Joel Neto's Blog, page 31

December 16, 2014

Natal

16.12.14.jpegNa terça-feira desejaram-me feliz Natal pela primeira vez este ano. Fiquei tão contente que voltei da venda e liguei o Roberts numa rádio americana, só com clássicos natalícios.


Pus-me a aparar a barba e a olhar pela janela.


Lá dentro, a Catarina zangava-se brandamente com o Melville. Soou um apito algures – um padeiro, talvez.


Uma rajada investiu contra os abrigos e deixou-se ficar.


Apeteceu-me antecipar a árvore de Natal. Acendi, em todo o caso, vários candeeiros, distribuindo pontos de luz pela casa.


Sentei-me a trabalhar, o Roberts soando ainda ao fundo, baixinho.


O Roberts é o meu rádio wi-fi, que comprei para ouvir a TSF porque não há TSF nos Açores. Devo-lhe tanto.


“Começa a parecer-se bastante com o Natal”, cantava Bing Crosby. Paradoxalmente, estava um bonito dia lá fora. Cheguei a ter pena.


Está bem, não era Bing Crosby: era Michael Bublé. Mas que importa? É preciso ser-se muito infeliz para não se gostar no Natal.


Felizmente, nunca cheguei a não gostar do Natal – nem nos dias piores.


Eu tive dias piores? Nem sempre me lembro.


Tornei a percorrer a capa dos jornais. Almeida Santos visitara Sócrates na prisão. Sara Sampaio ia desfilar com asas de anjo. Netanyahu anunciava a demissão de dois ministros.


Houve um momento em que me perguntei que nomes eram aqueles. Quem eram aquelas pessoas.


Desci à garagem e trouxe novo cesto de lenha. Pareceu-me na altura de começar a acender a salamandra durante o dia também.


Desliguei o Google Chrome e trabalhei febrilmente durante longas horas. Bing Crosby cantou várias vezes.


A certa altura choveu lá fora. Já não me fazia diferença.


Qualquer dia começam os presentes e as mensagens. Darão cabo disto. Até lá, é Natal.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 16, 2014 01:42

December 15, 2014

Ecologismo

15.12.14.jpegPelos 40, a Catarina ofereceu-me umas Green Boots. Isto no último Inverno. Comprou-as ao produtor, por 80 euros, e foi um bom negócio: ainda há dias as vi à venda, n’A Vida Portuguesa, por 170.


Na verdade, dão-me cabo de um polegar. Não consigo usá-las mais de duas horas. Mas tenho pena, porque são lindas – grosseiras, cheias de estilo, sólidas como uma caixa forte, ou talvez um pequeno castelo –, e desde o primeiro dia sou perseguido pela ideia de que merecia umas botas tão espectaculares como elas sem ter de me submeter a amputação.


Encontrei-as há umas semanas, aqui na ilha, numa loja para lavradores. Os atacadores não têm tanta pinta e não há aquele forro interior às cores. Mas o corte é semelhante, está lá a costura a toda a volta, numa linha com ar de que podia pescar um atum, e a sola é igualmente feita de pneu reciclado.


Não se chamam Green e custaram-me 26 euros. Com uns atacadores e umas palmilhas, 28. Ainda não as tirei. Já comecei a recuperar a circulação no dedão.


Fiquei a pensar se não devia ter dado o nome Green-Qualquer-Coisa a esta coluna também. Green Column.


Infelizmente, não é esse o meu tipo de ecologismo.


Todo o dia desfilam pela minha janela animais. Melros e labandeiras, coelhos e pombos torcazes, vacas mugindo a propósito de nada, uma cabra roedora, gatos e cães evadidos dos quintais. Sobem e descem muros, arrastam-se cerrado fora, ficam ali às voltas, lutando com as moscas.


Depois há as árvores. As flores. O vento.


O meu tipo de ecologismo é sentir que estou rodeado dessa vida. Basta-me isso: assistir ao espectáculo dela, como assistem os meus vizinhos. As botas podem chamar-se o que quiserem. Prefiro-as baratas: o meu ecologismo é liberdade.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 15, 2014 01:13

December 12, 2014

José Guilherme

12.12.14.jpegPersiste algo de maravilhoso nisto de ligar para os serviços de electricidade e, à pergunta sobre quem é o titular do contrato, responder: “José Guilherme da Silveira Couto”. Passaram duas décadas sobre a sua morte e, porém, esta casa permanece dele.


Todos os anos, durante muito tempo, voltei aqui. Dormia na cama em que ele dormira, comia nos pratos em que ele comera, abria e fechava as portas e as janelas que ele abrira e fechara.


O meu avô. O meu primeiro amigo. A primeira pessoa que vi morrer.


