Do 1º
Prólogo
Não há nada pior do que olhar para uma página em branco sem ter ideia de como começar a preenchê-la.
Estava ali há cerca de dois meses, com prazos a aproximarem-se a uma velocidade vertiginosa e com um bloqueio como nunca tinha tido. Isolara-me na casa de praia, sem telefones, sem televisão, sem internet, sem computadores, apenas com uma máquina de escrever já velha e o carro que me permitia ir semanalmente às compras. De resto, reclusão absoluta, com os dias passados, na maior parte das vezes no terraço das traseiras, entre o rugir das ondas do mar de inverno que impregnavam o ar de maresia e as folhas de papel em branco, que eu começava já a olhar com algum desespero.
Em dois meses não tinha escrito uma única linha de jeito, e a um mês do prazo de entrega do livro já mal tinha tempo para o escrever, quanto mais delinear uma história.
Tinha plena consciência de quão grave seria falhar, de quanto esperavam de mim. E era precisamente esse receio que parecia bloquear-me ainda mais.
Aquele dia não era diferente de outro qualquer desde que me tinha desterrado voluntariamente naquele lugar. Estava no terraço sob o Sol de Inverno e a leve brisa fresca que passava, mas sem os apreciar, de tão absorvido e obcecado que estava com a folha de papel em branco que tinha à minha frente.
Eis que alguma coisa me chama a atenção pelo canto do olho, um leve movimento que não estava lá antes. Desloquei o olhar nessa direcção e vejo-a surgir por entre as dunas, com passadas seguras na areia desta praia deserta. Parou onde as dunas se desfazem em areal de praia, tirou todas as roupas e desceu nua em direcção à água. Não parecia incomodada pela brisa fresca nem atemorizada pelo revolto das ondas.
Segui-a à distância com o olhar, não percebendo mais do que a silhueta que se dava ao mar e que se deleitava nele. Depois saiu, subiu pelo areal até onde tinha deixado as roupas e deitou-se ainda molhada na areia esperando que o sol a secasse.
Por fim levantou-se, sacudiu a areia, vestiu-se e partiu.
Fascinou-me aquele momento.
Ela estava distante o suficiente para que eu não a conseguisse ver com clareza, nem distinguir roupas ou até as suas formas nuas quando foi à água, mas perto o suficiente para que conseguisse seguir os seus movimentos.
E foi quando ela partiu que resolvi escrever estas linhas…
Lilith
Duas da manhã.
Após o pouco que escrevi sento-me agora aqui, sem saber para onde continuar.
As minhas únicas companhias são os cigarros que vou queimando lentamente, o copo de whisky de malte, o barulho das ondas do mar, das quais através da janela apenas consigo distinguir o reflexo da lua na espuma e esta insónia e mal-estar de alma.
Sinto-me desconfortável em mim, com vontade absoluta de escrever, vontade de deixar correr os meus dedos nas teclas desta máquina de escrever, mas não o faço porque pareço não ter nada para dizer a não ser ideias desconexas.
Talvez devesse experimentar fazer isso mesmo, deixar os dedos correr…
Piauehg erpiuhaeuhgap biepiauegi auehpisy gatyetoa eaegrouy-gapoy fpaiuergaip eurpiaegvpiae …
Não, não é boa ideia, embora espelhe o que sinto.
Mas quem lê precisa de palavras, de conexões, de entendimento e não deste exercício fútil que não leva a lado nenhum.
Estou só, sinto-me só, e é se calhar essa solidão que me leva a não fazer sentido a não ser para mim, mas mais importante, a não necessitar de fazer sentido a não ser para mim. Mais do que só, sinto-me deprimido, e creio ser esse o principal problema. Talvez a ideia do isolamento não fosse tão boa quanto parecia.
Batem à porta.
São duas e meia da manhã num local quase deserto onde ninguém vem sem um propósito e batem à minha porta. Fico sobressaltado e receoso. Vou à porta ver quem é. Não adiantaria tentar fingir que não está ninguém, quando as luzes estão acesas e são provavelmente as únicas luzes visíveis em quilómetros. Assalta-me o medo do que possa ser.
