Jaime Lerner's Blog, page 23
July 1, 2021
Depois da Vida

Filme de Hirokazu Koreeda – Japão – 1998.
Há vários filmes ótimos que homenageiam a sétima arte. Alguns o fazem a partir das salas de cinema, pelo olhar do espectador, como o italiano Cinema Paradiso, de Tornatore; outros a partir do set, do ponto de vista do realizador, como o francês A Noite Americana, de Truffaut; outros ainda com um olhar crítico, como o americano Crepúsculo dos Deuses, de Wilder; ou como uma metáfora existencial ácida em O Substituto, de Rush.
Depois da Vida é a declaração de amor ao cinema com a proposta mais original entre os filmes que vi (ao menos entre os que lembro). A ideia de um limbo, onde pessoas recém-falecidas passam uma semana e ali devem escolher uma única lembrança que levarão para a eternidade (todas as outras memórias se apagarão), já é muito interessante. A ideia de dar forma a essa reminiscência por meio de um filme, feito por uma equipe semi-especializada, com recursos limitados, e que proporcione ao dono da lembrança a sensação de estar revivendo aquele momento único, é genial. Une a mágica que acontece em um set de filmagem com a que se revela na tela de cinema e, de quebra, fala na imortalização de um momento, de uma sensação, por meio do registro audiovisual. Há inclusive uma piada interna: nas leis que regem esse limbo a caminho do além há uma diferenciação entre os registros em celuloide (a memória filmada) e os feitos em vídeo (a realidade banal). Vale lembrar que na época já se prenunciava a morte da película com um debate apaixonado entre os cineastas se o vídeo, algum dia, chegaria à mesma qualidade de imagem.
A estrutura dramática do filme também é peculiar, surpreende ao mudar o foco do protagonismo das histórias dos recém-chegados para a equipe que os recebe no mundo dos mortos e os guia na difícil escolha que têm pela frente. A visão do limbo como espaço cênico é também muito bem construída, lembra uma repartição pública decadente, mas… as aparências enganam.
Depois da Vida é um filme japonês. Não tem o tom exacerbadamente dramático dos italianos, nem o ritmo envolvente dos norte-americanos, tampouco se leva demasiadamente a sério como os franceses. Discreto, tece com delicadeza origâmica diferentes fragmentos de vida numa história única, comovente e universal. É uma obra repleta de sutilezas, de uma qualidade contemplativa e provocadora nas reflexões que desperta.
O filme pode ser assistido no YouTube ou em DVD.
E você, que lembrança escolheria para levar para a eternidade?
June 23, 2021
Quinhentos Mil

“Da terra, o sangue do teu irmão clama a mim”. Genesis 4
No dia 19 de junho de 2021, o Brasil chegou a quinhentos mil mortos pela Covid-19. Se seguir no atual ritmo de casos e óbitos, em breve, passará os EUA, recordista mundial nessa macabra marca. A grande diferença (além do tamanho da população) é que, nesse dia, os EUA registraram 169 mortes e o Brasil 2300. Os americanos se aproximam rapidamente da luz no fim do túnel; aqui chegamos a quinhentos mil mortos e seguimos no olho do furacão ou, como dizem os especialistas, estáveis num alto patamar de contágios e mortes.
Desde os tempos antigos, o ser humano usa histórias e símbolos para tentar entender o mundo. E para expressar o que entende e sente busca marcas, imagens, metáforas e figuras de linguagem. Cria livros, filmes, coreografias, músicas, desenhos e esculturas. 500 mil é uma marca. Que representa toda a tragédia de perdas, sequelas, confinamento, paralisação, incertezas e medo. Nossa porção diária nos últimos 15 meses. 500 mil é um número astronômico. Tão grande que o torna, de certa maneira, abstrato.

É como se Florianópolis, a capital de Santa Catarina, desaparecesse do mapa com todos seus habitantes.
É o equivalente à queda de 1000 aeronaves Boeing 747 lotadas, duas por dia; ou quatro tragédias de Brumadinho acontecendo diariamente, nesses 450 dias de pandemia. É maior que os números de mortos na guerra civil da Síria, que dura 10 anos.
Se fizéssemos um minuto de silêncio para cada vítima, teríamos que ficar mudos por 347 dias, ou quase um ano.
Outra maneira de tentar mensurar o tamanho da tragédia é fugir dos números e contar as histórias de vida que foram interrompidas. Dar nome, cara e voz às vítimas. Essa é uma forma de partilhar o luto que cada uma dessas famílias enfrenta, muitas delas com mais de um óbito. Se fossemos produzir uma série com um episódio diário sobre cada uma das vítimas, essa série ficaria no ar por mais de 1370 anos. Um milênio e três séculos.
