Joel Neto's Blog, page 34
July 23, 2014
Esse ser que respira sob a minha mesa de trabalho
O Melville faz um ano hoje. Não há ossos de presente nem bolos de aniversário em pele de vaca, que eu ainda não perdi o juízo por completo. Mas o simples facto de saber que ele faz um ano tem um significado em si próprio. Descobrir este cão foi descobrir, para além de um inesperado laboratório literário, uma nova possibilidade de afecto. Não há muitos milagres evidentemente mais admiráveis do que esse.
July 22, 2014
Verdade absoluta
July 20, 2014
De volta à rotina, depois de festas, férias e visitas
Dia maravilhoso, depois, com os sogros e com o bicho. Espraiámo-nos até demasiado tarde na esplanada do Beira-Mar, levámos o Melville a passear pelas estradas à volta dos Viveiros, parámos no Negrito para um mergulho de fim de tarde, passámos nos Silveiras a comprar umas espetadas de cherne e viemos para casa abrir a garrafa de Muros de Magma que, num gesto que jamais poderei agradecer devidamente, a Cooperativa dos Biscoitos nos guardou durante dois anos. É talvez o melhor vinho de mesa da história dos Açores, e só ele já teria resolvido tudo o que da semana pudesse ter restado de lamentável. Mas também é para dias assim, perfeitos, que se vive num lugar destes. De vez em quando, há que preciso exercê-los.</div>
July 9, 2014
"Matrix" contra "Orquídea Selvagem"
A Alemanha esmagou o Brasil por 7-1. E porque tirou o pé do acelerador. Para além de todas as circunstâncias, é o melhor futebol do mundo, o da Alemanha. Mais ou menos como escrevi em “Todos Nascemos Benfiquistas (Mas Depois Alguns Crescem)”.
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COMPASSO BINÁRIO.
Se de uma pessoa se pode dizer alguma coisa a partir do futebol de que gosta, quero portanto que se saiba isto: que gosto do futebol alemão. Mesmo quando vejo o Sporting defrontar o Bayern de Munique – mesmo aí, proto-hooligan, quero sobretudo ver jogar os alemães. Futebol espanhol, holandês, africano? Equívocos, não mais. Aprecio o futebol argentino pela raça, o futebol inglês pela paixão, o futebol italiano pela segurança. Mas é o futebol alemão que verdadeiramente me encanta. Futebol brasileiro? Para barroco basta-me Bach – e o que quer que venha a seguir é como continuar a comer muito depois de estar satisfeito.
Uma equipa brasileira tem três tempos: defesa, meio-campo e ataque. Uma equipa alemã tem dois, defesa e ataque – ou, mais provavelmente, um só tempo mesmo. Um alemão ataca quando quer preparar a defesa e defende quando quer preparar o ataque – e nem o ataque é a melhor defesa, como proclamam os ingénuos, nem a defesa o melhor ataque, como querem os ressentidos. Ambas as coisas podem ser uma só – todas as coisas juntas como uma só, num movimento de primeira e segunda e terceira e quarta investidas sucedendo-se a um ritmo compassado. Isso nos ensinam os alemães sobre a vida.
Harmonia. Unidade. Inexorabilidade. Eis o que me interessa no futebol: geometria. Comparar o futebol alemão com o futebol brasileiro é como comparar o ‘Matrix’ com a ‘Orquídea Selvagem’: de um lado um futebol pantomineiro, às arrecuas, encenadíssimo, como se no fundo não tivesse dentro de si próprio uma origem ou um destino; do outro um futebol rectilíneo, rápido e ‘high tech’, sem espartilhos de coreografia – um espectáculo que ocupa todo o palco, alta e baixa ao mesmo nível, o espaço cénico como um só universo repleto e hermético.
A bola não é o centro do futebol alemão? Precisamente. Eu gosto sempre mais do futebol quando este consegue abstrair-se da bola. Olha-se para um jogador alemão a levantar os olhos para a baliza e sabe-se que vai ser golo, esteja a bola onde estiver. E, se não se trata de um alemão, mas apenas de mais um daqueles brasileiros ou paraguaios ou croatas que este mundo pôs agora a circular, tanto melhor: o futebol vira decoração moderna, misturada, tensão, cada peça como uma peça única e irrepetível – vira arte pura.
Vou deixar os génios de lado. Os génios nunca são comparáveis. Pelé, Garrincha ou Ronaldinho, Beckenbauer, Mathäus ou Klinsmann – a esses não se pode compará-los. Mas o facto é que, se vejo os filmes, gosto mais de um golo do meio-campo do Klaus Augenthaler do que de uma sucessão de fintas de Jairzinho. Gosto mais de um livre de Andreas Brehme do que de uma cavalgada do Fenómeno. Mais de um desvio de Klose do que de um vólei de Rivaldo. E gosto mais porque, se o futebol brasileiro se joga com as extremidades, que é onde se concentra a habilidade, o alemão joga-se com o corpo todo, que é por onde circula a alma.