Agora estou no pequeno jardim que fui plantando onde outrora ele tinha o quintal. Acabo de voltar de viagem e de perceber que a conta da luz chegou, venceu e foi executada na minha ausência. Repito o nome dele para o telefone: “José Guilherme da Silveira Couto”.


O próprio nome é bonito, antigo, pleno de ressonâncias.


Gostava que pudesse ver esta horta que plantei nos fundos. Gostava de mostrar-lhe a araucária, já quase da altura da casa, e de obter a sua aprovação para os locais que escolhi para a tipoana e o jacarandá, que tão incerto me deixam ainda.


Gostava de pedir-lhe desculpa por ter plantado um plátano. Suja tanto, um plátano – não teria gostado.


Ou teria?


Na verdade, a sua memória vai-se diluindo. Há cada vez mais coisas que a minha mãe e a minha irmã e o meu pai me dizem sobre ele de que eu não me lembro. Talvez seja verdade o contrário também. E, no entanto, tenho estes papéis dos serviços de electricidade, como aliás os dos serviços da água, desactualizados como um epitáfio.


José Guilherme da Silveira Couto.


Dediquei-lhe um livro. Fi-lo personagem de outro.


Lutar contra a erosão da memória: eis aquilo a que, no fim, se resume um regresso. E, no entanto, esquecemos na mesma. Devagar, como nas maiores tragédias.


Diário de Notícias, Dezembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 12, 2014 10:07

December 11, 2014

Talvez enxofre

11.12.14.jpegVisitamos os últimos amigos antes do regresso, e os comentários são os mesmos do primeiro dia: estamos com um ar magnífico, sereno, saudável. Eu passei o ano a trabalhar quase ininterruptamente durante catorze horas por dia, às vezes quinze ou dezasseis. A Catarina anda desfeita da coluna. Aparentemente, mantemos um ar tranquilíssimo.


Não é apenas cortesia. As pessoas também vêem em nós aquilo que querem ver. Acham que estamos com óptimo aspecto porque querem acreditar nisso. Porque precisam de acreditar que existe, apesar de tudo, uma saída airosa para isto – para este sufoco, para esta chuva, para esta crise. Nós gostamos de poder servi-los.


A verdade é que a velha casa dos Dois Caminhos não tardou a tornar-se um frenesi de livros, traduções, crónicas de jornal. Há refeições para fazer, lixo para mudar, burocracias. A horta deste Verão rebentou de monda. A mais simples ida ao médico tornou-se um terramoto na rotina. Até para que o Melville pudesse manter a dose ideal de exercício diário foi preciso, a dada altura, comprar uma passadeira eléctrica.


Os vizinhos acham que somos maluquinhos. Provavelmente, somos mesmo.


Mas este domingo, quando pousarmos nas Lajes e percorrermos a Planície Central em direcção a Angra, por entre as beladonas, e largarmos as malas no quarto que durante anos pertenceu a Maria do Carmo e José Guilherme e ouvirmos o apito da carrinha do peixe, para cima e para baixo, e aspirarmos o ar da Terra Chã, aquela mistura inocente de leite morno, erva húmida e bosta de vaca, também nós (sim, também nós) nos sentiremos impregnados dele.


Não estaremos a mentir-nos a nós próprios.


Diário de Notícias, Novembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 11, 2014 01:21

December 10, 2014

Lá Fora

IMG_3254.JPGPublico no meu Instagram a foto de um crepúsculo lisboeta e as reacções não se fazem esperar: “Estás cheio de saudades de viver aí”, “Se calhar chegou a hora de voltares” – coisas assim. Fez-me lembrar aquilo que sempre nos perguntavam, estudantes em Lisboa, da primeira vez que nos viam de regresso para férias: “Quando é que te vais embora?”


Mas é mais do que isso.


A tensão do ilhéu com o espaço onde vive é o mais importante traço da sua identidade. Não sei se existirá também na restante província, mas talvez ninguém o pudesse explicar tão bem como António Variações. O ilhéu passa o ano a arfar pela partida. Ausenta-se três dias e já não se aguenta com saudades de casa. Volta à terra e lá fora é que era – um dia faz as malas de vez.


Os açorianos propriamente ditos dão a Lisboa o nome de Lá Fora. A escolha de palavras tem de ter um significado.


Lembro-me de quando cheguei, no Verão de 2012, muito comovido. Creio que nem os amigos mais próximos compreenderam bem. Os restantes torceram o nariz. Eu estava doente. Tinha falido. Vinha fugido à polícia. Tinham-me prometido uma carreira política, um cargo numa empresa, um latifúndio cheio de subsídios. O meu casamento ruíra.


Para muitos ilhéus, só faz sentido viver numa ilha em duas circunstâncias: ou se é de lá, ou se vai para lá em fuga de alguma coisa. “Mas eu sou de cá”, ocorria-me protestar, quando ainda achava que era de um debate que se tratava. “Sim, mas já és mais de lá”, respondia alguém – e a mágoa que havia nessas palavras eram todos os anos em que não se fizera as malas.