Para mim, a grande homenagem às vítimas, a maneira mais impactante de dimensionar a calamidade dos 500 mil até o momento, foi a grande manifestação no dia em que a terrível marca foi atingida. Centenas de milhares de vivos marcharam pelas centenas de milhares de mortos em todos os estados do Brasil, em todas as capitais e grandes cidades, num protesto massivo. Gente que não saia às ruas, contrária à aglomeração, percebeu que deveria correr o risco para clamar, para expressar o tamanho da tragédia e, principalmente, para exigir um basta. Foram espetáculos lindos, pacíficos e poderosos, de luto e de luta.

Nos Estados Unidos, a troca do governo negacionista por uma gestão que respeita a ciência e a vida foi a causa da mudança radical no enfrentamento à pandemia. O resultado é patente na diminuição de contágios, de mortos e, também (para quem só se preocupa com isso), na recuperação da economia. Por aqui estamos muito distantes ainda da eleição. Por isso, o grito chefe que ecoou nas ruas órfãs de quinhentos mil brasileiros foi: fora genocida! Não é um grito simbólico, nem uma demanda para o futuro. É uma urgência de vida ou morte.
June 17, 2021
Os Últimos Dias

Filme de James Moll – EUA – 1998.
Em 1994, um ano após finalizar A Lista de Schindler, o cineasta Steven Spielberg criou a Fundação Shoah (Survivors of the Shoah Visual History Foundation), que tinha como objetivo gravar depoimentos de testemunhas e, principalmente, de sobreviventes do holocausto. Nessa época, meio século após o fim da Segunda Guerra Mundial, já despontava um movimento de negação da grande barbárie perpetrada pelos nazistas. Esse movimento provavelmente ganharia mais força, quando não houvesse mais pessoas vivas que sofreram, perpetraram ou testemunharam a perseguição e extermínio de judeus na Europa.
Em 1998, a Fundação Shoah produziu o documentário Os Últimos Dias, que acompanha cinco judeus de origem húngara sobreviventes do holocausto. Renée Firestone, Irene Zisblatt, Tom Lantos, Bill Basch e Alice Lok Cahana contam suas histórias e revisitam os campos de concentração para onde foram deportados e os locais onde moravam antes da deportação. Após a guerra, todos eles emigraram para os Estados Unidos. Há também depoimentos de Dario Gabbai, um dos poucos sonderkommando sobreviventes (judeus que operavam as câmeras de gás e levavam os corpos aos crematórios); de um médico nazista que fazia experimentos em humanos; do historiador (e sobrevivente) Randolph Braham; do soldado negro norte-americano, Paul Parks, que participou da liberação de Dachau, entre outros. O filme, vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 1999, foi remasterizado recentemente e licenciado pela Netflix.
A deportação para o extermínio dos judeus húngaros ocorreu em 1944, quando já se delineava a derrota nazista. A Hungria, que lutava desde 1941 ao lado dos países do Eixo, começou a negociar secretamente um armistício com a Inglaterra e a União Soviética. Hitler, ao saber disso, ocupou o país, derrubou o governo e colocou um fascista no poder. A comunidade judaica, poupada até então dos guetos e campos de extermínio, teve o mesmo destino dos judeus dos países ocupados pela Alemanha. É incrível como, mesmo na iminência de uma derrota, os nazistas se concentraram em acelerar a solução final, tirando recursos do esforço de guerra para reunir, deportar e aniquilar judeus. O engenheiro da solução final, Adolf Eichmann, foi à Hungria supervisionar pessoalmente essa operação. Entre 15 de maio e 9 de julho, mais de 400 mil judeus foram levados em 147 trens para os campos de extermínio. A grande maioria foi conduzida diretamente dos vagões para as câmaras de gás.
Os Últimos Dias – superação e homenagem.Além de retratar o fim trágico da comunidade judaica na Hungria, através das epopeias individuais de seus protagonistas, o filme apresenta cinco admiráveis histórias de superação. Muito jovens no período da Guerra, os cinco sobreviventes foram vítimas de uma máquina construída para triturar sua humanidade e depois os exterminar. Viveram as piores atrocidades, foram despojados de qualquer direito, perderam pais, mães, irmãs e conheceram o lado monstro do ser humano. No entanto, reconstruíram suas vidas, e embora não tenham saído ilesos, não foram contaminados pelo ódio. Ressuscitaram como resposta aos que não conseguiram lhes tirar a dignidade e como homenagem aos que não sobreviveram. Esse para mim é o ponto alto do filme, a história mais incrível.
