Do 1º de Crónicas...
Prefácio
Era de esperar, após ter escrito dois romances, que houvesse alguém, como por exemplo, a minha companheira de vida, que tivesse algum respeito pela minha escrita!
Enquanto escrevia o que vão ler a seguir, se por acaso forem algo masoquistas e se derem a esse trabalho, constatei que de facto tal assim não era!
Começou ao de leve com um:
- Já tens uma ideia do que vais escrever a seguir? Sempre vais fazer a continuação do chuva ou…
-Ainda nem pensei nisso…
-Podias escrever uma história de uma banda de rock…
…e eu encolhia os ombros. Ideia mais parva, sinceramente…
Mas depois:
-Olha, pensaste naquela ideia?
-Qual?
-Aquela da banda de Rock…
-Nem por isso.
-Mas olha que podia ser uma coisa fantástica. E tu até és todo rockeiro… Podia chamar-se “Treta de cabos – vidas de Rocker “As histórias secretas dos XXL Blues”…
-Dos XXL Blues?
-Sim, aquela banda que tu até gostas…
-Aqueles gajos que passas a vida a ouvir, a banda do teu colega de trabalho?
-Sim, esses…
-Mas onde é que foste buscar esse título?
-Achei piada…
-Ok, mas ao quê, se não te importas que pergunte?
-Aqui há uns tempos estava a falar com o meu colega e ele contou-me uma história do primeiro concerto de uma banda dele em que os cabos se enlearam todos e eles no fim, a dar conta daquilo disseram que um dia haviam de escrever um livro chamado “Treta de cabos – a nossa vida como Rockers”, mas como era uma cena deles, eu achei que era giro acrescentar “(as histórias secretas dos XXL Blues)”. Ele conta-me cada uma…
Lembro-me que achei aquilo um bocado estranho, levantei o sobrolho e perguntei-lhe:
-O teu colega parece ser um gajo fixe… - ciente que não estava a gostar muito daquela brincadeira, ao que ela respondeu:
-É! – e riu-se, como que se lembrando de alguma coisa engraçada com um ar vago, a olhar para o ar, continuando a seguir – Acho que te ias divertir a falar com ele…
Para já, para ser franco, não me sentia muito divertido!
Apesar disso, ela foi-me contando algumas histórias, de forma algo avulsa e eu comecei a suspeitar que, na realidade, aqueles tipos não existiam! Se calhar era ela que se lembrava de algumas das parvoíces que me contava, ria-se que nem uma perdida quando ia vendo o desenvolvimento das histórias e, a dada altura até me estava a dar algum gozo escrever isto.
Mas eis que ela chega ao pé de mim, um dia, e me diz:
-Sabes aquele meu colega de trabalho?
-O Ninguém?
-Sim…
-Contou-te mais alguma? – Perguntei eu meio divertido, à espera de mais alguma coisa estranha.
-Não, não é isso. Ele tem-se divertido à brava com os teus “posts” no facebook e gostava de te conhecer.
Confesso que já tinha achado algo estranho alguns comentários que falavam dos posts enquanto algo que se tinha passado de facto, sobretudo em coisas que eram, no mínimo absurdas, como a história do K e do presunto, mas ainda assim tinha alguma relutância em acreditar nelas. Acabei por construir os personagens, segundo o que ela me ia contando, à minha maneira. Mas agora, de repente, via a “coisa” a ganhar vida.
Acabei por combinar um almoço com ela e o colega.
No dia marcado ela chega à mesa do restaurante onde tínhamos combinado acompanhada por ele e, logo à partida não fiquei grandemente impressionado. Era um gajo para a minha idade, um bocado para o grande e com um ar de mal disposto.
-Atão tu é que tens andado a escrever a “treta de cabos”?
Assim, a sangue frio. Nem um “muito gosto” nem nada! Directo ao assunto, de sobrolho levantado e com um ar que eu não conseguia distinguir se de algum contentamento ou se estava prestes a querer desancar-me.
-Sim, tenho sido eu.
-Aquilo tá giro, páh! Um bocado exagerado, mas giro!
-Exagerado? – Perguntei eu, com as minhas suspeitas a confirmarem-se de que, na verdade, as coisas não tinham sido bem assim.
-Sim!
-Em que sentido, por exemplo?
-Olha, por exemplo, quando falar daquela história no bar em que eu estava com uma amiga da FF e o Especiaria veio falar comigo e quando ela se vai embora o Especiaria me pergunta se eu já a conhecia…
-Pois, essa pareceu-me estranha…
-E claro que era! Eu não a conhecia há vinte minutos, obviamente!
-Conhecias há mais tempo?
-Sim, claro! Pelo menos uma meia hora! Ou por exemplo, o titulo…
-Que é que tem o titulo?
Quando eu e o Especiaria tivemos a conversa, o título era “Merda de cabos” e não “Treta de cabos”…
-Isso foi culpa minha… - interrompeu ela – Quando lhe contei achei que o título era demasiado forte!
Ele pareceu ficar a pensar um pouco!
-Realmente, és capaz de ter razão! – concedeu – “Merda de cabos” era capaz de ser um pouco forte para um titulo! Ainda assim, se calhar “Treta de cabos” não reflecte bem os sentimentos desse dia… Mas pronto, até percebo!
Comecei a questionar-me acerca da sanidade mental do tipo.
