Joel Neto's Blog, page 29

January 13, 2015

Comprar

IMG_6962.JPGAlguma coisa mudou neste povo com a chegada do primeiro hipermercado. Pensando bem, a mudança começou ainda nos anos 90, com as lojas dos 300. Depois veio o Modelo e nada foi como dantes.


Chamávamos-lhe “hiper”. Se havia menos mundividência, “himpra”.


Lembro-me de o Zé Manel vir da Vila Nova, para o seu turno diário, e largar a mãe e a tia no hiper, onde se deixavam as duas a conferir prateleiras até o rapaz voltar a sair do trabalho. Lembro-me de a Conceição, nossa vizinha, falar do himpra como um mundo encantado onde um dia haveria de ir.


Hoje ainda me falam de mundos encantados, os meus vizinhos. Dou um salto a Lisboa e há sempre quem me pergunte se vou à Decathlon ou à Primark. É improvável: nunca fui à Primark e, quanto à Decathlon, pois o hiper já tem uma SportZone.


E uma Worten. E uma Modalfa, que agora creio que se chama Mó. E um café todo moderno, de que não sei o nome, mas onde já fui à procura de empadas.


As empadas da Terceira são adocicadas. Uma catástrofe.


De resto, temos hoje vários supermercados Guarita, uma Rádio Popular, uma megaloja de electrodomésticos na Praia (Expert? Express?), um DeBorla, lojas do chinês casa sim/casa não. Não obstante, o Modelo – agora Continente – continua a crescer. Ainda há semanas concluiu nova ampliação.


Às vezes vou lá. Não encontro queijo parmesão em mais lado nenhum. Nem enchidos em condições. Mas, em regra, vou ao Guarita da Terra do Pão, onde as senhoras me conhecem pelo nome, mandam beijos à Catarina e me vendem produtos locais que sabem àquilo que se chamam.


Então, tomo um café, compro o essencial e às vezes até corto o cabelo. Nem por isso deixo de fazer-me a pergunta essencial: como é que nós vivíamos antes disto tudo?


Diário de Notícias, Janeiro 2015

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Published on January 13, 2015 00:46

January 12, 2015

De dentro

12.1.15.jpegPara a semana vêm cá a casa o Luciano e a Lídia. Já andamos nervosos. A Lídia é a melhor cozinheira a Oeste do Meridiano de Greenwich. Como a Terra dá a volta, é a melhor a Leste também. Que haveremos de servir-lhe?


Da última vez que os visitámos, ofereceu-nos uma Sopa Azeda, a que em alguns lugares se dá o nome de Caldo Temperado. Agarrou no meu prato, pôs-lhe duas fatias de pão no fundo e depois deitou-lhe várias conchas de um espesso caldo de feijão. Cheirava a canela e a noz moscada, e em volta dispersavam-se diferentes travessas com as carnes e os enchidos, as abóboras e as batatas doces cozidas naquele mesmo caldo.


Levei a colher à boca e estaquei. Lá fora, uma bruma descia pela encosta, impedindo-nos de divisar o mar – era como se todo o lugar dos Regatos se resumisse agora àquela casa, ao plátano em frente, à cozinha onde se concentravam aqueles cheiros.


Os antigos chamavam-lhe Comida de Dentro, e também nisso parecia haver uma rectidão. Provava-se outra vez e logo desfilavam novos sabores vindos do próprio interior do tempo.


Comi tudo quanto me apeteceu, depois comi tudo o que pude e a seguir comi mais um pouco. Puxei de um cigarro, fumei-o devagar – e, quando acabei, pus-me a mordiscar a carne de porco.


Então, senti como se começassem a sentar-se à minha volta os meus antepassados, os meus avós e os avós dos meus avós, os velhos da Terra Chã e da Terceira, os açorianos daqui até ao povoamento e daí até ao início dos tempos, quando na manhã do Sexto Dia o Senhor olhou a sua obra e decidiu que estava, afinal, incompleta.