Os Últimos Dias faz conexão entre o holocausto e todas as atrocidades produzidas com o combustível do racismo e da xenofobia, como a escravização de africanos. O ódio patológico a um grupo ou indivíduo em função de cor, etnia ou credo parece ter atingido o ápice do horror no regime nazista. Mas segue sendo um combustível poderoso e altamente inflamável no mundo atual. Por isso, a Fundação passou a gravar testemunhos de outros massacres (contemporâneos) e de ações antissemitas na Europa. Associou-se à Universidade do Sul da Califórnia e deslocou sua sede para o campus.
Em entrevista, Spielberg conta que sua avó ensinava inglês para os húngaros sobreviventes do holocausto em Cincinnati: “Eu devia ter uns dois, três anos, e me sentava à mesa com eles. Foi aí que conheci os números – graças àqueles que todos que passaram por Auschwitz têm no antebraço. Essa foi minha versão de Vila Sésamo. Foi assim que aprendi a contar.”
June 10, 2021
O Deus das Pequenas Coisas

Livro de Arundhati Roy – Índia – 1997.
Romance de estreia que, após ter sido agraciado com o International Booker Prize (prêmio britânico para obras traduzidas para o inglês), tornou-se um sucesso mundial, rendendo críticas entusiasmadas (ou furiosas), muitas vendas e polêmica. O livro e a autora foram alvo de um processo por obscenidade no estado de Kerala (palco da trama principal), ação arquivada após dez anos de contenda.
O Deus das Pequenas Coisas é uma obra singular que cria um universo, ou um micro/macrocosmo, através de sua escrita mágica, muitas vezes hiperbólica e repleta de imaginação. Esse universo especial é a Índia com suas tradições e contradições, e também a família de Estha e Rahel, gêmeos bivitelinos, siameses na alma. A forma como as grandes questões (castas, política, história) estão encapsuladas nas pequenas coisas (o drama familiar) é absolutamente hipnótica. Há tons muito fortes de realismo mágico na escrita de Roy, mas ela vai além desse formato, usando cheiros, cores, jogos de palavras e repetições poético-musicais na construção de seu universo bivitelino de pequenas e grandes coisas. Parece mais um hiper-realismo lírico do que o realismo fantástico que colocou em evidência a literatura latino-americana no século passado.
A autora mergulha profundamente no interior de personagens muito diversos para trazer a tona os seus distintos olhares. O ponto de vista infantil é o jardim onde floreiam as invencionices fonéticas e metafóricas, um jardim de plantas ingênuas e tóxicas. A estrutura é arqueológica, uma escavação feita vinte e cinco anos depois da hecatombe que marcou a vida dos dois irmãos quando ainda eram crianças. O clima que permeia a obra é de decadência, de sonhos frustrados e oportunidades perdidas. Seus eventos cardeais são duas mortes, dois abusos e um caso de amor. Curiosamente, foi o caso de amor que provocou a denúncia de obscenidade.
O romance tem outra qualidade rara que descobri graças à intuição que devia recomeçá-lo, tão logo cheguei ao fim. A segunda leitura apresenta uma experiência diferente, não menos impactante do que a primeira. No lugar do mistério semeado por fragmentos expostos aos poucos na escavação arqueológica há a compreensão dos significados de cada destroço encontrado nos escombros. Isto, aliado à familiaridade já adquirida com o universo estilístico do livro e seus personagens, dá outra dimensão à fruição do texto. São duas leituras gêmeas, porém bivitelinas. Vale destacar a tradução de José Rubens Siqueira, que enfrentou com louvor (e criatividade) os desafios das invenções linguísticas e transições entre inglês, hindi e malayalam – (idioma que se fala em Kerala).
Após o sucesso de sua obra-prima, a autora passou a escrever artigos e ensaios, tornando-se uma ativista política. Voltou a publicar ficção somente em 2017, duas décadas após a sua estreia. Seus dois romances, O Deus das Pequenas Coisas e O Ministério da Felicidade, foram editados no Brasil pela Companhia das Letras.
Leia uma amostra:
June 3, 2021
A Casa do Baralho, episódio de hoje: A copa da América é nossa!

Aviso: esta série é uma obra coletiva, escrita por vários roteiristas. Alguns se conhecem, outros não. O fato é que um não sabe o que o outro está fazendo.
Advertência: essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, pessoas e situações reais é de responsabilidade do próprio leitor.