-Pá, desculpa lá, só vendi o peixe como mo venderam. Como é que eu havia de saber?
-Confia em mim. Ninguém sabe.
-Pois… Então se ninguém sabe, como é que eu havia de saber?
-Não percebeste, pá! Era um trocadilho. Ninguém sabe. E se eu sou Ninguém, então eu sei, boa?
Fiz o meu riso número trinta e quatro, o que reservo para as piadinhas da treta. O tipo, ainda por cima, tinha a mania que era engraçadinho!
-Então mas querias falar comigo porquê?
-Pá, porque gosto da maneira como escreves. Até já li os teus dois livros…
-Compraste-os?
-Não, a tua mulher emprestou-mos. Até estão giros, para quem se interessa por aquelas tretas!
Que belo elogio! Este gajo começava a irritar-me. A minha mais que tudo, conhecendo-me de ginjeira, lançava-me o olhar de “Vá lá, tem um bocadinho de paciência que ele até é um gajo fixe” recebendo em resposta o meu olhar de “não sei se tenho” mas jogando a carta decisiva do “vá lá, vá lá, vá lá…” o que me fez respirar fundo, contar mentalmente até dez e perguntar:
-Então mas porque é que querias falar comigo?
-Pá, já que estás a escrever isto, podia ser eu a contar-te as coisas em primeira mão! Ao menos evitavam-se os tais exageros…
-Ok…! Mas já sabes o que é que vais fazer com isto, nesse caso?
-Ninguém sabe!
-Claro, por isso é que eu quero saber.
-Saber o quê?
-O que é que vais fazer com isto…
-Mas se já te disse que ninguém sabe…
-Pois, se Ninguém sabe, eu também quero saber, não quero estar para aqui assim a escrever à toa…
-Mas se ninguém sabe, como é que eu hei-de saber?
-Então, Ninguém sabe! Tu és Ninguém, logo…
Ele levantou a mão, fazendo-me sinal para parar, com uma cara de quem parecia ter acabado de chupar um limão verde e disse de repente:
-Pá, péraí! Embadaralhaste-me!
Confesso que, por esta altura também eu já estava embada… embarada… confuso!
-O trocadilho?! – Limitei-me a dizer. Fez-se-lhe alguma luz, sorriu e disse:
-Ah! Não, não era isso! Não se faz a mais pequena ideia do que fazer com isto!
“Estupido” chamei-lhe eu mentalmente!
No resto do almoço ele contou-me mais alguns episódios que deixavam a minha cara-metade a rir quase às lagrimas, mas a mim nem por isso!
Uns tempos depois acabei por ir vê-los num concerto que deram, em formato acústico num “festival do caracol”! Conheci-os todos e, realmente, fiquei com a impressão que a maçã não caia longe da árvore! Os personagens que eu tinha criado e julgava serem ficcionais não andavam nada longe destes tipos que, tão depressa estavam a falar das maiores bacoradas do mundo, como discutiam qual a gaja que tinha as mamas maiores na esplanada inteira, como falavam da terceira guitarra usada na segunda faixa do quarto álbum de um daqueles guitarristas que fazem discos só para músicos, como discutiam teorias quânticas, tudo isto num espaço de dez minutos!
Mas a verdade é que a parvoíce deles era, de certa forma, genuína, embora me deixasse (e ainda deixe) embada… embarada… confuso!
Uma vez que isto já ia adiantado, lá me comprometi a acabar a história – sem grande vontade, diga-se – o que deixou a minha mais-que-tudo satisfeita (e todos sabemos as vantagens inerentes em deixar a mulher que partilha a cama connosco satisfeita).
E agora, que está escrito, lavo daqui as minhas mãos. Ninguém sabe o que há-de fazer com isto!
C. N. Gil
Prólogo
Era um dia como qualquer outro. Tinha precisamente vinte e três horas e cinquenta e seis minutos e situava-se algures no principio do Outono.
Era um dia solarengo, com o calor do verão ainda a fazer-se sentir, o que era demonstrado pela enorme quantidade de mini-saias que invadiam aquela escola secundária no primeiro dia de aulas, para gaudio dos mini contentores de testosterona que pululavam por todo o lado, apreciando e comentando quem iam vendo.
A campainha tocou e a malta lá quebrou os grupinhos que se formavam de pessoal que já não se via há dois meses e meio e que ainda nem sabia em que turma estava, indo cada um para a respectiva sala na antecipação do que lhe calharia na rifa.
Ninguém tinha uma ideia do que aí vinha.
Já tinha dado o segundo toque e já estava todo o pessoal daquela turma sentado quando batem à porta, que foi aberta logo em seguida revelando um gajo magro que nem um esparguete, alto, meio louro, mas com uma barba mal semeada maioritariamente ruiva e uma popa de fazer inveja ao Elvis.
O resto do pessoal conhecia-se, pelo menos, de vista, mas aquele pássaro raro nunca tinha sido avistado naquelas paragens. Estava francamente deslocado! Um rockabilly em terra de metaleiros…
O tipo, vendo-se o centro das atenções, procura rapidamente um sítio para se sentar, e repara (era difícil não reparar) que as duas miúdas mais podres de boas da turma (quiçá da escola) estavam sentadas na última fila, na carteira mais próxima da porta. Ao lado delas, com uma postura que revelava alguma intimidade com, pelo menos, uma delas, estava um gajo tão alto como ele, tão feio como ele, a tentar deixar crescer um cabelo que teimava em encarapinhar, com pinta de baldas. Ao lado do gajo havia um lugar vago. Sentou-se.
