Jaime Lerner's Blog, page 25

February 11, 2021

A Casa do Baralho, ep. de hoje: A Re(vira)volta da Vacina

Boa parte dos quase setenta pedidos de impeachment contra o presidente B tem como tema sua conduta durante a pandemia. No longo roll de denúncias (provocar aglomerações, não usar máscara, forçar o uso da cloroquina, disseminar falsa informação, etc.) destaca-se a negligência/sabotagem na aquisição da vacina. Esta, ao contrário das outras, é uma acusação injusta.

Acontece que o capitão de artilharia B é um estrategista tão astuto que conseguiu enganar todo mundo – inimigos e inimigos (amigos ele não tem) – no tocante à imunização. Enquanto se falava em Pfizer, Moderna, AstraZeneca, Coronovac, Sputnik, ele tratou de garantir uma vacina produzida na própria capital federal, praticamente num puxadinho do planalto. Além de não depender da China, Inglaterra, Rússia, Índia, EUA, muito menos de São Paulo, a VacCentrão havia comprovado seu poder de proteção muito antes das outras começarem a engatinhar. Foi utilizada pelo ex-presidente T, em 2017, assegurando que chegasse ao fim de seu breve mandato.

Inicialmente, o presidente B não pretendia adquirir a VacCentrão.  Apesar da eficácia comprovada, ela tem dois senões: é cara e seu efeito imunológico tem curta duração. O ex-presidente T, por exemplo, precisou tomar uma dose em agosto e outra em outubro. Tomou tanto que a vacina ganhou o apelido popular de toma-lá-dá-cá. Conseguiu manter o cargo, mas esvaziou o tesouro. E sua imagem despencou nas pesquisas de opinião. Como essa vacina imuniza inoculando o vírus vivo, em certas condições a carga viral pode fugir do controle. Aí a VacCentrão sai pela culatra: o vacinado não vira jacaré, mas corre o risco de virar refém. É a re(vira)volta da vacina. B, eleito com o discurso contra o toma-lá-dá-cá, havia planejado blindar-se de outra forma, colocando pessoas estratégicas em pontos-chave. Trouxe o herói da Lava Jato para ser seu superministro da justiça, ignorou a lista tríplice e nomeou um comparsa seu como procurador da república, seguindo os mais estritos critérios técnicos. Mas quando a chapa do clã esquentou nas investigações da rachadinha e do gabinete do ódio e B quis colocar seu guarda-costas na chefia da polícia federal, o superministro roeu a corda e se mandou. Não só saiu, como saiu atirando, fazendo a absurda acusação de que B queria proteger a família. Desde quando o sagrado dever de proteger a famiglia é crime? O presidente, proibido pelo STF de nomear seu cupincha para o cargo, sentiu o cerco apertar. Percebeu que se não garantisse a vacina, perigava virar jacaré no pântano do ostracismo. E partiu para negociar com o laboratório que havia desprezado.

Tomou a primeira dose na eleição para presidente da câmara, cargo decisivo no quesito pedidos de impeachment contra o presidente da república. B tinha que emplacar um candidato para chamar de seu. Escolheu a dedo o pustulante, um deputado do baixo clero acusado de enriquecimento ilícito, prática de rachadinha e, de quebra, de ter batido na mulher. Identificação total. B não economizou nem pechinchou preço. E a vacina, potencializada pelo fator voto secreto, fez valer cada centavo. O candidato de B ganhou de lavada, humilhando a oposição. Mal assumiu e já foi agraciado com mais um pedido de impeachment contra o presidente recém-imunizado.

Por todo esse imbróglio e com os cofres minguados no preocupante contexto da crise econômica, B teve que fazer uma escolha: em qual vacina iria depositar o dindim suado do povo (afinal, há um teto de gastos a respeitar). Optaria por entregar dinheiro público a laboratórios estrangeiros ou aqueceria a economia local? Vacinaria a população contra o coronavírus ou a si mesmo contra o impeachment? Fiel ao lema O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos, deixou os brasileiros ao Deus-dará e foi cuidar de interesses mais mundanos. Mas não pode ser acusado de ter negligenciado a aquisição da vacina.

Resta uma grande questão: se B abriu as comportas do tesouro para comprar 300 deputados, quanto não irá gasta na busca dos setenta milhões de votos para a sua reeleição?

Haverá teto para tanto gasto? Quantas doses de toma-lá-dá-cá o presidente vacinado terá que tomar até o final do mandato? E o Brasil, sobreviverá até 2022? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on February 11, 2021 06:40

February 4, 2021

La Jetée

Filme de Chris Marker – França – 1962.

Chris Marker define La Jetée como uma fotonovela. É o que consta nos créditos iniciais. Eu considero a obra uma viagem. Essa foi a sensação imediata que tive ao assistir o filme pela primeira vez, na companhia de meus colegas da escola de cinema. Foi uma provocação inspiradora, uma espécie de choque revigorante me deparar com essa maneira diferente de fazer cinema.