Harmonia, unidade, inexorabilidade. Força e energia, generosidade e calculismo. Geometria, no fundo – e sempre um pouco de cinismo. O Brasil é um dos meus países preferidos. Da Alemanha, nem sequer gosto particularmente. Mas o samba não é a única dança. E eu adoro aquele bailado simples em que a seguir é sempre golo. Mesmo que a bola não entre. Mesmo que não haja bola.
O futebol alemão é o homem a suplantar a sua condição de homem. Não há nada de mais superlativamente humano do que isso.
June 15, 2014
Da série Esboços
«No segundo dia deu por si de pé no centro do corredor, rodando o olhar entre as divisões que se abriam à sua volta, e julgou perceber melhor a matéria de que era feito o seu povo. Tudo oxidava. Os metais oxidavam, as madeiras oxidavam, as paredes e os tecidos e os objectos oxidavam – e o que não oxidava ressequia ao sol, tombava à fúria do vento ou, sobrevivendo aos abalos de terra, deixava-se corroer pela chuva: primeiro um furinho apenas, provocado por alguma goteira oportunista, e logo um buraco maior, um barranco, uma derrocada.
E, no entanto, havia algo de belo nisso também, como se ao cabo de uma vida um homem pudesse dizer, sem grande esforço metonímico, que as entranhas da terra se revolviam, enfim, no seu próprio estômago. Havia algo de belo nisso, nessa devastação, e André teria tirado ali magníficas fotografias sobre o declínio e a relutância.
O tempo chegaria, pensou José Artur. “O tempo chegará”, repetiu para si próprio, mas na verdade não teve a certeza disso.»
June 8, 2014
Um domingo inteiro à procura da primeira frase de um capítulo importante. Para isto?
«Era uma sexta-feira de Agosto quando José Artur meteu pela primeira vez a chave à porta da casa da infância na qualidade de seu legítimo proprietário. João de Brito quisera passar-lha para as mãos muito antes, no mesmo dia em que se haviam reunido para acertar os pormenores da transacção, mas José Artur decidira declinar a oferta.
Ansiava por aquele momento e temia-o ao mesmo tempo. E, de qualquer modo, João de Brito Zanguinha tinha direito a despedir-se adequadamente dela. Fora o seu protector, o homem que voltara atrás para a resgatar, e, agora que chegara o momento de libertá-la, corria o risco, mesmo não o sabendo ainda, de deixar-se a si próprio preso lá dentro.
A memória de José Guilherme podia ser tão poderosa quanto isso, e ademais nunca a gratidão se isentou da sua porção de culpa também.»
June 4, 2014
Ou então é ao contrário: o tipo saiu-me cá um artista...
Eu estava guardado para ler isto: Ami James, o rapaz das tatuagens do Rock In Rio, é amplamente referido na imprensa portuguesa como "o artista norte-americano Ami James". Imagino que seja como os nossos pais antigamente diziam dos homens de bons ofícios: aquele gajo é um artista na carpintaria, aquele mecânico em termos de cambotas é um grande artista. Mas, caramba, trata-se de tatuagens — o que é que de mais bimbo este tempo tem para oferecer?
June 1, 2014
Todos eles estão nos meus livros
Morreu a Conceição. Lentamente, vão desaparecendo as minhas referências da Terra Chã. Voltei no limite, mas felizmente ainda a tempo de dar um abraço ao Fernandinho, à Adelina (mais à filha Bárbara, de quem me fiz um dia uma espécie de padrinho ad-hoc) e ao Manuel Aurora. Foi o meu primeiro amigo, o Manuel Aurora, e brindámos ao que a mãe representou sempre para eles: uma mãe até às últimas consequências, apesar da sua pobre instrução. Tivemos uma grande infância, e em parte também por causa dela: nós e ainda o Renato e a Raquel, o Jorge e a Telma. Lembrámo-la durante horas, à infância, e ao fazê-lo também homenageávamos Conceição.
Se é que era um peixe
Hoje levámos pela primeira vez o Melville à praia. Procurámos um lugar íntimo, só para nós, e imaginámos um cenário totalmente idílico, os dois nadando com placidez, o cão correndo para a água e deslizando ao nosso encontro, borboletas rodeando-nos aos três, numa folia benigna. Resultou no que, provavelmente, era mais razoável esperar: gritos, correrias, arranhadelas - e, no fim, de algum modo que não cheguei a perceber, o cão isolado numa ilha de rocha, trémulo de frio e de medo, mas não o suficiente para resistir ao pitéu de larvas que languesciam sobre um resto de peixe putrefacto. Felizmente, distávamos do automóvel apenas dois quilómetros de rocha irregular e escarpas. E, de qualquer maneira, a Catarina também não gostava assim tanto daquelas sandálias.
May 29, 2014
Eu também tenho uma história com Os Stones
A única vez que vi os Rolling Stones ao vivo – sim, eu não me sinto no direito de dizer "Os Stones", não tenho a vossa intimidade –, acabei rodeado por burgueses de 60 anos desertinhos por limpar o pó às ganzas. Achei-os um cliché tremendo e estava mesmo para declará-lo, mas depois as ganzas começaram a rodar e foi-me escasseando o rancor. Não se esteve mal. Da música, não me lembro.