O outro estava entretido a falar com a boazona do lado e não lhe ligou peva até o ambiente ter serenado e a professora ter começado a falar, apresentando-se. Só então o outro se voltou para ele e perguntou:
-D’onde raio é que tu saíste?
O tipo olha para o outro, tentando avaliar o intuito das palavras e se o mandava apanhar no sitio onde o sol não brilha. Mas, sentindo-se o estranho ali, conteve-se. Limitou-se a dizer:
-Sou de Almada. Sou o “Tolas”.
O outro sorriu e apertou-lhe a mão.
-Eu sou Ninguém.
I
Muita coisa se passou ao longo daquele ano lectivo.
Mas como quase nada é pertinente para esta história, não vos vou maçar com estes detalhes. Concentremo-nos pois naquilo que é importante.
O Tolas, numa visita a casa de Ninguém para um qualquer trabalho de grupo (sendo que o grupo consistia quase invariavelmente dos dois com as duas boazonas), reparou que este tinha uma guitarra abandonada em cima do Guarda-fatos.
-O que é aquilo?
-Bem, parece-me uma guitarra. – Ninguém respondeu.
-Tu tocas?
-Guitarra não.
-Então para que é que queres aquilo?
-O meu pai achou boa ideia comprá-la quando eu ainda estava na barriga da minha mãe…
Não falaram mais no assunto. Até porque as boazonas estavam (como estavam quase sempre) de mini-saia e havia que dar importância ao que a tinha.
No final do ano, uma das professoras promoveu um acampamento/sardinhada num seu terreno no Monte da Caparica. O Tolas pediu encarecidamente a Ninguém que levasse a guitarra, o que este achou uma grande maçada, mas fez-lhe a vontade.
O acampamento, de um dia para o outro, acabou por se resumir a eles os dois. E foi nessa fatídica noite que o Tolas ensinou a Ninguém tudo o que sabia fazer numa guitarra…
…o que demorou aproximadamente dez minutos, porque também não sabia grande coisa. Mas, no entanto, sabia fazer dois acordes, lá e mi, e que deu fundamento a uma desgarrada de blues pela noite fora.
Findo o dia a seguir, Ninguém foi para casa, que ficava no meio da natureza selvagem em quase perfeito isolamento e, uma vez que não tinha absolutamente mais nada que fazer, dedicou esse verão a jogar com o seu ZX Spectrum 48k e a desempoeirar um poster que já tinha há uns tempos, no qual figurava uma guitarra Jackson Randy Rhoads em tamanho real e onde estavam os acordes maiores, menores, bem como as escalas maiores, menores, pentatónicas e de blues, usando-o para aprender a tocar.
Ninguém aprendeu o seu primeiro riff, ensinado pelo seu irmão (muito) mais velho e passou o verão a tocar o “Smoke on the water” de Deep Purple, para desconsolo dos seus pais…
II
A guitarra tornou-se um elemento inseparável de Ninguém, e os intervalos entre as aulas eram sempre ocasiões de tertúlia cantada, e com uma aprendizagem feita e partilhada por quase toda a gente.
Ninguém levava a guitarra sempre com ele para a escola e esta passava de mão em mão.
Havia um professor, de filosofia, gajo que era o cúmulo da ironia, porque, embora pequeno, algo desconchavado, sempre com uma gabardina que fazia lembrar a do Colombo, um detective de uma série americana dos anos 70, sempre sebosa, com uns óculos garrafais, uma barba rala e dentes tortos, chamava-se Bonito! Este gajo era fã incondicional de Pink Floyd, como Ninguém, diga-se, e adorava juntar-se à malta nos intervalos para cantar o Confortably Numb.
Ao longo do ano foi-se criando um ambiente naquela escola que fazia com que cada vez mais gente levasse as suas guitarras, e muita gente acabou por aprender a tocar nessa altura.
Ninguem tocava as músicas destas tertúlias, coisas como Simon & Garfunkle, Pink Floyd, Bob Dylan, a par com as suas metaladas preferidas, coisas de Iron Maiden, Mettallica, WASP ou Manowar.
Tudo isto levou a que um outro professor, também guitarrista, fundasse um clube de música e Ninguém aderiu, bem como o Tolas.
Quase no Final do Ano Lectivo, a Câmara Municipal resolveu organizar, num parque de estacionamento do mais recente e moderno Centro Comercial lá do sítio, um concerto só de bandas de garagem e o clube de música da escola foi convidado.
Ninguém achava que aquilo seriam favas contadas, bem como o Tolas. Fizeram o som à tarde, achando-se ambos já bons músicos (uma vez que já tocavam umas coisas), jantaram junto com as outras bandas e chegou a hora de subirem ao palco.
Ninguém entrou cheio de confiança, com o Tolas logo atrás, mas assim que olhou para o lado e viu uns milhares de olhos postos nele, ficou com vontade de fugir dali. O mesmo se passou com o Tolas!
Ambos os dois olharam um para o outro, encolheram os ombros e seguiram para bingo, que já não dava para sair dali sem parecerem um par de parvos.