Não, desta feita não vai dar para nos socorrermos do velho Esparguete com Salva. Ou será que podemos usar por uma última vez o truque de reforçar o álcool?


Diário de Notícias, Janeiro 2015

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Published on January 12, 2015 00:53

January 9, 2015

Cronos

9.1.15.jpegEste ano voltei a encomendar tarde a lenha. Chegou-me húmida, e todos os dias tenho de descer à garagem e erguer nova pilha em frente a um desumidificador.


No ano passado prometi a mim mesmo que, desta vez, trataria das coisas com tempo, o mais tardar em Julho. Quando chegámos a Julho, já fazia um frio dos diabos e o calendário marcava Novembro.


Acabarei por acertar. Sou tão escravo do tempo aqui como o fui na cidade, mas o campo ensina-nos as suas sabedorias. Se o campo tem uma sabedoria, é a do tempo.


No campo não é preciso calendário. Os meus vizinhos não se lembram de que é Natal porque as ruas estão iluminadas ou que chegaram os Santos porque lhes cheira a sardinha. É o próprio tempo que fala com eles. Havendo nevoeiros, estamos provavelmente em Junho. Agitando-se o mar em levadia, então é Agosto de certeza.


Um homem do campo sabe quando desabrocham as flores e em que altura se semeia o feijão verde porque as flores e o feijão verde têm sempre o mesmo tempo. Não o inquieta sequer o calendário biodinâmico: chama-lhe Lua.


Quanto ao mais, tem uma consulta no médico e sai de casa com tempo. Antes de escolher o que leva vestido, olha pela janela e confere a meteorologia.


Ou o tempo.


Algures este ano, notei que o meu primeiro gesto matinal passara a ser olhar pela janela. Ainda uso despertador, e para as mais variadas tarefas do dia-a-dia recorro aos lembretes do telefone, a papelinhos amarelos, a mnemónicas tão ridículas como pôr a carteira dentro de um sapato.


Mas já foi um avanço.


Para o ano, não me esqueço: em Julho encomendo a lenha. Mesmo em Junho, talvez não me esqueça dos Santos. Talvez algures no meu cérebro ecoe uma marcha sanjoanina.


De qualquer modo, já pus lembretes.


Diário de Notícias, Dezembro de 2014

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Published on January 09, 2015 01:19

January 8, 2015

Tempestade

9.1.15.jpegÉ claro que, lá para Junho, a terra se encherá de rebrilhâncias, as araucárias projectando contrastes na luz límpida da tarde. É claro que, antes ainda de os maios se erguerem nas varandas e os toiros descerem ao Arrabalde, anunciando a nova época, o povo encherá o Basílio Simões e a Feira do Gado, em busca de sementes e plantios.


É claro que o Inverno é longo e que, quando os amigos de Lisboa exalarem as primeiras feromonas, fotografando-se a almoçar na Praia da Morena e a brincar com o cão na Mata de Alvalade, a natureza ainda nos derramará por cima dois meses suplementares de chuva ininterrupta.


E, contudo, ouço o vento que investe agora contra a porta do jardim, como se ele próprio desejasse refugiar-se cá dentro, e acho que não há tempo mais romântico no ano.


A chuva matraqueia ao de leve o telhado. A salamandra difunde pela casa o cheiro doce da acácia queimada. O Melville estica o pescoço, para receber festas, e volta a enroscar-se em si próprio. Ouve-se jazz, muito baixinho. Trabalho o dia inteiro, sem nada que me distraia, e chego a desejar que o fim-de-semana venha longe.


Às quintas à tarde, se posso, faço um desvio ao campo de golfe. O fairway está vazio, um vento desolado assobiando nas criptomérias, e há uma espécie de conhecimento. Outras vezes vou apenas ali abaixo, a São Mateus, ver o mar que se atira contra a escarpa. Ou atravesso o cerrado e vou apanhar tangerinas, por entre o nevoeiro.


Já não há araçás, mas há tangerinas. E torresmos de cabinho. E uma espécie de conhecimento.