A grande inovação em La Jetée é a ruptura com o princípio fundador do cinema – o registro do movimento. Marker não roda seus planos, fotografa-os. O filme é uma colagem de fotos, com uma narração em voice over, música e efeitos sonoros. Afinal, o cinema não é uma projeção de fotos em 24 quadros por segundo? Marker “congela” esses quadros, priva-nos da ilusão cinematográfica de movimento e reconstrói essa ilusão na montagem das fotos aliada à trilha, à narração e aos efeitos de som. Essa opção estética tem tudo a ver com a proposta temática do filme. La Jetée – cujo protagonista é um adulto obcecado por uma lembrança de infância – é um ensaio sobre memória e imagem. A foto tem essa qualidade do instantâneo, de capturar o momento, de eternizar um fragmento de ação ou movimento no tempo. A imagem estática da fotografia é uma tentativa de parar o tempo. Marker usa o movimento cinematográfico apenas nos 12 segundos iniciais de La Jetée, não como registro de ação mas em truca, um passeio de câmera sobre a foto de aviões estacionados no aeroporto. Esse travelling de distanciamento e o som de aceleração de turbinas dão a sensação de uma decolagem. Todas as outras fotos são estáticas, “movidas” apenas pela dinâmica da montagem. Em alguns momentos há fusões e sobreposições entre elas.

A trama de La Jetée é tão envolvente quanto o ritmo e a montagem das imagens, é tão densamente dramática quanto a narração. A estrutura do roteiro parece linear, mas é um engano de dar um nó na cabeça, porque o filme acaba questionando a própria linearidade do tempo. O enredo integra ficção científica, guerra, política e romance para fazer essa reflexão sobre o tempo e de quebra deixar um alerta sobre as possíveis consequências da estupidez humana. Vale lembrar que, em 1962, o mundo encarava a ameaça de uma guerra nuclear que chegou a seu momento mais tenso com a crise dos mísseis em Cuba, em outubro daquele ano.

La Jetée, uma imagem fixada na lembrança e a tentativa de parar o tempo.

O filme, com quase meia hora de duração, virou um marco na história do cinema e influenciou gerações de cineastas. Dois longas-metragens foram inspirados diretamente em La Jetée: Ano Unha, de Jonás Cuarón (México, 2007) e, o mais conhecido, Os Doze Macacos, de Terry Gilliam (EUA, 1995). Em Os Doze Macacos a hecatombe que torna o mundo inabitável para o ser humano não é a radioatividade após uma guerra nuclear, é um vírus letal.

Após o grande impacto de La Jetée, Cris Marker seguiu produzindo em profusão, principalmente documentários, vídeos experimentais, arte multimídia e exposições fotográficas, integrando estéticas e linguagens e provocando reflexão. É considerado um cineasta da Rive Gauche (margem esquerda) do movimento Nouvelle Vague, grupo de diretores cujas obras tinham uma ligação com o movimento, porém não tão direta quanto o grupo da margem direita (Truffaut, Godard, Chabrol e Rohmer).  Marker Faleceu em 2012 com 91 anos. La Jetée permanece vivo em DVD e na internet.

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Published on February 04, 2021 06:17

January 28, 2021

A Casa do Baralho, episódio de hoje: O Fim da Picada

— Ô meu amigo Pançuelo, tudo em cima?

— Graças a Deus, presidente, tudo em dia.

— Mandei pra ti uns leite condensado pra tu “entrar em forma”.

— Que é isso, presidente, muito obrigado. Adoro leite condensado com mortaldela.

— Boa essa. Tu podia enfiar no Kit Covid do tratamento precoce, diz que leite condensado tem zinco.

— Já vou providenciar, hehe. Que que manda, chefe?

— Que que mando? Eu mando e tu obedece, huahuahua.

— Essa é boa presidente, muito engraçado mesmo.

— É o seguinte, temos que pensá aqui numa estratégia, que a coisa não tá boa no momento. O inimigo tá tirando a cabecinha das trincheiras com esse negócio da vacinação.

— Ah não, tirando a cabecinha não! Mas nem te preocupa, agora tá tudo dominado, já começou a vacinação e o povo vai se aquietar. Eu fiz tudo direitinho como o senhor mandou. Vai ter a vacina, mas a conta-gotas.

— Muito bem!

— O Zé Gotinha não é o símbolo da vacinação? Então, vai ser uma gotinha de AstraZeneca aqui, uma de Coronavac ali. O importante é que não vai ter vacinação em massa, nem perto disso.

— Excelente. Imagina que o teu colega da fazenda, Pauno Deles, me larga essa declaração: “a economia só vai se recuperar quanto tiver vacinação em massa”.

— Isso que eu chamo de fogo amigo, presidente.

— Mui amigo… Pena que não tô em condições de mandar ele pra…

— Imagina, é um cara leal, mas é um civil…

— É, tem isso daí. Ninguém é perfeito.

— Perfeito, presidente, falou tudo. Mas nem esquenta, é Zé Gotinha na cabeça.

— Ótimo. Muito melhor gotinha que agulha. Tu sabe que eu tenho horror de agulha.

— Ah, presidente, mas é só uma picada, não dá nada.

— Tá louco? Eu, ninguém me pica. No exército, no dia da vacinação da BCG, malaria, essas coisas, dei um migué e escapei. Mas agora, com toda essa merda de vacinação e a imprensa furungando, tive que esconder meu histórico de vacinação.

— Foi brilhante decretar sigilo da sua carteira de vacinação por cem anos, um nó estratégico!