Maio foi malo para o capitão de artilharia, o presidente B.
A oposição finalmente entendeu o novo “normal” na política brasileira e logrou empurrar a CPI da Covid goela abaixo do presidente do senado que não via, até então, “o momento como propício”. Emplacou ainda os cargos de presidente, vice e relator, deixando os senadores governistas – em minoria – a ver navios. Dia após dia, com transmissão ao vivo para todo o Brasil, foi escancarada a política do governo de sabotar o combate à pandemia para infectar todo mundo e liquidar logo com o vírus, junto com boa parte da população. Não é ainda um processo de impeachment, mas é uma exposição que faz o presidente sangrar. B ficou tão perturbado, que esqueceu de comprar presente para o dias das mães. Em vez disso, foi passear de moto no Rio de Janeiro.
A polícia federal também aprendeu a lidar com o novo “normal” da intromissão palaciana. Mesmo com o superintendente do Amazonas afastado do cargo após denunciar o ministro do meio ambiente Amazon-is-for Salles, a PF continuou a investigar na surdina, driblou o engavetador geral da república e foi direto ao STF. A procuradoria geral da república, com o rabo entre as pernas, foi obrigada a aceitar a notícia-crime contra o ministro. Denunciado por tráfico de influência no tráfico de madeira ilegal, crime que envolve o Ibama e o escritório de advocacia no qual é sócio com a mãe, For Salles é o primeiro investigado de corrupção nas entranhas do governo B.
Como se não bastasse tudo isso daí, o feitiço virou contra o feiticeiro no tocante às eleições. O presidente, em permanente campanha desde sua posse, conseguiu mais uma vez pautar o debate no Brasil com as eleições de 2022, como se não houvesse pandemia, desemprego, ano letivo paralisado, economia afundando e fome. O anacrônico voto impresso e o resultado do pleito distante viraram temas recorrentes, como se as eleições fossem para amanhã. B se divertiu muito com a manobra diversionista, subindo em palanques e provocando aglomerações. Eis que em maio as pesquisas de intenção de voto apontaram para a vitória de seu arqui-inimigo L, de forma peremptória. B sentiu as hemorroidas latejarem.
O pior, no entanto, ainda estava por vir. E aconteceu no sábado, dia 29. Centenas de milhares de brasileiros foram às ruas, deixando de lado o dilema como protestar sem aglomerar, ardil que entregava as ruas praticamente nas mãos dos Bapoiadores. Percebendo que a letalidade de um negacionista no poder era maior que a do vírus, o povo arrebentou o nó e tomou as cidades em protestos maciços. Foi de arrepiar, e não só as hemorroidas presidenciais.
Mas B é um campeão. Medalha de ouro em rachadinhas, artilheiro de gols de placa com mergulho de barriga, unificador dos cinturões nas categorias Exterminador do Futuro, do Presente e do Passado, recordista na troca de ministros da saúde em plena pandemia, é imbatível, também, na modalidade desvio da atenção. Com a CPI da Covid apertando, a PF encurralando, L crescendo nas pesquisas e o povo nas ruas exigindo o seu impeachment, o que ele faz? Traz a Copa América para o Brasil.
Embarcará o país nessa nova cortina de fumaça? Erguerá o presidente, ao final do torneio, mais essa taça? Ou essa copa acabará sendo para B o que a copa do mundo foi para a ex-president@ D? Não perca nos próximos episódios de A Casa do Baralho!
May 27, 2021
A Febre

Filme de Maya Da-Rin – Brasil – 2019.
A Febre é um filme surpreendente. Sem arroubos dramáticos, planos mirabolantes ou uma trama intrincada, vai envolvendo o espectador como uma corrente de águas profundas que correm silenciosas sob os nossos pés. Há tempos não assistia uma combinação tão bem sucedida de ousadia e sensibilidade. Maya Da-Rin, em seu primeiro longa de ficção, consegue imprimir uma marca autoral muito forte na estética e nas temáticas que aborda.
Nos créditos iniciais, a obra já apresenta seu cartão de visitas: uma orquestra de grilos e ruídos da mata, antecipando que se trata de um filme que valoriza o som. A orquestra segue sua sinfonia junto a primeira imagem, um plano frontal do protagonista na frente de uma textura metálica. A câmera recua aos poucos, não em travelling contínuo, mas em pequenos afastamentos e paradas. À medida que o close de Justino torna-se um plano médio, agrega-se aos zumbidos da floresta o som metálico de trabalho da cidade. A textura do fundo ganha vida num enigmático jogo de luzes. Logo entenderemos que é um contêiner na noite movimentada do porto de Manaus. Justino, com seu capacete de operário, tem uma expressão sofrida, sonolenta. Há claramente um processo interior fervilhando por baixo daquele capacete. Processo pronunciado pelo duelo/dueto entre os zunidos da floresta e o som da cidade. A Febre dispensa o uso de música na construção do clima emocional da obra e de seus personagens; sua trilha sonora, composta de ruídos de ambiente, assume essa função e expressa o mundo interior de Justino ao longo de todo o filme. Felippe Schultz Mussel assina o desenho de som.
