Joel Neto's Blog, page 33

November 18, 2014

Pão-por-Deus

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É evidente que alguma coisa se perdeu já, e nós sabemo-lo quando vemos os pais caminhando ao lado dos miúdos. O trânsito tornou-se perigoso, e se não fosse o trânsito seriam outros perigos, que a televisão é bem clara.


No meu tempo não era assim. Andávamos pela rua sozinhos, um quilómetro para baixo e outro para cima, e ao fazer doze anos púnhamo-nos de parte. Tínhamos crescido.


E, todavia, aí vinham eles de novo, estrada fora, com as suas saquinhas de atilhos, tocando às campainhas. Foi no sábado: aqui mesmo, na freguesia da Terra Chã – pela Terceira toda.


Alguns já haviam ido para a escola, na véspera, vestidos de bruxa ou vampiro. O Halloween está em todo o lado. Mas, ainda assim, continua a pedir-se o Pão-por-Deus, nestas ilhas como em cada vez menos lugares de Portugal.


Antigamente, o que mais queríamos era dinheiro, mesmo do preto. Mas estávamos dispostos a aceitar guloseimas, e de qualquer maneira também aí havia pelo que aspirar: 


Hoje, ainda não percebi. Estudo-lhes as reacções e não as distingo. Mas, se não abro a porta, ainda me cantam:


     Soca vermelha


     Soca rajada


     Tranca no cu


     A quem não dá nada


E, ao ouvi-lo, volto a considerá-lo um resto de tudo o que houve um dia de belo e de recto e de generoso.


Aqui, Deus ainda não morreu. Sagrado e profano deram as mãos e, afinal, protegeram-se um ao outro. E eu, que sou ateu, torno a comover-me.


Diário de Notícias, Novembro de 2014

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Published on November 18, 2014 02:29

November 17, 2014

Açores

IMG_5202.JPGUm homem desce sobre São Miguel, pelo lado dos Mosteiros. Vê ao fundo, no recorte Norte da ilha, uma borda de mar em frente à Ribeira Grande. Ao lado, a escarpa projecta-se dramática na direcção do mar, junto ao qual a rocha se abre em pequenas galerias misteriosas – e, em frente, a costa prolonga-se por Lagoa, Vila Franca do Campo, Povoação.


Quase lhe vêm as lágrimas aos olhos, e ele apaixonar-se-ia de novo se em algum momento tivesse duvidado de que a amava. A ela, esta terra. Estas ilhas.


Faz agora dois anos e meio que voltei, ao fim de duas décadas em Lisboa, e às vezes é preciso que algum afazer me leve a Ponta Delgada para eu me tornar a lembrar de que esta não é uma porção de terra só. Na maior parte dos dias estou simplesmente no campo, de regresso a casa. O mar é periférico e os vizinhos simpáticos.


Olham para nós com um misto de curiosidade e condescendência, inquietos com o facto de, apesar de tudo, trabalharmos de mais – como os de Lisboa. Trazem-nos postas de carne pelo Bodo, pão quente quando lhes ocorre, bolinhos acabados de fazer. Sugerem-me truques para evitar o oídio nos tomateiros. Fogem do Melville com um misto de medo e humor.


Serão personagens destas crónicas, também eles. E o mundo para que olham.


Diário de Notícias, Novembro de 2014

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Published on November 17, 2014 12:38

Vida verdadeira

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Às dez e meia, vou à venda. Estou a trabalhar desde as sete e pouco, pelo que preciso de uma pausa para um café e um cigarro. Nada de muito diferente, por enquanto, do que fazem tantos lisboetas, parisienses (com os seus cafés-clopes) ou londrinos (com os seus coffee & cigarettes num café cool de Stoke Newington, a meio de uma manhã de bloqueio artístico). Até porque também eu vou pela rua a pensar noutra coisa e também para o meu ar esgazeado os transeuntes – se os houver – olharão como para um provável louco.


Na venda, porém, quem me atende é o sr. C, que parece ver na nossa presença na freguesia um modo de apaziguar as saudades dos tempos de Coimbra. E os meus convivas são o velho D., que às vezes me dá uma ajuda no quintal; o M.G., que está à espera do filho para irem tratar das vacas; o J. de S.M., consumidor matutino de meias-bolas (“copos de três”, dir-se-ia no continente); o ti H.C., que bebe Jameson e não cumprimenta ninguém antes das duas da tarde.


Visto um conjunto toscamente combinado de andrajos e equipamento desportivo, que planeio completar quando, ao fim da tarde, conduzir até às estradas de terra batida dos Viveiros, para uma corridinha higiénica. E, no regresso, o que me espera em casa não são as paredes elegantes de um escritório decorado para, sempre que publicar novo livro, aparecer nas fotografias. É uma janela com vista para o castanheiro ao lado do qual ergui a horta. O bezerro do vizinho pastando ao fundo, placidamente, à espera da sua hora. O Melville ressonando alto, algures entre os livros desordenados, à espera apenas de mim.