— Agora quero ver alguém falar que não tomei nenhuma iniciativa no quesito vacinação… Decreto presidencial e tudo.

— Manobra de gênio, presidente!

— E esse negócio do oxigênio em Manaus?

— Ah, presidente, os caras são uns incompetentes, abriram as pernas pro comércio no final do ano e deu no que deu. Agora querem responsabilizar a gente?

— Não é que eles querem responsabilizar. Eles já tão responsabilizando. Isso e o calcinha apertada começando a vacinação em São Paulo é tudo que a esquerda queria. Tu viu as carreata e panelaço que teve nesse fim de semana?

— Ah, mas isso aí o senhor tira de letra. É só achar um coitado pra bode expiatório, meter no dele e tá feito.

— Pois é, é sobre isso daí que eu queria falar contigo. O procurador da república me ligou. Tá rolando muita pressão em cima dele pra abrir uma investigação no tocante a essa história do oxigênio faltante.

— Ótimo. Manda investigar o prefeito de Manaus e o governador. É certo que tem ali corrupção, superfaturamento e tal.

— Mas a pressão é pra investigar a conduta do governo federal. A oposição e essa imprensa suja tão em cima dele. Já tão chamando ele de engavetador da república.

— Como assim investigar o governo federal? Não deixa, não.

— Tive que liberar.

— Pra ele pedir pro STF investigar o senhor?

— Não, Pançuelo, tá maluco? O ministro da saúde é VOCÊ. Quem teve o alerta que ia faltar oxigênio foi VOCÊ. Quem mandou Kit Covid em vez de cilindro foi VOCÊ. Mas não te preocupa, vão abrir inquérito e cozinhar em banho-maria.

— Mas presidente, nem banho-maria, nem banho-joão! Não quero inquérito contra mim. Eu só segui suas ordens direitinho.

— Mas acabou me expondo, general. Tive que babar o ovo da China, lamber as hemorroidas da Índia, engolir a porra da Venezuela mandando oxigênio pra Manaus. A Globolixo transmitiu ao vivo a reunião da ANVISA sobre a vachina, como se fosse final da Copa do Mundo, só pra me humilhar. Mas o pior foi ver o calcinha apertada fazendo o V da Vitória.

— Não era o V da vida? Ou seria o V da vacina?

— A vacina que se foda, a vida que se dane. Eu tenho é que me livrar dessa. Então, só queria te dar a letra pra tu não ficar sabendo pela imprensa.

— Que eu sou o bode expiatório?

– Tá mais pra boi de piranha, general, tô te mandando pra Manaus sem voo de volta. Tu só me aparece em Brasília de novo no dia D.

— No dia de …?

— De prestar depoimento huahuahua. Mas nem esquenta general, é só uma picada, não dói nada.

Será esse o fim da picada para Pançuelo? E o presidente B, sairá de mais esse episódio vacinado? Ou a turma do impeachment conseguirá, finalmente, desengavetá-lo? Não perca, nos próximos episódios de A Casa do Baralho.

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Published on January 28, 2021 06:55

January 21, 2021

As Rãs

Livro de Mo Yan – China – 2009.

Mo Yan significa não fale em mandarim. Esse foi o pseudônimo que Guan Moye escolheu para assinar seus livros, oriundo do alerta que os pais faziam a ele quando jovem para não expressar suas opiniões em público nos anos da famigerada Revolução Cultural. Guan acabou oficializando o pseudônimo como seu nome, após alguns problemas para obter os direitos autorais. Mo Yan tornou-se um dos mais importantes escritores chineses contemporâneos. Foi publicado no Brasil somente após ser laureado com o Nobel de literatura em 2012. Sobre o autor, a Academia Sueca declarou: “ele, que com realismo alucinatório, funde contos do folclore popular , história e contemporaneidade”.

As Rãs tem todos esses elementos e mais ainda. Na saga, que percorre a história da China desde a invasão japonesa (1937) até o boom econômico do século XXI, há uma gama de personagens icônicos que o autor constrói e desconstrói como heróis, como ocorria nos movimentos revolucionários dentro do regime comunista, mas ao contrário daqueles, suas virtudes e fraquezas não os mitifica ou vilaniza, apenas os humaniza. À frente dos personagens encontra-se a tia do narrador, Wan Coração, a primeira obstetra da região rural de Gaomi, comunista fervorosa que mais tarde torna-se a coordenadora do programa de controle de natalidade na região. O romance épico também apresenta um humor fino, autoirônico. Na aldeia dos protagonistas havia o costume de dar nomes de partes do corpo aos recém-nascidos: Chen Nariz, Li Mão, Zhaou Testa etc. O narrador, Wan Perna, é um dramaturgo que fez carreira no exército vermelho (assim como o próprio Yan). Esse personagem autobiográfico tampouco é poupado de ter suas fraquezas expostas. Frequentemente comparado a Gabriel Garcia Marquez e seu realismo fantástico, o autor brinca com essa comparação em As Rãs. Ao ler trechos de sua nova peça para a tia, seu marido e seu amante, Wan Perna é criticado por usar demasiadamente fatos reais que podem expor as pessoas do povoado. Perna os tranquiliza, garante que todos os personagens terão nomes estrangeiros e que a aldeia se chamará Vila Macondo. Na estruturação de As Rãs,  até a metalinguagem torna-se alvo de  humor. O romance inicia em forma de cartas a um professor e termina como uma peça de teatro dentro de outra peça de teatro.