O Tolas encarnou o espirito do Elvis e cantou o Blue Suede Shoes a preceito, e a seguir Ninguém cantou o Runaway, simplesmente porque mais ninguém conseguia fazer o falsete do “wa-wa-wa-wa-wander…” e o “Wa-wa-wa-wa-why she run away”. Claro que esta música, à altura, era obrigatória, visto que era banda sonora de “As cronicas do crime” série policial de grande sucesso.
E foi assim que Ninguém teve o seu primeiro grande concerto (curiosamente o primeiro concerto mesmo) junto com o Tolas!
III
Ninguem fazia parte do grupo de metaleiros da escola. O grupo era grande. Ninguém queria deixar crescer o cabelo, à semelhança dos seus ídolos, mas o resultado, mesmo quando o cabelo esticado já lhe dava pelo meio das costas era, invariavelmente, uma carapinha que faria inveja à do Michael Jackson antes de ter mudado de cor, e parecia saída directamente de um vídeo da Disco Sound dos anos 70. E o pior era que, ao tentar fazer da carapinha um cabelo liso e escorrido, invariavelmente parecia trazer na cabeça o telhado de um dos bungalows do hotel das Penhas da Saúde, na Serra da Estrela. O objectivo não era de todo atingido, nunca o tendo sido, diga-se, mas Ninguém era resiliente e ninguém lhe podia dizer nada acerca do assunto!
Num dos dias em que a tribo estava reunida, à volta da guitarra, e em que Ninguém tocava a ultima música que tinha aprendido (uma canção suave dos W.A.S.P. chamada “Animal - I fuck like a beast”), um gajo qualquer chega-se ao pé dele trazendo um chavalo e disse-lhe:
-Deixas aqui o chavalo dar uns toques?
Ninguém olhou para o chavalo. Era piqueno! Tinha uma trunfa loira escorrida e ar de puto, até porque era um puto.
-Tu tocas? – Ninguém perguntou.
O chavalo timidamente disse:
-Ya!
Ninguém passou-lhe a guitarra para as mãos.
-Atão toca ai…
E o chavalo tocou. Riffs de Mettalica e Maiden, solos e cenas…
…o chavalo tocava bem. Ninguém ficou impressionado.
-Como é que te chamas, puto?
-Especiaria…
-Fixe! Atão e vê lá se consegues tocar isto… - e Ninguém pegou na guitarra e tocou um faduncho:
“Se deixaste de ser minha,
Não deixei de ser quem era,
Ai, se deixaste de ser minha,
Não deixei de ser quem era
Por morrer um’ándorinha
Nãossacabáprimavera…”
Quando acabou devolveu a guitarra ao chavalo.
-Consegues tocar isto?
O chavalo ficou algo estupefacto, bem como o resto da tribo (mas não necessariamente de uma maneira positiva), tentou, mas não conseguiu.
-Vês pá, convém aprender a tocar mais cenas…
O chavalo assentiu, ainda algo admirado.
E foi assim que Ninguém conheceu o Especiaria!
IV
Ninguém era amigo do Cabelo de Piço, ou Piço, para abreviar. Tinham andado juntos na escola primária e voltaram a encontrar-se ali.
O Cabelo de Piço trabalhava na loja dos pais, que lhe davam uma mesada o que lhe permitia comprar álbuns, coisa que a maior parte do pessoal não conseguia, uma vez que custavam dois contos, em média, o que era dinheiro à brava naquela altura. Assim, o Cabelo de Piço comprava os álbuns e depois de os ouvir e gravar para cassete, de maneira a poder continuar a ouvir no seu walkman, emprestava.
Já mesmo no final da década de oitenta apareceu a ideia de se formar uma banda por aquelas paragens. O Cabelo de Piço nunca tinha tocado nada na vida, mas comprou uma Ibanez encarnada que era a inveja de toda a gente. Mais tarde comprou um amplificador da Marshall.
Foi precisamente quando o Cabelo de Piço foi levantar o amplificador que perguntou a Ninguém se queria vir também. E lá foram, numa carrinha Peugeot grande cumó caraças em direcção a Almada. Foi nessa viagem que Ninguém conheceu o Peles.
Já se conheciam de vista, claro, mas nunca tinham falado antes…
…e continuaram sem se falar. Se trocaram duas ou três palavras foi muito.
O Cabelo de Piço acabou por nunca tocar em banda nenhuma. A guitarra e o Amplificador acabaram por passar para um dos guitarristas da banda do Peles. No entanto, antes disso, o Cabelo de Piço chegou a emprestar a guitarra a Ninguém por uns dias, sendo que foi a primeira guitarra eléctrica com que tocou por mais do que alguns minutos.
Ninguém ficou viciado.
A primeira coisa que fez, logo que saiu da escola e arranjou emprego, foi comprar a sua primeira guitarra eléctrica, uma coisinha bem reles e feita de contraplacado.
Não tendo ficado muito satisfeito com ela, não tardou muito a comprar, a prestações, uma Flying V toda preta…
Não se pode dizer que tivesse muito bom gosto, à altura!
Ele e o Tolas acabaram por montar a sua primeira banda e recrutaram o Bubas para a bateria.
O Tolas, entretanto, compra uma Les Paul imaculadamente branca que ainda o acompanha até hoje, embora já não seja guitarrista.
Precisavam de um baixista e o Bubas disse que conhecia um. E um dia trouxe o Gadelhas, tipo alto e fininho, mas com boa pinta.