Justino é um ser territorial e A Febre é um filme territorial. A cidade de Manaus é o espaço/ringue dos conflitos do protagonista. O desenho de luz e, principalmente, a composição dos quadros constroem (como uma poesia) a tensão entre asfalto e floresta; mapeiam, desenham e embaralham os territórios e fronteiras dos dois mundos que se digladiam no coração de Justino. Nos enquadramentos de A Febre, o porto é uma coreografia de contêineres e máquinas que escondem o rio, e a cidade parece estar prestes a ser invadida pela mata. A direção de fotografia é da uruguaia-argentina Barbara Alvarez.
A Febre, disputa territorial entre floresta e asfalto.O trabalho de atores soma-se ao som, à direção de arte e à fotografia na tessitura deslumbrante de A Febre. Todos – indígenas e não indígenas, profissionais ou atores de primeira viagem – atuam muito bem, mas Regis Myrupu (Justino) e Rosa Peixoto (sua filha Vanessa) são os grandes destaques. Constroem personagens singularmente carismáticos, interessantes e profundos. Suas falas e silêncios, olhares, expressões e movimentos dão esteio ao ritmo lento do filme, aos planos de longa duração; conferem importância dramática a ações corriqueiras e conversas aparentemente banais. Além disso, pai e filha personalizam a diferença das duas gerações em relação à “integração” ao mundo dos brancos, ou ao afastamento do seu modo de vida. Regis e Rosa colaboraram também na qualificação do roteiro, trazendo o ponto de vista Desana para uma obra de realizadora não indígena.
Regis Myrupu e Rosa Peixoto, Justino e Vanessa.A Febre é bilíngue, mais uma entre várias ousadias. O português e tukano se misturam nas conversas de Justino e seus familiares. Uma das cenas mais tocantes que remete à riqueza linguística indígena é o diálogo entre Vanessa e uma índia mais velha trazida ao hospital onde a jovem trabalha. As duas falam idiomas diferentes e uma não entende a outra. No entanto, se estabelece uma conexão que perpassa o entendimento da conversa.
A Febre é um drama intimista sobre um homem em crise existencial. Sendo este homem um indígena, que deixou sua aldeia há 20 anos para viver em Manaus, o drama intimista ganha outra dimensão e se torna representativo de um povo e um meio de vida que vem sendo massacrado há meio milênio. Na sensibilidade do olhar sobre o outro e na abordagem do processo de aculturação, o filme me lembrou outra obra impactante, o israelense Tempestade de Areia.
A Febre foi premiado no festival de Brasília com os candangos de melhor filme, melhor direção, melhor som, melhor fotografia e melhor ator principal. Regis Myrupu ganhou também o prêmio de melhor ator no Festival de Locarno, na Suíça. A Febre pode ser visto na Netflix.
May 20, 2021
Fuga

Filme de Jonas Poher Rasmussen – Dinamarca – 2021.
Um dos ótimos filmes que pude assistir no Festival É Tudo Verdade foi o documentário em animação Fuga, premiado, entre outros, no Sundance Festival. Documentário e animação são dois formatos que raramente se misturam; de um documentário se espera imagens reais e não desenhos animados, embora se aceite o uso de encenação e atores, em live action, para ilustração de um depoimento, reconstituição de um evento ou para narração.
Dois exemplos de documentários de animação de longa-metragem que revolucionaram conceitos são Valsa Com Bashir (2008) e A Onda Verde (2010). Fuga (ou Flee) junta-se a esses exemplos como um retrato documental da realidade que não poderia ser feito de outra forma a não ser pelo desenho animado. Neste caso o filme é ancorado numa pessoa que deseja permanecer incógnita e ganha, portanto, um avatar animado; sua história cobre um longo período do passado e envolve situações como tráfico humano e contrabando de refugiados, em que são raros os registros de imagens; e, o mais importante, o filme se constitui numa espécie de catarse, de processo terapêutico para seu protagonista. Lembranças, traumas e sonhos compõem essa história e filmar o inconsciente é ainda mais complicado do que registrar a ação ilegal de contrabando de pessoas. No desafio de mergulhar nas profundezas da psique, Fuga tem muito a ver com Valsa com Bashir, dois soberbos escafandristas da alma.