Para mim, o elemento mais cativante do livro, além da verve de um exímio contador de histórias, é o contraponto entre as crenças e superstições dos camponeses e as crenças e slogans do regime. Esse contraponto da tradição x revolução (que partilham, no final das contas, da mesma essência: obstinação e fé cega), costura, ao longo da saga, as transformações ocorridas na China desde os meados do século XX até os dias atuais. Mo Yan trabalha esse contraste de maneira magistral, construindo seu ápice em torno da política oficial do filho único e sua ferrenha aplicação. Mais para o final do romance, quando a história da Tia cede protagonismo para a história pessoal do narrador e a saga adentra o novo século, há uma queda na qualidade literária do humor e do texto. Mesmo assim, As Rãs é uma viagem deslumbrante por um universo mágico, colorido e aterrador. Uma viagem que não dá para perder.

No Brasil, As Rãs foi publicado em 2015, pela Companhia das Letras, com tradução de Amilton Reis. Outros livros do autor traduzidos para o português: Mudança (Brasil e Portugal) e Peitos Grandes, Ancas Largas (Portugal).Seu romance Sorgo Vermelho foi adaptado para o cinema por Zhang Yimou.

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Published on January 21, 2021 06:32

January 14, 2021

37 Segundos

Filme de Hikari – Japão – 2019.

Trinta e sete segundos foi o tempo que Yuma ficou sem respirar quando nasceu. Esses segundos foram determinantes para sua vida. Ela não se vitimiza, mas às vezes pensa como seria se houvesse ficado apenas trinta e seis segundos sem respirar. 37 Segundos, longa-metragem de estreia da cineasta japonesa Hikari, surpreende pela ousada abordagem de tema  delicado: nosso olhar sobre portadores de deficiência física e o olhar deles sobre esse nosso olhar. 

Inicialmente, a ideia era ter uma protagonista que sofreu lesão na coluna após um acidente de carro. Para Hikari, diretora e roteirista, era fundamental que a atriz fosse cadeirante, tanto pela prática da inclusão, como pela naturalidade da interpretação. Após inúmeros testes ela conheceu Mei Kayama, atriz amadora que a cativou de imediato. Hikari reescreveu o roteiro, mudando as características da personagem e alguns elementos da trama inspirados na vida de Mei. A lesão na coluna deu lugar à paralisia cerebral e o filme ganhou seu título instigante. Não seria exagero dizer que em 37 Segundos, Kayama é muito mais do que a atriz principal. Embora não assine o roteiro nem a direção, muito da sua história enriqueceu o filme; muito da sua condição inspirou a maneira de filmar. A fisionomia híbrida de menina e mulher, sua voz, seu jeito e seus trejeitos trazem uma autenticidade singular ao personagem e à obra. A entrega, a coragem de expor-se em seu primeiro trabalho frente às câmeras impressiona. Para atingir esse patamar, Kayama contou com a direção segura de Hikari e com o apoio fundamental de seus colegas de elenco, principalmente o de Kanno Misuzu, que faz o papel de sua mãe.

Yuma (Mei Kayama), o mangá e seu olhar sobre nosso olhar sobre ela.

E é justamente da relação com a mãe que se origina o conflito principal. É a partir dele que personagem e filme se colocam em movimento. A superproteção materna sufoca Yuma, que é plenamente consciente de sua capacidade. Isso a faz romper a redoma e se expor a outras situações e olhares referentes à sua condição, o que a obra explora numa combinação mágica de crueza e sensibilidade. A gramática do filme, aliada à figura frágil de Yuma, cria uma tensão subjacente e nos confronta com nossos preconceitos, não só em relação aos “incapacitados” como em relação a outro universo marginal, o dos profissionais do sexo. A referida mudança no roteiro (que foi reescrito em apenas um mês, durante a pré-produção e preparação do elenco) sobrecarrega o ato final com excesso de subtramas e um tom levemente melodramático, destoante do clima do filme. Isso, no entanto, não chega a amenizar o forte impacto que a obra deixa ao final, junto com uma sublime sensação de bem-estar. É o que os americanos chamam de feelgood movie.

37 Segundos estreou na seção Panorama do Festival de Berlim em 2019, faturando o prêmio do Júri Popular e o prêmio da Confederação Internacional dos Cinemas de Arte. O filme pode ser visto na Netflix.

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Published on January 14, 2021 05:53

January 7, 2021

A Casa do Baralho, episódio de Hoje: A Invasão





Porteira que passa um boi, passa uma boiada –  ditado popular.





O presidente Trampo, ao saber que não ganhou o prestigiado prêmio Personagem do Anus de A Casa do Baralho (ver episódio anterior, Rectumpesctiva do Anus), ficou uma arara. Foi informado sobre o fato quando estava se dirigindo a um comício com seus seguidores, o gado da supremacia branca. Chegou ao comício como um touro enfurecido. Trampo não admite perder. Roubava no Banco Imobiliário quando ensinava o jogo aos filhos, por não tolerar a ideia, a possibilidade, a hipótese de não ser o vencedor. É verdade, a grande maioria das pessoas não gosta de perder, mas no caso dele é uma obsessão doentia. Nasceu em berço de ouro e aprendeu que sempre se ganha o que se quer. Se quiser sexo, é só agarrar uma xoxota. E se isso não funcionar, gaste uma graninha e contrate uma prostituta. Além disso, aprendeu que nos negócios, como na guerra, há que ser agressivo, vale tudo para levar a melhor. Essa educação primorosa criou um sujeito com um déficit grave: quando perde, fica perdido.