E foi assim que começou a carreira da mais desconhecida banda da margem sul…
(in "Treta de Cabos - Vidas de Rocker")
Era de esperar, após ter escrito dois romances, que houvesse alguém, como por exemplo, a minha companheira de vida, que tivesse algum respeito pela minha escrita!
Enquanto escrevia o que vão ler a seguir, se por acaso forem algo masoquistas e se derem a esse trabalho, constatei que de facto tal assim não era!
Começou ao de leve com um:
- Já tens uma ideia do que vais escrever a seguir? Sempre vais fazer a continuação do chuva ou…
-Ainda nem pensei nisso…
-Podias escrever uma história de uma banda de rock…
…e eu encolhia os ombros. Ideia mais parva, sinceramente…
Mas depois:
-Olha, pensaste naquela ideia?
-Qual?
-Aquela da banda de Rock…
-Nem por isso.
-Mas olha que podia ser uma coisa fantástica. E tu até és todo rockeiro… Podia chamar-se “Treta de cabos – vidas de Rocker “As histórias secretas dos XXL Blues”…
-Dos XXL Blues?
-Sim, aquela banda que tu até gostas…
-Aqueles gajos que passas a vida a ouvir, a banda do teu colega de trabalho?
-Sim, esses…
-Mas onde é que foste buscar esse título?
-Achei piada…
-Ok, mas ao quê, se não te importas que pergunte?
-Aqui há uns tempos estava a falar com o meu colega e ele contou-me uma história do primeiro concerto de uma banda dele em que os cabos se enlearam todos e eles no fim, a dar conta daquilo disseram que um dia haviam de escrever um livro chamado “Treta de cabos – a nossa vida como Rockers”, mas como era uma cena deles, eu achei que era giro acrescentar “(as histórias secretas dos XXL Blues)”. Ele conta-me cada uma…
Lembro-me que achei aquilo um bocado estranho, levantei o sobrolho e perguntei-lhe:
-O teu colega parece ser um gajo fixe… - ciente que não estava a gostar muito daquela brincadeira, ao que ela respondeu:
-É! – e riu-se, como que se lembrando de alguma coisa engraçada com um ar vago, a olhar para o ar, continuando a seguir – Acho que te ias divertir a falar com ele…
Para já, para ser franco, não me sentia muito divertido!
Apesar disso, ela foi-me contando algumas histórias, de forma algo avulsa e eu comecei a suspeitar que, na realidade, aqueles tipos não existiam! Se calhar era ela que se lembrava de algumas das parvoíces que me contava, ria-se que nem uma perdida quando ia vendo o desenvolvimento das histórias e, a dada altura até me estava a dar algum gozo escrever isto.
Mas eis que ela chega ao pé de mim, um dia, e me diz:
-Sabes aquele meu colega de trabalho?
-O Ninguém?
-Sim…
-Contou-te mais alguma? – Perguntei eu meio divertido, à espera de mais alguma coisa estranha.
-Não, não é isso. Ele tem-se divertido à brava com os teus “posts” no facebook e gostava de te conhecer.
Confesso que já tinha achado algo estranho alguns comentários que falavam dos posts enquanto algo que se tinha passado de facto, sobretudo em coisas que eram, no mínimo absurdas, como a história do K e do presunto, mas ainda assim tinha alguma relutância em acreditar nelas. Acabei por construir os personagens, segundo o que ela me ia contando, à minha maneira. Mas agora, de repente, via a “coisa” a ganhar vida.
Acabei por combinar um almoço com ela e o colega.
No dia marcado ela chega à mesa do restaurante onde tínhamos combinado acompanhada por ele e, logo à partida não fiquei grandemente impressionado. Era um gajo para a minha idade, um bocado para o grande e com um ar de mal disposto.
-Atão tu é que tens andado a escrever a “treta de cabos”?
Assim, a sangue frio. Nem um “muito gosto” nem nada! Directo ao assunto, de sobrolho levantado e com um ar que eu não conseguia distinguir se de algum contentamento ou se estava prestes a querer desancar-me.
-Sim, tenho sido eu.
-Aquilo tá giro, páh! Um bocado exagerado, mas giro!
-Exagerado? – Perguntei eu, com as minhas suspeitas a confirmarem-se de que, na verdade, as coisas não tinham sido bem assim.
-Sim!
-Em que sentido, por exemplo?
-Olha, por exemplo, quando falar daquela história no bar em que eu estava com uma amiga da FF e o Especiaria veio falar comigo e quando ela se vai embora o Especiaria me pergunta se eu já a conhecia…
-Pois, essa pareceu-me estranha…
-E claro que era! Eu não a conhecia há vinte minutos, obviamente!
-Conhecias há mais tempo?
-Sim, claro! Pelo menos uma meia hora! Ou por exemplo, o titulo…
-Que é que tem o titulo?
Quando eu e o Especiaria tivemos a conversa, o título era “Merda de cabos” e não “Treta de cabos”…
-Isso foi culpa minha… - interrompeu ela – Quando lhe contei achei que o título era demasiado forte!
Ele pareceu ficar a pensar um pouco!
-Realmente, és capaz de ter razão! – concedeu – “Merda de cabos” era capaz de ser um pouco forte para um titulo! Ainda assim, se calhar “Treta de cabos” não reflecte bem os sentimentos desse dia… Mas pronto, até percebo!
Comecei a questionar-me acerca da sanidade mental do tipo.
-Pá, desculpa lá, só vendi o peixe como mo venderam. Como é que eu havia de saber?