Fuga, filme como processo terapêuticoJonas Rasmussen, então adolescente, conheceu Amin Nawabi (pseudônimo) quando este ingressou na sua escola. Soube que era refugiado do Afeganistão e que chegou sozinho à Dinamarca. O pai desapareceu após ter sido preso em Cabul e sua mãe e irmãs foram assassinadas na sua frente. Jonas e Amin tornaram-se amigos, mas Amin nunca conseguiu falar sobre seu passado. Aos 36 anos, prestes a se casar, Nawabi decidiu contar sua verdadeira história para o amigo cineasta, com a condição de não aparecer no filme. No final surpreendente se entende o motivo do anonimato, motivo que vai além de um bloqueio emocional.
Fuga tem desenhos simples e animação em 2D, mas não se engane, a estética é impactante, tanto na recriação imagética das memórias que se mesclam com imagens de arquivo e filmes caseiros em super 8 e, principalmente, nos momentos dramáticos, quando a animação expressa de maneira sofisticada e visceral os sentimentos do refugiado.
A odisseia de Amin, narrada nesse processo terapêutico, quase detetivesco, lança luz diferente sobre o tema dos refugiados, um dos grandes problemas globais do início do século XXI. O depoimento pessoal, o ponto de vista íntimo, expõe a dimensão mais profunda do processo emocional de quem se vê, de repente, despido de seus direitos, de sua dignidade e, imerso em fragilidade, a mercê de burocratas, criminosos e autoridades abusivas. Telenovelas mexicanas, tesão pelo Van Damme, lembranças da infância e a força dos laços familiares são o contraponto à sucessão de tragédias e à intensidade dramática do calvário de Amin.
Fuga é uma coprodução internacional entre empresas e instituições da Dinamarca, França, Suécia, Noruega, EUA, Eslovênia, Estônia, Espanha e Itália. Os idiomas falados no filme são dinamarquês, inglês, dari e russo. O filme será lançado comercialmente em junho de 2021 na Dinamarca. Esperemos que chegue rapidamente ao Brasil e que possa ser visto, quando aportar por aqui, nas salas de cinema.
May 13, 2021
Pátria

Livro – Fernando Aramburu – Espanha – 2016.
Pátria é um crime perfeito. Sua narrativa é tão envolvente que chega a encobrir a sofisticação do texto e a genialidade de sua estrutura, como um crime perfeito encobre os rastros do autor. Em outras palavras, o leitor se esquece que está lendo e é absorvido pela trama e pelas vidas de Miren, Bittori, Nerea, Txato, Joxe Mari, Arantxa, Joxian, Gorka e Xabier. Como um crime perfeito, o livro evidencia o drama das vítimas e nos desafia com seus mistérios.
Normalmente, os romances de vulto dão maior importância aos personagens, usando a história como elemento para testá-los e expô-los, enredando-os em problemas e conflitos. Em Pátria, os protagonistas também parecem ter maior importância do que o enredo, porém mais do que um romance de personagens a obra é um tratado sobre as relações, ou sobre os mecanismos ocultos que criam (e destroem) vínculos entre amigos, vizinhos, amantes, cidadãos, pais, filhos, companheiros, cúmplices. Pátria coloca esses laços à prova no contexto da luta armada do ETA, num vilarejo do País Basco em um período de três décadas. Seu evento central é o assassinato de um dos protagonistas e suas consequências na vida das famílias da vítima e a do algoz.
Fernando recheia seu texto em espanhol com termos em euskera (o idioma basco, proibido na Espanha durante a ditadura franquista). O euskera, de raiz desconhecida, é muito diferente de todos os outros idiomas europeus e sua sonoridade traz um tempero especial ao texto e confere autenticidade aos diálogos e personagens. O autor utiliza ainda, na condução da história, um narrador onisciente em terceira pessoa. Esse narrador observador transforma-se, de repente, e apenas por instantes, em cada um dos nove personagens, através de breves expressões em primeira pessoa. O recurso soaria estranhamente esquizofrênico se não fosse articulado de forma genial. Outro elemento sofisticado é a aplicação meticulosa de dosagens de humor, por um lado, e de melodrama, por outro, na tragédia que envolve as duas famílias.