E perdido incitou seu rebanho a marchar sobre o congresso americano na sessão de certificação de Biteme como presidente eleito. O estouro da boiada invadindo o Capitólio foi o mais próximo do que os americanos chegaram a experimentar de um golpe de estado, embora tivessem muita experiência em incentivar golpes em outros países.





Foi um deus nos acuda. Muitos aliados do presidente o condenaram, muitos assessores em cargos de confiança se demitiram, até o twitter bloqueou sua conta por doze horas. Seus familiares tentaram convencê-lo a repudiar a invasão e mandar os bovinos de volta para casa. Mas ele estava fora de controle. Perder as eleições já era insuportável, imagine perder o Personagem do Anus para o presidente B, aquele puxa-saco da república das bananas. A Casa Branca, numa conversa franca de casa para casa, pressionou a equipe de A Casa do Baralho a mudar o resultado da premiação. A Casa do Baralho disse que era impossível. Fiel ao seu princípio: os fins valem mais do que os princípios, até toparia negociar, mas os prêmios já haviam sido outorgados e publicados. O pentágono ligou para o premiado, o presidente B, para ver se em consideração ao amigo, ele concordava em abrir mão do prêmio e o entregar a Trampo. B faria qualquer coisa pelo seu ídolo, menos entregar o osso. Ademais, agora estava flertando com um novo guru, o presidente RasPutin, que não perde eleição desde o século passado. De qualquer forma, ofereceu um cargo ao presidente Trampo. Ele poderia escolher entre uma embaixada (só não nos EUA) e o ministério da saúde. Certamente daria um ótimo diplomata ou um excelente comandante no combate à pandemia. O presidente Trampo disse que de nada lhe serviria um cargo em país que mantinha acordo de extradição com os EUA.





Finalmente, encontrou-se uma solução: A Casa do Baralho ofereceu escrever o primeiro episódio do ano tendo Trampo como protagonista e B apenas como coadjuvante. O presidente americano desprezou a proposta, disse que isso não servia nem pra consolo. Mas quando soube que em seu gabinete se estudava usar a vigésima-quinta emenda para declará-lo incapaz e afastá-lo do cargo, topou imediatamente. Fez um vídeo dizendo aos invasores que fossem para casa, obedecessem às autoridades, mas não se aguentou. Disse que os amava, que eles eram muito especiais, que a eleição que perdeu foi roubada e que ele entendia a dor deles.





O que aprontará o tramposo no dia 20 de janeiro? Não perca no próximo episódio de A Casa do Baralho.

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Published on January 07, 2021 09:31

December 31, 2020

A Casa do Baralho, episódio de hoje : Rectumpesctiva do Anus





Para celebrar o fim de 2020, ano que deixa profundas marcas, A Casa do Baralho resolveu fazer uma retrospectiva diferente, alcunhada carinhosamente de rectumpesctiva, para premiar os destaques dos anais de 2020.  O processo de escolha das categorias e dos vencedores foi muito tenso. Houve pressão e lobby por parte de candidatos, houve debates acalorados entre os jurados, em alguns momentos a discussão chegou a ser virulenta, como foi o ano. Aliás, o Sars-coV-2 foi um dos indicados na categoria personagem do anus, o que incendiou ainda mais os debates. Diga-se de passagem que foi o único dos candidatos que não ligou, pressionou, adulou, ameaçou, tentou subornar para ser contemplado na prestigiada premiação.





Após essa introdução esclarecedora, vamos ao que interessa:





Troféu Bravura Indomável para o ato mais corajoso do anus – indicados:





 1. A escapadinha do Governador de SP para Meame, logo após fechar o estado para as festas de fim de ano.





 2. A volta apressada do Governador no mesmo dia, após ver as reações do povo nas redes sociais.





3. A barganha do presidente B com o STF, na qual entregou o ministro Waitarde para não ter que entregar seu celular.





4. A solicitação do STJ e do STF ao Instituto Fiocruz para reservar uma penca de vacinas para eles.





5. A fuga espetacular de Waitarde para os EUA, logo após ter bravateado que iria prender todos os “vagabundos” do STF.





O vencedor: a fuga espetacular de Waitarde para os EUA!





Na categoria Me dê Motivos (para Impeachment) – Indicados:





1. Sabotagem ao isolamento social, ao uso de máscara e à compra de testes.





2. Fabricação em massa de cloroquina.





3. Trocas feitas no comando da Polícia Federal para defender a família e proteger a sua hemorroida.





4. Campanha antivacinação.





5. Convocação da ABIN e do GSI para auxiliarem as advogadas do filho do presidente no caso das rachadinhas.





6. Excludente de ilicitude.





7. Participação em manifestações contra a democracia.









O vencedor: O presidente B, pelo conjunto da obra!





