Mank





Filme de David Fincher – EUA – 2020.





Do alto de seus quase oitenta anos, Cidadão Kane ainda é considerado um dos grandes filmes da história do cinema. Impressiona também o fato de ter sido realizado por um jovem de 24 anos, em sua estreia em um set de filmagens. Orson Welles foi o ator principal, assinou o corroteiro e dirigiu o longa. No post sobre Cidadão Kane, destaquei o papel fundamental do diretor de fotografia, Gregg Toland, nas inovações da sofisticada linguagem cinematográfica empregada no filme. Em Mank, David Fincher traz à luz outro personagem importante dessa obra genial, o roteirista Herman Mankiewicz. O filme cobre os noventa dias em que Mank, como era apelidado pelos amigos, escreveu o roteiro de Cidadão Kane, isolado em um rancho no meio do deserto e acamado após um acidente de automóvel. Esse período é entremeado por uma série de flashbacks que revelam como e por que o roteirista escolheu seu tema e personagem, ou melhor, o seu alvo. O roteiro rendeu o único Oscar para Herman, em sua profícua carreira, e para Cidadão Kane, entre as dez categorias que disputou em 1942.





Mank foi rodado em Preto e Branco e seu som é mono (grande ousadia do realizador). Um dos destaques do uso desse som acontece na cena do suicídio de um colega de Mank – após uma conversa tensa entre os dois. Fincher opta por nos afastar dessa cena: pela janela do edifício, vemos apenas o clarão do disparo e ouvimos o som de um tiro seco e breve, sem o eco e a intensidade sonora que Hollywood nos acostumou. A imagem distante e, principalmente, a limpeza do som acentuam a dramaticidade da cena. Mank faz referência a Cidadão Kane nos cenários, na profundidade de campo, em alguns planos memoráveis e nos dois elementos temáticos interligados como gêmeos siameses: o poder e a política. Uma das referências interessantes é a disputa eleitoral que, em ambos os filmes, desemboca em pontos de virada importantes de seus protagonistas. A outra, é a utilização de um falso documentário. Cidadão Kane abre com um jornal cinematográfico, inserindo na sua obra de ficção uma linguagem documental. Mank mostra como os grandes estúdios criaram um falso news reel (o rolo de notícias que era apresentado antes de cada filme) para derrotar Upton Sinclair – o candidato democrático com ideias socialistas. Como o fato é verídico, podemos constatar que as fake news nasceram muito antes das redes sociais.





Referências visuais ao Cidadão Kane e seus famosos triângulos. Gary Oldman como Mank, Harlis Howard como o poderoso Louis B. Mayer e Tom Pelphrey como Joseph Mankiewicz.



Mank tem um roteirista como personagem e a escrita de um roteiro como fio condutor.  Curiosamente, o roteiro é o seu ponto fraco.Repleto de personagens reais com potencial para criar excelentes personagens dramáticos, a começar pelo protagonista, o roteiro foca nos maneirismos e não aprofunda nos personagens e conflitos. As interpretações, principalmente as de Gary Oldman (Mank), Lily Collins (Rita) e Tuppence Middleton (Sara) amenizam essa superficialidade, mas não salvam os personagens. Uma das figuras que mais despertam interesse é Upton Sinclair, que aparece em cena por meros dois minutos, mas seu nome paira sobre o filme em um dos principais eixos dramáticos. Mankiewicz foi alçado ao posto de roteirista top na época da transição para o cinema falado, graças a qualidade de seus diálogos. Os diálogos em Mank tentam manter a verve afiada das falas curtas que fizeram a fama de Herman, mas acabam se atendo a frases de efeito, muitas vezes repetitivas. A relação de Mank com sua esposa Sara se resume ao ritual de se perguntarem mutuamente como ela o atura todos esses anos; e ao fato de ele e seus amigos se referirem a ela como pobre Sara.





Apesar dos problemas no roteiro, Mank é um filme que vale a pena ser assistido, principalmente para quem gosta de cinema. É um resgate interessante, tanto na estética como nos temas, de uma época que mudou muito, mas mantém alguns “princípios” arraigados até os dias atuais.





O projeto foi idealizado e roteirizado, ainda nos anos 1990, por Jack Fincher, o falecido pai do diretor. Quase trinta anos depois foi produzido pela Netflix. Sugiro um programa duplo: ver, ou rever, Cidadão Kane e depois embarcar na trama mankiavélica dos bastidores da criação de seu roteiro.

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Published on December 10, 2020 07:36
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