Nação Serial Killer

O mundo do crime sempre foi uma fonte de grandes dramas, conflitos, suspense e mistérios na literatura, nas telas de cinema e TV. Golpistas, assaltantes, proxenetas, contrabandistas, traficantes antagonizam a Lei representada por policiais, detetives, procuradores. Entre os crimes, destaca-se (como não poderia deixar de ser) o atentado contra a vida. A irremediabilidade do ato, a qualidade definitiva da morte, alçou o homicídio a um protagonismo que ultrapassa  a esfera do gênero policial. Crime e Pecado, de Dostoyevsky; O Estrangeiro, de Camus;  O Túnel, de Sabato; O Jogador, de Altman;   Ghost Dog, de Jarmusch são alguns exemplos de grandes obras que tentam entender o mecanismo que leva ao ato de matar, a psicologia do perpetrador. Se todos os outros crimes desafiam a lei dos homens – o contrato social do pacto civilizatório – o assassinato quebra ainda uma outra Lei, natural, a do amor à vida. Ceifar uma vida, qualquer vida, é uma violência que exerce terror e fascínio desde os tempos bíblicos, na vida e na arte.

Mas há alguns anos ceifar uma vida, deixou de ser suficiente. Há que produzir mais de um corpo para nos chocar e um novo protagonista surge em cena, o serial killer. Hanibal Lecter, Jack o estripador, Ted Bunty e uma série de assassinos seriais, da ficção e da morte real, assombram nossos corações, incluindo um serial killer “do bem” que assassina assassinos. Todos parecem possuir um intelecto superior, uma frieza sobre-humana, empatia zero e um sadismo monstruoso. São psicopatas. Que só deixam pistas nos cadáveres. Do lado da Lei, unidades especializadas escrutinam detalhes sobre as vítimas, tentam descobrir pontos em comum entre elas, para traçar um “perfil” do assassino, identificar uma assinatura. A série Mindhunter mostra a origem desses estudos sobre serial killers e seus perfis psicológicos.

O Rio de Janeiro, só na  semana passada, produziu dois corpos. O do congolês Moïse Kabagambe e o do Brasileiro Durval Teófilo Filho. O primeiro foi amarrado e espancando até a morte num quiosque à beira mar onde trabalhava, quando foi cobrar os duzentos reais que lhe deviam; o segundo levou tiros de um vizinho militar que achou que era um ladrão, quando entrava no condomínio onde morava. Os dois somam-se à uma lista interminável de vítimas com um traço em comum: são negros. Qual o perfil do serial killer que mata negros? Quais complexos, temores, desvios mentais e comportamentais são despertados na mente desses carrascos pela pele escura?

Protestos após a morte de Moïse Kabagambe ocorreram em várias cidades do Brasil.

No romance 2666 o autor chileno Roberto Bolaño aborda um fenômeno real que permanece um mistério até os dias atuais. Uma cidade no México que se torna, a partir de 1993,  uma serial killer de mulheres.  As mortes e desparecimentos de moças na  cidade de Juarez acabaram cunhando um novo termo legal: feminicídio. E acabam suscitando outra pergunta: pode uma comunidade tornar-se uma serial killer?

Pode. Infelizmente, o Brasil não deixa dúvidas sobre isso.

Mas a comunidade (um bairro, uma cidade, uma nação) é a grande expressão do pacto civilizatório,  o espaço nobre  das trocas e interações que chamamos de convivência. Como pode esse ente civilizatório tonar-se um serial killer, pretender eliminar das trocas e interações os grupos que o compõem? A cidade de Juarez, no norte do México, fornece algumas pistas. A grande maioria das mulheres assassinadas ou desaparecidas eram ou tinham sido operárias das empresas maquiladoras. As maquiladoras, fenômeno surrealista do capitalismo globalizado, atraíram para Juarez hordas de desempregadas de todo o país, principalmente mulheres entre 17 e 30 anos de idade. A cidade, com esse crescimento abrupto, deixou de ser uma comunidade e tornou-se um entreposto de subtrabalho. É o capitalismo globalizado degradando o espaço urbano. Junta-se a isso o surgimento dos cartéis de drogas no México, sendo o de Juarez, um dos mais violentos. A cultura da crueldade e do machismo dos cartéis se instalou e impregnou a cidade tomada por uma população frágil de forasteiras.

Esses elementos contemporâneos de degradação das comunidades surgem, de forma distinta, também no Brasil. Além deles, o Brasil (como outras nações americanas) tem em sua origem um crime fundador: o extermínio dos povos originais (que não é assassinato em série, é genocídio) e a posterior importação em massa de africanos escravizados. Juntando os pontos, é possível vislumbrar como uma cidade ou nação pode tornar-se serial killer. Não é um paradoxo, é a desintegração, o autoaniquilamento desse espaço como ente civilizatório.

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Published on February 10, 2022 06:38
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