-Confia em mim. Ninguém sabe.
-Pois… Então se ninguém sabe, como é que eu havia de saber?
-Não percebeste, pá! Era um trocadilho. Ninguém sabe. E se eu sou Ninguém, então eu sei, boa?
Fiz o meu riso número trinta e quatro, o que reservo para as piadinhas da treta. O tipo, ainda por cima, tinha a mania que era engraçadinho!
-Então mas querias falar comigo porquê?
-Pá, porque gosto da maneira como escreves. Até já li os teus dois livros…
-Compraste-os?
-Não, a tua mulher emprestou-mos. Até estão giros, para quem se interessa por aquelas tretas!
Que belo elogio! Este gajo começava a irritar-me. A minha mais que tudo, conhecendo-me de ginjeira, lançava-me o olhar de “Vá lá, tem um bocadinho de paciência que ele até é um gajo fixe” recebendo em resposta o meu olhar de “não sei se tenho” mas jogando a carta decisiva do “vá lá, vá lá, vá lá…” o que me fez respirar fundo, contar mentalmente até dez e perguntar:
-Então mas porque é que querias falar comigo?
-Pá, já que estás a escrever isto, podia ser eu a contar-te as coisas em primeira mão! Ao menos evitavam-se os tais exageros…
-Ok…! Mas já sabes o que é que vais fazer com isto, nesse caso?
-Ninguém sabe!
-Claro, por isso é que eu quero saber.
-Saber o quê?
-O que é que vais fazer com isto…
-Mas se já te disse que ninguém sabe…
-Pois, se Ninguém sabe, eu também quero saber, não quero estar para aqui assim a escrever à toa…
-Mas se ninguém sabe, como é que eu hei-de saber?
-Então, Ninguém sabe! Tu és Ninguém, logo…
Ele levantou a mão, fazendo-me sinal para parar, com uma cara de quem parecia ter acabado de chupar um limão verde e disse de repente:
-Pá, péraí! Embadaralhaste-me!
Confesso que, por esta altura também eu já estava embada… embarada… confuso!
-O trocadilho?! – Limitei-me a dizer. Fez-se-lhe alguma luz, sorriu e disse:
-Ah! Não, não era isso! Não se faz a mais pequena ideia do que fazer com isto!
“Estupido” chamei-lhe eu mentalmente!
No resto do almoço ele contou-me mais alguns episódios que deixavam a minha cara-metade a rir quase às lagrimas, mas a mim nem por isso!
Uns tempos depois acabei por ir vê-los num concerto que deram, em formato acústico num “festival do caracol”! Conheci-os todos e, realmente, fiquei com a impressão que a maçã não caia longe da árvore! Os personagens que eu tinha criado e julgava serem ficcionais não andavam nada longe destes tipos que, tão depressa estavam a falar das maiores bacoradas do mundo, como discutiam qual a gaja que tinha as mamas maiores na esplanada inteira, como falavam da terceira guitarra usada na segunda faixa do quarto álbum de um daqueles guitarristas que fazem discos só para músicos, como discutiam teorias quânticas, tudo isto num espaço de dez minutos!
Mas a verdade é que a parvoíce deles era, de certa forma, genuína, embora me deixasse (e ainda deixe) embada… embarada… confuso!
Uma vez que isto já ia adiantado, lá me comprometi a acabar a história – sem grande vontade, diga-se – o que deixou a minha mais-que-tudo satisfeita (e todos sabemos as vantagens inerentes em deixar a mulher que partilha a cama connosco satisfeita).
E agora, que está escrito, lavo daqui as minhas mãos. Ninguém sabe o que há-de fazer com isto!
C. N. Gil
Prólogo
Era um dia como qualquer outro. Tinha precisamente vinte e três horas e cinquenta e seis minutos e situava-se algures no principio do Outono.
Era um dia solarengo, com o calor do verão ainda a fazer-se sentir, o que era demonstrado pela enorme quantidade de mini-saias que invadiam aquela escola secundária no primeiro dia de aulas, para gaudio dos mini contentores de testosterona que pululavam por todo o lado, apreciando e comentando quem iam vendo.
A campainha tocou e a malta lá quebrou os grupinhos que se formavam de pessoal que já não se via há dois meses e meio e que ainda nem sabia em que turma estava, indo cada um para a respectiva sala na antecipação do que lhe calharia na rifa.
Ninguém tinha uma ideia do que aí vinha.
Já tinha dado o segundo toque e já estava todo o pessoal daquela turma sentado quando batem à porta, que foi aberta logo em seguida revelando um gajo magro que nem um esparguete, alto, meio louro, mas com uma barba mal semeada maioritariamente ruiva e uma popa de fazer inveja ao Elvis.
O resto do pessoal conhecia-se, pelo menos, de vista, mas aquele pássaro raro nunca tinha sido avistado naquelas paragens. Estava francamente deslocado! Um rockabilly em terra de metaleiros…
O tipo, vendo-se o centro das atenções, procura rapidamente um sítio para se sentar, e repara (era difícil não reparar) que as duas miúdas mais podres de boas da turma (quiçá da escola) estavam sentadas na última fila, na carteira mais próxima da porta. Ao lado delas, com uma postura que revelava alguma intimidade com, pelo menos, uma delas, estava um gajo tão alto como ele, tão feio como ele, a tentar deixar crescer um cabelo que teimava em encarapinhar, com pinta de baldas. Ao lado do gajo havia um lugar vago. Sentou-se.
