C.N. Gil's Blog, page 29

June 2, 2016

Falando em Marillion,

...alembrem-se disto?


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Published on June 02, 2016 04:30

Mas, além de coisas que tocam a alma,...

...também gosto, por vezes, de coisas que m revolvem as entranhas e me deixam manifestamente desconfortável a navegar em mares de sonoridades nunca antes navegadas!
Também gosto de me perder em dissonâncias e melodias improváveis, em sacrilégios harmónicos.

Acho que às vezes gosto de sentir o poder do lado negro da música!

Tolkien, no fabuloso Silmarillion (titulo que era para ter sido o nome de uma das bandas que me influ^nciou bastante, mas que, não o podendo usar por imperativos legais, resolveram encurtar a coisa e chamar-se de Marillion - cujo guitarrista admiro não só por ser alguém de um bom gosto musical extraordinário no que toca, mas também por ser um gajo absolutamente acessível e porreiro) descreve como foi criado o mundo!
Estando sozinho na existência, Iluvatar sentia-se sozinho e dividiu-se em muitas partes, criando os seus filhos, mantendo-se uno ao mesmo tempo. O problema é que os seus filhos não se entendiam uns com os outros, percebendo apenas a pequena parte que eram do todo e Iluvatar ordenou-lhes que compusessem um coral em conjunto.
Ao principio era tudo uma cacofonia, mas com o tempo começaram a emergir harmonias, sinais do entendimento e percepção entre as partes. Finalmente estavam todos juntos, em harmonia e eis que uma voz, invejosa de toda aquela harmonia, criou propositadamente dissonâncias.
No fim, Iluvatar levou-os a ver o que a força da sua música tinha criado, e a sua harmonia tinha criado a terra e todos os seres...
...a as dissonância haviam criado tudo o que se movimentava nas trevas!

Talvez o que está abaixo seja mais uma voz na procura da harmonia unificadora!
Talvez seja uma dissonância propositada!

Apenas sei que é estranho, diferente, impensável até ser ouvido, e depois de ouvido causa estranhas influências...
...algumas coisas impensáveis antes passam a ser ponderadas como possibilidades...

Deixo-vos com Alamaailman Vasarat


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Published on June 02, 2016 03:44

June 1, 2016

Eu admito!

Sou um roqueiro confesso!
Adoro musica pesada, desde que seja melódica! Algumas coisas mais "radicais" dentro do rock e do metal não me agradam! São meras descargas de adrenalina que valem apenas por isso! São feitas mais para os próprios (e sei bem o gozo que dá tocar algumas dessas coisas) do que para os outros!
Tem, talvez por isso, uma validade artística inegável, mas não me agradam!
Mas...
...no começo eram os Beatles, na rádio, enquanto a minha mãe costurava e alguns discos de música Portuguesa!
Depois foi a descoberta da música clássica, da força de uma orquestra sinfónica, do poder que a música tem, na sua expressão mais elevada!
Entretanto foi a descoberta do rock, com um irmão 18 anos mais velho a trazer para casa álbuns de música não comercial para ouvir, aquelas coisas que não passavam cá na rádio, álbuns de Led Zeppelin, Deep Purple, Whitesnake, Slade e tantos outros que mergulharam no esquecimento...
...e também, com os meus oito anos, o "The Wall" a juntar tão bem os mundos do rock e da música clássica...
Isto deu-me uma coisa: Uma vastidão enorme de gostos musicais...
...e uma estranha intolerância a certos estilos musicais! Sobretudo pelos que sofrem de falta de harmoniam ou que são harmonicamente muito pobres! Valorizo muito mais a harmonia que o ritmo, embora saiba que ambos são as duas dimensões onde a música se move. Mas quando tende demais para o ritmo em detrimento da harmonia deixa de me agradar!
Talvez por isso não goste tanto de bossa nova. Apesar de uma riqueza harmónica extraordinária, o ritmo deixa-me desconfortável.
Já nem vou falar de kizombas, kuduros e afins que são simplesmente ritmo!
Há no entanto ambientes somente de percursão que são avassaladores! Tambores Taiko são um excelente exemplo!
Isto tudo para dizer que estou tão bem a ouvir Bach, Mozart, Chopin, Wagner (que era o metaleiro do principio do século e escreveu algumas das músicas mais pesadas de que há memória - A Cavalgada das Valquirias, por exemplo, é mais brutal que qualquer coisa que os Metallica tenham feito - como estou a ouvir Rihana, Katy Perry, Bruno Mars, Maroon 5, como estou a ouvir Joe Bonamassa, Ac/Dc, Metallica, Iron Maiden, Dream Theatre...

E depois...
...depois há aquilo que mais do que prazer auditivo me toca na alma!
Sobretudo quando alguém dedica algo assim a uma cidade tão nossa...


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Published on June 01, 2016 01:41

May 31, 2016

Há uns valentes anos, escrevi...

...isto que está aqui em baixo como letra para uma música!
A música foi gravada, regravada rearranjada, perdida, reencontrada, refeita e, ao fim destes anos todos está próxima de voltar à vida!
Daqui a uns tempos é possível que até apareça por aqui...

Pecado
Uma rosa
Sobre linho cru
Um beijo
No teu corpo nu
A carícia que aquece
O teu toque não se esquece...

Um jogo
Só de sentidos
No cetim
Os dois perdidos
A luxúria inebriava
E o cetim o teu corpo cobria
A noite estava clara
Lá fora a lua sorria

     Vontade de viver algo
     Sem saber
     Se é certo ou errado
     Vontade de viver
     Um pouco no pecado

O céu
Está num fogo posto
Meus lábios
Sentem o teu gosto
Sensação sensual
Puro desejo animal

A vida
Corre a galope
Na boca
O freio tomado
No meio do mundo
Dois seres com o destino ligado
Tudo fica para trás
 Manda-se fora o passado


(C. N. Gil)
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Published on May 31, 2016 06:05

May 30, 2016

Do 2º de crónicas (com ilustrações)

Prefácio
Os que se deram ao trabalho de ler o primeiro livro (gabo-vos a paciência…) recordam-se, por certo, que a minha vontade de revisitar os XXL Blues e as suas histórias não era nenhuma.
No entanto, o Universo diverte-se, por vezes, a conspirar para não nos dar descanso.
-Olha, vamos ao lançamento, certo? – Perguntou a minha cara-metade, assim, sem mais quê nem para quê, de repente, num dia qual-quer.
-Lançamento? – Perguntei eu, antevendo algum evento desportivo, lançamento de dar-dos, ou assim.
-Sim, o lançamento. – Afirmou ela convictamente, como se eu fizesse alguma ideia do que ela estava a falar.
-Mas quem é que vai lançar o quê aonde? – Acabei por perguntar, tentando esclarecer-me.
-Ora, não te faças de parvo! O lançamento do “Treta de Cabos”.
Revirei os olhos.
-Ah! – Respondi, voltando de novo as minhas sinapses para coisas importantes, como tentar equilibrar um ovo em pé! Já ela, não tendo obtido uma resposta categórica da minha parte (o que em si mesmo era uma resposta categórica, se bem que, uma vez que não estava de acordo com a que ela queria ter, não registou), voltou ao ataque.
-Então?
-Então o quê?
-Vamos ou não?
-Onde?
-Ao lançamento…
Devo ter feito uma expressão algo estranha, porque a dela mudou muito rapidamente.
-Mas porquê? – Acabei por perguntar.
-Bem, tanto quanto me recordo, foste tu quem escreveu o livro!
Há recordações dolorosas, que são como chagas abertas e ela, naquele momento, tinha acabado de esfregar sal nas feridas.
-Ya! – Respondi – Vai tu…
-Sr. Gil,… - pronto, estava o caldo entornado - …você quer-me dizer que faz tensões de não estar presente no lançamento do seu livro?
Mais uma vez apelo à memória dos que leram o primeiro tomo: lembram-se de eu falar nas vantagens de manter satisfeita a mulher que dorme ao nosso lado? Pois…
Duas semanas depois, por mera obrigação, lá tive de assistir ao lançamento do livro, sobretudo ao concerto de lançamento do livro, onde fui contrariado, mas tive de ir, por motivos que, entretanto, creio ter tornado óbvios.
Salvou a noite o facto de, por acaso, estarem por lá algumas pessoas inteligentes, como por exemplo, a maravilhosa CB que eles conseguiram convencer, vá-se lá saber como, a apresentar o livro!
Ainda assim, aquilo que, por si só, já não estava a ser uma noite famosa (salvo alguns momentos de excepção), estava prestes a transformar-se no início de uma verdadeira catástrofe.
Estávamos sentados a conversar coloquial-mente já depois do concerto e das apresentações quando Ninguém se volta para mim e diz:
-Pá, queria mesmo falar contigo…
-Então fala.
-Ok! Estamos a pensar em fazer uma segunda parte da “Treta de Cabos”…
A primeira coisa que me ocorreu foi perguntar “Porquê?”, mas contive-me e acabei por dizer somente:
-Acho que sim. Força.
-Ainda bem que concordas. Achamos todos que fizeste um trabalho razoável… - que simpático do lado deles; “e não pago” estive para acrescentar, mas como o risco de ser agredido com um rolo da massa quando chegasse a casa era grande, resolvi não responder - …e por isso vamos começar a dar-te as histórias para o segundo.
-Bem, … - respondi eu - …apesar de a proposta ser lisonjeira, não estou propriamente com tempo para isso. Tenho outros projectos em mãos…
-Quais? – Perguntou a minha cara-metade, com o seu sorriso a começar a transformar-se.
-Então, ando a investigar para escrever aquela cena… - respondi-lhe eu.
-Qual cena? – Perguntou ela, a ficar com um brilho maquiavélico nos olhos.
Lancei-lhe o meu olhar carregado e por esta altura já bastante mal disposto de ainda-não-te-apercebeste-que-não-estou-mesmo-nada-para-aí-virado e rosnei-lhe por entre dentes:
-A cena!
Fim de história, pelo menos para mim. Não havia mais nada a dizer.
Aparentemente, para algumas outras pessoas não o era!
-Podes sempre escrever isto enquanto andas com as tuas investigações que já duram há três anos, não achas?
Já nem me dignei a responder.
-Bem,… - Ninguém disse, com uma calma, um desplante e um sorriso no canto do lábio que tornavam óbvio que ele sabia tanto quanto eu onde é que esta conversa toda iria dar - …enquanto decidem os pormenores, toma lá isto,… - e entregou-me umas quantas folhas amarrotadas que tirou do bolso de trás das calças, cheias de rabiscos ininteligíveis - …que já ficas com material para começar. E tens to-do o tempo do mundo para fazer isto, desde que esteja pronto até ao final do verão.
E, seguidamente, antes que eu pudesse responder, retirou-se, deixando-me ali, não só com cara de parvo, mas à beira de uma crise conjugal.
Após duas semanas de reflexão profunda da minha parte (bem, não foi de reflexão, nem houve qualquer profundidade, a bem da verdade – digamos antes “após duas semanas a dormir no sofá”), lá me decidi a rever a minha posição em relação ao tomo II de “Treta de Cabos”.
É este o resultado.
Aos masoquistas que decidirem passar além deste ponto, desejo boa sorte.