Nunca quis ter um cão, até que este rafeiro dourado e excitadiço me surpreendeu a subir a mata da Serreta, qual epifania, num dia de beladonas em flor. Tinha acabado de aterrar nas Lajes e não sabia ainda se havia tomado a decisão certa, dois dias antes, ao rejeitar um súbito convite para passar três semanas a escrever na Ledig House, em Nova Iorque. Dei-lhe nome de escritor americano e hoje amo-o como a uma pessoa. Tenho consciência do quão ridículo isso torna tanto do que eu disse e escrevi ao longo dos anos. Mas, quanto ao bezerro do vizinho, ainda conto com uma posta das boas, no próximo Bodo, pelo que talvez não seja, para já, um caso totalmente perdido.


Não há só vantagens em viver no campo. Na ilha Terceira, a que regressei há dois anos e meio depois de vinte a viver em Lisboa, a diferença é menos consensual do que a alegria: provoca logo curiosidade, a seguir um certo medo e, de qualquer modo, em poucos casos grande apreço. Mas a paisagem é sempre redentora. É nela que nos reconfortamos, se alguma vez damos por nós a precisar de repousar das gentes. E, seja como for, quando vivíamos na cidade o impulso de repousar delas era mais frequente – tantas vezes, aliás, por iguais razões de mundividência, ou falta dela (e às vezes da nossa parte).


Beneficio, como é natural, desse advento consagrador da Terceira Revolução Industrial que é a Internet. São os algoritmos que me permitem estar aqui, num lugar não por acaso chamado Dois Caminhos (acredito muito em coincidências, mas não nesta), a repetir os gestos dos meus antepassados, nos intervalos da escrita: aquecer uma chaleira, chegar uma acha ao lume, erguer um alvião de encontro à terra. Ademais, Angra do Heroísmo, essa putefiazinha maquilhada de ternura (oh, não, o verso não é meu, quem me dera), está ali à mão, com os seus solares e palácios, o seu bulício pequenino e a sua majestosa História.


Volta e meia, apanhamos um avião para Lisboa. Às vezes temos saudades dela, embora nunca nos dias de tempestade. Quando os elementos fustigam esta casa a cuja mesa da cozinha o meu velho avô se sentava, com uma navalha, um lenço da mão e uma boceta de rapé no bolso, sentimo-nos mais acompanhados do que nunca.


Nos dias parados, então sim, ligamos para o call center e começamos a fazer planos. Temos sorte, e se calhar até se pode dizer que, até determinado ponto, a nossa cidade continua a ser Lisboa. Sê-lo-á sempre, de algum modo. Estamos a meio caminho, e de qualquer maneira continuamos a trabalhar demasiadas horas. Mas como poderíamos nós viver, agora, sem este silêncio? Sem as azáleas e sem as labandeiras? Sem as alcatras e o cheiro a orvalho? Como poderíamos continuar a acreditar, afinal, que a segunda metade das nossas vidas será mais serena e sábia do que a primeira?


 


A minha Terra Chã


Nos Açores quase não há aldeias: há freguesias. A minha, a que chamaram Terra Chã apesar das inclinações a toda a volta, tem três mil habitantes, 190 anos e um passado glorioso na cultura da laranja e da castanha, de que chegou a abastecer Inglaterra. Hoje, já nem é rural nem urbana: fica no limbo, e além disso tem um bairro social muito pobre. Mas, quando subo ao miradouro do Charcão, ou percorro a Fonte da Faneca, ou contemplo as velhas quintas do Terreiro e do Caminho d’Além, ou atravesso os lugares das Guerrilhas e das Casas Queimadas, assim baptizados porque houve um dia em que tiveram um significado suplementar, não é de História que me alimento. É da infância. É da memória. Nenhuma outra coisa alguma vez me interessará tanto como ela. Nenhuma terá tanta importância.


Evasões, Outubro de 2014

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Published on November 17, 2014 01:32

November 4, 2014

A VIDA NO CAMPO

Está desfeito o mistério: assino a partir de hoje, no Diário de Notícias, uma nova crónica diária (de segunda a sexta-feira) sobre a vida no campo e a vida em geral. É um ponto de chegada para mim: escrever todos os dias no jornal da minha infância sobre a vida na minha terra. Oxalá seja capaz de interpretá-la naquilo que ela verdadeiramente tem de esclarecedor sobre como se vive nos mais variados recantos desse Portugal de que Lisboa tantas vezes se esquece. A série servirá de base a uma nova fase da vida deste blog, respeitando naturalmente os intervalos necessários para a protecção do interesse do jornal. Conto convosco.

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Published on November 04, 2014 01:34

October 28, 2014

Intervalo

Este blog voltará a ser actualizado muito em breve. Peço desculpa pelos inconvenientes. JN

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Published on October 28, 2014 15:10

August 20, 2014

O fim.