Espreito. Lá fora uma mulher, aparentemente só.
Abro a porta apenas ligeiramente.
– Sim? – Questiono.
– Olá, Miguel.
A voz dela chegou até mim e a única comparação que consigo encontrar para o que senti na altura é a de estar a beber um mel tão doce, mas ao mesmo tempo tão suave que não sacia. Imediatamente senti que queria continuar a ouvi-la, não queria deixar de a ouvir, como se a simples voz desse significado a algo em mim. Senti-me tocado, quase comovido sem conseguir perceber o porquê.
– Desculpe, conhecemo-nos?
– Não da forma como perguntas, mas de uma certa maneira, sim.
Continuei estático, apenas com a porta entreaberta.
– Não me convidas para entrar?
A minha hesitação era como o meu silêncio. Notória. Ela soltou uma pequena gargalhada.
– Miguel, podes estar descansado. Não estou aqui para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de alguma forma, e estou completamente sozinha. Então? Deixas-me entrar?
Franqueei-lhe a porta, sem dizer uma única palavra. Ela entrou, tirou a capa que a cobria e pendurou-a no cabide que ali estava, sem sequer olhar para ele, como se fosse um gesto absolutamente familiar de quem conhecesse bem a casa.
Era a mulher que tinha visto na praia esta tarde, sem dúvida. Vê-la agora, aqui, de perto, deixou-me perturbado.
Era alta, e não há outro adjectivo para a descrever que não seja perfeita. Os cabelos pretos escorriam em cascata com uma leve ondulação até ao meio das costas e contrastavam com uns olhos do azul mais intenso que já tinha visto. Tão intenso que parecia faiscar. A tez morena realçava-os ainda mais. As roupas leves que estavam agora por cima do seu corpo não o apagavam nem realçavam, mas também não era necessário. O seu corpo tinha as proporções exactas, um equilíbrio e harmonia como nunca tinha visto e o seu rosto fazia lembrar as estátuas de Vénus e Afrodite. Uma beleza intemporal, clássica, suave mas marcante, com a força que essa mesma suavidade tinha. Toda ela parecia irradiar algo que escapava à minha compreensão.
Caminhou até à sala com uma tal elegância que não parecia caminhar, antes flutuar, como se o seu corpo não tivesse peso. Sentou se no sofá e ficou a acompanhar-me com o olhar enquanto eu a seguia e até me sentar à sua frente.
Continuei mudo, sem saber o que dizer, esmagado pela sua presença.
– Sabes, Miguel, estou aqui para te ajudar.
Fez uma pausa, deixando-me absorver as suas palavras e como que deixando que todas as interrogações viessem à minha mente para as responder em seguida, antes que tivesse hipóteses de a formular.
– Claro que entendes que, como em qualquer relação humana, nada é isento de interesse, por mais altruísta que este seja. Tenho as minhas razões, que perceberás mais tarde. Não obstante, e apesar delas, vou-te ajudar, vou-te dar a história acerca da qual vais escrever e que te deixa tão desesperado. Aliás, só o simples facto de me teres visto esta tarde na praia já fez com que começasses a escrever qualquer coisa, não foi?
Assenti com a cabeça.
– Bem, mas por esta altura deves estar curioso acerca de quem eu sou, não é?
Assenti novamente.
– Pois bem, Miguel, chamo-me Lilith.
À procura de Lilith
Três da manhã.
– O nome só por si não te diz nada?
Pensei um pouco.
– Lilith? Não, não me diz nada.
– Então talvez seja melhor eu mostrar-te quem sou.
Olhou para as minhas estantes repletas de livros. Levantou-se com suavidade, dirigiu-se a elas, e pegou num livro. Quase tive a ilusão de que o livro tinha saltado da estante para ir ao seu encontro.
– Já leste este livro?
