Do 1º

Prólogo

Não há nada pior do que olhar para uma página em branco sem ter ideia de como começar a preenchê-la.
Estava ali há cerca de dois meses, com prazos a aproximarem-se a uma velocidade vertiginosa e com um bloqueio como nunca tinha tido. Isolara-me na casa de praia, sem telefones, sem televisão, sem internet, sem computadores, apenas com uma máquina de escrever já velha e o carro que me permitia ir semanalmente às compras. De resto, reclusão absoluta, com os dias passados, na maior parte das vezes no terraço das traseiras, entre o rugir das ondas do mar de inverno que impregnavam o ar de maresia e as folhas de papel em branco, que eu começava já a olhar com algum desespero.
Em dois meses não tinha escrito uma única linha de jeito, e a um mês do prazo de entrega do livro já mal tinha tempo para o escrever, quanto mais delinear uma história.
Tinha plena consciência de quão grave seria falhar, de quanto esperavam de mim. E era precisamente esse receio que parecia bloquear-me ainda mais.
Aquele dia não era diferente de outro qualquer desde que me tinha desterrado voluntariamente naquele lugar. Estava no terraço sob o Sol de Inverno e a leve brisa fresca que passava, mas sem os apreciar, de tão absorvido e obcecado que estava com a folha de papel em branco que tinha à minha frente.
Eis que alguma coisa me chama a atenção pelo canto do olho, um leve movimento que não estava lá antes. Desloquei o olhar nessa direcção e vejo-a surgir por entre as dunas, com passadas seguras na areia desta praia deserta. Parou onde as dunas se desfazem em areal de praia, tirou todas as roupas e desceu nua em direcção à água. Não parecia incomodada pela brisa fresca nem atemorizada pelo revolto das ondas.
Segui-a à distância com o olhar, não percebendo mais do que a silhueta que se dava ao mar e que se deleitava nele. Depois saiu, subiu pelo areal até onde tinha deixado as roupas e deitou-se ainda molhada na areia esperando que o sol a secasse.
Por fim levantou-se, sacudiu a areia, vestiu-se e partiu.
Fascinou-me aquele momento.
Ela estava distante o suficiente para que eu não a conseguisse ver com clareza, nem distinguir roupas ou até as suas formas nuas quando foi à água, mas perto o suficiente para que conseguisse seguir os seus movimentos.
E foi quando ela partiu que resolvi escrever estas linhas…

