Consoada
Às vezes olho pela da janela da cozinha e detenho-me naquele canto entre a tipoana e a churrasqueira – aí onde instalei o abrigo de faia-da-terra. Houve um tempo em que esteve ali a fundação de um celeiro norueguês. Houve um tempo, antes desse, em que esteve ali um celeiro norueguês.
Chegou-nos num dia de Primavera, um monte de tábuas e barrotes empacotados em cima de um camião, e foi uma festa. O meu pai meteu mãos à obra com os alicerces. O meu avô contou tábuas, tirou medidas e pôs-se a distribuir pregos por diferentes caixinhas.
Passámos lá o nosso primeiro Natal depois do terramoto que, a 1 de Janeiro de 1980, às vinte para as quatro da tarde, nos deixou a todos desalojados: ricos, pobres e remediados. Tinha três divisões, uma cozinha e dois quartos, e não sei se era mesmo norueguês. Houve solidariedade de muitos sítios.
Eu tinha seis anos e, quando ia para a cama, ficava a ouvir a minha mãe chinelar na cozinha. Enquanto a minha mãe chinelasse na cozinha, tudo ia correr bem.
Depois, no Natal, não havia dinheiro, e por azar nós éramos a única família sem emigrantes na América. Não me lembro do que comemos. A minha irmã recebeu um bambi de plástico amarelo. Eu recebi um pandeiro com uns rebuçados lá dentro. Chorei durante horas, porque era mau e o Pai Natal tinha descoberto.
A certa altura, o meu pai juntou a sua bota à árvore e sacou de lá de dentro uma acha, para nos fazer rir. Não creio que a minha memória tenha guardado muitos gestos evidentemente mais desesperados e dignos do que esse. Mais nobres.
Foi uma grande infância.
Sobreviver a um terramoto formou o nosso carácter, e eu não sei se alguma vez lhe estaremos gratos o suficiente. Faz para a semana 35 anos.
Diário de Notícias, Dezembro de 2014