A intensa solidão das tempestades. Os poetas nem sempre souberam explicá-la, mas nunca ignoraram a sua existência. É mesmo possível que nasça aí, o ofício da poesia. Talvez também só comece aí a vida.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on January 08, 2015 00:54

January 7, 2015

Os Aloés

8.1.15.jpegPasseamo-nos ao redor da ilha, como os nossos pais passeavam os seus passeios-dos-tristes. As camélias vão declinando, mas as magnólias já despontam nos quintais mais ricos. Penso no seu hábito de dar primeiro a flor e só depois a folha e pergunto-me a quantos mais de nós a metáfora se aplicaria, humilhando-nos.


Nas Fontinhas, um senhor pintou a casa de uma espécie de azul pilé. Inspirado ou invejoso, o vizinho olhou para a sua e aplicou-lhe rosa choque. Lado a lado, parecem dois cupcakes. Até o Melville, deitado no banco de trás, ergue as orelhas.


Vou pela inspiração, escolha que talvez diga mais sobre mim do que sobre eles.


Prosseguimos para Oeste, atentos agora. Há prédios verde-alface e conjugações de violeta e barras vermelhas, escadarias de telenovela e alumínios coloridos, torres de controlo, vidraças e até uma casa com ameias, em São Bartolomeu, que seria um castelinho se não fosse uma amálgama de mau gosto, materiais de construção e heroísmo romântico.


No campo constroem-se e pintam-se casas assim – digo a mim próprio – como se chama aos filhos Naísa ou Maiara. Ser diferente torna-se um valor em si mesmo porque, no fundo, certas pessoas precisam de evadir-se, de inventar novas possibilidades, de transcender a geografia. Um pouco mais de educação e sairiam daqui versos bem bonitos.


Sigo caminho. Os aloés acompanham-nos ao longo da costa, muito cor-de-laranja, como se até o ano em agonia devesse celebrar por uma última e milagrosa vez as flores.


Tivemos um Outono abençoado, seco e reverberante, pelo que devemos conformar-nos com a chuva que agora cai.


Aquilo que um homem consegue dizer a si próprio continua a ser o mais apaziguador de tudo.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on January 07, 2015 00:47

January 6, 2015

Bailhinhos

7.1.15.jpegA partir daqui são os bailhinhos. Pelo Carnaval, cerca de 60 grupos de teatro amador percorrerão a ilha fazendo rir o povo. Hão-de perfazer muitos deles para cima de vinte actuações, até trinta, e pelos mais de 50 palcos da ilha, incluindo Sociedades Filarmónicas e Casas do Povo, centros sociais e casas de repouso, desfilarão perto de 1500 pessoas, dançando e rindo de acordo com guiões que se renovarão a cada espectáculo.


São números impressionantes, se tivermos em conta que não vivem aqui mais de 55 mil almas. Chamam-lhe “a maior tradição de teatro amador do mundo”, de acordo com a habitual tendência solipsista das ilhas, e o público é quase todo caseiro. Apesar disso, será difícil conseguir um lugar sentado em qualquer um desses auditórios, e em muitos deles revelar-se-á mesmo impossível entrar.


Cá fora, estará a chover. Lá dentro, ergueremos o queixo à procura de oxigénio. Estaremos juntos. Contra os terramotos e as tempestades. Contra a depressão económica e a morte.


E toda essa gente começa a ensaiar aqui: dançarinos, actores, músicos. As costureiras talham os primeiros trajos. Os curadores estabelecem os primeiros contactos. As famílias fazem os primeiros planos para a mesa, a extensa oferta de comes e bebes para que todos contribuem, e de cuja qualidade depende também o desejo de cada grupo de visitar determinado lugar.


As namoradas dos artistas começam a combinar como irão desempenhar o papel de acompanhar. Serão groupies.