Aramburu estrutura seu romance como uma obra de Gaudí: arquitetura arrojada e construção sólida. A impressão é que não há regra ou planejamento por trás da quebra da cronologia do texto, nem da determinação dos capítulos e sequências em que cada personagem assume e reassume o protagonismo. Impressão enganosa. Esse vai e vem no tempo e entre os personagens é uma aula de como envolver o leitor e enriquecer o painel de relações, aspirações e conflitos através da estrutura. O romance oferecido em fragmentos, num encadeamento que preserva a fluidez, acaba nos tornando cúmplices do crime perfeito.
O assassinato de Txato – um crime ou ação terrorista, para alguns, e um ato patriótico para outros – suscita questões sobre nacionalismo, independência e fanatismo. E reflete sobre como a luta por uma causa justa pode se desvirtuar, quando a causa é colocada acima de tudo e de todos.
A narrativa envolvente de Pátria, a sofisticação da escrita e os temas que aborda resultaram num casamento perfeito entre sucesso comercial e reconhecimento literário. O livro virou série da HBO, a primeira série original espanhola da emissora. O autor se emocionou ao assistir a adaptação televisiva, e revelou que não consegue mais pensar em seus personagens sem enxergar os atores que dão cara e voz às suas criaturas.
May 6, 2021
Presidente
Filme de Camilla Nielsson – Dinamarca/EUA/Noruega – 2021.
Em 2013, o Zimbábue promulgava uma nova constituição. Governado pela mão de ferro de Mugabe, desde sua independência em 1980, o país via na carta magna um passo enorme rumo à democracia e a tão almejada alternância no poder. A nova constituição limitava o mandato presidencial a um período de cinco anos com possibilidade de uma única reeleição. A regra, porém, passaria a valer a partir da eleição seguinte e Mugabe, portanto, continuava no poder. A cineasta dinamarquesa Camilla Nielsson foi ao país africano cobrir o processo constituinte, cobertura que resultou no documentário Democrats, seu primeiro longa. O filme fez boa carreira em festivais, mas foi proibido de exibição no Zimbábue.
Em 2017, o presidente foi preso pelo exército num golpe orquestrado pelo seu vice Emmerson Mnangagwa. Mugabe então negociou a liberdade em troca da renúncia e o vice assumiu, prometendo convocar eleições democráticas e transparentes para o ano seguinte.
Camilla voltou ao país em 2018 para pleitear na justiça a liberação de seu filme. Conseguiu bem mais do que isso. Em meio ao turbilhão pré-eleitoral, dez anos após o último pleito cercado de violência e fraude, um dos participantes de Democrats sugeriu que filmasse a disputa entre o presidente Mnangagwa, da União Nacional Africana do Zimbábue (partido de Mugabe), e o jovem Nelson Chamisa, do Movimento pela Mudança Democrática (MDC). A grande questão que pairava no ar não era quem seria o vencedor, mas se o pleito seria conduzido de maneira limpa, como prometera Mnangagwa. Presidente é a resposta a essa pergunta.
O documentário é articulado como um thriller. Apesar de ser um puro sangue da escola do documentário direto (apresentação dos eventos filmados com a mínima intervenção da câmera e do diretor), a carga dramática parece a de um filme de ficção. A equipe em campo era mínima (Henrik Bohn Ipsen como diretor de fotografia e operador de câmera e a diretora, que também operava o som), num formato que remete ao jornalismo. No entanto, o olhar e a construção narrativa do filme vão muito além da reportagem. A edição é fundamental nessa construção e na dinâmica avassaladora. Nos 130 minutos que passam voando, Presidente apresenta um mosaico de personagens instigantes, um vislumbre de uma nação multicultural com 16 idiomas oficiais, conflitos políticos, éticos e morais e a descoberta de um crime. Ingredientes captados em três meses intensos de filmagem, acompanhando a disputa eleitoral, o resultado da votação e seus desdobramentos.
Presidente levanta questões complexas, algumas apresentadas explicitamente, outras provocadas nas entrelinhas. Em mim despertou a reflexão sobre o quanto o modelo de democracia representativa forjado no ocidente se encaixa em outras culturas e sociedades, e o quanto esse modelo faz parte do pacote da herança do colonialismo europeu e por ele é aviltado. Camilla comentou em entrevista que, apesar do sucesso do filme, sente-o como uma crônica do fracasso. Fracasso que atribui fortemente à atuação da comunidade internacional e seus observadores, que acabaram legitimando o processo. Comunidade na qual ela, como cineasta europeia filmando na África, se reconhece como parte.
Presidente ganhou a competição internacional do festival É Tudo Verdade e o Prêmio Especial do Júri por Cinema Vérité no festival de Sundance, em 2021. Distribuido pela Cinephil, em breve deve marcar presença nas telas.
