Prisioneiro
Cai sobre Lisboa uma chuvinha benigna, daquelas de abrir o guarda-chuva e fechá-lo ao fim do quarteirão. O efeito é o mesmo de um dilúvio. O trânsito engarrafa. Há apitos. Mulheres bem vestidas erguem-se às esquinas, em busca de um táxi. Rapazes a quem os fatos assentam mal, com gravatas fluorescentes à treinador de futebol, correm entre beirais, segurando as lapelas.
Uma amiga de há mais de duas décadas pede para adiarmos o nosso almoço para o dia seguinte.
Surpreendo-me, como se me tivesse esquecido. Para nós, açorianos, isto não chega a ser uma chuvinha: é quase bom tempo. Mais de cinco dias retidos na ilha das Flores, sem comunicações, combustíveis ou farinha – só começamos a enervar-nos a partir daí.
Sorrio e acendo um cigarro.
Na Tezenis do Rossio, um rapaz e uma rapariga dançam na montra, vestidos de pijama. Vão acenando um pequeno cartaz. Têm vergonha um do outro e têm vergonha dos clientes, que por sua vez sentem vergonha por eles também.
Nem uma só pessoa pára a ver a montra. Tresanda a desemprego, a desespero e a humilhação. E, ademais, pinga.
Sinto saudades do meu cão. Do meu nevoeiro.
Pergunto-me se o plátano já perdeu as últimas folhas, para que possamos começar a moldá-lo. Telefono ao Chico a ver se acabou de arrumar a garagem.
Lembro-me da lenha que tenho de encomendar para o Inverno.
Fui picado pelo mal do apego à terra. Como aqueles a quem torcia o nariz, parto excitado e, ao fim de uma semana, estou repleto de melancolia. Acontece até com continentais que em algum momento se mudaram para a ilha, e eu ainda tenho sobre eles o peso da grande deusa Memória.
A cidade trata-me bem, mas ainda vem longe a hora do regresso. É despachar as reuniões e abreviar.
Diário de Notícias, Novembro 2014