C.N.Gil





I
Andemos uns bons anos para trás e aterremos no final dos anos oitenta, mais concretamente no dia quinze de Julho de mil novecentos e oitenta e nove, altura em que Ninguém usava ainda o seu penteado telhado-de-bungalow-da-serra-da-estrela e o Tolas era um Rocka-billy loiro arruivado.
Caso se estejam a perguntar o porquê de esta data, ao contrario de outras, estar tão bem gravada na memória de ambos os dois, deve-se isto ao facto de, nesse preciso dia, os Pink Floyd estarem a dar o seu concerto de Veneza.
Sendo o Tolas um membro da comunidade Rockabilly, conhecia mais pessoal que teimava em fazer as popas crescer com brilhantina. Um dos mais proeminentes membros dessa comunidade, um tipo chamado Jeff, costuma-va actuar em espectáculos de dança Rock’n’Roll, com as acrobacias típicas dos anos cinquenta.
Ora o Jeff tinha um espectáculo marcado numa discoteca de um centro comercial na Cruz de Pau e convidou o Tolas e mais Ninguém para lá irem actuar.
Decidiram o reportório em dez minutos, para tocarem meia hora, com clássicos como “Blue Suede Shoes”, “Heartbreak Hotel”, “The house of the rising sun”, “Runaway” e outras coisas do género que já costumavam tocar, fizeram dois ou três ensaios e lá foram.
Chegaram lá depois do jantar, viram o concerto de Pink Floyd na televisão da discoteca, que só abriu já perto da meia-noite, tocaram, foram “melgados” o resto da noite por um auto-intitulado jornalista que, meio (N.R. Só meio?) bêbado lhes afirmava que os tinha adorado e que lhes abriria as portas da fama internacional (algo que, por mero acaso, nunca se veio a verificar, até porque não voltaram a pôr a vista em cima do dito cujo senhor), receberam uns troquinhos e a noite acabou por ali!
E perguntam então vocês, estimadíssimos leitores, o que teve de especial este dia para ser aqui relatado?
Em primeiro lugar, foi o primeiro concerto pago que o Tolas e mais Ninguém tiveram.
Em segundo lugar, durante a tarde, tiveram de lá ir fazer o ensaio de som.
Quando lá chegaram estava o Jeff a ensaiar a coreografia com a sua partenaire. Ora, a dita partenaire era uma moça, digamos, voluptuosa, que foi para o ensaio com um vestido cai-cai. Se já viram dançar rock’n’roll ao estilo dos anos cinquenta, sabem que há por ali muito pulo e salto e o cai-cai, teimosamente, caía o que a fazia parar frequentemente para o puxar para cima antes que revelasse por in-teiro o seu (vasto) busto.
Por fim, já farta daquilo, acabou por pedir a t-shirt do Tolas emprestada, deixando o rapaz em tronco nu, para poder estar mais à vontade e deixar finalmente o cai-cai cair.
Ainda assim, tendo o cai-cai caído, a combinação de passos de dança atléticos, do efeito da gravidade e do volume (generoso) do dito busto, causava um efeito quase hipnótico que Ninguém estava a apreciar e o Tolas também.
E foi num pequeno intervalo da dança, en-quanto recuperava o fôlego que a rapariga, não tendo mais nada à mão, pegou na t-shirt e abanou-se com ela, revelando claramente o que até ali se tinha esforçado (mas não muito) por esconder, o que deixou um sorriso luminoso nas faces dos presentes.
Ela fez um sorriso maroto, ao mesmo tempo que deixava a t-shirt cair novamente, escondendo os seus altaneiros atributos, aproximou-se de ambos os dois e perguntou:
-Gostaram?
E, estando ambos bem ensaiados, como estavam, responderam em coro:
-Soube a pouco!
Foi com grande pena que constataram que à noite ela não trazia o cai-cai…



II
O dia não estava a começar bem! E não estava a começar bem logo cedo, a seguir à meia-noite, quando os vizinhos acharam que seria bom remodelar o apartamento e, como todos sabemos, não se deve deixar para o dia seguinte o que se pode fazer no próprio dia,…
…mas, caramba, pode-se esperar que o sol nasça!
Ninguém estava de cabeça torrada pela manhã quando (mais uma vez) acordou! Por esta altura, pensava ele, as paredes do apartamento ao lado deviam já estar completamente descascadas, a avaliar pela quantidade de vezes que foram usados martelos e berbequins!
Curiosamente, depois de amanhecer, as obras acabaram!
Ninguém dispôs-se a tentar descansar um pouco mas, sendo o dia do lançamento do “Treta de Cabos”, toda a gente fez menção de o chatear, pelo que o descanso foi coisa que não lhe assistiu!
Entretanto, o Peles, desempregado há já algum tempo, em linha com uma vasta parte da população do canteiro à beira mar plantado, teve de acordar a horas indecentes, precisa-mente nesse dia, porque lhe arranjaram um biscate!
Já o Gadelhas, com tudo programado ao milímetro, viu todos os seus planos gorados e acabou por sair a horas indecentes da sua ocupação profissional!
Ninguém estava bem-disposto quando se encontraram à hora marcada, no sítio do cos-tume. Felizmente a hora a que tinham de ir para o local do evento tinha sido adiada, pelo que, dos males o menos, não chegariam atrasados.
Estavam já a carregar o material quando, finalmente, o Tolas aparece esbaforido, tendo saído tarde do trabalho, em linha com os restantes companheiros!
Ninguém recebe um telefonema do Especiaria, quando já se faziam à estrada. Conseguem adivinhar o motivo? Não?
Pois, estava atrasado! Aparentemente a por-ta eléctrica da sua garagem recusava-se a cooperar com ele e não conseguia sair de casa com o carro que estava já carregado, estando levemente em pânico (mas só levemente, friso).
Felizmente que a montagem do palco decorreu sem problemas. A meio da montagem apareceu a convidada de honra da banda, a maravilhosa CB, que ia apresentar o livro (N.R. ainda estou para saber como é que a conseguiram convencer a semelhante coisa…), junto com uma amiga, a M, e vinha um bocado esbaforida por pensar que já estava atrasada, uma vez que tinha ficado presa nu-ma fila de proporções épicas à saída da praia. Ninguém acalmou-a, fazendo-lhe ver que estava mais do que a tempo e elas (ambas as duas, a CB e a M), vendo que ainda tinham tempo, resolveram ir comer qualquer coisa, visto que ainda não tinham jantado! Ninguém tinha jantado, embora os restantes elementos do Ensemble musical não, pelo que todos eles se queriam despachar para conseguir ir ferrar o dente em qualquer coisa.
Já no fim do ensaio de som, mesmo antes de tocarem duas das músicas do reportório, chega o editor, o Peras, que começou de imediato a montar o seu estaminé enquanto apreciava o “showcase” privado.
Entretanto, acabam o ensaio de som, final-mente, e todos partem rapidamente, enquanto Ninguém andava de um lado para o outro que nem uma barata tonta a tentar montar uma câmara de filmar para gravar o concerto e as apresentações. No entanto, o seu cérebro, por esta hora, após a noite mal dormida esta-va de tal forma atrofiado que conseguiu enrolar o cabo de alimentação da câmara com um cabo de microfone, verificando que a maldição da Treta de Cabos não se havia ainda dissolvido no tempo.
Após uma pequena e frustrante batalha que travou, não só consigo mesmo, mas também com os cabos que teimavam em enlear-se de maneiras estranhas e criativas, apesar de serem apenas dois, lá conseguiu montar tudo. Entretanto chegam os primeiros clientes ao bar, apanhando-o ainda no meio dessa azáfama!
Cumprimentou efusivamente as pessoas que chegaram e deixou-as entregue ao editor enquanto sai no encalço do resto da banda, entretanto desaparecida. Mas, eis que, uns cem metros depois se cruza com a CB e a M que, já recompostas da fome, estavam de volta. Ninguém inverteu a marcha e seguiu com elas, ficando os três à porta a conversar um pouco, conversa essa a que se juntou o Peras, dependurado numa das janelas do bar. Depois acabou por acompanhá-las para dentro onde continuaram em animada cavaqueira. Ninguém queria saber, ao fim ao cabo, do resto da banda, mas não ia deixar, de forma alguma, as convidadas da mesma sós e abandonadas num bar ainda quase vazio da margem sul, por mais espectacular que o mesmo fosse!
Ninguém atendeu, entretanto, um telefone-ma da colega de trabalho do tipo encarregue de debitar estas histórias (N.R. eu!), anunciando-lhe que tinha acabado de estacionar o carro e estavam ambos à porta, vindo buscá-los. Ninguém cumprimenta efusivamente a colega de trabalho. Já o cumprimento entre o marido dela (N.R. eu!!) e Ninguém foi um pouco árido, aliás, de tal forma seco que por comparação o Vale da Morte, na Califórnia, pode ser considerado um oceano! Ninguém escolta-os de volta para a mesa onde o marido da outra (N.R. eu!!!) rapidamente se entre-teve à conversa acerca de teorias maradas (N.R. teorias maradas?!?!) e cenas estranhas. Ninguém tinha pachorra para aquilo!
Entretanto chega também o Fat, fã de longa data dos XXL Blues e que tem feito questão de estar presente em tantos concertos quanto pode, fazendo também os possíveis por divulgar o trabalho da banda, que se junta naturalmente à tertúlia que entretanto se formara e Ninguém sabe que tem de encontrar o resto do seu pessoal, saído de fininho da conversa e esgueirando-se do bar para os ir procurar.
Ninguém estava preocupado, uma vez que aquela sexta-feira treze não tinha sido, até ali, espectacular, com toda a série de pequenos contratempos estúpidos que tinham aconteci-do desde bem cedo. Mas que culpa tinha ele, pensava de si para si, que os Templários tivessem sido mortos numa sexta-feira treze há buéda séculos atrás?
E eis que se cruza com o resto da banda que voltava para o bar após uma orgia de bifanas e “mines” numa colectividade próxima, onde se festejava de forma efusivamente popular o Santo António, voltando com eles para o bar e, lá chegados, espalharam-se pelos diversos grupos de pessoal que entretanto iam chegando.
O concerto correu muito bem, havendo du-as participações especiais. O Ouriço conseguiu algum tempo das suas deambulações televisivas e apareceu para se juntar a eles em palco numa interpretação de uma música dos “The Doors”, “Road House Blues”, e a X (não confundir com o X), nunca antes mencionada nestas crónicas, subiu ao palco para interpretar uma versão alternativa vegetariana da música “O teu pipi” chamada “O teu pipino”!
Entretanto, a meio do concerto, o Peras sobe ao palco para fazer a introdução à apresentação do livro, tendo bastantes dificuldades em captar a atenção dos presentes, mais interessados em “sex, drugs & rock’n’roll”.
Talvez por isso mesmo, quando em seguida a CB sobe acima do palco, vendo que tinha de tomar uma atitude drástica para captar a atenção, anuncia simplesmente:
-Se vocês não me dão atenção, eu começo a tirar a roupa!
Ninguém ficou surpreendido com esta afirmação da parte dela, receando de imediato o pior, enquanto olhava para um grupo de gajos que começavam já a salivar…
…mas, incrivelmente, eles acabaram por se portar bem e ela lá fez a apresentação…

(e muito bem feita, diga-se…
…a apresentação, claro!)