April 29, 2021
Os Curtas no Oscar 2021
Dois Estranhos – Melhor Curta de FicçãoO Oscar em 2021 teve que se reinventar. A pandemia não modificou apenas a data e o formato da cerimônia de premiação, isso foi o de menos, mas fechou as salas de cinema no mundo inteiro durante quase todo o ano de 2020. Além disso, por vários meses, paralisou a atividade de produção audiovisual. Atividade que está sendo retomada, com maior ou menor intensidade, em vários pontos do planeta. Entre outras coisas, a Academia teve que abrir mão de uma de suas regras de ouro: filme concorrente ao Oscar tem de ser exibido, previamente, em um cinema de Los Angeles. O golpe duro da reclusão social na já combalida exibição cinematográfica acabou fortalecendo outros meios de distribuição, principalmente as grandes plataformas de streaming que nos “entregam” os filmes em casa, na hora que quisermos. Frances McDormand, ao receber a estatueta de melhor atriz por Nomadland, conclamou as pessoas a verem o filme nos cinemas, quando for possível, e trazer o máximo de pessoas para encher as salas. Discurso que reforça o receio de que esse ritual pessoal/coletivo possa estar em vias de extinção.
Por outro lado, o fortalecimento dos serviços de streaming ampliou o acesso aos curtas indicados ao Oscar. O curta-metragem, formato não comercial e por isso quase invisível aos olhos do público em geral, é muito mais do que um degrau para um cineasta chegar ao longa. É um espaço de ousadia e experimentação, livre das amarras comerciais, muitas vezes avessas ao risco.
Os vencedores Dois Estranhos (melhor curta-metragem de ficção) e como Se Algo Acontecer… Te Amo (melhor curta-metragem de animação) são ótimos exemplos dessa experimentação e ousadia. Ambos tratam de questões atuais da sociedade norte-americana, com abordagens e narrativas nada convencionais.
Dirigido por Travon Free e Martin Desmond Roe, Dois Estranhos aplica de maneira genial a prisão do personagem em um loop temporal para ilustrar o surrealismo kafkiano da relação polícia x jovens negros. Esse loop temporal encarcera, em sua prisão simbólica, não só o protagonista, mas a nação inteira. Apesar da dimensão trágica do tema, o filme é recheado de humor expresso em diálogos inteligentes e situações surpreendentes.
Se Algo Acontecer…Te Amo – Melhor curta de animaçãoSe Algo Acontecer…Te Amo, direção de Michael Govier e Will McCormack, retrata um casal em luta e em luto. Não há diálogos no filme, e os desenhos – quase sempre sombras em carvão – se movimentam e se transformam em torno e no interior dos personagens para expor o desespero, expressar a impossibilidade de lidar com a perda e com lembranças que aliviam e dilaceram. O filme é uma experiência puramente sensorial e estética, e essa estética carrega toda a força dramática da obra.
Colette, dirigido por Anthony Giacchino (melhor curta documentário), não tem a ousadia formal dos dois curtas mencionados, mas documenta um ato de coragem excepcional. A visita de Colette Marin-Catherine, de noventa anos, ao campo de prisioneiros no qual seu irmão morreu na Segunda Guerra Mundial. Ambos, muito jovens, faziam parte da resistência à ocupação nazista na França. Acompanhada de uma jovem pesquisadora, o impacto da viagem tece uma relação especial entre as duas.
Colette – Melhor Curta DocumentárioO filme que mais me tocou foi A Concerto is a Conversation, indicado na categoria de curta documentário. O filme, dirigido por Kris Bowers e Ben Proudfoot, é uma conversa muito especial entre neto e avô, interação repleta de sensibilidade e de pequenas grandes surpresas. O avô, Horace Bowers, 91 anos, é um personagem fantástico, embora real. Os temas individuais e sociais são entremeados de forma muito perspicaz nos treze minutos do filme. Dizer mais do que isso estragaria algumas das surpresas.
É interessante que os documentários Colette e A Concerto is a Conversation, embora muito diferentes, são construídos em torno da relação entre nonagenários e jovens, e acabam se configurando numa espécie de legado, de passagem de bastão e conhecimento.
Dois Estranhos e Se Algo Acontecer…Te Amo podem ser vistos na Netflix. Colette e A Concerto is a Conversation podem ser vistos no Youtube, por enquanto, com legendas em inglês. São ótimas oportunidades de curtir o formato de curta duração.
A Concerto is a Conversation