O outro estava entretido a falar com a boazona do lado e não lhe ligou peva até o ambiente ter serenado e a professora ter começado a falar, apresentando-se. Só então o outro se voltou para ele e perguntou:
-D’onde raio é que tu saíste?
O tipo olha para o outro, tentando avaliar o intuito das palavras e se o mandava apanhar no sitio onde o sol não brilha. Mas, sentindo-se o estranho ali, conteve-se. Limitou-se a dizer:
-Sou de Almada. Sou o “Tolas”.
O outro sorriu e apertou-lhe a mão.
-Eu sou Ninguém.
I
Muita coisa se passou ao longo daquele ano lectivo.
Mas como quase nada é pertinente para esta história, não vos vou maçar com estes detalhes. Concentremo-nos pois naquilo que é importante.
O Tolas, numa visita a casa de Ninguém para um qualquer trabalho de grupo (sendo que o grupo consistia quase invariavelmente dos dois com as duas boazonas), reparou que este tinha uma guitarra abandonada em cima do Guarda-fatos.
-O que é aquilo?
-Bem, parece-me uma guitarra. – Ninguém respondeu.
-Tu tocas?
-Guitarra não.
-Então para que é que queres aquilo?
-O meu pai achou boa ideia comprá-la quando eu ainda estava na barriga da minha mãe…
Não falaram mais no assunto. Até porque as boazonas estavam (como estavam quase sempre) de mini-saia e havia que dar importância ao que a tinha.
No final do ano, uma das professoras promoveu um acampamento/sardinhada num seu terreno no Monte da Caparica. O Tolas pediu encarecidamente a Ninguém que levasse a guitarra, o que este achou uma grande maçada, mas fez-lhe a vontade.
O acampamento, de um dia para o outro, acabou por se resumir a eles os dois. E foi nessa fatídica noite que o Tolas ensinou a Ninguém tudo o que sabia fazer numa guitarra…
…o que demorou aproximadamente dez minutos, porque também não sabia grande coisa. Mas, no entanto, sabia fazer dois acordes, lá e mi, e que deu fundamento a uma desgarrada de blues pela noite fora.
Findo o dia a seguir, Ninguém foi para casa, que ficava no meio da natureza selvagem em quase perfeito isolamento e, uma vez que não tinha absolutamente mais nada que fazer, dedicou esse verão a jogar com o seu ZX Spectrum 48k e a desempoeirar um poster que já tinha há uns tempos, no qual figurava uma guitarra Jackson Randy Rhoads em tamanho real e onde estavam os acordes maiores, menores, bem como as escalas maiores, menores, pentatónicas e de blues, usando-o para aprender a tocar.
Ninguém aprendeu o seu primeiro riff, ensinado pelo seu irmão (muito) mais velho e passou o verão a tocar o “Smoke on the water” de Deep Purple, para desconsolo dos seus pais…
II
A guitarra tornou-se um elemento inseparável de Ninguém, e os intervalos entre as aulas eram sempre ocasiões de tertúlia cantada, e com uma aprendizagem feita e partilhada por quase toda a gente.
Ninguém levava a guitarra sempre com ele para a escola e esta passava de mão em mão.
Havia um professor, de filosofia, gajo que era o cúmulo da ironia, porque, embora pequeno, algo desconchavado, sempre com uma gabardina que fazia lembrar a do Colombo, um detective de uma série americana dos anos 70, sempre sebosa, com uns óculos garrafais, uma barba rala e dentes tortos, chamava-se Bonito! Este gajo era fã incondicional de Pink Floyd, como Ninguém, diga-se, e adorava juntar-se à malta nos intervalos para cantar o Confortably Numb.
Ao longo do ano foi-se criando um ambiente naquela escola que fazia com que cada vez mais gente levasse as suas guitarras, e muita gente acabou por aprender a tocar nessa altura.
Ninguem tocava as músicas destas tertúlias, coisas como Simon & Garfunkle, Pink Floyd, Bob Dylan, a par com as suas metaladas preferidas, coisas de Iron Maiden, Mettallica, WASP ou Manowar.
Tudo isto levou a que um outro professor, também guitarrista, fundasse um clube de música e Ninguém aderiu, bem como o Tolas.
Quase no Final do Ano Lectivo, a Câmara Municipal resolveu organizar, num parque de estacionamento do mais recente e moderno Centro Comercial lá do sítio, um concerto só de bandas de garagem e o clube de música da escola foi convidado.
Ninguém achava que aquilo seriam favas contadas, bem como o Tolas. Fizeram o som à tarde, achando-se ambos já bons músicos (uma vez que já tocavam umas coisas), jantaram junto com as outras bandas e chegou a hora de subirem ao palco.
Ninguém entrou cheio de confiança, com o Tolas logo atrás, mas assim que olhou para o lado e viu uns milhares de olhos postos nele, ficou com vontade de fugir dali. O mesmo se passou com o Tolas!
Ambos os dois olharam um para o outro, encolheram os ombros e seguiram para bingo, que já não dava para sair dali sem parecerem um par de parvos.
O Tolas encarnou o espirito do Elvis e cantou o Blue Suede Shoes a preceito, e a seguir Ninguém cantou o Runaway, simplesmente porque mais ninguém conseguia fazer o falsete do “wa-wa-wa-wa-wander…” e o “Wa-wa-wa-wa-why she run away”. Claro que esta música, à altura, era obrigatória, visto que era banda sonora de “As cronicas do crime” série policial de grande sucesso.