Um tipo aproxima-se da recta final de um livro em que vem trabalhando há quase três anos, começa enfim a vislumbrar os últimos quilómetros de uma maratona que lhe tem custando tanto a percorrer quanto é suposto custar quando os livros têm significado – exausto e instável quando está com as mãos no teclado, cheio de culpa e tão instável como antes quando se permite levantá-las por umas horas –, e de repente como que não quer acabá-lo. Algo dentro dele o trava e o convida ao desleixo e o desafia a ir gozar a vida, o que quer que isso seja. É o momento mais difícil de todos, talvez. Chega a apetecer-lhe o regresso do Inverno, como se os elementos em fúria pudessem ao menos tornar a existência um pouco mais tangível. Há uma intimidade connosco próprios, enquanto escrevemos, que está para além da realização de ter escrito. Chamamos-lhe dor, à falta de melhor palavra. E por que não há-de ser isso o gozar a vida – isso mesmo que, ao fazê-lo, não queremos afinal que acabe?


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Published on August 20, 2014 06:24

August 15, 2014

A comoção do dia

Escrevo para vários jornais, tenho perfil e página no Facebook, conta no Twitter e até um blog. Gosto de conversar, digo coisas sem pensar e, aliás, mudo frequentemente de opinião sobre aquilo que escrevo porque, tendo pensado cinco vezes, gostaria de ter pensado uma última vez ainda. A reflexão que se impõe é tanto para mim como para os meus colegas do espaço mediático ou o leitor.


Mas impõe-se uma reflexão.


Morreram esta semana dois grandes actores de cinema, uma excelente crítica literária e uma das tutelas da televisão (e da comunicação social) em Portugal – o homem que criou a TSF, lançou a SIC Notícias e operou mais uma série de revoluções das quais nem temos consciência. O país chorou-os a todos de modo mais ou menos igual, como se com todos eles tivesse o mesmo tipo de intimidade – e as televisões, como aliás os jornais, limitaram-se em várias circunstâncias a fazer (escrevo antes da torrente dedicada a Emídio Rangel, mas a tendência vem de trás) um eco acrítico dessas lágrimas.


Todos dizemos tolices nos nossos Facebooks. E talvez todos permitamos, com maior ou menor regularidade, que as tolices que dizemos no Facebook contaminem o nosso trabalho. Mas a folia com que neste momento se brinca ao epitáfio, nas redes sociais como na comunicação social, com cada português, amador ou mesmo profissional, na ânsia de ser autor do primeiro RIP, e depois da elegia mais sentida, é reflexo de uma sociedade ligeira, inculta e irresponsável, se não desprovida de emoções.


Vejo, oiço e leio notícias, reportagens e perfis em que só falta o smiley tristonho ou a expressão: “Como pudeste morrer? Não te perdoo!” Entre isso e um “lol” não vai grande distância. O silêncio seria melhor homenagem. 

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Published on August 15, 2014 09:48

July 29, 2014

E, ademais, bastante fofinho

Peçam-me para reduzir este tempo ao seu epítome e não vejo outra coisa senão os caracolinhos do dr. Constâncio, com aquele ar de tio bondoso e suplicante. Que toda esta merda possa ter-lhe passado pelas mãos, sem que por uma só vez se acendesse algures uma luzinha amarela, é totalmente desconcertante. Que no fim o tenham destituído e logo feito dele vice-presidente do Banco Central Europeu é o retrato do verdadeiro estertor de morte de um projecto de civilização. A Europa agoniza por detrás de uns oculinhos à Harry Potter.
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Published on July 29, 2014 04:58

July 25, 2014

Um homem podia dedicar uma vida a desconstruir os chavões da auto-ajuda

Outra é essa tontice do "Não sobrevivas, vive!", "Não sobrevivas, vive!" , "Não sobrevivas, vive!" Sempre que subtraímos a necessidade à equação, sobrou o quê além do tédio, de um sensualismo desesperado e, finalmente, da depressão? Viver bem sem necessidade – a necessidade do sustento, a necessidade de nos justificarmos, a urgência de compreender – exige que sejamos uma de duas coisas: totalmente cínicos ou totalmente estúpidos. A estupidez é uma fatalidade, o cinismo não. Pessoalmente, nunca encontrei melhor maneira de viver do que sobrevivendo.


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Published on July 25, 2014 02:25

Isto como leitor, porque depois ainda há os protestos de autor


A sério, não importa de que livro se trata. Isto hoje é mato. Como é possível que um romance chegue ao leitor com o nome do protagonista seis vezes repetido em cada página, sem que se tenha chegado a mudar de centro de consciência ou (tantas vezes) sequer de sujeito? Quando vão alguns tradutores perceber que traduzir é conhecer a língua de chegada, nomeadamente naquilo em que é diferente da de partida? Quando vão os revisores perceber que os papa-gralhas automáticos têm cada vez mais opções e que, portanto, só vão continuar a existir se de facto fizerem copying? E quando vão os editores efectivamente fazer editing, como lhes compete? Passamos a vida a deplorar o profissionalismo da indústria da comunicação social, quase sempre com razão. Mas a indústria editorial, infelizmente, não é menos amadora.

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Published on July 25, 2014 02:17