite da tragédia e outros 37 nos meses seguintes (além de um grande número de feridos), foi o estopim para um protesto maciço contra a corrupção que impregnava o sistema. Os desdobramentos políticos da tragédia e das intensas manifestações de rua culminaram nas renúncias do prefeito e do primeiro-ministro. Um gabinete de tecnocratas, composto por ministros que não eram oriundos de partidos políticos, foi nomeado interinamente até as eleições parlamentares. A sociedade voltou a acreditar que a pressão popular poderia ser um agente de mudanças. Esse clima foi o catalisador do filme.

O documentário está articulado em três eixos. Na primeira parte, acompanha o trabalho do jornalismo investigativo conduzido por Catalin Tolontan, redator-chefe da Gazeta Sporturilor (sim, a investigação partiu de um jornal esportivo, a partir da denúncia de duas fontes internas). Suas revelações e questionamentos acabam derrubando o ministro da Saúde interino e Collective passa a seguir de perto o trabalho do novo ministro. Em paralelo, ao longo de toda a obra, a equipe acompanha os sobreviventes e familiares das vítimas do incêndio. Essa estruturação em torno de imprensa, governo e sociedade cria um painel vigoroso sobre democracia e poder, que extrapola a realidade romena e fala sobre o mundo atual. Que controle temos sobre os representantes que elegemos e qual o controle que eles exercem sobre as nossas vidas? Essa é a grande reflexão de Collective.

Nanau é um adepto do cinema direto. A câmera registra os acontecimentos com o mínimo de interferência. Não há depoimentos, muito menos narração. Em Collective, um texto curto nos créditos iniciais expõe o contexto. A partir daí é puro cinema direto. O ponto forte do filme é o grau de penetração que sua equipe conseguiu nos bastidores. As cenas das reuniões entre os jornalistas e seus informantes são impressionantes, assim como as discussões no gabinete do novo ministro. É espantoso como lograram ter esse acesso e filmar coisas que normalmente permanecem em off. Para o diretor, era fundamental atingir esse nível de inserção para conferir autenticidade ao filme e ao trabalho dos jornalistas investigativos. Para os encontros entre jornalistas e informantes, pessoas que corriam risco de morte se fossem identificadas, Nanau era avisado em cima da hora e tinha 5 minutos de conversa com a fonte para conseguir autorização para filmar. Se não conseguisse, não filmavam. Comprometeu-se a manter segredo sobre suas identidades até o lançamento do filme, e mostrá-lo antes a cada informante para obter a autorização final, algo extremamente arriscado do ponto de vista da produção. Alexander comenta que teve sorte de deparar-se com pessoas corajosas e que realmente almejavam mudanças, ainda que arriscando carreiras e vidas.
O cinema direto de Collective joga o espectador no meio do turbilhão político que marcou o período, e o torna parte da investigação, como se desvelasse junto com os jornalistas o que está acontecendo. As ações da investigação e apuração se desenrolam aos nossos olhos com a dramaticidade e suspense de um thriller.
Para atingir essa qualidade foram mais de cem diárias de filmagem num período de 14 meses, mais de 400 horas de material gravado. Muita coisa interessante ficou de fora, como a história do vocalista que se apresentava na hora do incêndio, o único sobrevivente de sua banda. O filme foi lançado ainda em 2019 e circulou em festivais um pouco antes de a Covid-19 parar tudo. Voltou a circular online e chegou à indicação dupla para o Oscar. Com a pandemia, o tema saúde pública e corrupção ganhou relevância mundial, reforçando ainda mais o impacto de Collective, um ótimo documentário político-investigativo.
April 15, 2021
Inacreditável

Série – criação de Susannah Grant, Michael Chabon e Ayelet Waldman – EUA – 2019.
Inacreditável é uma das melhores minisséries exibidas na Netflix. O título tem duplo sentido. É inacreditável, no sentido de inconcebível, como a denúncia de estupro de uma jovem torna-se, de repente, não crível. Além de desacreditada, Marie é processada por falsa denúncia. Três anos depois se descobre que ela foi a presa inaugural de um meticuloso estuprador em série. Se o seu caso houvesse sido devidamente apurado, talvez ela fosse a única.
Inacreditável tem oito episódios. Os dois primeiros são de uma densidade massacrante. Apesar ou em função de suas qualidades (direção, roteiro e interpretação impecáveis) são episódios muito difíceis de assistir. O estupro, retratado em flashes repetidos e sem imagens explícitas, e a construção da situação kafkiana que transforma Marie de vítima em ré colocam o espectador no âmago do desespero sofrido pela adolescente e sufocam. Os demais episódios agregam à história de Marie a investigação de outros estupros em distintas localidades. O trabalho abnegado de duas detetives que descobrem, acidentalmente, semelhanças em casos denunciados em suas respectivas delegacias, traz certo alento ao início esmagador.