Lilith

Duas da manhã.
Após o pouco que escrevi sento-me agora aqui, sem saber para onde continuar.
As minhas únicas companhias são os cigarros que vou queimando lentamente, o copo de whisky de malte, o barulho das ondas do mar, das quais através da janela apenas consigo distinguir o reflexo da lua na espuma e esta insónia e mal-estar de alma.
Sinto-me desconfortável em mim, com vontade absoluta de escrever, vontade de deixar correr os meus dedos nas teclas desta máquina de escrever, mas não o faço porque pareço não ter nada para dizer a não ser ideias desconexas.
Talvez devesse experimentar fazer isso mesmo, deixar os dedos correr…
Piauehg erpiuhaeuhgap biepiauegi auehpisy gatyetoa eaegrouy-gapoy fpaiuergaip eurpiaegvpiae …
Não, não é boa ideia, embora espelhe o que sinto.
Mas quem lê precisa de palavras, de conexões, de entendimento e não deste exercício fútil que não leva a lado nenhum.
Estou só, sinto-me só, e é se calhar essa solidão que me leva a não fazer sentido a não ser para mim, mas mais importante, a não necessitar de fazer sentido a não ser para mim. Mais do que só, sinto-me deprimido, e creio ser esse o principal problema. Talvez a ideia do isolamento não fosse tão boa quanto parecia.
Batem à porta.
São duas e meia da manhã num local quase deserto onde ninguém vem sem um propósito e batem à minha porta. Fico sobressaltado e receoso. Vou à porta ver quem é. Não adiantaria tentar fingir que não está ninguém, quando as luzes estão acesas e são provavelmente as únicas luzes visíveis em quilómetros. Assalta-me o medo do que possa ser.
Espreito. Lá fora uma mulher, aparentemente só.
Abro a porta apenas ligeiramente.
– Sim? – Questiono.
– Olá, Miguel.
A voz dela chegou até mim e a única comparação que consigo encontrar para o que senti na altura é a de estar a beber um mel tão doce, mas ao mesmo tempo tão suave que não sacia. Imediatamente senti que queria continuar a ouvi-la, não queria deixar de a ouvir, como se a simples voz desse significado a algo em mim. Senti-me tocado, quase comovido sem conseguir perceber o porquê.
– Desculpe, conhecemo-nos?
– Não da forma como perguntas, mas de uma certa maneira, sim.
Continuei estático, apenas com a porta entreaberta.
– Não me convidas para entrar?
A minha hesitação era como o meu silêncio. Notória. Ela soltou uma pequena gargalhada.
– Miguel, podes estar descansado. Não estou aqui para te assaltar, para te roubar órgãos enquanto dormes ou para te fazer mal de alguma forma, e estou completamente sozinha. Então? Deixas-me entrar?
Franqueei-lhe a porta, sem dizer uma única palavra. Ela entrou, tirou a capa que a cobria e pendurou-a no cabide que ali estava, sem sequer olhar para ele, como se fosse um gesto absolutamente familiar de quem conhecesse bem a casa.
Era a mulher que tinha visto na praia esta tarde, sem dúvida. Vê-la agora, aqui, de perto, deixou-me perturbado.
Era alta, e não há outro adjectivo para a descrever que não seja perfeita. Os cabelos pretos escorriam em cascata com uma leve ondulação até ao meio das costas e contrastavam com uns olhos do azul mais intenso que já tinha visto. Tão intenso que parecia faiscar. A tez morena realçava-os ainda mais. As roupas leves que estavam agora por cima do seu corpo não o apagavam nem realçavam, mas também não era necessário. O seu corpo tinha as proporções exactas, um equilíbrio e harmonia como nunca tinha visto e o seu rosto fazia lembrar as estátuas de Vénus e Afrodite. Uma beleza intemporal, clássica, suave mas marcante, com a força que essa mesma suavidade tinha. Toda ela parecia irradiar algo que escapava à minha compreensão.
Caminhou até à sala com uma tal elegância que não parecia caminhar, antes flutuar, como se o seu corpo não tivesse peso. Sentou se no sofá e ficou a acompanhar-me com o olhar enquanto eu a seguia e até me sentar à sua frente.
Continuei mudo, sem saber o que dizer, esmagado pela sua presença.
– Sabes, Miguel, estou aqui para te ajudar.
Fez uma pausa, deixando-me absorver as suas palavras e como que deixando que todas as interrogações viessem à minha mente para as responder em seguida, antes que tivesse hipóteses de a formular.
– Claro que entendes que, como em qualquer relação humana, nada é isento de interesse, por mais altruísta que este seja. Tenho as minhas razões, que perceberás mais tarde. Não obstante, e apesar delas, vou-te ajudar, vou-te dar a história acerca da qual vais escrever e que te deixa tão desesperado. Aliás, só o simples facto de me teres visto esta tarde na praia já fez com que começasses a escrever qualquer coisa, não foi?
Assenti com a cabeça.
– Bem, mas por esta altura deves estar curioso acerca de quem eu sou, não é?
Assenti novamente.
– Pois bem, Miguel, chamo-me Lilith.


À procura de Lilith

Três da manhã.
– O nome só por si não te diz nada?
Pensei um pouco.
– Lilith? Não, não me diz nada.
– Então talvez seja melhor eu mostrar-te quem sou.
Olhou para as minhas estantes repletas de livros. Levantou-se com suavidade, dirigiu-se a elas, e pegou num livro. Quase tive a ilusão de que o livro tinha saltado da estante para ir ao seu encontro.
– Já leste este livro?
Reparei que tinha a Bíblia Sagrada na mão.
– Todo não.
Ela sorriu.
– Quem eu sou está explicado nos versículos 26 e 27 do capítulo 1 do livro do Génesis.
Passou-me o livro para a mão. Procurei o que ela me tinha indica-do. Encontrei com facilidade e li:

26 «E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
27 E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.»

Já tinha lido aquela passagem outras vezes e não achei nada de estranho.
– E então? – Perguntei.
– Bem, se continuares a ler, vais descobrir a segunda criação a partir do versículo 7 do capítulo 2.
– Segunda criação?
– Pensa. Deus criou tudo até ao sexto dia. Só depois recriou?
– Parece-me apenas uma descrição mais pormenorizada do sexto dia…
– Mas não é.
Li novamente o capítulo 1 desde o começo e o capítulo 2, mas continuei com a mesma sensação. Ela percebeu isso.
– Já ouviste falar na Cabala? – Perguntou-me.
– Já. É um conjunto de textos místicos judeus.
– Sim. É isso mesmo. E no Zohar?
– Não, nunca ouvi falar. Quer dizer, o nome não me é estranho, mas não sei do que se trata.
– O Zohar é um comentário cabalístico à Bíblia hebraica. É lá que me encontras.
Fiquei a olhar para ela, provavelmente com um ar estranho. Ela riu-se.
– Poupo-te o trabalho – disse. – Sou Lilith, primeira mulher de Adão, criada do barro primordial juntamente com ele.
Foi a vez de eu me rir.
– Para alguém com a tua idade estás muito bem conservada.
– Estou, não estou?
– Agora a sério…
– Eu falo sempre a sério.
Parei a olhar para ela e fiquei a pensar na sensação que me provocava.
– Não te posso obrigar a acreditar em mim, mas vou-te contar uma história. E a escolha de acreditares ou não é tua.
Limitei-me a acenar. Afinal de contas, o que tinha eu a perder? Ela começou.