III
Era dia do concerto na inauguração da Secção Motard do Ginásio Clube de Corroios.
O Peles sai de casa e vai direito ao café onde Ninguém ia ter com ele.
À porta do café dá com o A., o organizador do concerto, para sua enorme surpresa!
-Atão, por aqui?
-Yá! A minha filha mora aqui em baixo e vim ter com ela…
-Olha quem diria…! Vou beber um café. Não queres beber nada?
-Não pá, já bebi e já tou atrasado.
-Como é que está lá aquilo?
-Pá, tá tudo fixe. Daqui a nada está pronto. Mas agora tenho mesmo de ir…
-Na boa. A gente já se vê.
-Yá! Até já.
E o A. lá se foi à sua vida, deixando o Peles a tragar a sua dose matinal de cafeína  en-quanto esperava por Ninguém.
Estava já o Peles na rua a esfumaçar-se quando Ninguém chega. Entra rapidamente para o carro, para poderem ir buscar o I e arrancam.
-Pá, o mundo é mesmo canuquinha. Sabes com quem é que eu estive ainda agora?
-Não faço ideia…
-Com o A.!
-Olha…!!!
-Yá. Parece que a filha dele mora para aqui e ele veio aqui antes de ir lá para Corroios.
-Atão mas ele disse-te alguma coisa sobre como aquilo está?
-Disse que tá quase tudo pronto, mas até saiu dali à pressa para ir para lá acabar o resto.
-Olha, fixe. Bora lá despachar então.
E despacharam-se. Daí  por cerca de meia hora estavam em Corroios. Entram no sítio, saem do carro e vão direitos ao A., que andava por ali a organizar as coisas.
O A. cumprimenta Ninguém, esticando de-pois a mão ao Peles, que o cumprimenta com um sorriso:
-Atão olá desde há bocado.
-Há bocado?!
-Sim, atão não estivemos a falar no café?
-Qual café?
-Fosga-se! Atão até me disseste  que a tua filha morava ali…
-Deves estar a confundir-me com alguém…
-Tás a gozar? Atão não nos cruzamos no café, lá no Fogueteiro esta manhã? Disseste-me que tinhas ido a casa da tua filha…
-Mas eu nem tenho ninguém de família a morar no Fogueteiro…
Ninguém ria-se daquela conversa de parvos. No entanto, apesar das negas do A., o Peles continuava a insistir que tinha estado com ele.
O mistério só foi desvendado uns dias de-pois, quando o Peles, e desta vez o Gadelhas também, se cruzam novamente com o A., no Fogueteiro…
…e descobrem que afinal não era mesmo o A., …
…mas era um gajo muito, muito, mas mesmo muito buéda parecido…




IV
Local: Ala pediátrica de um Hospital qualquer
Hora: Algures no turno da noite

A
 R, companheira de vida do Especiaria, assim que o “livródisco” saiu da gráfica, agarrou nuns quantos exemplares e levou para, literalmente, impingir aos colegas. Explicava-lhes o facto de ser um livro com um CD lá dentro…
Uma colega dela, talvez um pouco confusa, volta-se para ela e responde-lhe:
-Ó R, tudo bem, eu fico com o livro, mas só se me ofereceres o CD!
E a resposta foi imediata:
-Vendido!

***

Umas horas depois, alguém reparou no título de um dos temas do CD.
-Ó R, tá aqui uma música chamada “O teu pipi”!
-Pois está.
-É acerca do que estou a pensar?
-Ouve e depois logo vês!
A curiosidade espalhou-se e, numa hora vaga, num gabinete vago, o CD é posto a tocar e seguem de imediato para a faixa em questão!
A gargalhada foi geral!
No resto da noite, cada vez que se cruzavam nos corredores, olhavam uns para os outros e cantavam:
“Quero saber de que é que é feito o teu pi-pi…”




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Published on May 30, 2016 03:08

May 27, 2016

Do 1º de Crónicas...

Prefácio
Era de esperar, após ter escrito dois romances, que houvesse alguém, como por exemplo, a minha companheira de vida, que tivesse algum respeito pela minha escrita!
Enquanto escrevia o que vão ler a seguir, se por acaso forem algo masoquistas e se derem a esse trabalho, constatei que de facto tal assim não era!
Começou ao de leve com um:
- Já tens uma ideia do que vais escrever a seguir? Sempre vais fazer a continuação do chuva ou…
-Ainda nem pensei nisso…
-Podias escrever uma história de uma banda de rock…
…e eu encolhia os ombros. Ideia mais parva, sinceramente…
Mas depois:
-Olha, pensaste naquela ideia?
-Qual?
-Aquela da banda de Rock…
-Nem por isso.
-Mas olha que podia ser uma coisa fantástica. E tu até és todo rockeiro… Podia chamar-se “Treta de cabos – vidas de Rocker “As histórias secretas dos XXL Blues”…
-Dos XXL Blues?
-Sim, aquela banda que tu até gostas…
-Aqueles gajos que passas a vida a ouvir, a banda do teu colega de trabalho?
-Sim, esses…
-Mas onde é que foste buscar esse título?
-Achei piada…
-Ok, mas ao quê, se não te importas que pergunte?
-Aqui há uns tempos estava a falar com o meu colega e ele contou-me uma história do primeiro concerto de uma banda dele em que os cabos se enlearam todos e eles no fim, a dar conta daquilo disseram que um dia haviam de escrever um livro chamado “Treta de cabos – a nossa vida como Rockers”, mas como era uma cena deles, eu achei que era giro acrescentar “(as histórias secretas dos XXL Blues)”. Ele conta-me cada uma…
Lembro-me que achei aquilo um bocado estranho, levantei o sobrolho e perguntei-lhe:
-O teu colega parece ser um gajo fixe… - ciente que não estava a gostar muito daquela brincadeira, ao que ela respondeu:
-É! – e riu-se, como que se lembrando de alguma coisa engraçada com um ar vago, a olhar para o ar, continuando a seguir – Acho que te ias divertir a falar com ele…
Para já, para ser franco, não me sentia muito divertido!
Apesar disso, ela foi-me contando algumas histórias, de forma algo avulsa e eu comecei a suspeitar que, na realidade, aqueles tipos não existiam! Se calhar era ela que se lembrava de algumas das parvoíces que me contava, ria-se que nem uma perdida quando ia vendo o desenvolvimento das histórias e, a dada altura até me estava a dar algum gozo escrever isto.
Mas eis que ela chega ao pé de mim, um dia, e me diz:
-Sabes aquele meu colega de trabalho?
-O Ninguém?
-Sim…
-Contou-te mais alguma? – Perguntei eu meio divertido, à espera de mais alguma coisa estranha.
-Não, não é isso. Ele tem-se divertido à brava com os teus “posts” no facebook e gostava de te conhecer.
Confesso que já tinha achado algo estranho alguns comentários que falavam dos posts enquanto algo que se tinha passado de facto, sobretudo em coisas que eram, no mínimo absurdas, como a história do K e do presunto, mas ainda assim tinha alguma relutância em acreditar nelas. Acabei por construir os personagens, segundo o que ela me ia contando, à minha maneira. Mas agora, de repente, via a “coisa” a ganhar vida.
Acabei por combinar um almoço com ela e o colega.
No dia marcado ela chega à mesa do restaurante onde tínhamos combinado acompanhada por ele e, logo à partida não fiquei grandemente impressionado. Era um gajo para a minha idade, um bocado para o grande e com um ar de mal disposto.
-Atão tu é que tens andado a escrever a “treta de cabos”?
Assim, a sangue frio. Nem um “muito gosto” nem nada! Directo ao assunto, de sobrolho levantado e com um ar que eu não conseguia  distinguir se de algum contentamento ou se estava prestes a querer desancar-me.
-Sim, tenho sido eu.
-Aquilo tá giro, páh! Um bocado exagerado, mas giro!
-Exagerado? – Perguntei eu, com as minhas suspeitas a confirmarem-se de que, na verdade, as coisas não tinham sido bem assim.
-Sim!
-Em que sentido, por exemplo?
-Olha, por exemplo, quando falar daquela história no bar em que eu estava com uma amiga da FF e o Especiaria veio falar comigo e quando ela se vai embora o Especiaria me pergunta se eu já a conhecia…
-Pois, essa pareceu-me estranha…
-E claro que era! Eu não a conhecia há vinte minutos, obviamente!
-Conhecias há mais tempo?
-Sim, claro! Pelo menos uma meia hora! Ou por exemplo, o titulo…
-Que é que tem o titulo?
Quando eu e o Especiaria tivemos a conversa, o título era “Merda de cabos” e não “Treta de cabos”…
-Isso foi culpa minha… - interrompeu ela – Quando lhe contei achei que o título era demasiado forte!
Ele pareceu ficar a pensar um pouco!
-Realmente, és capaz de ter razão! – concedeu – “Merda de cabos” era capaz de ser um pouco forte para um titulo! Ainda assim, se calhar “Treta de cabos” não reflecte bem os sentimentos desse dia… Mas pronto, até percebo!
Comecei a questionar-me acerca da sanidade mental do tipo.
-Pá, desculpa lá, só vendi o peixe como mo venderam. Como é que eu havia de saber?
-Confia em mim. Ninguém sabe.
-Pois… Então se ninguém sabe, como é que eu havia de saber?
-Não percebeste, pá! Era um trocadilho. Ninguém sabe. E se eu sou Ninguém, então eu sei, boa?
Fiz o meu riso número trinta e quatro, o que reservo para as piadinhas da treta. O tipo, ainda por cima, tinha a mania que era engraçadinho!
-Então mas querias falar comigo porquê?
-Pá, porque gosto da maneira como escreves. Até já li os teus dois livros…
-Compraste-os?
-Não, a tua mulher emprestou-mos. Até estão giros, para quem se interessa por aquelas tretas!
Que belo elogio! Este gajo começava a irritar-me. A minha mais que tudo, conhecendo-me de ginjeira, lançava-me o olhar de “Vá lá, tem um bocadinho de paciência que ele até é um gajo fixe” recebendo em resposta o meu olhar de “não sei se tenho” mas jogando a carta decisiva do “vá lá, vá lá, vá lá…” o que me fez respirar fundo, contar mentalmente até dez e perguntar:
-Então mas porque é que querias falar comigo?
-Pá, já que estás a escrever isto, podia ser eu a contar-te as coisas em primeira mão! Ao menos evitavam-se os tais exageros…
-Ok…! Mas já sabes o que é que vais fazer com isto, nesse caso?
-Ninguém sabe!
-Claro, por isso é que eu quero saber.
-Saber o quê?
-O que é que vais fazer com isto…
-Mas se já te disse que ninguém sabe…
-Pois, se Ninguém sabe, eu também quero saber, não quero estar para aqui assim a escrever à toa…
-Mas se ninguém sabe, como é que eu hei-de saber?
-Então, Ninguém sabe! Tu és Ninguém, logo…
Ele levantou a mão, fazendo-me sinal para parar, com uma cara de quem parecia ter acabado de chupar um limão verde e disse de repente:
-Pá, péraí! Embadaralhaste-me!
Confesso que, por esta altura também eu já estava embada… embarada… confuso!
-O trocadilho?! – Limitei-me a dizer. Fez-se-lhe alguma luz, sorriu e disse:
-Ah! Não, não era isso! Não se faz a mais pequena ideia do que fazer com isto!
“Estupido” chamei-lhe eu mentalmente!
No resto do almoço ele contou-me mais alguns episódios que deixavam a minha cara-metade a rir quase às lagrimas, mas a mim nem por isso!
Uns tempos depois acabei por ir vê-los num concerto que deram, em formato acústico num “festival do caracol”! Conheci-os todos e, realmente, fiquei com a impressão que a maçã não caia longe da árvore! Os personagens que eu tinha criado e julgava serem ficcionais não andavam nada longe destes tipos que, tão depressa estavam a falar das maiores bacoradas do mundo, como discutiam qual a gaja que tinha as mamas maiores na esplanada inteira, como falavam da terceira guitarra usada na segunda faixa do quarto álbum de um daqueles guitarristas que fazem discos só para músicos, como discutiam teorias quânticas, tudo isto num espaço de dez minutos!
Mas a verdade é que a parvoíce deles era, de certa forma, genuína, embora me deixasse (e ainda deixe) embada… embarada… confuso!
Uma vez que isto já ia adiantado, lá me comprometi a acabar a história – sem grande vontade, diga-se – o que deixou a minha mais-que-tudo satisfeita (e todos sabemos as vantagens inerentes em deixar a mulher que partilha a cama connosco satisfeita).
E agora, que está escrito, lavo daqui as minhas mãos. Ninguém sabe o que  há-de fazer com isto!


