Cronos
Este ano voltei a encomendar tarde a lenha. Chegou-me húmida, e todos os dias tenho de descer à garagem e erguer nova pilha em frente a um desumidificador.
No ano passado prometi a mim mesmo que, desta vez, trataria das coisas com tempo, o mais tardar em Julho. Quando chegámos a Julho, já fazia um frio dos diabos e o calendário marcava Novembro.
Acabarei por acertar. Sou tão escravo do tempo aqui como o fui na cidade, mas o campo ensina-nos as suas sabedorias. Se o campo tem uma sabedoria, é a do tempo.
No campo não é preciso calendário. Os meus vizinhos não se lembram de que é Natal porque as ruas estão iluminadas ou que chegaram os Santos porque lhes cheira a sardinha. É o próprio tempo que fala com eles. Havendo nevoeiros, estamos provavelmente em Junho. Agitando-se o mar em levadia, então é Agosto de certeza.
Um homem do campo sabe quando desabrocham as flores e em que altura se semeia o feijão verde porque as flores e o feijão verde têm sempre o mesmo tempo. Não o inquieta sequer o calendário biodinâmico: chama-lhe Lua.
Quanto ao mais, tem uma consulta no médico e sai de casa com tempo. Antes de escolher o que leva vestido, olha pela janela e confere a meteorologia.
Ou o tempo.
Algures este ano, notei que o meu primeiro gesto matinal passara a ser olhar pela janela. Ainda uso despertador, e para as mais variadas tarefas do dia-a-dia recorro aos lembretes do telefone, a papelinhos amarelos, a mnemónicas tão ridículas como pôr a carteira dentro de um sapato.
Mas já foi um avanço.
Para o ano, não me esqueço: em Julho encomendo a lenha. Mesmo em Junho, talvez não me esqueça dos Santos. Talvez algures no meu cérebro ecoe uma marcha sanjoanina.
De qualquer modo, já pus lembretes.
Diário de Notícias, Dezembro de 2014