«A primeira recordação que eu tenho é de acordar. Não foi um acordar normal, como quando acordas de manhã de um sono pesado, foi antes um tomar de consciência repentino. Olhei para o lado e ali estava eu, embora não fosse eu. É difícil explicar-te por palavras porque não pode haver uma descrição precisa do que senti. Estavam ali mais duas entidades. Uma era eu também, embora separado de mim. O outro não.
Aquele que não era eu falou:
– Eu sou Yahvé, o criador. Tu és Adão –, falando para a outra parte de mim que me era externa – e tu és Lilith. – Disse para mim directamente. – São homem e mulher e ambos são um só, criados à minha imagem e semelhança. Este lugar onde estão chama-se Éden, e tudo o que aqui está é vosso. Nada tem nome, pelo que o nome de cada uma destas coisas será dado por vós.
Sabes, à altura ainda nem havia perguntas. Não conseguia formular nada. Tudo à minha volta era novo, belo e maravilhoso. Levantei-me, bem como Adão, e saímos em exploração, numa verdadeira aventura de conhecimento. Cheirávamos, provávamos, tocávamos e olhávamos para tudo. Deitávamo-nos e fechávamos os olhos só para ouvir os sons. Tudo era bom.
Com o tempo, fomos descobrindo mais e mais e quanto mais coisas descobríamos mais queríamos descobrir. Yahvé vinha frequentemente ao nosso encontro e ensinava-nos, tirava-nos dúvidas, respondia às nossas questões com a paciência com que um pai ensina um filho. E ele era na verdade o nosso pai.
Até que houve um momento maravilhoso. Adão e eu descobrimos que, embora já não estivéssemos unidos, havia ainda uma maneira de sermos um só, ainda que por breves momentos. Descobrimos o sexo, e tudo o que de bom advinha dele.
Mas depressa me apercebi de que ambos sentíamos as coisas de maneira diferente, díspar. Percebi que o que eu sentia era muito mais forte em termos físicos do que ele. E descobri que ele se acomodava. E descobrimos a rotina. E ao fim de algum tempo, depois de longas conversas com ele, decidi ir falar com Yahvé. Perguntei-lhe o porquê de tudo aquilo e ele explicou-me que ambos tínhamos sido feitos de maneira a ver o mundo de forma diferente para que nos complementássemos. Não podíamos ser iguais na nossa natureza. Compreendi. Mas o tempo foi-se arrastando e nada mudava e a minha insatisfação cresceu. Houve uma altura em que o meu coração ansiava por mais e mais não havia ali. E então, apesar do medo que sentia, e contra os conselhos de Yahvé, decidi partir.»

– História interessante. A única coisa que não explica é como é que, passado este tempo todo, estás aqui à minha frente.
– Se pensares um bocadinho, é fácil descobrires.
– Como assim?
– Só depois disto é que Yahvé criou Eva, porque Adão ficou sozinho. E só depois é que se deu o pecado original e a expulsão do paraíso. Ora eu e Adão somos de natureza divina, criados à imagem e semelhança de Yahvé. Adão perdeu parte dessa natureza ao ser expulso. Eu não.
Fiquei a olhar para ela enquanto pensava nas implicações do que me acabara de dizer.
– Quer isso dizer que és imortal?
– Sim, quer. Quer também dizer que nada do que eu faça é pecado, uma vez que não tenho em mim o pecado original. Sou o único ser humano que existe que é a verdadeira natureza de Yahvé, logo não posso ser bem nem mal. Sou tudo.
Deixei-me estar, não acreditando no que ouvia.
Ela levantou-se e dirigiu-se para a porta.
– Já tens muito em que pensar, por ora – disse. – Voltarei em breve. Procura-me e vais-me encontrar. Quando estiveres preparado voltarei.

Agarrou a capa e saiu, fechando a porta atrás de si, e deixando-me com uma sensação de vazio tão grande que só me apeteceu chorar.
Eram quatro da manhã.

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Published on May 23, 2016 08:15
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