E foi assim que Ninguém teve o seu primeiro grande concerto (curiosamente o primeiro concerto mesmo) junto com o Tolas!
III
Ninguem fazia parte do grupo de metaleiros da escola. O grupo era grande. Ninguém queria deixar crescer o cabelo, à semelhança dos seus ídolos, mas o resultado, mesmo quando o cabelo esticado já lhe dava pelo meio das costas era, invariavelmente, uma carapinha que faria inveja à do Michael Jackson antes de ter mudado de cor, e parecia saída directamente de um vídeo da Disco Sound dos anos 70. E o pior era que, ao tentar fazer da carapinha um cabelo liso e escorrido, invariavelmente parecia trazer na cabeça o telhado de um dos bungalows do hotel das Penhas da Saúde, na Serra da Estrela. O objectivo não era de todo atingido, nunca o tendo sido, diga-se, mas Ninguém era resiliente e ninguém lhe podia dizer nada acerca do assunto!
Num dos dias em que a tribo estava reunida, à volta da guitarra, e em que Ninguém tocava a ultima música que tinha aprendido (uma canção suave dos W.A.S.P. chamada “Animal - I fuck like a beast”), um gajo qualquer chega-se ao pé dele trazendo um chavalo e disse-lhe:
-Deixas aqui o chavalo dar uns toques?
Ninguém olhou para o chavalo. Era piqueno! Tinha uma trunfa loira escorrida e ar de puto, até porque era um puto.
-Tu tocas? – Ninguém perguntou.
O chavalo timidamente disse:
-Ya!
Ninguém passou-lhe a guitarra para as mãos.
-Atão toca ai…
E o chavalo tocou. Riffs de Mettalica e Maiden, solos e cenas…
…o chavalo tocava bem. Ninguém ficou impressionado.
-Como é que te chamas, puto?
-Especiaria…
-Fixe! Atão e vê lá se consegues tocar isto… - e Ninguém pegou na guitarra e tocou um faduncho:
“Se deixaste de ser minha,
Não deixei de ser quem era,
Ai, se deixaste de ser minha,
Não deixei de ser quem era
Por morrer um’ándorinha
Nãossacabáprimavera…”
Quando acabou devolveu a guitarra ao chavalo.
-Consegues tocar isto?
O chavalo ficou algo estupefacto, bem como o resto da tribo (mas não necessariamente de uma maneira positiva), tentou, mas não conseguiu.
-Vês pá, convém aprender a tocar mais cenas…
O chavalo assentiu, ainda algo admirado.
E foi assim que Ninguém conheceu o Especiaria!
IV
Ninguém era amigo do Cabelo de Piço, ou Piço, para abreviar. Tinham andado juntos na escola primária e voltaram a encontrar-se ali.
O Cabelo de Piço trabalhava na loja dos pais, que lhe davam uma mesada o que lhe permitia comprar álbuns, coisa que a maior parte do pessoal não conseguia, uma vez que custavam dois contos, em média, o que era dinheiro à brava naquela altura. Assim, o Cabelo de Piço comprava os álbuns e depois de os ouvir e gravar para cassete, de maneira a poder continuar a ouvir no seu walkman, emprestava.
Já mesmo no final da década de oitenta apareceu a ideia de se formar uma banda por aquelas paragens. O Cabelo de Piço nunca tinha tocado nada na vida, mas comprou uma Ibanez encarnada que era a inveja de toda a gente. Mais tarde comprou um amplificador da Marshall.
Foi precisamente quando o Cabelo de Piço foi levantar o amplificador que perguntou a Ninguém se queria vir também. E lá foram, numa carrinha Peugeot grande cumó caraças em direcção a Almada. Foi nessa viagem que Ninguém conheceu o Peles.
Já se conheciam de vista, claro, mas nunca tinham falado antes…
…e continuaram sem se falar. Se trocaram duas ou três palavras foi muito.
O Cabelo de Piço acabou por nunca tocar em banda nenhuma. A guitarra e o Amplificador acabaram por passar para um dos guitarristas da banda do Peles. No entanto, antes disso, o Cabelo de Piço chegou a emprestar a guitarra a Ninguém por uns dias, sendo que foi a primeira guitarra eléctrica com que tocou por mais do que alguns minutos.
Ninguém ficou viciado.
A primeira coisa que fez, logo que saiu da escola e arranjou emprego, foi comprar a sua primeira guitarra eléctrica, uma coisinha bem reles e feita de contraplacado.
Não tendo ficado muito satisfeito com ela, não tardou muito a comprar, a prestações, uma Flying V toda preta…
Não se pode dizer que tivesse muito bom gosto, à altura!
Ele e o Tolas acabaram por montar a sua primeira banda e recrutaram o Bubas para a bateria.
O Tolas, entretanto, compra uma Les Paul imaculadamente branca que ainda o acompanha até hoje, embora já não seja guitarrista.
Precisavam de um baixista e o Bubas disse que conhecia um. E um dia trouxe o Gadelhas, tipo alto e fininho, mas com boa pinta.
E foi assim que começou a carreira da mais desconhecida banda da margem sul…
(in "Treta de Cabos - Vidas de Rocker")
Published on May 27, 2016 06:17
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