Reparei que tinha a Bíblia Sagrada na mão.
– Todo não.
Ela sorriu.
– Quem eu sou está explicado nos versículos 26 e 27 do capítulo 1 do livro do Génesis.
Passou-me o livro para a mão. Procurei o que ela me tinha indica-do. Encontrei com facilidade e li:
26 «E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
27 E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.»
Já tinha lido aquela passagem outras vezes e não achei nada de estranho.
– E então? – Perguntei.
– Bem, se continuares a ler, vais descobrir a segunda criação a partir do versículo 7 do capítulo 2.
– Segunda criação?
– Pensa. Deus criou tudo até ao sexto dia. Só depois recriou?
– Parece-me apenas uma descrição mais pormenorizada do sexto dia…
– Mas não é.
Li novamente o capítulo 1 desde o começo e o capítulo 2, mas continuei com a mesma sensação. Ela percebeu isso.
– Já ouviste falar na Cabala? – Perguntou-me.
– Já. É um conjunto de textos místicos judeus.
– Sim. É isso mesmo. E no Zohar?
– Não, nunca ouvi falar. Quer dizer, o nome não me é estranho, mas não sei do que se trata.
– O Zohar é um comentário cabalístico à Bíblia hebraica. É lá que me encontras.
Fiquei a olhar para ela, provavelmente com um ar estranho. Ela riu-se.
– Poupo-te o trabalho – disse. – Sou Lilith, primeira mulher de Adão, criada do barro primordial juntamente com ele.
Foi a vez de eu me rir.
– Para alguém com a tua idade estás muito bem conservada.
– Estou, não estou?
– Agora a sério…
– Eu falo sempre a sério.
Parei a olhar para ela e fiquei a pensar na sensação que me provocava.
– Não te posso obrigar a acreditar em mim, mas vou-te contar uma história. E a escolha de acreditares ou não é tua.
Limitei-me a acenar. Afinal de contas, o que tinha eu a perder? Ela começou.
«A primeira recordação que eu tenho é de acordar. Não foi um acordar normal, como quando acordas de manhã de um sono pesado, foi antes um tomar de consciência repentino. Olhei para o lado e ali estava eu, embora não fosse eu. É difícil explicar-te por palavras porque não pode haver uma descrição precisa do que senti. Estavam ali mais duas entidades. Uma era eu também, embora separado de mim. O outro não.
Aquele que não era eu falou:
– Eu sou Yahvé, o criador. Tu és Adão –, falando para a outra parte de mim que me era externa – e tu és Lilith. – Disse para mim directamente. – São homem e mulher e ambos são um só, criados à minha imagem e semelhança. Este lugar onde estão chama-se Éden, e tudo o que aqui está é vosso. Nada tem nome, pelo que o nome de cada uma destas coisas será dado por vós.
Sabes, à altura ainda nem havia perguntas. Não conseguia formular nada. Tudo à minha volta era novo, belo e maravilhoso. Levantei-me, bem como Adão, e saímos em exploração, numa verdadeira aventura de conhecimento. Cheirávamos, provávamos, tocávamos e olhávamos para tudo. Deitávamo-nos e fechávamos os olhos só para ouvir os sons. Tudo era bom.
Com o tempo, fomos descobrindo mais e mais e quanto mais coisas descobríamos mais queríamos descobrir. Yahvé vinha frequentemente ao nosso encontro e ensinava-nos, tirava-nos dúvidas, respondia às nossas questões com a paciência com que um pai ensina um filho. E ele era na verdade o nosso pai.
Até que houve um momento maravilhoso. Adão e eu descobrimos que, embora já não estivéssemos unidos, havia ainda uma maneira de sermos um só, ainda que por breves momentos. Descobrimos o sexo, e tudo o que de bom advinha dele.