Há dois anos, ocorreu-me organizar, na Internet, uma votação sobre as melhores danças do ano. Houve protestos, mesmo dos vencedores. No Carnaval da Terceira, não há vencedores nem vencidos. Não há sequer bons e maus. Estamos juntos.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on January 06, 2015 00:42

January 5, 2015

Consoada

5.1.15.jpegÀs vezes olho pela da janela da cozinha e detenho-me naquele canto entre a tipoana e a churrasqueira – aí onde instalei o abrigo de faia-da-terra. Houve um tempo em que esteve ali a fundação de um celeiro norueguês. Houve um tempo, antes desse, em que esteve ali um celeiro norueguês.


Chegou-nos num dia de Primavera, um monte de tábuas e barrotes empacotados em cima de um camião, e foi uma festa. O meu pai meteu mãos à obra com os alicerces. O meu avô contou tábuas, tirou medidas e pôs-se a distribuir pregos por diferentes caixinhas.


Passámos lá o nosso primeiro Natal depois do terramoto que, a 1 de Janeiro de 1980, às vinte para as quatro da tarde, nos deixou a todos desalojados: ricos, pobres e remediados. Tinha três divisões, uma cozinha e dois quartos, e não sei se era mesmo norueguês. Houve solidariedade de muitos sítios.


Eu tinha seis anos e, quando ia para a cama, ficava a ouvir a minha mãe chinelar na cozinha. Enquanto a minha mãe chinelasse na cozinha, tudo ia correr bem.


Depois, no Natal, não havia dinheiro, e por azar nós éramos a única família sem emigrantes na América. Não me lembro do que comemos. A minha irmã recebeu um bambi de plástico amarelo. Eu recebi um pandeiro com uns rebuçados lá dentro. Chorei durante horas, porque era mau e o Pai Natal tinha descoberto.


A certa altura, o meu pai juntou a sua bota à árvore e sacou de lá de dentro uma acha, para nos fazer rir. Não creio que a minha memória tenha guardado muitos gestos evidentemente mais desesperados e dignos do que esse. Mais nobres.


Foi uma grande infância.


Sobreviver a um terramoto formou o nosso carácter, e eu não sei se alguma vez lhe estaremos gratos o suficiente. Faz para a semana 35 anos.


Diário de Notícias, Dezembro de 2014

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Published on January 05, 2015 00:42

January 2, 2015

Donetes

2.1.15.jpegSento-me no aeroporto e logo começam a desfilar à minha frente equipas. Eu estou de partida para a Consoada, eles partem ou regressam de competições desportivas, festivais de filarmónicas, férias colectivas.


Vestem-se todos da mesma forma, com dizeres nas camisolas. Não querem distinguir-se uns dos outros: querem pertencer. Fazem parte de um clube de uma banda, de um grupo de idosos. Fazem parte de um conjunto e essa é agora a sua identidade.


Há uma sabedoria nisso.


Se eu tivesse de escrever uma crónica sobre eles, porém, não seria sobre eles: seria sobre os seus organizadores. Os homens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres que dedicam anos de vida àquelas equipas, àquelas filarmónicas e àqueles grupos de idosos.


E à organização das festas do Espírito Santo. E à gestão da Cáritas e da Santa Casa. E à realização de festivais de folclore. E à angariação de público para certames hípicos. E à construção de tascas de donetes para recolher fundos para restaurar a igreja da Ribeirinha.


Eu podia escrever uma crónica inteira sobre as velhinhas que todos os anos percorrem as festas da ilha, a fritar donetes às tantas da manhã, para concluir o restauro da igreja da Ribeirinha. E depois podia escrever outra sobre as donetes.


O facto é que o voluntariado, aqui, não chega a ser um contributo: é um modo de vida. Se querem mais uma diferença entre o campo e a cidade, portanto, ei-la. Não no voluntariado, mas no modo como se olha para ele. Ou como eu olho e olhava.