C. N. Gil


Prólogo
Era um dia como qualquer outro. Tinha precisamente vinte e três horas e cinquenta e seis minutos e situava-se algures no principio do Outono.
Era um dia solarengo, com o calor do verão ainda a fazer-se sentir, o que era demonstrado pela enorme quantidade de mini-saias que invadiam aquela escola secundária no primeiro dia de aulas, para gaudio dos mini contentores de testosterona que pululavam por todo o lado, apreciando e comentando quem iam vendo.
A campainha tocou e a malta lá quebrou os grupinhos que se formavam de pessoal que já não se via há dois meses e meio e que ainda nem sabia em que turma estava, indo cada um para a respectiva sala na antecipação do que lhe calharia na rifa.
Ninguém tinha uma ideia do que aí vinha.
Já tinha dado o segundo toque e já estava todo o pessoal daquela turma sentado quando batem à porta, que foi aberta logo em seguida revelando um gajo magro que nem um esparguete, alto, meio louro, mas com uma barba mal semeada maioritariamente ruiva e uma popa de fazer inveja ao Elvis.
O resto do pessoal conhecia-se, pelo menos, de vista, mas aquele pássaro raro nunca tinha sido avistado naquelas paragens. Estava francamente deslocado! Um rockabilly em terra de metaleiros…
O tipo, vendo-se o centro das atenções, procura rapidamente um sítio para se sentar, e repara (era difícil não reparar) que as duas miúdas mais podres de boas da turma (quiçá da escola) estavam sentadas na última fila, na carteira mais próxima da porta. Ao lado delas, com uma postura que revelava alguma intimidade com, pelo menos, uma delas, estava um gajo tão alto como ele, tão feio como ele, a tentar deixar crescer um cabelo que teimava em encarapinhar, com pinta de baldas. Ao lado do gajo havia um lugar vago. Sentou-se.
O outro estava entretido a falar com a boazona do lado e não lhe ligou peva até o ambiente ter serenado e a professora ter começado a falar, apresentando-se. Só então o outro se voltou para ele e perguntou:
-D’onde raio é que tu saíste?
O tipo olha para o outro, tentando avaliar o intuito das palavras e se o mandava apanhar no sitio onde o sol não brilha. Mas, sentindo-se o estranho ali, conteve-se. Limitou-se a dizer:
-Sou de Almada. Sou o “Tolas”.
O outro sorriu e apertou-lhe a mão.
-Eu sou Ninguém.

I
Muita coisa se passou ao longo daquele ano lectivo.
Mas como quase nada é pertinente para esta história, não vos vou maçar com estes detalhes. Concentremo-nos pois naquilo que é importante.
O Tolas, numa visita a casa de Ninguém para um qualquer trabalho de grupo (sendo que o grupo consistia quase invariavelmente dos dois com as duas boazonas), reparou que este tinha uma guitarra abandonada em cima do Guarda-fatos.
-O que é aquilo?
-Bem, parece-me uma guitarra. – Ninguém respondeu.
-Tu tocas?
-Guitarra não.
-Então para que é que queres aquilo?
-O meu pai achou boa ideia comprá-la quando eu ainda estava na barriga da minha mãe…
Não falaram mais no assunto. Até porque as boazonas estavam (como estavam quase sempre) de mini-saia e havia que dar importância ao que a tinha.
No final do ano, uma das professoras promoveu um acampamento/sardinhada num seu terreno no Monte da Caparica. O Tolas pediu encarecidamente a Ninguém que levasse a guitarra, o que este achou uma grande maçada, mas fez-lhe a vontade.
O acampamento, de um dia para o outro, acabou por se resumir a eles os dois. E foi nessa fatídica noite que o Tolas ensinou a Ninguém tudo o que sabia fazer numa guitarra…
…o que demorou aproximadamente dez minutos, porque também não sabia grande coisa. Mas, no entanto, sabia fazer dois acordes, lá e mi, e que deu fundamento a uma desgarrada de blues pela noite fora.
Findo o dia a seguir, Ninguém foi para casa, que ficava no meio da natureza selvagem em quase perfeito isolamento e, uma vez que não tinha absolutamente mais nada que fazer, dedicou esse verão a jogar com o seu ZX Spectrum 48k e a desempoeirar um poster que já tinha há uns tempos, no qual figurava uma guitarra Jackson Randy Rhoads em tamanho real e onde estavam os acordes maiores, menores, bem como as escalas maiores, menores, pentatónicas e de blues, usando-o para aprender a tocar.
Ninguém aprendeu o seu primeiro riff, ensinado pelo seu irmão (muito) mais velho e passou o verão a tocar o “Smoke on the water” de Deep Purple, para desconsolo dos seus pais…

II
A guitarra tornou-se um elemento inseparável de Ninguém, e os intervalos entre as aulas eram sempre ocasiões de tertúlia cantada, e com uma aprendizagem feita e partilhada por quase toda a gente.
Ninguém levava a guitarra sempre com ele para a escola e esta passava de mão em mão.
Havia um professor, de filosofia, gajo que era o cúmulo da ironia, porque, embora pequeno, algo desconchavado, sempre com uma gabardina que fazia lembrar a do Colombo, um detective de uma série americana dos anos 70, sempre sebosa, com uns óculos garrafais, uma barba rala e dentes tortos, chamava-se Bonito! Este gajo era fã incondicional de Pink Floyd, como Ninguém, diga-se, e adorava juntar-se à malta nos intervalos para cantar o Confortably Numb.
Ao longo do ano foi-se criando um ambiente naquela escola que fazia com que cada vez mais gente levasse as suas guitarras, e muita gente acabou por aprender a tocar nessa altura.
Ninguem tocava as músicas destas tertúlias, coisas como Simon & Garfunkle, Pink Floyd, Bob Dylan, a par com as suas metaladas preferidas, coisas de Iron Maiden, Mettallica, WASP ou Manowar.
Tudo isto levou a que um outro professor, também guitarrista, fundasse um clube de música e Ninguém aderiu, bem como o Tolas.
Quase no Final do Ano Lectivo, a Câmara Municipal resolveu organizar, num parque de estacionamento do mais recente e moderno Centro Comercial lá do sítio, um concerto só de bandas de garagem e o clube de música da escola foi convidado.
Ninguém achava que aquilo seriam favas contadas, bem como o Tolas. Fizeram o som à tarde, achando-se ambos já bons músicos (uma vez que já tocavam umas coisas), jantaram junto com as outras bandas e chegou a hora de subirem ao palco.
Ninguém entrou cheio de confiança, com o Tolas logo atrás, mas assim que olhou para o lado e viu uns milhares de olhos postos nele, ficou com vontade de fugir dali. O mesmo se passou com o Tolas!
Ambos os dois olharam um para o outro, encolheram os ombros e seguiram para bingo, que já não dava para sair dali sem parecerem um par de parvos.
O Tolas encarnou o espirito do Elvis e cantou o Blue Suede Shoes a preceito, e a seguir Ninguém cantou o Runaway, simplesmente porque mais ninguém conseguia fazer o falsete do “wa-wa-wa-wa-wander…” e o “Wa-wa-wa-wa-why she run away”. Claro que esta música, à altura, era obrigatória, visto que era banda sonora de “As cronicas do crime” série policial de grande sucesso.
E foi assim que Ninguém teve o seu primeiro grande concerto (curiosamente o primeiro concerto mesmo) junto com o Tolas! 

III
Ninguem fazia parte do grupo de metaleiros da escola. O grupo era grande. Ninguém queria deixar crescer o cabelo, à semelhança dos seus ídolos, mas o resultado, mesmo quando o cabelo esticado já lhe dava pelo meio das costas era, invariavelmente, uma carapinha que faria inveja à do Michael Jackson antes de ter mudado de cor, e parecia saída directamente de um vídeo da Disco Sound dos anos 70. E o pior era que, ao tentar fazer da carapinha um cabelo liso e escorrido, invariavelmente parecia trazer na cabeça o telhado de um dos bungalows do hotel das Penhas da Saúde, na Serra da Estrela. O objectivo não era de todo atingido, nunca o tendo sido, diga-se, mas Ninguém era resiliente e ninguém lhe podia dizer nada acerca do assunto!
Num dos dias em que a tribo estava reunida, à volta da guitarra, e em que Ninguém tocava a ultima música que tinha aprendido (uma canção suave dos W.A.S.P. chamada “Animal - I fuck like a beast”), um gajo qualquer chega-se ao pé dele trazendo um chavalo e disse-lhe:
-Deixas aqui o chavalo dar uns toques?
Ninguém olhou para o chavalo. Era piqueno! Tinha uma trunfa loira escorrida e ar de puto, até porque era um puto.
-Tu tocas? – Ninguém perguntou.
O chavalo timidamente disse:
-Ya!
Ninguém passou-lhe a guitarra para as mãos.
-Atão toca ai…
E o chavalo tocou. Riffs de Mettalica e Maiden, solos e cenas…
…o chavalo tocava bem. Ninguém ficou impressionado.
-Como é que te chamas, puto?
-Especiaria…
-Fixe! Atão e vê lá se consegues tocar isto… - e Ninguém pegou na guitarra e tocou um faduncho:

“Se deixaste de ser minha,
Não deixei de ser quem era,
Ai, se deixaste de ser minha,
Não deixei de ser quem era
Por morrer um’ándorinha
Nãossacabáprimavera…”

Quando acabou devolveu a guitarra ao chavalo.
-Consegues tocar isto?
O chavalo ficou algo estupefacto, bem como o resto da tribo (mas não necessariamente de uma maneira positiva), tentou, mas não conseguiu.
-Vês pá, convém aprender a tocar mais cenas…
O chavalo assentiu, ainda algo admirado.
E foi assim que Ninguém conheceu o Especiaria!