Mas depressa me apercebi de que ambos sentíamos as coisas de maneira diferente, díspar. Percebi que o que eu sentia era muito mais forte em termos físicos do que ele. E descobri que ele se acomodava. E descobrimos a rotina. E ao fim de algum tempo, depois de longas conversas com ele, decidi ir falar com Yahvé. Perguntei-lhe o porquê de tudo aquilo e ele explicou-me que ambos tínhamos sido feitos de maneira a ver o mundo de forma diferente para que nos complementássemos. Não podíamos ser iguais na nossa natureza. Compreendi. Mas o tempo foi-se arrastando e nada mudava e a minha insatisfação cresceu. Houve uma altura em que o meu coração ansiava por mais e mais não havia ali. E então, apesar do medo que sentia, e contra os conselhos de Yahvé, decidi partir.»
– História interessante. A única coisa que não explica é como é que, passado este tempo todo, estás aqui à minha frente.
– Se pensares um bocadinho, é fácil descobrires.
– Como assim?
– Só depois disto é que Yahvé criou Eva, porque Adão ficou sozinho. E só depois é que se deu o pecado original e a expulsão do paraíso. Ora eu e Adão somos de natureza divina, criados à imagem e semelhança de Yahvé. Adão perdeu parte dessa natureza ao ser expulso. Eu não.
Fiquei a olhar para ela enquanto pensava nas implicações do que me acabara de dizer.
– Quer isso dizer que és imortal?
– Sim, quer. Quer também dizer que nada do que eu faça é pecado, uma vez que não tenho em mim o pecado original. Sou o único ser humano que existe que é a verdadeira natureza de Yahvé, logo não posso ser bem nem mal. Sou tudo.
Deixei-me estar, não acreditando no que ouvia.
Ela levantou-se e dirigiu-se para a porta.
– Já tens muito em que pensar, por ora – disse. – Voltarei em breve. Procura-me e vais-me encontrar. Quando estiveres preparado voltarei.
Agarrou a capa e saiu, fechando a porta atrás de si, e deixando-me com uma sensação de vazio tão grande que só me apeteceu chorar.
Eram quatro da manhã.
Não há nada pior do que olhar para uma página em branco sem ter ideia de como começar a preenchê-la.
Estava ali há cerca de dois meses, com prazos a aproximarem-se a uma velocidade vertiginosa e com um bloqueio como nunca tinha tido. Isolara-me na casa de praia, sem telefones, sem televisão, sem internet, sem computadores, apenas com uma máquina de escrever já velha e o carro que me permitia ir semanalmente às compras. De resto, reclusão absoluta, com os dias passados, na maior parte das vezes no terraço das traseiras, entre o rugir das ondas do mar de inverno que impregnavam o ar de maresia e as folhas de papel em branco, que eu começava já a olhar com algum desespero.
Em dois meses não tinha escrito uma única linha de jeito, e a um mês do prazo de entrega do livro já mal tinha tempo para o escrever, quanto mais delinear uma história.
Tinha plena consciência de quão grave seria falhar, de quanto esperavam de mim. E era precisamente esse receio que parecia bloquear-me ainda mais.
Aquele dia não era diferente de outro qualquer desde que me tinha desterrado voluntariamente naquele lugar. Estava no terraço sob o Sol de Inverno e a leve brisa fresca que passava, mas sem os apreciar, de tão absorvido e obcecado que estava com a folha de papel em branco que tinha à minha frente.
Eis que alguma coisa me chama a atenção pelo canto do olho, um leve movimento que não estava lá antes. Desloquei o olhar nessa direcção e vejo-a surgir por entre as dunas, com passadas seguras na areia desta praia deserta. Parou onde as dunas se desfazem em areal de praia, tirou todas as roupas e desceu nua em direcção à água. Não parecia incomodada pela brisa fresca nem atemorizada pelo revolto das ondas.
Segui-a à distância com o olhar, não percebendo mais do que a silhueta que se dava ao mar e que se deleitava nele. Depois saiu, subiu pelo areal até onde tinha deixado as roupas e deitou-se ainda molhada na areia esperando que o sol a secasse.