Na categoria Frase do Anus – Indicados





1. Ministro do Meio Ambiente: “Precisa ter de um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura da Imprensa porque só se fala em Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas. “





2. Ministro da Economia: “É um câmbio que flutua. Se eu fizer muita besteira, o dólar pode chegar a R$5,00. Se fizer muita coisa certa, ele pode descer.”





3. Ministro da Saúde, o General Estouaquiparaobedecê-lo: “Para efeitos da pandemia nós podemos separar o Brasil em Norte e Nordeste que é a região que está mais ligada ao inverno do hemisfério norte, são as datas do hemisfério norte em termos de inverno, e ao Centro-sul, Sudeste e Centro-oeste, que é o restante do país e está mais ligado ao inverno do hemisfério sul.”





4. Presidente da Câmera R. Mia: “Entendo parte da sociedade que está ficando com muita aflição e raiva do governo, pela péssima condução da pandemia, e principalmente agora, pelo caso da vacina, mas o processo de impeachment é político e precisa ser tomado com muito cuidado para não tirar o foco da pandemia. Não há condições para se avaliar esse tema, o que não quer dizer que eu avaliaria nem positivamente nem negativamente. Não considero omissão de minha parte.”





O Vencedor – A frase do Presidente da Câmera R. Mia!





Observação: Decidiu-se deixar as frases do Presidente B fora de competição nesta categoria, porque seria injusto com os outros concorrentes. É só conferir qualquer live, pronunciamento, twitt ou conversa no cercadinho. Da calcinha apertada até o histórico de atleta, ninguém fala tanta m como o presidente B, nem em conteúdo, nem em profusão.





E por fim, o troféu mais esperado…





Personagem do Anus – Indicados:





1. O futuro ex-presidente Trampo que perdeu a (re)eleição e o cargo, mas não quer desocupar a moita. 





2. O Sars-coV-2 que conseguiu livrar o mundo do Trampo, mais ainda não do B; 





3. Feiroz, o único personagem que tem munição para nos livrar do presidente B, mas resiste em entregar.





4. O senador Quicu Rodrigues, flagrado escondendo 30 mil reais em espécie no fiofó, quando a polícia fez uma operação de busca e apreensão em sua casa.





5. O presidente B.





Menção Honrosa: Senador Quicu, como inspirador da Rectumpesctiva do Anus.





O Vencedor: O Presidente B, que não quer virar chimpanzé, nem jacaré, mas ofereceu Cloroquina para a ema, protagonizou a maioria dos episódios de Casa do Baralho de 2020, criou a maioria das frases escabrosas, teve a maioria das atitudes obscenas e praticou os atos mais calamitosos. E apesar de tudo, ainda está em pé. No entanto, mostrou nesse final de ano que mesmo que ninguém consiga derrubá-lo, ele pode cair sozinho.







A queda do presidente!



E você, concorda com as categorias e os vencedores? Tem mais alguma para acrescentar? Deixe seu comentário.





Um feliz 2021! Se quiser maratonar a série, basta ir à aba Casa do Baralho e ler os episódios de baixo para cima.

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Published on December 31, 2020 07:10

December 24, 2020

Oito em Istambul

Öikü Karayel como Meryem



Série – criação e direção de Berkun Oya – Turquia – 2020





Com um pé na Ásia e outro na Europa, Istambul é uma cidade singular. Pode ser vista como ponte entre dois continentes, mas também é o palco onde se chocam ocidente e oriente, religião e secularismo, tradição e modernismo. Esse choque cultural é o combustível dramático da série Oito em Istambul, cujo nome original, Bir Baskadir, é uma expressão que significa fora de série.  A obra  acompanha a vida de várias pessoas de diferentes extratos sociais, nível de educação e profissão. Quem faz a ligação ente esses personagens é Meryem, jovem religiosa muito ingênua, porém de inteligência afiada. Ela nos conduz de seu bairro periférico de aparência rural, onde mora com o irmão, a cunhada e dois sobrinhos, pelas artérias da metrópole e pelos entroncamentos da trama multipersonagem. Cada contato que ela tem na sua rotina nos introduz ao núcleo de outro personagem, seus traumas, anseios e conflitos que nos levam ainda à outros personagens. O denominador comum entre eles: todos enfrentam, em formas e graus diferentes, medo e frustração em busca da felicidade. Nesse cabedal de personalidades, histórias e conflitos familiares, as personagens femininas são as mais fortes e mais interessantes. A forma como a série integra os diferentes dramas cria um mosaico riquíssimo e eleva o banal do cotidiano a especial. O olhar de Berkun sobre a sociedade turca é um olhar crítico…e amoroso.





Oito Em Istambul, estética sofisticada com elementos de melodrama.



A série trabalha o contraponto da tradição versus modernismo em sua própria estética. Filme turco significa, na Europa e no mediterrâneo, o mesmo que novela mexicana por aqui. A vertente popular do cinema turco é fortemente identificada com o melodrama, conflitos exacerbados, personagens e interpretações maniqueístas. Berkun insere elementos dessa tradição nos oito episódios, em meio a uma estética sofisticada, causando uma estranheza provocante e fazendo homenagem a esse veio do audiovisual e da alma turca. Isso fica mais evidente na trilha musical e em algumas utilizações de zoom in ou out: um  movimento de lente que aproxima ou afasta o protagonista para isolá-lo ou inseri-lo na paisagem. Por outro lado, a série tem uma estrutura elaborada e um visual marcante, tanto na fotografia como na direção de arte. A cena de abertura de Meryem saindo de casa, além de nos ambientar nos cenários, tem uma força estética que cativa desde o início. Há imensa sensibilidade na composição dos enquadramentos e na longa duração de alguns planos que nos permitem respirar junto com os personagens, partilhar com profundidade os seus sentimentos.