No primeiro ano, gozei a festa. No segundo, aprendi a liberdade. No terceiro já não há regressos: há vida.


Diário de Notícias, Novembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 10, 2014 01:04

December 9, 2014

Prisioneiro

IMG_2970.JPGCai sobre Lisboa uma chuvinha benigna, daquelas de abrir o guarda-chuva e fechá-lo ao fim do quarteirão. O efeito é o mesmo de um dilúvio. O trânsito engarrafa. Há apitos. Mulheres bem vestidas erguem-se às esquinas, em busca de um táxi. Rapazes a quem os fatos assentam mal, com gravatas fluorescentes à treinador de futebol, correm entre beirais, segurando as lapelas.


Uma amiga de há mais de duas décadas pede para adiarmos o nosso almoço para o dia seguinte.


Surpreendo-me, como se me tivesse esquecido. Para nós, açorianos, isto não chega a ser uma chuvinha: é quase bom tempo. Mais de cinco dias retidos na ilha das Flores, sem comunicações, combustíveis ou farinha – só começamos a enervar-nos a partir daí.


Sorrio e acendo um cigarro.


Na Tezenis do Rossio, um rapaz e uma rapariga dançam na montra, vestidos de pijama. Vão acenando um pequeno cartaz. Têm vergonha um do outro e têm vergonha dos clientes, que por sua vez sentem vergonha por eles também.


Nem uma só pessoa pára a ver a montra. Tresanda a desemprego, a desespero e a humilhação. E, ademais, pinga.


Sinto saudades do meu cão. Do meu nevoeiro.


Pergunto-me se o plátano já perdeu as últimas folhas, para que possamos começar a moldá-lo. Telefono ao Chico a ver se acabou de arrumar a garagem.


Lembro-me da lenha que tenho de encomendar para o Inverno.


Fui picado pelo mal do apego à terra. Como aqueles a quem torcia o nariz, parto excitado e, ao fim de uma semana, estou repleto de melancolia. Acontece até com continentais que em algum momento se mudaram para a ilha, e eu ainda tenho sobre eles o peso da grande deusa Memória.


A cidade trata-me bem, mas ainda vem longe a hora do regresso. É despachar as reuniões e abreviar.


Diário de Notícias, Novembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 09, 2014 01:22

December 8, 2014

Lenhador

IMG_7096.JPGEsta semana já me chamaram lumbersexual umas três ou quatro vezes. Aparentemente, nem pondo-se a milhas um tipo escapa às categorizações da grande cidade: basta vir uns dias de visita, que logo tem de ser enfiado na gavetinha certa.


Desta feita, não é mau. Chegámos àquele momento em que os tipos gordos, desleixados e de mochila às costas podem ser considerados totalmente desejáveis. Suponho que, no meu caso, o facto de chegar do campo ajude, mesmo não vestindo uma camisa aos quadrados há uns dez anos. Mas também nós tínhamos de ter o nosso dia.


De resto, não difere em nada dos restantes, este esforço de tipificação. Podia ser um método para entender o mundo. Não é.


Vivemos um tempo de tribalismo como nenhum outro no percurso desta civilização (eu ainda digo “civilização”). As guerras andam longe, Deus desapareceu das contas e estamos todos cada vez mais igualmente pobres. Como haveríamos de organizar-nos?


Se não há contrastes, há matizes. A verdade é que precisamos de uma camisola. Bem vistas as coisas, nem tudo é mau nisso. Para as equipas de futebol, por exemplo, é óptimo.


Precisamos de pertencer a algo mais amplo do que nós. Precisamos de pertencer a algo que nos transcenda e a que, em todo o caso, possamos continuar a pertencer depois da morte.


Precisamos de vencer a morte e há cada vez menos ferramentas.


Talvez só a obsessão da fama caracterize melhor este século. A fama dispensa as tribos. A fama é a nossa própria tribo – coisa mais fixe não haverá.


Felizmente, as modas demoram sempre a chegar às ilhas, pelo que posso aproveitar esta semana na capital e a próxima na Terceira. Não me parece que uma coisa assim dure mais de quinze dias.


Tal pena ser casado.


Diário de Notícias, Novembro de 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 08, 2014 01:33

December 5, 2014

Cem euros

IMG_3045.JPGCurtos dias na capital, para afazeres e afectos. Na primeira noite vamos ao cinema – ao cinema a sério –, talvez a única coisa que não deixou de fazer-nos falta. Na tarde seguinte abreviamos o trabalho e dividimo-nos para namorar a cidade.


De qualquer modo, andamos a precisar de roupas. Cada um pode gastar, vá lá, cem euros.