Por fim levantou-se, sacudiu a areia, vestiu-se e partiu.
Fascinou-me aquele momento.
Ela estava distante o suficiente para que eu não a conseguisse ver com clareza, nem distinguir roupas ou até as suas formas nuas quando foi à água, mas perto o suficiente para que conseguisse seguir os seus movimentos.
E foi quando ela partiu que resolvi escrever estas linhas…
Lilith
Duas da manhã.
Após o pouco que escrevi sento-me agora aqui, sem saber para onde continuar.
As minhas únicas companhias são os cigarros que vou queimando lentamente, o copo de whisky de malte, o barulho das ondas do mar, das quais através da janela apenas consigo distinguir o reflexo da lua na espuma e esta insónia e mal-estar de alma.
Sinto-me desconfortável em mim, com vontade absoluta de escrever, vontade de deixar correr os meus dedos nas teclas desta máquina de escrever, mas não o faço porque pareço não ter nada para dizer a não ser ideias desconexas.
Talvez devesse experimentar fazer isso mesmo, deixar os dedos correr…
Piauehg erpiuhaeuhgap biepiauegi auehpisy gatyetoa eaegrouy-gapoy fpaiuergaip eurpiaegvpiae …
Não, não é boa ideia, embora espelhe o que sinto.
Mas quem lê precisa de palavras, de conexões, de entendimento e não deste exercício fútil que não leva a lado nenhum.
Estou só, sinto-me só, e é se calhar essa solidão que me leva a não fazer sentido a não ser para mim, mas mais importante, a não necessitar de fazer sentido a não ser para mim. Mais do que só, sinto-me deprimido, e creio ser esse o principal problema. Talvez a ideia do isolamento não fosse tão boa quanto parecia.
Batem à porta.
São duas e meia da manhã num local quase deserto onde ninguém vem sem um propósito e batem à minha porta. Fico sobressaltado e receoso. Vou à porta ver quem é. Não adiantaria tentar fingir que não está ninguém, quando as luzes estão acesas e são provavelmente as únicas luzes visíveis em quilómetros. Assalta-me o medo do que possa ser.
Espreito. Lá fora uma mulher, aparentemente só.
Abro a porta apenas ligeiramente.
– Sim? – Questiono.
– Olá, Miguel.
A voz dela chegou até mim e a única comparação que consigo encontrar para o que senti na altura é a de estar a beber um mel tão doce, mas ao mesmo tempo tão suave que não sacia. Imediatamente senti que queria continuar a ouvi-la, não queria deixar de a ouvir, como se a simples voz desse significado a algo em mim. Senti-me tocado, quase comovido sem conseguir perceber o porquê.
– Desculpe, conhecemo-nos?
– Não da forma como perguntas, mas de uma certa maneira, sim.
Continuei estático, apenas com a porta entreaberta.
– Não me convidas para entrar?
A minha hesitação era como o meu silêncio. Notória. Ela soltou uma pequena gargalhada.
– Miguel, podes estar descansado. Não estou aqui para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de alguma forma, e estou completamente sozinha. Então? Deixas-me entrar?
Franqueei-lhe a porta, sem dizer uma única palavra. Ela entrou, tirou a capa que a cobria e pendurou-a no cabide que ali estava, sem sequer olhar para ele, como se fosse um gesto absolutamente familiar de quem conhecesse bem a casa.
Era a mulher que tinha visto na praia esta tarde, sem dúvida. Vê-la agora, aqui, de perto, deixou-me perturbado.
Era alta, e não há outro adjectivo para a descrever que não seja perfeita. Os cabelos pretos escorriam em cascata com uma leve ondulação até ao meio das costas e contrastavam com uns olhos do azul mais intenso que já tinha visto. Tão intenso que parecia faiscar. A tez morena realçava-os ainda mais. As roupas leves que estavam agora por cima do seu corpo não o apagavam nem realçavam, mas também não era necessário. O seu corpo tinha as proporções exactas, um equilíbrio e harmonia como nunca tinha visto e o seu rosto fazia lembrar as estátuas de Vénus e Afrodite. Uma beleza intemporal, clássica, suave mas marcante, com a força que essa mesma suavidade tinha. Toda ela parecia irradiar algo que escapava à minha compreensão.