IV
Ninguém era amigo do Cabelo de Piço, ou Piço, para abreviar. Tinham andado juntos na escola primária e voltaram a encontrar-se ali.
O Cabelo de Piço trabalhava na loja dos pais, que lhe davam uma mesada o que lhe permitia comprar álbuns, coisa que a maior parte do pessoal não conseguia, uma vez que custavam dois contos, em média, o que era dinheiro à brava naquela altura. Assim, o Cabelo de Piço comprava os álbuns e depois de os ouvir e gravar para cassete, de maneira a poder continuar a ouvir no seu walkman, emprestava.
Já mesmo no final da década de oitenta apareceu a ideia de se formar uma banda por aquelas paragens. O Cabelo de Piço nunca tinha tocado nada na vida, mas comprou uma Ibanez encarnada que era a inveja de toda a gente. Mais tarde comprou um amplificador da Marshall.
Foi precisamente quando o Cabelo de Piço foi levantar o amplificador que perguntou a Ninguém se queria vir também. E lá foram, numa carrinha Peugeot grande cumó caraças em direcção a Almada. Foi nessa viagem que Ninguém conheceu o Peles.
Já se conheciam de vista, claro, mas nunca tinham falado antes…
…e continuaram sem se falar. Se trocaram duas ou três palavras foi muito.
O Cabelo de Piço acabou por nunca tocar em banda nenhuma. A guitarra e o Amplificador acabaram por passar para um dos guitarristas da banda do Peles. No entanto, antes disso, o Cabelo de Piço chegou a emprestar a guitarra a Ninguém por uns dias, sendo que foi a primeira guitarra eléctrica com que tocou por mais do que alguns minutos.
Ninguém ficou viciado.
A primeira coisa que fez, logo que saiu da escola e arranjou emprego, foi comprar a sua primeira guitarra eléctrica, uma coisinha bem reles e feita de contraplacado.
Não tendo ficado muito satisfeito com ela, não tardou muito a comprar, a prestações, uma Flying V toda preta…
Não se pode dizer que tivesse muito bom gosto, à altura!
Ele e o Tolas acabaram por montar a sua primeira banda e recrutaram o Bubas para a bateria.
O Tolas, entretanto, compra uma Les Paul imaculadamente branca que ainda o acompanha até hoje, embora já não seja guitarrista.
Precisavam de um baixista e o Bubas disse que conhecia um. E um dia trouxe o Gadelhas, tipo alto e fininho, mas com boa pinta.
E foi assim que começou a carreira da mais desconhecida banda da margem sul… 

(in "Treta de Cabos - Vidas de Rocker")

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Published on May 27, 2016 06:17

May 25, 2016

Do 3º

I
Sim, vou-te contar a minha história.
Não há realmente nenhum motivo  em  especial para o  fazer, mas para te ser franco, apetece-me. Acho que alguém precisa de saber o meu ponto de vista, e porque não tu?
Não é que te considere especial, ou diferente dos outros. Não, és igual a eles todos. És só mais uma formiguinha atarefada a cumprir com zelo a sua tarefa sem questionar nada, mais um Zombie que anda de um lado para o outro a pensar que toma decisões, quando na verdade apenas estás a seguir os condicionalismos que o mundo te impõe. Por que cargas de agua havia de ter por ti uma consideração diferente da que tenho pelos outros todos? Não mereces mais nem menos. És igual.
Então porque contar-te a história?
Porque estás aí. E não sei, para te ser franco se estarão aí muitos mais. Olho para a minha ampulheta e já não vejo muitos grãos de areia na parte de cima, por isso, és um fruto do mero acaso. Calhaste a estar aí…
Mas para perceberes a história, tens que saber um pouco acerca de mim. Afinal é a minha
história. E para me perceberes temos de recuar no tempo.



II
Lembro-me claramente daquele dia, um dia em que a chuva miudinha caia de um céu pintado em tons de cinzento-escuro. Lembro-me porque foi o último dia em que realmente senti algo. À medida que o caixão que continha os restos mortais da minha mãe descia à terra e era colocado ao lado de um outro que continha os do meu pai, lembrava-me dele e de como ele dizia “Um homem não chora…”, e apesar do que sentia por dentro, uma vontade enorme de me mandar para cima daqueles caixões e ficar ali, do pânico e do medo do que viria a seguir, da solidão que me invadia, aquelas palavras ressoaram em mim, como um ultimo recado, e as lágrimas secaram nos meus olhos e quis, com toda a força do meu ser, deixar de lado todos aqueles sentimentos. E consegui. Tinha sete anos e foi a última vez que chorei.
Não olhes assim para mim, estou apenas a relatar um facto como qualquer outro. Não espero simpatia ou qualquer outro sentimento da tua parte.
Fui viver com uma tia que tinha já três filhos e eu acabei por ser mais um encargo para ela. Percebi, mesmo antes de entrar à porta de casa que nunca teria nada de meu, verdadeiramente meu, a não ser os meus pensamentos. E resolvi não falar, não dizer nada, também porque não sentia e não havia nada para dizer. Na minha cabeça limitava-me a existir.
Claro que isto levou a uma serie de situações. Os meus primos, cujo mais novo era pouco mais velho do que eu, implicavam comigo e descobriram que podiam fazer fosse o que fosse que eu não diria nada, uma vez que não falava. Claro que abusaram da situação. Maltratavam- me, gozavam-me, na rua nem queriam ser vistos ao pé de mim e fizeram coisas com um requinte de crueldade que apenas uma criança é capaz. Ainda assim não liguei nem quebrei o meu silêncio.
Havia conforto no meu silêncio, como se por não falar houvesse algo exclusivamente meu, os meus pensamentos. O facto de não os partilhar dava-lhes uma força enorme em mim.
Foi também por esta altura que descobri os livros que lia avidamente. A minha tia ia todas
as semanas à biblioteca municipal buscar livros para mim. Acho que chegou a uma altura em que nem os escolhia, já só se esforçava por trazer algo que eu não tivesse lido. Ganhou este hábito quando um psiquiatra, um dos muitos que me viu e consultou, notou esse meu interesse e disse que deveria ser encorajado.
À custa de tanto ler, as minhas notas escolares eram altíssimas, mas tinha problemas com os professores, isto já para não falar dos colegas. Mas a verdade é que tudo isto me permitiu criar o meu espaço onde eu era intocável. Era um espaço que não era físico e como tal releguei todos os espaços físicos para segundo plano.
Claro que aos poucos comecei a aperceber-me de que esta “não integração” da minha parte se poderia tornar ainda mais grave no futuro, e na minha cabeça começou a surgir a ideia de criar a minha mascara, a minha fachada, e aos poucos construí-o como uma personagem de um dos livros que lia. Demorei o meu tempo, fui metódico, vi todos os ângulos da personalidade que deveria ter, e, quando me senti pronto quebrei o meu silêncio, para surpresa de toda a gente.
Na verdade não o quebrei. Eu continuava em silêncio e hoje, agora enquanto falo contigo, é a primeira vez que o quebro. Mas o facto de a minha fachada falar permitiu-me começar a ter menos problemas e não ter palermas e tentar dar nomes técnicos a coisas que não conseguiam e não conseguem entender. Só por isso valeu a pena criar a minha fachada.
A minha fachada não era brilhante, apenas se pautava pela mediania. As notas escolares desceram para níveis aceitáveis, procurando não desapontar mas não deslumbrar. As relações e as conversas que eram tidas eram as que se esperava ter. Não havia uma única demonstração de brilhantismo ou de estupidez absoluta.
E assim, aos poucos, acabei por me diluir na maré, deixar de ser uma preocupação, deixar de ser notado. Apenas tinha de me certificar que teria sempre a reacção certa no momento certo. Tinha de me rir quando contavam uma piada, mostrar choque num evento ou notícia traumática, mostrar fúria e revolta quando havia algo contra mim…



…mas a verdade é que nada disto foi alguma vez sentido. Na verdade acho que o único verdadeiro sentimento que tive alguma vez foi desprezo por tudo o que me rodeava, mas se calhar nem isso. No fundo acho que não passava de indiferença…



III
Acho que no meio da minha indiferença ao que me rodeava a única coisa que conseguia sentir mesmo era prazer. Havia algo em mim que se deleitava ao olhar para os outros e ver a ideia que tinham da minha mascara. Dava-me um gozo enorme este jogo em que por vezes me aproximava demais de revelar algo verdadeiramente meu para depois ver a dúvida nas pessoas.
Mas as pessoas que lidavam comigo acabavam sempre por descartar a hipótese de eu ser mais do que aparentava. Afinal, num mundo de aparências, conta o que se parece ser e não o que se é.
Viam-me como um inadaptado pelo simples facto de eu não procurar estabelecer relações próximas. Toda a gente procurava alguém, menos eu. Aos vinte e cinco tive a minha primeira experiência sexual. Não me agradou nem compreendi o porquê de tanta fleuma à volta do assunto. A televisão, a publicidade, a moda, todos respiravam sexo. Era o verdadeiro motor do mundo. Era tão importante que a própria abstinência era vista como um sacrifício, sendo por isso imposta em algumas religiões. E o fundo era algo de tão primário, animal…
Além de não me agradar o acto em si, a proximidade do contacto físico com alguém causou-me repulsa. É algo de aberrante.
Foi essa a única parte que não consegui mascarar na realidade, tal foi a repulsa que senti. Nunca mais procurei chegar-me a alguém nem permiti que alguém chegasse perto de mim. Isso, sem dúvida, contribuiu para me rotularem como um inadaptado.
Mas fora isso levava uma vida normal.



IV
A minha mascara de normalidade requeria que eu tivesse um trabalho. Como tal arranjei um que me permitia manter-me perdido nos meus pensamentos. Arquivava fichas. Não era tarefa onde eu tivesse que me esforçar muito, bastava colocá-las metodicamente no lugar, letra após letra. Também tinha a vantagem de não ter que falar com muita gente. Chegavam com as fichas, depositavam-nas e eu agarrava nelas e arquivava. Simples e sem complicações.
Quando chegava à minha hora saia e tinha o martírio dos transportes, por norma apinhados de pessoas, de cheiros, de conversas inconsequentes e ridículas. Por muitas coisas que ouvia perguntava-me se não conseguiria ter conversas mais inteligentes com um papagaio bem ensinado.
Após uma hora deste martírio chegava a casa, tirava qualquer coisa do frigorífico para aquecer no microondas, sentava-me e enterrava-me nos livros e revistas que comprava de forma quase compulsiva. Era esta a minha vida e sabia-me bem estar assim. A minha casa era a minha ilha onde a mascara podia cair e eu era eu próprio. E foi assim durante anos. Até há um ano atrás.
Sabes, era uma noite de inverno como qualquer outra. Eu estava deitado mas sem sono. Chovia copiosamente e ouvia as gotas que caiam dos beirados, mais grossas que as outras, a embater no chão de uma forma ritmada.
Sempre me reconfortara este ruído. Era calmante. O suficiente até para me fazer deslizar para o sono, coisa que raramente acontecia. Nesse dia foi diferente. Estava deitado no escuro, perdido nas poliritmias que vinham do som da chuva que caia. Chamou-me mesmo à atenção o ritmo, as diferentes cadências, a aparente desconexão…
…mas que sentia como apenas aparente. De alguma forma havia sentido. Havia padrões. Cadências. Percebi que podia perfeitamente escrever as gotas numa pauta musical e faria sentido.
Levantei-me, fui buscar um gravador e fiquei no maior silêncio possível a gravar a chuva.
Quando a chuva parou, ao fim de uns minutos, rebobinei a cassete e ouvi. Estavam lá os padrões. As cadências. Os ritmos. Liguei o computador, carreguei um software de música e comecei a editar uma pauta com todos aqueles ritmos. Era já perto da hora de sair de casa quando acabei de escrever a pauta. Olhei. Fruto do acaso ou não, a minha frente estava um padrão reconhecível, cíclico, que quase parecia…
…intencional. Sim, parecia intencional.
Fiz o software tocar o que estava escrito e o computador devolveu-me uma interpretação da própria chuva. Ouvir o padrão  ao  mesmo  tempo que  o visualizava apenas reforçou a sensação. Imprimi as pautas e sai de casa. Levei-as comigo. Estava fascinado pelos padrões escritos.
Durante o caminho para o trabalho não tirei os olhos delas. Tinha de haver relações. Tentava imaginar uma formula resolvente, qualquer coisa que desse sentido.
Cheguei ao trabalho e liguei o computador. Tentei calcular formulas que pudessem resumir a poliritmia escrita para encontrar algo mais que lá estivesse. Passei o dia em tentativas, negligenciando mesmo o trabalho. Já ia a meio da tarde quando qualquer coisa assim apareceu no monitor:

ldfgliaggaejeufemoidujruaswnhx8cheias9sjhwaisndyhqueksndhchora93jhrestáoskdnsógsh dnporhsvdbentreesdaba6jsgdmultidãoqáhsja2mndcprocura0wiendayshgdluzenshdahsjduremi ssão3oafsdarensjdse9oskfáabxcgdiz2ksndlhegsbdmclkjdfhzdljhrstbvljahgsehfçSEBF

Mais uma vez procurei sentido e só então comecei a descortinar palavras no meio da confusão.