O caso de Marie é inacreditável, porém real. A trama é absolutamente fiel aos eventos expostos no artigo An Unbelievable Story of Rape (dezembro de 2015) de T. Christian Miller e Ken Armstrong, publicado na plataforma ProPublica e premiado com o Pulitzer de jornalismo investigativo, artigo que em 2018 virou o livro Falsa Acusação – Uma História Verdadeira. A série, além dos fatos, preserva também o conceito estrutural do artigo, criando uma narrativa paralela do caso de Marie (2008) e da investigação dos outros casos (2011); estrutura que acrescenta dramaticidade e confronta o trabalho relapso de 2008 com o trabalho policial exemplar de 2011. As histórias, embora paralelas, desembocam num ponto de encontro.
A série denuncia a incredibilidade atribuída às vítimas quando o crime é sexual (“ninguém duvida de uma vítima que relata ter sofrido um assalto”, comenta o advogado de Marie); expõe de forma contundente os traumas e a fragilidade das mulheres violentadas, mas trata também do empoderamento feminino. Mulheres muito diferentes acabam formando uma espécie de confraria, ligadas pelos crimes perpetrados contra elas. Tanto as vítimas como as investigadoras demonstram, cada uma à sua maneira, dignidade e coragem espantosas. A dualidade (trauma/coragem, fragilidade/poder) na condição dessas mulheres é abordada com enorme sensibilidade, e essa é uma das grandes qualidades de Inacreditável.
A série foi feita a muitas mãos: três diretores – Susannah Grant, Lisa Cholodenko e Michael Dinner; e sete roteiristas – Jennifer Schuur, Becky Mode, os dois jornalistas e os três criadores já citados. É admirável como todos os episódios mantêm a unidade estética e dramática apesar da autoria compartilhada. Os atores também fazem um trabalho incrível (mas não inacreditável). Destacam-se Kaitlyn Dever, como a jovem Marie, Toni Collette e Merritt Wever, que interpretam as detetives, num elenco em que todos os papéis, principais e secundários, apresentam personagens muito bem construídos e que sustentam o tom de dramaticidade discreta, porém densa, que permeia toda a obra.
Tudo isso torna Inacreditável – uma série inicialmente difícil de assistir – numa obra imperdível.
April 8, 2021
Shtisel – terceira temporada

Série – Criação de Ori Elon e Yehonatan Indursky – Israel – 2020.
Exibida na TV israelense em 2013 e 2015, Shtisel rompeu as fronteiras locais em 2018, quando foi licenciada pela Netflix para distribuição internacional. Obteve sucesso estrondoso, surpreendente para uma série sem pancadaria, assassinatos ou sexo e que retrata uma comunidade religiosa que fala hebraico misturado com idish num bairro que parece ter parado no tempo. É uma daquelas obras cuja qualidade aproxima o distante, torna o desconhecido atraente e cumpre com rigor a máxima tolstoiana de ser universal cantando a aldeia. De fato, a comunidade do bairro Geula em Jerusálem mais parece um shtetel, a aldeia judaica na Polônia e Rússia do século XIX. A grande popularidade conquistada pela série resultou na decisão de produzir uma nova temporada. Esta resenha é sobre a terceira temporada, para ler sobre as duas primeiras, clique aqui.
O martelo para uma terceira temporada foi batido em 2019. As filmagens, programadas para abril de 2020, foram adiadas com o surgimento dos primeiros casos de Covid-19 no final de fevereiro. As gravações aconteceram no hiato entre a primeira e a segunda onda da pandemia, entre dois lockdowns, em julho e agosto, os meses mais quentes do tórrido verão israelense. Além do calor, que fazia a maquiagem escorrer nos rostos de atores e atrizes usando perucas, longas barbas postiças, enormes chapéus, casacos pretos e meias grossas, os protocolos de segurança – equipe com máscaras, testes, transporte e alimentação individual – dificultavam a fluidez do trabalho. Os adiamentos, protocolos, seguros adicionais e incertezas encareceram a produção. Talvez por isso a terceira temporada tenha apenas nove episódios em comparação com os doze de cada uma das anteriores e o enredo se restrinja praticamente ao bairro e arredores, sem os choques e guinadas para o mundo laico, predominantes na primeira e segunda temporadas.