Caminhou até à sala com uma tal elegância que não parecia caminhar, antes flutuar, como se o seu corpo não tivesse peso. Sentou se no sofá e ficou a acompanhar-me com o olhar enquanto eu a seguia e até me sentar à sua frente.
Continuei mudo, sem saber o que dizer, esmagado pela sua presença.
– Sabes, Miguel, estou aqui para te ajudar.
Fez uma pausa, deixando-me absorver as suas palavras e como que deixando que todas as interrogações viessem à minha mente para as responder em seguida, antes que tivesse hipóteses de a formular.
– Claro que entendes que, como em qualquer relação humana, nada é isento de interesse, por mais altruísta que este seja. Tenho as minhas razões, que perceberás mais tarde. Não obstante, e apesar delas, vou-te ajudar, vou-te dar a história acerca da qual vais escrever e que te deixa tão desesperado. Aliás, só o simples facto de me teres visto esta tarde na praia já fez com que começasses a escrever qualquer coisa, não foi?
Assenti com a cabeça.
– Bem, mas por esta altura deves estar curioso acerca de quem eu sou, não é?
Assenti novamente.
– Pois bem, Miguel, chamo-me Lilith.
À procura de Lilith
Três da manhã.
– O nome só por si não te diz nada?
Pensei um pouco.
– Lilith? Não, não me diz nada.
– Então talvez seja melhor eu mostrar-te quem sou.
Olhou para as minhas estantes repletas de livros. Levantou-se com suavidade, dirigiu-se a elas, e pegou num livro. Quase tive a ilusão de que o livro tinha saltado da estante para ir ao seu encontro.
– Já leste este livro?
Reparei que tinha a Bíblia Sagrada na mão.
– Todo não.
Ela sorriu.
– Quem eu sou está explicado nos versículos 26 e 27 do capítulo 1 do livro do Génesis.
Passou-me o livro para a mão. Procurei o que ela me tinha indica-do. Encontrei com facilidade e li:
26 «E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
27 E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.»
Já tinha lido aquela passagem outras vezes e não achei nada de estranho.
– E então? – Perguntei.
– Bem, se continuares a ler, vais descobrir a segunda criação a partir do versículo 7 do capítulo 2.
– Segunda criação?
– Pensa. Deus criou tudo até ao sexto dia. Só depois recriou?
– Parece-me apenas uma descrição mais pormenorizada do sexto dia…
– Mas não é.
Li novamente o capítulo 1 desde o começo e o capítulo 2, mas continuei com a mesma sensação. Ela percebeu isso.
– Já ouviste falar na Cabala? – Perguntou-me.
– Já. É um conjunto de textos místicos judeus.
– Sim. É isso mesmo. E no Zohar?
– Não, nunca ouvi falar. Quer dizer, o nome não me é estranho, mas não sei do que se trata.
– O Zohar é um comentário cabalístico à Bíblia hebraica. É lá que me encontras.
Fiquei a olhar para ela, provavelmente com um ar estranho. Ela riu-se.
– Poupo-te o trabalho – disse. – Sou Lilith, primeira mulher de Adão, criada do barro primordial juntamente com ele.
Foi a vez de eu me rir.
– Para alguém com a tua idade estás muito bem conservada.
– Estou, não estou?
– Agora a sério…
– Eu falo sempre a sério.
Parei a olhar para ela e fiquei a pensar na sensação que me provocava.
– Não te posso obrigar a acreditar em mim, mas vou-te contar uma história. E a escolha de acreditares ou não é tua.
Limitei-me a acenar. Afinal de contas, o que tinha eu a perder? Ela começou.