“Em ruas cheias a que chora está só por entre a multidão a procura de luz a remissão dar se a diz-lhe”
Mas embora houvesse palavras, o significado continuava omisso.



V
Percebo que não me entendas.  Não consegues perceber bem esta história da minha mascara, de eu me esconder. Mas diz-me, serei eu assim tão diferente de ti?
Pensa bem…
…ao fim ao cabo eu tenho o meu “eu” bem definido e delineado. E criei deliberadamente uma mascara para o esconder, porque sei que o mundo ia olhar para mim como olhas agora. Com esse misto de piedade e não entendimento, como se eu fosse algo à parte.
Mas…
…e tu?
Tu acordas de manhã e pões uma mascara mesmo antes de sair da cama, sais de casa e pões outra para que fiquem alheios a ti e para ficares alheio ao mundo. Chegas ao trabalho e pões outra, aliás, várias, consoante a pessoa a quem te diriges. Sais do trabalho e usas outra vez a de manhã até chegares a casa. Depois, se tiveres filhos usas uma para eles e outra para a tua cara-metade. Sais à noite e usas outra. Sais para casa de familiares e usas outra…
…são tantas as que usas que acho que te perdes no meio delas e que algumas se te colam
à pele. Saberás tu quem és, na realidade? És uma soma de tudo isso, ou não serás nada disso?
Sabes o que eu acho? Acho que tens medo de olhar para ti, para dentro de ti e descobrires que afinal não és assim tão diferente de mim.
Eu pelo menos sou mais simples, mais honesto, e não tenho medo de me encarar, por isso tira esse olhar da tua face, olha para mim e revê-te. Olha para os teus pensamentos enquanto olhas à volta para a multidão e pensas “Mas que raio faço eu aqui…?”, “Que raio faz toda esta gente aqui…?”
Não te desprezas às vezes por seres apenas mais um dente da engrenagem? Não pensas às vezes o quanto seria interessante seres antes uma pedra para encravar a engrenagem subtilmente? Não o fazes por vezes porque o dia te corre mal e acabas por lixar o juízo a alguém igual a ti?
Quem és tu afinal para me criticar?
Tira esse olhar da tua face. Eu já te desprezo o suficiente. Não tens que te esforçar mais. Mas não me leves a peito. Eu desprezo toda a gente da mesma maneira, por isso…
Assim estamos melhor. Onde é que eu ia?


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Published on May 25, 2016 00:23

May 24, 2016

CTT - parte III

Será que é hoje?!?!?

Aceitam-se apostas!




Adenda:

Foi!
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Published on May 24, 2016 05:02

Do 2º

PRÓLOGO
Sentou-se e resolveu, numa atitude inédita até então da sua parte, desistir de tudo!

Só depois parou para pensar no que seria “tudo”. O que é que seria dele na realidade? O conjunto das suas experiências, a tralha que tinha acumulado ao longo de anos e que não servia para nada? As sensações? Os sentimentos? Os afectos?
Afinal de contas, quem seria ele?
Não estaria ele a desistir de algo que desconhecia? E que lógica tinha isso, sendo que aquilo que ele desconhecia era, afinal, ele próprio?

Meditou por momentos.

Levantou-se e dirigiu-se à varanda. Viu as árvores e as pessoas, pequeninas da altura a que as via. O mundo era estranho, visto assim do alto, cheio de criaturas minúsculas que seguem umas atrás das outras com um aparente propósito definido, numa rotina estabelecida, dia após dia. Para que é que servia afinal a nossa suposta inteligência? Seríamos algo mais do que uma quinta de formigas aos olhos de Deus?
Sentia-se desconfortável, e era a primeira vez na sua vida que sentia e pensava neste tipo de desconforto. Não era um desconforto físico, mas antes um desconforto da alma.
Acendeu um cigarro, puxou uma baforada lenta e deixou que os seus pensamentos vagueassem ao sabor dos arabescos que o fumo que expelia dos pulmões fazia no ar.

Desde há algum tempo que sentia este desconforto estranho mas só neste momento se apercebia finalmente disso. Era como se o que via da sua varanda fosse uma sinfonia cheia de melodias e contra melodias, mas, ligando tudo, houvesse apenas uma nota grave, quase inaudível que fazia tudo ressoar. O desconforto era o de saber que essa nota lá estava, mas não a conseguir distinguir, e no entanto senti-la por debaixo de todos os ruídos desta cidade que se estendia até onde o horizonte alcançava e que parecia querer continuar para além dele.
Esta súbita realização fez com que a sua vontade inicial voltasse atrás. Não desistiria, pelo menos, não para já. Havia algo para descobrir que poderia dar ainda um sentido ao que parecia não o ter.

Deixou-se ficar ali enquanto acabava o seu cigarro e o sol baixava no horizonte. Junto com a noite começava a cair uma ligeira humidade. Ele gostava.

Permaneceu em silêncio durante algum tempo enquanto o crepúsculo se extinguia e as luzes da cidade se iam acendendo. Continuava a intuir a rotina, a ordem, os mesmos movimentos, que eram, tais como os seus, repetidos dia após dia, sempre com a mesma cadência imposta por algo de externo, sempre os mesmos ciclos, mês após mês, ano após ano, era após era. Fechou os olhos e deixou que esses ritmos chegassem até si, sentindo-se pulsar junto com eles. Mas continuava a haver algo que não encaixava.
Estava aborrecido, e uma vez que não ia desistir de nada, levantou-se, vestiu uma camisa imaculadamente branca, enfiou-se dentro de um dos seus fatos feitos por medida, vestiu uma capa, porque a noite se adivinhava fria e talvez chuvosa, e enfiou-se no elevador até à cave onde o seu carro o esperava.
Meditou acerca do seu destino no elevador. Ainda não se decidira para onde ir. Só sabia que o seu apartamento lhe parecia claustrofóbico. Precisava de espaço, queria ir à procura daquilo que intuía.
Estava perdido nos seus pensamentos quando a porta do elevador se abriu. Assim que saiu sentiu o ar fresco da cave. Dirigiu-se para o seu carro. Ainda se lembrava do gozo que lhe dera comprá-lo, da sensação de quando lho entregaram à porta do concessionário. Era um carro com personalidade, um Corvette Stingray de 1982, azul meia-noite metalizado. Agora olhava para trás e via a futilidade de tudo aquilo.

Entrou no carro e tomou uma decisão. Uma vez que não havia nada, pelo menos que ele conhecesse, que se parecesse com um restaurante Português por aqui, resolveu ir ao Dan Tana's comer qualquer coisa italiana. Pelo menos teria um sabor mediterrânico, que tanta saudade lhe causava.
O ronronar quase surdo do motor do carro, enquanto ele o deixava aquecer quase lhe causou um torpor de adormecimento. Um leve toque no acelerador fez despertar a besta, e arrancou calmamente, saindo da cave do prédio directamente para uma avenida cheia de confusão. Era como se, de repente, tivesse entrado noutro mundo.
Seguiu calmamente até ao seu destino por entre ruas repletas de aparências. Estava na capital mundial das aparências. Nada aqui era perfeito, mas tudo tinha que parecê-lo. Cada mulher tinha que aparentar ser perfeita, cada homem tinha que aparentar ser charmoso. Mas era tudo tão artificial…
Chegou ao restaurante, entregou a chave do carro ao arrumador junto com uma nota de vinte dólares, e entrou.
- Good evening Mr. Cesar. – Dirigiu-se-lhe o chefe de sala do restaurante solicitamente como de costume.
- Good evening, Tony. – Devolveu ele num inglês carregado com um sotaque britânico impecável. Detestava a maneira descuidada como os americanos falavam, sem estilo e sem requinte.
- Vai desejar a sua mesa do costume?
- Sim, Tony, por favor.
- Com certeza Mr. Cesar. Siga-me, por favor.
Entregou a sua capa a um outro empregado e entrou no salão, seguindo o chefe de sala. Foi levado até uma mesa de canto onde gostava de se sentar e de onde conseguia ver quase todas as mesas.
- Tony, há algum vinho Português? – Perguntou ao mestre de sala.
- Não tenho a certeza, Mr. Cesar. Mas mando-lhe já alguém em seguida.
- Obrigado Tony.
O chefe de sala deixou-o e foi imediatamente rodeado por dois outros empregados com a ementa e a carta de vinhos. Dispensou a ementa, voltando-se para o empregado e pedindo de imediato:
- Quero Spaghetti a la Bolognese e uma salada verde, por favor. – E virando-se para o empregado com a carta de vinho repetiu a pergunta que antes tinha feito ao chefe de sala – Têm algum vinho Português?
- Não tenho de memória, mas posso averiguar.
- Agradeço que o faça.
- Com certeza. – E afastou-se rapidamente.
Ficou só na mesa e apreciou o ambiente à sua volta. Tudo ali parecia querer fazer lembrar Itália, mas de uma forma artificial e falsa, como tudo o resto naquela cidade. E o desconforto não o abandonava.
- Mr. Cesar…
- Sim? – Respondeu ao empregado que o fez emergir dos seus pensamentos.
- Temos um Cartuxa Tinto Reserva de 1995. – Disse o empregado mostrando-lhe a garrafa.
- Pode ser.
O empregado abriu a garrafa e afastou-se, deixando o vinho a respirar.
Algumas pessoas olhavam para ele, a única pessoa sozinha numa mesa, com alguma curiosidade. Ele sabia-se observado mas não dava atenção a isso. Limitava-se a olhar para a rua através da janela e a tentar sacudir as sensações que o invadiam.
Ao fim de algum tempo o empregado voltou e despejou um pouco de vinho no fundo do copo. Agarrou o copo e aproximou-o do nariz, deixando-se invadir pelo aroma suave do vinho, carregado de sugestões de frutos e aromas familiares, levando-o para um lugar que ele tinha deixado há já tanto tempo… De repente parecia que todo o seu ritmo se alterara e teve um vislumbre, e o significado da tal nota tornou-se claro, mas apenas por um instante.
A sua refeição foi finamente servida, com o requinte habitual. Queria desfrutar da sua refeição, mas nesta terra parecia que tudo sabia ao mesmo, tudo era padronizado. A intensidade que ele procurava, não a teria aqui, e a pequena sensação provocada pelo vinho já se desvanecia.
Acabou a refeição, entregou o cartão de crédito para pagar e pediu para levar a garrafa de vinho da qual tinha apenas bebido um copo.
À saída foi-lhe entregue a sua capa e o mestre de sala interpelou-o.
- Mr. Cesar, espero que tudo estivesse do seu agrado.
- Soberbo como sempre, Tony.
- Então o resto de uma boa noite.
- Para ti também, Tony, para ti também.
Saiu e tinha já o seu carro à espera. Entrou. Para onde iria agora? Decidiu que iria até ao Vanguard. Queria ritmo, queria estar rodeado de gente.
Lá chegado foi levado directamente para a área VIP, onde se sentou numa poltrona confortável. Lá em baixo uma mole humana agitava-se ao som altíssimo e ritmado que saía das colunas. A batida forte e constante marcava o ritmo dos corpos que se libertavam assim dos ritmos impostos durante o resto do tempo. Ele entendia este excesso, esta vontade de mudança, mas mesmo esta era, para a maior parte destas pessoas, ritualizada, sendo não mais do que um hábito criado semana após semana. Desceu até à pista, em busca de algo, que não sabia bem o quê. Foi atravessando através dos corpos que se agitavam com uma calma que contrastava e que chamava a atenção.
E foi só aí, no meio de uma multidão em delírios ritmados e alguns mesmo psicogénicos que se apercebeu que estava profundamente só.
Com esta realização veio a vontade de sair dali. A sua presença ali não fazia sentido.