Essa sensibilidade do olhar me fez lembrar em vários momentos o cinema de Robert Altman (Nasville, Short-Cuts, entre outros) que integra magistralmente várias histórias e personagens em um espaço comum. Excelentes são também os diálogos  e o trabalho dos atores, principalmente o de Öikü Karayel como Meryem, que se nutre de pequenos detalhes para construir a complexa personalidade de uma pessoa simples e fora de série.





Oito em Istambul pode ser vista na Netflix.

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Published on December 24, 2020 05:29

December 18, 2020

O Espião Perfeito

John Le Carré



Quando eu tinha doze anos, peguei da biblioteca dos meus pais um livro com uma capa sombria e um nome esquisito: O Espião que Saiu do Frio. Naquela época, minha referência de livros de espionagem eram os livretos de aventura de Patrick Kim, um agente secreto tipo James Bond, cujas peripécias eram recheadas de pancadaria e sexo. Apesar da capa e do título que despertaram minha curiosidade, achei o texto muito chato. Uns quatro anos depois, reli e fui fortemente fisgado: estava pronto para o contato com a escrita rebuscada de John Le Carré. Senti, mesmo sem conhecer os termos, que aquele era um texto diferente, que conseguia integrar os truques sedutores dos best-sellers com literatura de águas mais profundas. Havia suspense, contratempos e reviravoltas, porém os personagens e as tramas, longe dos estereótipos do gênero, emanavam autenticidade. Com o passar dos anos, fui lendo outros romances do autor. Esse cara já trabalhou no serviço secreto, pensava eu, a cada nova leitura, ou tem fontes muito boas.





Até o dia em que David John Moore, conhecido pelo pseudônimo John Le Carré, revelou que havia sido oficial de inteligência no MI6, nos anos quentes da guerra fria. Foi “aposentado” quando sua identidade foi exposta aos soviéticos pelo agente duplo Kim Philby (cujo caso inspirou O Espião que Sabia Demais). A partir daquele momento, dedicou-se exclusivamente à literatura. É curioso que, em 1963, quando John ainda era recrutador de agentes do outro lado da cortina de ferro, o serviço secreto britânico liberou a publicação de O Espião que Saiu do Frio por considerar o livro pura ficção, ao contrário da sensação da maioria dos seus leitores. O fato é que John inventou procedimentos, termos e rituais que mais tarde seriam adotados por seus colegas espiões. Quanto à autenticidade, usou seu conhecimento de insider para criar – por meio de detalhes muito bem articulados – cenários, atmosferas e personagens consistentes. O resto era ficção. Sobre isso John escreveu em seu livro de memórias: “Para um advogado, a verdade são os fatos sem adorno. Se esses fatos são verificáveis, essa é outra história. Para o escritor criativo, os fatos são o material bruto, não seu capataz, e sim seu instrumento, e seu trabalho é fazê-lo cantar. Se a verdadeira realidade reside em algum lugar, não é nos fatos, mas nas nuances”.





O clima e as nuances. Gary Oldman como George Smiley, personagem ícone de Le carré



A meu ver, mais do que Kim Philby, Le Carré foi um agente duplo, infiltrado na comunidade de inteligência a serviço da arte, com a missão de elevar o gênero de espionagem à boa literatura. E isso ele fez com louvor, por meio de tramas intricadas e personagens complexos, envolvidos em profundos conflitos, externos e principalmente internos. Ele foi Um Espião Perfeito, título de um de seus melhores romances, no qual o protagonista, Magnus Pym, tenta acertar os ponteiros com a sua consciência. Quando a Guerra Fria acabou e satélites, drones e computadores diminuíram a importância do agente em campo, Le Carré ampliou seus tópicos e aumentou a carga política em seus textos.





John faleceu aos 89 anos de idade e 57 de carreira literária, com um legado de 25 romances, além de contos, ensaios e a autobiografia O Túnel de Pombos. Cerca de um terço de seus romances foram adaptados para o cinema e para a televisão. Um deles, O Jardineiro Fiel, foi dirigido por Fernando Meirelles e fotografado por César Charlone. Profeticamente, seu último romance chama-se Um legado de Espiões (2017) e fecha o ciclo iniciado com O Espião que Saiu do Frio.