Na cidade, parecia-me um meio de promoção pessoal. Uma autolegitimação. Aqui concentro-me nos resultados – e são bons. Talvez seja essa, na verdade, a maior aprendizagem: um homem fica menos cínico. E mais inteligente, creio.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on January 02, 2015 01:28

January 1, 2015

Jesus

1.1.14.jpegEm Dezembro andamos ao Menino-Mija. Menos angustiada com as matérias da estética, a província guarda destas rudezas antigas, até que elas se tornam jocosas, depois apenas tristonhas e finalmente encantadoras. Nesta altura, bate-se à porta dos amigos e entoa-se:


– O Menino mija?


O Menino em causa é com maiúscula. O Deus-Menino, nenhum outro senão ele: Jesus. E, sendo assim, também não vale a pena esperarmos até dia 25 para começarmos a celebrar os seus fluidos. Já aí anda há dois mil anos – o Natal é sobretudo um protocolo.


Em cima das mesas há licores, aguardentes, uísques. As senhoras estenderam as melhores toalhas e algumas enfeitaram o centro com flores da época – camélias, alguma magnólia precoce. Nas casas mais ricas, os comes e bebes saltam da mesa para os aparadores, sobem cómodas e armários, espalham-se pelas divisões.


Também há comes, sim: frutos secos, doces variados, bolos de Natal com pelo menos duas semanas de maturação – até filhoses, às vezes, embora aqui as filhoses sejam tradição carnavalesca. Nem sempre acontece a comida ser utilizada para esticar a corda à metáfora original. E, de qualquer modo, talvez também tal rudeza venha a percorrer o trajecto da colega, tornando-se ao menos um pouco mais tolerável.


Tudo é possível em ambiente de festa. Silêncio é que não – meia hora de silêncio seria um inferno insuportável. Mas podemos respirar fundo: a pior parte do ano já passou. E não tarda estão aí os bailhinhos do Entrudo.


Dizem os inimigos da Terceira, no intuito de depreciá-la, que os Açores não têm nove ilhas, mas oito ilhas e um parque de diversões. Nenhum de nós se ofende muito: antes um parque de diversões do que a sala de espera de um psiquiatra.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on January 01, 2015 08:54

December 31, 2014

Mar

31.12.14.jpegNo ano passado, fui à praia até Dezembro. Diariamente, ao meio-dia em ponto, desligava o computador, enfiava o cão no banco de trás e descia até à Silveira. À uma e meia estava de volta. Tinha nadado trinta minutos, passeado o bicho outro tanto e fumado um cigarro em frente ao mar.


Foi a pior fase da minha relação com ele.


Às vezes ponho-me a reler os textos destes dois anos e meio: as crónicas, os diários, a ficção. Só de vez em quando aparece o mar. Revejo as fotografias: o mar está lá, talvez até nas melhores, mas só se mostra de oito em oito.


Recapitulo os passeios, considero as rotinas, conto os piqueniques. O mar manifesta-se, mas não sempre.


Desde o início que o mar é uma presença periférica na vida que aqui temos. O que seria extraordinário se não o tivesse sido também nos primeiros dezoito anos que vivi aqui, até à faculdade.


Não é preciso grande esforço de memória: lembrar é a minha profissão. Nós íamos à praia, e aliás até lhe chamávamos “ir para o mar”. E íamos à pesca, e se podíamos andávamos de barco, e alguns de nós até navegavam entre ilhas. Mas de vez em quando. Em determinados momentos.


Às vezes perguntam-me porque é que as cidades, vilas e freguesias dos Açores se mantêm de costas para ele. Ou porque é que, nas nove ilhas, não há mais do que duas ou três razoáveis esplanadas em frente ao mar. E, em todo o caso, os meus próprios relatos aí estão: porque é que o mar aparece tão pouco neles?


Porque, para os açorianos, o mar é aparição. Pode ser aquilo que une ou aquilo que separa. O que não pode é deixar de ser epifania. Milagre.


O mistério, esse, está na terra. No centro da ilha, mais até do que nas suas entranhas efervescentes.


O mistério está na solidão.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

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Published on December 31, 2014 03:52