Foi até ao cimo de Mulholland Drive, estacionou no meio de carros cuja humidade nos vidros denunciava claramente o que se passava no interior, voltou a abrir a garrafa de vinho cujo aroma invadiu de imediato o carro, tirou um cigarro de erva perfeitamente enrolado da sua cigarreira de prata e deixou que a sua alma se diluísse no horizonte longínquo enquadrada por todas aquelas filas paralelas de luzes, com o sabor e aroma de memórias que pareciam esquecidas mas que se atreviam agora a voltar com um sentido de urgência e de falta.




I
Sentiu-se ofuscado assim que passou as portas do aeroporto e mergulhou na luz. Já se tinham passado mais de trinta anos e já nem se lembrava da luz única que Lisboa tinha. Só então, banhado na luz e calor daquele dia de Agosto se apercebeu da saudade que tinha. Sentia-se em casa. Chegara.

Dirigiu-se ao primeiro táxi da fila, abriu a porta e sentou-se. Provavelmente muita coisa havia mudado em Portugal, mas os taxistas nem por isso. No rádio ouvia-se fado e, se ele não tivesse a certeza absoluta do ano que era, acharia que ainda estava no início dos anos oitenta. A camisa aberta até à barriga, o fio de prata com um crucifixo, a ampla pelagem hirsuta que saltava da camisa aberta… Se o homem tivesse um bigode, que não tinha, seria o típico estereótipo.
O condutor baixou o volume do rádio e aguardou que ele dissesse qualquer coisa, fosse o que fosse. Ele percebeu a hesitação. Estávamos no aeroporto, e ele tanto podia ser Português como Russo, Italiano, Dinamarquês… Ele pensou se devia arriscar o Português para se dirigir ao taxista. Já não o falava desde que tinha partido. Tinha feito a opção de se tentar afastar de tudo o que o agarrava aqui, e a língua era talvez o mais significativo. Claro que mais de trinta anos sem falar uma língua faz com que quase se tenha de a reaprender. Decidiu não arriscar.
– Sintra, please.
– Yes, sir. – Respondeu o taxista de imediato, arrancando.
Se à saída do aeroporto não tinha visto grandes mudanças, à excepção do próprio aeroporto, tudo o resto parecia exactamente igual e ao mesmo tempo brutalmente diferente. Era estranho o contraste entre a cidade que permanecia imutável a conviver lado a lado com fileiras de prédios novos, na alta da cidade, de gosto algo duvidoso. Lisboa esticava-se até aos seus limites e a cidade que ele deixara, ainda com quintas e com pessoas que criavam as suas galinhas e o seu porquito na sua horta ia desaparecendo para dar lugar à mesma modernidade padronizada da qual ele saíra. Portugal ganhava alguma sofisticação mas ele, curiosamente, perguntava-se se isso seria bom…
Mas depois olhou para o taxista!
“You can take the girl out of the trailer park, but you can’t take the trailer park out of the girl” pensou de si para si e sorriu. A alma lusitana estaria salva enquanto espécimes destes, genuínos, existissem.
A viagem até Sintra decorreu num relativo silêncio entre os dois, tendo como banda sonora um interminável encadeamento de fados enquanto percorriam estradas por entre selvas de betão que existiam onde antes apenas havia quintas a perder de vista.
Chegados finalmente ao destino, numa estrada em plena serra nos limites da vila, pagou, saiu e encarou o imponente portão de bronze oxidado…



II
Introduziu o código no teclado numérico e o portão, para sua surpresa, abriu com suavidade. Esperava, pelo aspecto antigo, ouvir um ranger esforçado, mas não! Abriu quase sem ruído perceptível. Entrou e o portão fechou sozinho atrás de si.
Olhou para a mansão. As fotografias que tinha visto não faziam justiça à imponência frondosa do mármore trabalhado. Toda a frente, pelo menos, fazia lembrar uma catedral manuelina em miniatura, cheia de motivos e simbolismos que não lhe interessava agora deslindar. Apenas se sentia cansado da viagem e queria descansar um pouco.
Enquanto se dirigia à porta, esta abriu-se e de dentro da casa saiu um indivíduo que, à primeira vista, quase o divertiu…
Baixo, com um fato claramente de pronto a vestir que não lhe assentava muito bem, gordo para além do razoável, uns óculos enormes com lentes que pareciam ter saído do fundo de uma garrafa de refrigerante, profusamente suado… O homem parecia ainda mais uma caricatura ao vivo do que nas fotos que tinha visto.
- Sr. César? – Perguntou.
- Sim!
- Victor Antunes. É uma honra conhecê-lo finalmente em pessoa. Cumprimentaram-se com um aperto de mão não muito firme, cumprindo uma mera formalidade.
- Espero que tenha tratado de tudo…
Está tudo conforme especificou. O carro está na garagem e já está legalizado, tem o seu escritório todo montado, amanhã apresentar-se-ão aqui a sua secretária pessoal, que eu escolhi pessoalmente conforme as indicações que me deu, e o restante staff da casa.
- Muito bem! Presumo então que hoje tenha a casa toda para mim.
- É correcto. Estará completamente só. Quer que eu lhe mostre a casa?
- Não há necessidade. Eu… – a sua falta de vocabulário fazia-se sentir – …i’ll get my bearings! Pode retirar-se.
O homem tirou um envelope do bolso e entregou-lho.
- Só hoje de manhã é que o alarme foi instalado. Estes são os códigos. As suas roupas já estão arrumadas no roupeiro do seu quarto, no segundo andar. Espero que fique agradado.
César limitou-se a assentir com a cabeça e o homenzinho retirou-se de imediato, dirigindo-se ao portão e saindo.
Sabia-lhe bem o ar puro e fresco à sua volta, por isso hesitou em entrar, mas acabou por fazê-lo.
O interior, para seu desapontamento, parecia um museu. Os móveis respiravam a antiguidade da casa e não se surpreenderia se, de repente, se materializasse à sua frente um qualquer personagem de finais do século XIX. Tudo o que via parecia ser tão antigo que estaria certamente carregado com as histórias e as recordações de alguém… Só que esse alguém não era ele!
“Well, we have to change this!” anotou ele mentalmente. Tinha-se habituado a um requinte moderno que não casava bem com o peso de séculos de história. Tinha noção do quanto todos aqueles objectos deviam ser valiosos, mas estava habituado o olhar para a frente. Aquele era um passado, sem dúvida, mas não era o seu.
Subiu lentamente as enormes e pesadas escadas de mármore com os degraus gastos pelos passos das incontáveis pessoas que por ali tinham passado, subindo depois outras de madeira que o levavam ao quarto.
O quarto era enorme, desnecessariamente enorme, com uma cama de dossel que daria facilmente para quatro pessoas. O quarto respirava à mesma antiguidade do resto da casa.
Pousou a pequena mala de mão que trazia num cadeirão, tirou o telemóvel de dentro do bolso do casaco e marcou um número.
- Sr. César, precisa de alguma coisa? – Ouviu em resposta quase de imediato de Victor.
- Para hoje não. Quero que comece, amanhã, a preparar um leilão de todo o recheio desta casa. Todo o lucro deverá ser doado a uma instituição de caridade que lhe direi depois. Mas pode começar os preparativos.
- Com certeza. Deseja mais alguma coisa?
- Não, é tudo. - E desligou.
Depois, dirigiu-se à varanda do quarto, abriu as portas, saiu, respirou fundo e deixou-se mergulhar na paisagem deslumbrante carregada de um verde inebriante…


III

Acordou sobressaltado e desorientado, sentando-se de imediato na cama. Um cheiro estranho invadia-lhe as narinas.
Só depois percebeu que era o cheiro do verde intenso do ar puro da serra de Sintra.
Localizou-se, acalmou. Olhou para o relógio no telemóvel 3:30 da manhã!
- Damn jet lag…
Levantou-se, dirigiu-se à casa de banho, tomou um duche, cuidou da barba, vestiu-se, dirigiu-se à garagem, e, uma vez que ainda não tinha comando, digitou o código que fez o mecanismo automático elevar a porta.
Já tinha saudades da sua besta devoradora de milhas e combustível, e observou o seu tom de azul reflectido pelas lâmpadas e apenas estranhou a matrícula portuguesa.
Abriu a porta, sentou-se e deu à ignição, fazendo a fera rugir. Depois retirou-o da garagem, cuja porta começou a fechar automaticamente, e apontou a frente ao portão que abriu com a suavidade que o surpreendia.
Desceu a serra com algum cuidado. Sabia perfeitamente bem que este carro não tinha sido feito para andar em percursos sinuosos, e que à mínima distracção o faria pagar caro o erro. Mas era isto que ele adorava nesta máquina, o desafio constante, o ter a noção de estar a domar o indomável.
Saiu da vila em direcção a Cascais, e apanhou a auto-estrada para Lisboa. Sabia perfeitamente que as estradas não eram tão vigiadas como as dos Estados Unidos, por isso, logo que passou as portagens, e pela primeira vez em muitos anos, soltou por completo a fera.
O carro, agradecido, rugiu como se estivesse deliciado, contido há demasiado tempo, lançou-se ao asfalto com fúria, e a paisagem, para ele tornou-se apenas uma mancha indistinta enquanto se concentrava em manter o animal colado ao asfalto.
Apenas levantou o pé ao começar a descer o Monsanto com as torres das Amoreiras à vista.


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Published on May 24, 2016 01:44

May 23, 2016

Do 1º

Prólogo

Não há nada pior do que olhar para uma página em branco sem ter ideia de como começar a preenchê-la.
Estava ali há cerca de dois meses, com prazos a aproximarem-se a uma velocidade vertiginosa e com um bloqueio como nunca tinha tido. Isolara-me na casa de praia, sem telefones, sem televisão, sem internet, sem computadores, apenas com uma máquina de escrever já velha e o carro que me permitia ir semanalmente às compras. De resto, reclusão absoluta, com os dias passados, na maior parte das vezes no terraço das traseiras, entre o rugir das ondas do mar de inverno que impregnavam o ar de maresia e as folhas de papel em branco, que eu começava já a olhar com algum desespero.
Em dois meses não tinha escrito uma única linha de jeito, e a um mês do prazo de entrega do livro já mal tinha tempo para o escrever, quanto mais delinear uma história.
Tinha plena consciência de quão grave seria falhar, de quanto esperavam de mim. E era precisamente esse receio que parecia bloquear-me ainda mais.
Aquele dia não era diferente de outro qualquer desde que me tinha desterrado voluntariamente naquele lugar. Estava no terraço sob o Sol de Inverno e a leve brisa fresca que passava, mas sem os apreciar, de tão absorvido e obcecado que estava com a folha de papel em branco que tinha à minha frente.
Eis que alguma coisa me chama a atenção pelo canto do olho, um leve movimento que não estava lá antes. Desloquei o olhar nessa direcção e vejo-a surgir por entre as dunas, com passadas seguras na areia desta praia deserta. Parou onde as dunas se desfazem em areal de praia, tirou todas as roupas e desceu nua em direcção à água. Não parecia incomodada pela brisa fresca nem atemorizada pelo revolto das ondas.
Segui-a à distância com o olhar, não percebendo mais do que a silhueta que se dava ao mar e que se deleitava nele. Depois saiu, subiu pelo areal até onde tinha deixado as roupas e deitou-se ainda molhada na areia esperando que o sol a secasse.
Por fim levantou-se, sacudiu a areia, vestiu-se e partiu.
Fascinou-me aquele momento.
Ela estava distante o suficiente para que eu não a conseguisse ver com clareza, nem distinguir roupas ou até as suas formas nuas quando foi à água, mas perto o suficiente para que conseguisse seguir os seus movimentos.
E foi quando ela partiu que resolvi escrever estas linhas…