Cirando o resto da jornada pela Baixa, pelo Chiado, pelo Bairro Alto. Persuado-me a abrir camisolas. Ergo no ar calças de ganga, tentando imaginá-las vestidas.


Os números são cada vez mais pequenos, ou então sou eu que estou gordo. Procuro entre as camisas – parece-me tudo demasiado colorido, ou então aos quadrados.


Não me imagino dentro de coisas a que chamem slim fit.


Sinto-me tentado por um boné de feltro, mas já tenho um azul-escuro, de bombazina.


Em todas as lojas há rapazes a discutir a roupa com as empregadas. Usam palavras com “cerzido” e “espinhado”. Saem frustrados com a escassez de soluções e continuam a debater o problema, uns com os outros, rua abaixo.


Sento-me na velha Barbearia Campos. Mando cortar, a ver se me ocorre um plano. Nada.


As livrarias são elas próprias um estardalhaço de cor e de bulício.


Às seis em ponto, o homem-estátua da Rua Augusta desfaz a sua pose de Bonaparte e põe-se a arrumar o palanque. Instala-lhe umas rodinhas e empurra-o pelas ruas dos Douradores e dos Fanqueiros, o pombo artificial ainda empoleirado no seu ombro esquerdo, muito obediente.


Perco-o de vista e depois deixo de ouvir também o carrinho, chiando.


Cai a noite.


Entro numa dessas lojas do costume e mando vir dois maços de cuecas. “Boxers”, embelezo. Chego a ficar decepcionado quando a empregada me pede menos de trinta euros.


Diário de Notícias, Novembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 05, 2014 02:17

December 4, 2014

Casca de noz

IMG_5094.JPGA ideia de que no campo se trabalha menos do que na cidade é a maior falácia desta dicotomia. O que no campo temos menos são as solicitações, que por outro lado é aquilo de que muitos citadinos arrependidos mais gostam. Julgar que no campo se vai ter menos trabalho e os mesmos compromissozinhos, quando no fundo acontece o contrário, é o que leva mais românticos a fazer as malas de volta.


Uma casa de campo nunca está definitivamente pintada, nem reparada, nem sequer limpa. Mesmo que contratemos ajuda: temos de estar presentes, trocar impressões, fazer psicologia, distribuir cerveja. Depois há o jardim, crescendo tresloucado. Há o cão, que nos vem pôr brinquedos no colo, em busca de folia. Há a campainha, tocando como uma louca.


Carteiros, padeiros, peixeiros. Fiéis a fazer peditórios para as festas do Espírito Santo e miúdos a vender rifas para a festa da escola e funcionários da câmara a avisar que vamos ficar duas horas sem água– a campainha do meu portão parece ser a mulher mais amada da Terra Chã. Ainda por cima é um homem: um sino que se puxa com uma corda, como nas igrejas à hora certa.


Depois chega ao fim-de-semana e há motosserras, corta-relvas, berbequins. Quase todos os sábados há ao menos um berbequim.


O campo também pode ser uma chinfrineira. E tem invejas. E tem mesquinhezes, e castigações, e ignorâncias atávicas, e convenções tontas. O que quer que haja na cidade também há no campo, porque se pode fugir de tudo menos da condição humana. Até no alto de uma montanha, sozinhos, ou mesmo no fundo do mar – ela continuará dentro de nós.


O campo tem a espécie toda sem deixar de ter a natureza, exultante e redentora. O que poderia haver de mais maravilhoso?


Diário de Notícias, Novembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 04, 2014 08:07

December 3, 2014

Alcatra

IMG_5778.JPGA refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. À sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se.


Como no passado, peguei numa fatia do pão doce cortado à minha frente e coloquei-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergui gravemente um dos pedaços dessa carne e passei-o para o prato também, cuidando para que não se desmanchasse.


Levei-o à boca e fechei os olhos, a manteiga e o cravo-da-Índia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluência de sabores que se metamorfoseava, ganhando e perdendo e recuperando cambiantes à medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnífica, desfazendo-se-me na boca e fundindo-se com ela, como se fosse esse o seu lugar e tudo se resumisse a um regresso.


Comi até ao fim, numa voragem antiga, e depois peguei nos últimos pedacinhos do pão doce – massa sovada, repeti para mim próprio – e ensopei o resto do molho, comendo-os também.


Tinha acabado de chegar, ao fim de duas décadas fora. Nunca deixara de comer alcatra – nas férias como no velho apartamento do Bairro Alto, onde a fazia eu próprio e, aliás, se tornou popular entre os educadores admiráveis, cínicos profissionais e artistas desgraçados que permanecem os melhores amigos de sempre.


Mas comê-la na cozinha da infância, servida desta vez não a um filho de visita mas a um filho regressado, foi como voltar ao ventre materno. Sabia-me a terramotos e a redenção.


Diário de Notícias, Novembro 2014

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on December 03, 2014 03:07