The Deuce

Série, criação de David Simon e George Pelecanos, 2017-2019
David Simon tem seu nome marcado na narrativa seriada de TV com The Wire (A Escuta), uma das séries pioneiras na revolução da linguagem televisiva do início dos anos 2000. Simon, que veio do jornalismo policial, trouxe um olhar contemplativo sobre o universo de tráfico das drogas em Baltimore. Junto com a contemplação sobre o fenômeno, teceu um mosaico de personagens e histórias fascinantes.
Esse mesmo olhar contemplativo, quase antropológico, é lançado sobre a boca de lixo de Nova York, nas décadas de 1970 e 80, uma região da cidade assolada por cafetões, prostitutas, casas de massagens e bares e apelidada pelos habitues de The Deuce. Ali começou a nascer o que viria a ser a indústria pornográfica norte americana. Hoje é uma zona turística/central da cidade, englobando o Times Square com suas icônicas telas luminosas que soterram as esquinas escuras do passado.
A primeira temporada cobre o início dos anos 1970. É um tanto pesada de assistir, principalmente pelo tratamento das prostitutas por seus clientes e cafetões. Mais do que sexo explícito, a série explicita a misoginia, a objetificação das mulheres e os maus tratos de seus aliciadores. Uma delas, Candy, escolhe trabalhar sem a “proteção” de um macho.
A segunda temporada pula de 1972 para 1977-8. Há também um salto qualitativo na série, enquanto os dois protagonistas, Frankie e Candy se destacam na narrativa multi-personagem e começam a construir suas carreiras, ele como gerente de bar local, ela migrando das ruas para os sets de filmes pornô, onde incialmente é atriz e depois, diretora. No processo intuitivo das filmagens encontra sua vocação para a arte.
A terceira temporada inicia em 1985, e a questão da Aids, junto com um programa de modernização imobiliária que visa expulsar do bairro os “maus elementos” são os grandes temas. O monólogo de Paul, um personagem gay que sabe estar com os dias contados, é um dos pontos altos da série, um grande final antes do epílogo. Entendo a importância do epílogo, mas para mim o fechamento após o monólogo de Paul seria muito mais forte.
Um dos grandes desafios da série foi como captar as cenas de sexo, que ao contrário da maioria das cenas de sexo nos filmes e séries, não pretendiam expressar amor, nem exalar erotismo. E deveriam mostrar sexo explícito, sem ser sexo explícito. Esses desafios estéticos e técnicos foram vencidos com louvor. A relação sexual como um trabalho, ou ação mercantil é desglamourizada com a mesma criatividade e aplicação que a torna atraente em outras obras. Nessas sequencias foi utilizada uma coordenadora, ou diretora de intimidade que ajudou a preparar os atores para as cenas de fricção.
É interessante que a questão de preparação de atores para cenas de sexo também faz parte da trama, quando Candy contrata atores de teatro para um de seus filmes, até então estrelados por prostitutas ou atores/atrizes pornô, e na hora de filmar a relação sexual, os dois sofrem um bloqueio.
E falando em atores, Jamie Franco, fazendo o papel dos gêmeos Frankie e Vinie, e Maggie Gyllenhaal, no papel de Candy, conduzem um elenco repleto de personagens instigantes e interpretes à altura desses personagens.
Vale destacar também o rigor na reconstituição de época e do bairro, tanto na direção de arte (cenários, figurinos, cabelos, objetos de cena, filmes em cartaz, etc.), como nos diálogos, direção de foto e mentalidade vigente.
The Deuce foi produzida pela HBO e pode ser vista na HBO/MAX.