Lilith

Duas da manhã.
Após o pouco que escrevi sento-me agora aqui, sem saber para onde continuar.
As minhas únicas companhias são os cigarros que vou queimando lentamente, o copo de whisky de malte, o barulho das ondas do mar, das quais através da janela apenas consigo distinguir o reflexo da lua na espuma e esta insónia e mal-estar de alma.
Sinto-me desconfortável em mim, com vontade absoluta de escrever, vontade de deixar correr os meus dedos nas teclas desta máquina de escrever, mas não o faço porque pareço não ter nada para dizer a não ser ideias desconexas.
Talvez devesse experimentar fazer isso mesmo, deixar os dedos correr…
Piauehg erpiuhaeuhgap biepiauegi auehpisy gatyetoa eaegrouy-gapoy fpaiuergaip eurpiaegvpiae …
Não, não é boa ideia, embora espelhe o que sinto.
Mas quem lê precisa de palavras, de conexões, de entendimento e não deste exercício fútil que não leva a lado nenhum.
Estou só, sinto-me só, e é se calhar essa solidão que me leva a não fazer sentido a não ser para mim, mas mais importante, a não necessitar de fazer sentido a não ser para mim. Mais do que só, sinto-me deprimido, e creio ser esse o principal problema. Talvez a ideia do isolamento não fosse tão boa quanto parecia.
Batem à porta.
São duas e meia da manhã num local quase deserto onde ninguém vem sem um propósito e batem à minha porta. Fico sobressaltado e receoso. Vou à porta ver quem é. Não adiantaria tentar fingir que não está ninguém, quando as luzes estão acesas e são provavelmente as únicas luzes visíveis em quilómetros. Assalta-me o medo do que possa ser.
Espreito. Lá fora uma mulher, aparentemente só.
Abro a porta apenas ligeiramente.
– Sim? – Questiono.
– Olá, Miguel.
A voz dela chegou até mim e a única comparação que consigo encontrar para o que senti na altura é a de estar a beber um mel tão doce, mas ao mesmo tempo tão suave que não sacia. Imediatamente senti que queria continuar a ouvi-la, não queria deixar de a ouvir, como se a simples voz desse significado a algo em mim. Senti-me tocado, quase comovido sem conseguir perceber o porquê.
– Desculpe, conhecemo-nos?
– Não da forma como perguntas, mas de uma certa maneira, sim.
Continuei estático, apenas com a porta entreaberta.
– Não me convidas para entrar?
A minha hesitação era como o meu silêncio. Notória. Ela soltou uma pequena gargalhada.
– Miguel, podes estar descansado. Não estou aqui para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de alguma forma, e estou completamente sozinha. Então? Deixas-me entrar?
Franqueei-lhe a porta, sem dizer uma única palavra. Ela entrou, tirou a capa que a cobria e pendurou-a no cabide que ali estava, sem sequer olhar para ele, como se fosse um gesto absolutamente familiar de quem conhecesse bem a casa.
Era a mulher que tinha visto na praia esta tarde, sem dúvida. Vê-la agora, aqui, de perto, deixou-me perturbado.
Era alta, e não há outro adjectivo para a descrever que não seja perfeita. Os cabelos pretos escorriam em cascata com uma leve ondulação até ao meio das costas e contrastavam com uns olhos do azul mais intenso que já tinha visto. Tão intenso que parecia faiscar. A tez morena realçava-os ainda mais. As roupas leves que estavam agora por cima do seu corpo não o apagavam nem realçavam, mas também não era necessário. O seu corpo tinha as proporções exactas, um equilíbrio e harmonia como nunca tinha visto e o seu rosto fazia lembrar as estátuas de Vénus e Afrodite. Uma beleza intemporal, clássica, suave mas marcante, com a força que essa mesma suavidade tinha. Toda ela parecia irradiar algo que escapava à minha compreensão.
Caminhou até à sala com uma tal elegância que não parecia caminhar, antes flutuar, como se o seu corpo não tivesse peso. Sentou se no sofá e ficou a acompanhar-me com o olhar enquanto eu a seguia e até me sentar à sua frente.
Continuei mudo, sem saber o que dizer, esmagado pela sua presença.
– Sabes, Miguel, estou aqui para te ajudar.
Fez uma pausa, deixando-me absorver as suas palavras e como que deixando que todas as interrogações viessem à minha mente para as responder em seguida, antes que tivesse hipóteses de a formular.
– Claro que entendes que, como em qualquer relação humana, nada é isento de interesse, por mais altruísta que este seja. Tenho as minhas razões, que perceberás mais tarde. Não obstante, e apesar delas, vou-te ajudar, vou-te dar a história acerca da qual vais escrever e que te deixa tão desesperado. Aliás, só o simples facto de me teres visto esta tarde na praia já fez com que começasses a escrever qualquer coisa, não foi?
Assenti com a cabeça.
– Bem, mas por esta altura deves estar curioso acerca de quem eu sou, não é?
Assenti novamente.
– Pois bem, Miguel, chamo-me Lilith.


À procura de Lilith

Três da manhã.
– O nome só por si não te diz nada?
Pensei um pouco.
– Lilith? Não, não me diz nada.
– Então talvez seja melhor eu mostrar-te quem sou.
Olhou para as minhas estantes repletas de livros. Levantou-se com suavidade, dirigiu-se a elas, e pegou num livro. Quase tive a ilusão de que o livro tinha saltado da estante para ir ao seu encontro.
– Já leste este livro?
Reparei que tinha a Bíblia Sagrada na mão.
– Todo não.
Ela sorriu.
– Quem eu sou está explicado nos versículos 26 e 27 do capítulo 1 do livro do Génesis.
Passou-me o livro para a mão. Procurei o que ela me tinha indica-do. Encontrei com facilidade e li:

26 «E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
27 E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.»

Já tinha lido aquela passagem outras vezes e não achei nada de estranho.
– E então? – Perguntei.
– Bem, se continuares a ler, vais descobrir a segunda criação a partir do versículo 7 do capítulo 2.
– Segunda criação?
– Pensa. Deus criou tudo até ao sexto dia. Só depois recriou?
– Parece-me apenas uma descrição mais pormenorizada do sexto dia…
– Mas não é.
Li novamente o capítulo 1 desde o começo e o capítulo 2, mas continuei com a mesma sensação. Ela percebeu isso.
– Já ouviste falar na Cabala? – Perguntou-me.
– Já. É um conjunto de textos místicos judeus.
– Sim. É isso mesmo. E no Zohar?
– Não, nunca ouvi falar. Quer dizer, o nome não me é estranho, mas não sei do que se trata.
– O Zohar é um comentário cabalístico à Bíblia hebraica. É lá que me encontras.
Fiquei a olhar para ela, provavelmente com um ar estranho. Ela riu-se.
– Poupo-te o trabalho – disse. – Sou Lilith, primeira mulher de Adão, criada do barro primordial juntamente com ele.
Foi a vez de eu me rir.
– Para alguém com a tua idade estás muito bem conservada.
– Estou, não estou?
– Agora a sério…
– Eu falo sempre a sério.
Parei a olhar para ela e fiquei a pensar na sensação que me provocava.
– Não te posso obrigar a acreditar em mim, mas vou-te contar uma história. E a escolha de acreditares ou não é tua.
Limitei-me a acenar. Afinal de contas, o que tinha eu a perder? Ela começou.

«A primeira recordação que eu tenho é de acordar. Não foi um acordar normal, como quando acordas de manhã de um sono pesado, foi antes um tomar de consciência repentino. Olhei para o lado e ali estava eu, embora não fosse eu. É difícil explicar-te por palavras porque não pode haver uma descrição precisa do que senti. Estavam ali mais duas entidades. Uma era eu também, embora separado de mim. O outro não.
Aquele que não era eu falou:
– Eu sou Yahvé, o criador. Tu és Adão –, falando para a outra parte de mim que me era externa – e tu és Lilith. – Disse para mim directamente. – São homem e mulher e ambos são um só, criados à minha imagem e semelhança. Este lugar onde estão chama-se Éden, e tudo o que aqui está é vosso. Nada tem nome, pelo que o nome de cada uma destas coisas será dado por vós.
Sabes, à altura ainda nem havia perguntas. Não conseguia formular nada. Tudo à minha volta era novo, belo e maravilhoso. Levantei-me, bem como Adão, e saímos em exploração, numa verdadeira aventura de conhecimento. Cheirávamos, provávamos, tocávamos e olhávamos para tudo. Deitávamo-nos e fechávamos os olhos só para ouvir os sons. Tudo era bom.
Com o tempo, fomos descobrindo mais e mais e quanto mais coisas descobríamos mais queríamos descobrir. Yahvé vinha frequentemente ao nosso encontro e ensinava-nos, tirava-nos dúvidas, respondia às nossas questões com a paciência com que um pai ensina um filho. E ele era na verdade o nosso pai.
Até que houve um momento maravilhoso. Adão e eu descobrimos que, embora já não estivéssemos unidos, havia ainda uma maneira de sermos um só, ainda que por breves momentos. Descobrimos o sexo, e tudo o que de bom advinha dele.
Mas depressa me apercebi de que ambos sentíamos as coisas de maneira diferente, díspar. Percebi que o que eu sentia era muito mais forte em termos físicos do que ele. E descobri que ele se acomodava. E descobrimos a rotina. E ao fim de algum tempo, depois de longas conversas com ele, decidi ir falar com Yahvé. Perguntei-lhe o porquê de tudo aquilo e ele explicou-me que ambos tínhamos sido feitos de maneira a ver o mundo de forma diferente para que nos complementássemos. Não podíamos ser iguais na nossa natureza. Compreendi. Mas o tempo foi-se arrastando e nada mudava e a minha insatisfação cresceu. Houve uma altura em que o meu coração ansiava por mais e mais não havia ali. E então, apesar do medo que sentia, e contra os conselhos de Yahvé, decidi partir.»

– História interessante. A única coisa que não explica é como é que, passado este tempo todo, estás aqui à minha frente.
– Se pensares um bocadinho, é fácil descobrires.
– Como assim?
– Só depois disto é que Yahvé criou Eva, porque Adão ficou sozinho. E só depois é que se deu o pecado original e a expulsão do paraíso. Ora eu e Adão somos de natureza divina, criados à imagem e semelhança de Yahvé. Adão perdeu parte dessa natureza ao ser expulso. Eu não.
Fiquei a olhar para ela enquanto pensava nas implicações do que me acabara de dizer.
– Quer isso dizer que és imortal?
– Sim, quer. Quer também dizer que nada do que eu faça é pecado, uma vez que não tenho em mim o pecado original. Sou o único ser humano que existe que é a verdadeira natureza de Yahvé, logo não posso ser bem nem mal. Sou tudo.
Deixei-me estar, não acreditando no que ouvia.
Ela levantou-se e dirigiu-se para a porta.
– Já tens muito em que pensar, por ora – disse. – Voltarei em breve. Procura-me e vais-me encontrar. Quando estiveres preparado voltarei.

Agarrou a capa e saiu, fechando a porta atrás de si, e deixando-me com uma sensação de vazio tão grande que só me apeteceu chorar.
Eram quatro da manhã.

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Published on May 23, 2016 08:15