«A primeira recordação que eu tenho é de acordar. Não foi um acordar normal, como quando acordas de manhã de um sono pesado, foi antes um tomar de consciência repentino. Olhei para o lado e ali estava eu, embora não fosse eu. É difícil explicar-te por palavras porque não pode haver uma descrição precisa do que senti. Estavam ali mais duas entidades. Uma era eu também, embora separado de mim. O outro não.
Aquele que não era eu falou:
– Eu sou Yahvé, o criador. Tu és Adão –, falando para a outra parte de mim que me era externa – e tu és Lilith. – Disse para mim directamente. – São homem e mulher e ambos são um só, criados à minha imagem e semelhança. Este lugar onde estão chama-se Éden, e tudo o que aqui está é vosso. Nada tem nome, pelo que o nome de cada uma destas coisas será dado por vós.
Sabes, à altura ainda nem havia perguntas. Não conseguia formular nada. Tudo à minha volta era novo, belo e maravilhoso. Levantei-me, bem como Adão, e saímos em exploração, numa verdadeira aventura de conhecimento. Cheirávamos, provávamos, tocávamos e olhávamos para tudo. Deitávamo-nos e fechávamos os olhos só para ouvir os sons. Tudo era bom.
Com o tempo, fomos descobrindo mais e mais e quanto mais coisas descobríamos mais queríamos descobrir. Yahvé vinha frequentemente ao nosso encontro e ensinava-nos, tirava-nos dúvidas, respondia às nossas questões com a paciência com que um pai ensina um filho. E ele era na verdade o nosso pai.
Até que houve um momento maravilhoso. Adão e eu descobrimos que, embora já não estivéssemos unidos, havia ainda uma maneira de sermos um só, ainda que por breves momentos. Descobrimos o sexo, e tudo o que de bom advinha dele.
Mas depressa me apercebi de que ambos sentíamos as coisas de maneira diferente, díspar. Percebi que o que eu sentia era muito mais forte em termos físicos do que ele. E descobri que ele se acomodava. E descobrimos a rotina. E ao fim de algum tempo, depois de longas conversas com ele, decidi ir falar com Yahvé. Perguntei-lhe o porquê de tudo aquilo e ele explicou-me que ambos tínhamos sido feitos de maneira a ver o mundo de forma diferente para que nos complementássemos. Não podíamos ser iguais na nossa natureza. Compreendi. Mas o tempo foi-se arrastando e nada mudava e a minha insatisfação cresceu. Houve uma altura em que o meu coração ansiava por mais e mais não havia ali. E então, apesar do medo que sentia, e contra os conselhos de Yahvé, decidi partir.»
– História interessante. A única coisa que não explica é como é que, passado este tempo todo, estás aqui à minha frente.
– Se pensares um bocadinho, é fácil descobrires.
– Como assim?
– Só depois disto é que Yahvé criou Eva, porque Adão ficou sozinho. E só depois é que se deu o pecado original e a expulsão do paraíso. Ora eu e Adão somos de natureza divina, criados à imagem e semelhança de Yahvé. Adão perdeu parte dessa natureza ao ser expulso. Eu não.
Fiquei a olhar para ela enquanto pensava nas implicações do que me acabara de dizer.
– Quer isso dizer que és imortal?
– Sim, quer. Quer também dizer que nada do que eu faça é pecado, uma vez que não tenho em mim o pecado original. Sou o único ser humano que existe que é a verdadeira natureza de Yahvé, logo não posso ser bem nem mal. Sou tudo.
Deixei-me estar, não acreditando no que ouvia.
Ela levantou-se e dirigiu-se para a porta.
– Já tens muito em que pensar, por ora – disse. – Voltarei em breve. Procura-me e vais-me encontrar. Quando estiveres preparado voltarei.
Agarrou a capa e saiu, fechando a porta atrás de si, e deixando-me com uma sensação de vazio tão grande que só me apeteceu chorar.
Eram quatro da manhã.
Published on May 23, 2016 08:15
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