A trama dá um salto de quatro anos, acompanhando o hiato temporal entre a produção da segunda e da terceira temporada. O primeiro episódio mantém a pegada de sensibilidade e, principalmente, de humor que viraram marca registrada da série, humor calcado majoritariamente nas expressões de Shulem, o patriarca dos Shtisel. Embora a pandemia não esteja presente, fica claro, a partir do segundo episódio, que a morte, a perda e o luto serão temas aprofundados. A partir do quarto episódio, as situações e os dramas se repetem, principalmente em torno de encontros e casamentos arranjados; os novos personagens não têm a profundidade e complexidades dos personagens já conhecidos; as histórias paralelas de cada núcleo, que tão bem construíam a trama geral, tornam-se mais episódicas, soltas, sem a integração que dá consistência ao enredo. Há uma situação nova que parece promissora: Lipe, o genro de Shulem, faz o serviço de catering para uma equipe de TV que está rodando uma série dramática no bairro. Abre-se a possibilidade do uso da metalinguagem (a série dentro da série) e de um espelhamento interessante: a série é um olhar secular sobre os ortodoxos, Lipe, ao observar as filmagens e interpretações sobre o seu universo, terá um olhar sobre esse olhar. Infelizmente, nada disso se concretiza. A situação não se desenvolve para além de uma piada interna relacionada a um problema real da produção – conseguir figurantes religiosos para as cenas de rua durante a pandemia –, tornado-se mais um evento de pouca importância no enredo.
Embora não atinja a excelência das duas primeiras, a terceira temporada tem seus bons momentos (principalmente nos primeiros episódios e a penúltima cena, que deveria ser a cena final) e funciona como entretenimento de qualidade. Quem assistiu as temporadas iniciais, obviamente não deixará de ver a terceira e para quem não viu, vale a pena ver as três em sequência. Shtisel termina com um gancho para uma continuação. Se de fato haverá uma quarta temporada, só Deus sabe. Se houver, oremos para que nela seja resgatada a qualidade original.
April 1, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A Dança das Caveiras

Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
Enquanto o Brasil segue batendo recordes de infecções e mortes, o presidente B, para se divertir um pouco, promoveu uma brincadeira popularmente conhecida como a dança das cadeiras. Chamou seis ministros, uma deputada do consórcio da VacCentrão, um delegado e um diplomata para o salão nobre do Palácio do Planalto. Mandou todo mundo tirar a máscara e circular em torno de seis cadeiras enfileiradas, no ritmo de um hino gospel entoado pela Dámales. A um sinal discreto do regente ela se calou e todos correram para sentar. Na brincadeira dançaram os ministros da Defesa, das Relações Exteriores e da Advocacia-Geral da União. Esses, pode se dizer, caíram de pé. Cabisbaixos, pegaram suas máscaras e desceram a rampa rumo ao desconhecido. Os outros olharam as etiquetas nas respectivas cadeiras para descobrirem seus novos cargos. O ministro Meendossa voltou à Advocacia-Geral da União, de onde havia sido alçado à pasta da Justiça quando Moro num país Tropical se autodefenestrou e caiu atirando. O ministro-chefe da Casa Civil – um militar – abancou-se no assento do Ministério da Defesa. A Casa Civil foi ocupada por outro general, que antes sentava praça na Secretaria do Governo da Presidência da República, ora tomada pela deputada do VacCentrão. Os outros dois novatos, o diplomata e o delegado, acabaram colocando seus traseiros, respectivamente, no Exterior e na Justiça.
A imprensa entrou no jogo do presidente, campeão mundial em manobras diversionistas, e fez enorme alarido em torno do que chamou de reforma ministerial. No dia seguinte, o alarde se transformou em alarme, quando os três comandantes das Forças Armadas entregaram seus cargos. Isso nunca havia ocorrido, desde a redemocratização. O que estava acontecendo? Estaria B na iminência de cair ou armava um golpe?, indagavam as manchetes, como se uma das hipóteses contrariasse a outra.
O presidente, além de se divertir, conseguiu mais uma vez pautar as redações e diminuir o espaço da calamidade pública nos noticiários. Era péssimo para o moral dos eleitores ver os números das mortes galopando, em contraste com o pinga-pinga da vacinação. Agora estavam todos debatendo os significados ocultos e as possíveis consequências da “reforma”, como se essa fosse a grande crise nacional. Não perceberam que a dança das cadeiras foi mais um jogo para encobrir a dança das caveiras. Este sim um espetáculo real e macabro, o bailado preferido do presidente.
Tampouco notaram que a verdadeira reforma ministerial não consiste na mudança dos titulares, mas na transformação radical dos ministérios. Ela vem sendo implantada por B desde o dia em que pisou no Planalto: o Ministério da Agricultura virou o Ministério dos Agrotóxicos; o da Justiça e Segurança Pública tornou-se o Ministério da Defesa da Família Presidencial; a pasta da Defesa se converteu no ministério das Garantias Inconstitucionais, ou na Ameaça de Golpe; por sua vez, o Gabinete da Segurança Institucional virou o Apostolado da Arapongagem; a Comunicação transformou-se na Fábrica de Ódio; a Economia – o Ministério da Falência; o Meio-Ambiente virou o QG das Queimadas; a Saúde tornou-se o Ministério da Enfermidade, o SUS mudou para SOS.
E o cargo do Exímio Embaralhador da República? Terá B que se tornar um presidente reformado para o Brasil finalmente debelar a dança das caveiras? Descubra nos próximos episódios de A Casa do Baralho.