No prefácio de sua autobiografia O Túnel de Pombos, Le Carré explica o título do livro e, mais do que isso, a origem dos conflitos de seus personagens: “Não há quase nenhum livro meu que, em algum momento, não tenha sido chamado provisoriamente de O túnel de pombos. A origem desse título tem uma explicação simples. Quando eu era adolescente, meu pai decidiu me levar em uma das suas jogatinas em Monte Carlo. Perto do velho cassino, ficava o clube esportivo e, mais abaixo, o gramado e um campo de tiro de frente para o mar. Sob o gramado, estreitos túneis paralelos corriam até a água. Neles, eram colocados pombos que haviam nascido e sido apanhados em armadilhas no telhado do cassino. Sua tarefa era voar pelos túneis escuros e emergir no céu mediterrâneo, servindo de alvo para os cavalheiros esportistas que aguardavam, de pé ou deitados, com suas espingardas. Os pombos que não eram atingidos ou ficavam apenas feridos faziam o que essas aves sempre fazem: retornavam ao local de nascimento no telhado do cassino, onde as mesmas armadilhas esperavam por eles. A razão pela qual essa imagem me assombra há tanto tempo é algo que talvez o leitor seja capaz de julgar melhor do que eu”.

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Published on December 18, 2020 06:54

December 10, 2020

Mank





Filme de David Fincher – EUA – 2020.





Do alto de seus quase oitenta anos, Cidadão Kane ainda é considerado um dos grandes filmes da história do cinema. Impressiona também o fato de ter sido realizado por um jovem de 24 anos, em sua estreia em um set de filmagens. Orson Welles foi o ator principal, assinou o corroteiro e dirigiu o longa. No post sobre Cidadão Kane, destaquei o papel fundamental do diretor de fotografia, Gregg Toland, nas inovações da sofisticada linguagem cinematográfica empregada no filme. Em Mank, David Fincher traz à luz outro personagem importante dessa obra genial, o roteirista Herman Mankiewicz. O filme cobre os noventa dias em que Mank, como era apelidado pelos amigos, escreveu o roteiro de Cidadão Kane, isolado em um rancho no meio do deserto e acamado após um acidente de automóvel. Esse período é entremeado por uma série de flashbacks que revelam como e por que o roteirista escolheu seu tema e personagem, ou melhor, o seu alvo. O roteiro rendeu o único Oscar para Herman, em sua profícua carreira, e para Cidadão Kane, entre as dez categorias que disputou em 1942.





Mank foi rodado em Preto e Branco e seu som é mono (grande ousadia do realizador). Um dos destaques do uso desse som acontece na cena do suicídio de um colega de Mank – após uma conversa tensa entre os dois. Fincher opta por nos afastar dessa cena: pela janela do edifício, vemos apenas o clarão do disparo e ouvimos o som de um tiro seco e breve, sem o eco e a intensidade sonora que Hollywood nos acostumou. A imagem distante e, principalmente, a limpeza do som acentuam a dramaticidade da cena. Mank faz referência a Cidadão Kane nos cenários, na profundidade de campo, em alguns planos memoráveis e nos dois elementos temáticos interligados como gêmeos siameses: o poder e a política. Uma das referências interessantes é a disputa eleitoral que, em ambos os filmes, desemboca em pontos de virada importantes de seus protagonistas. A outra, é a utilização de um falso documentário. Cidadão Kane abre com um jornal cinematográfico, inserindo na sua obra de ficção uma linguagem documental. Mank mostra como os grandes estúdios criaram um falso news reel (o rolo de notícias que era apresentado antes de cada filme) para derrotar Upton Sinclair – o candidato democrático com ideias socialistas. Como o fato é verídico, podemos constatar que as fake news nasceram muito antes das redes sociais.





Referências visuais ao Cidadão Kane e seus famosos triângulos. Gary Oldman como Mank, Harlis Howard como o poderoso Louis B. Mayer e Tom Pelphrey como Joseph Mankiewicz.



Mank tem um roteirista como personagem e a escrita de um roteiro como fio condutor.  Curiosamente, o roteiro é o seu ponto fraco.Repleto de personagens reais com potencial para criar excelentes personagens dramáticos, a começar pelo protagonista, o roteiro foca nos maneirismos e não aprofunda nos personagens e conflitos. As interpretações, principalmente as de Gary Oldman (Mank), Lily Collins (Rita) e Tuppence Middleton (Sara) amenizam essa superficialidade, mas não salvam os personagens. Uma das figuras que mais despertam interesse é Upton Sinclair, que aparece em cena por meros dois minutos, mas seu nome paira sobre o filme em um dos principais eixos dramáticos. Mankiewicz foi alçado ao posto de roteirista top na época da transição para o cinema falado, graças a qualidade de seus diálogos. Os diálogos em Mank tentam manter a verve afiada das falas curtas que fizeram a fama de Herman, mas acabam se atendo a frases de efeito, muitas vezes repetitivas. A relação de Mank com sua esposa Sara se resume ao ritual de se perguntarem mutuamente como ela o atura todos esses anos; e ao fato de ele e seus amigos se referirem a ela como pobre Sara.





Apesar dos problemas no roteiro, Mank é um filme que vale a pena ser assistido, principalmente para quem gosta de cinema. É um resgate interessante, tanto na estética como nos temas, de uma época que mudou muito, mas mantém alguns “princípios” arraigados até os dias atuais.





O projeto foi idealizado e roteirizado, ainda nos anos 1990, por Jack Fincher, o falecido pai do diretor. Quase trinta anos depois foi produzido pela Netflix. Sugiro um programa duplo: ver, ou rever, Cidadão Kane e depois embarcar na trama mankiavélica dos bastidores da criação de seu roteiro.

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Published on December 10, 2020 07:36