Joel Neto's Blog, page 25
March 10, 2015
Alto-mar
Se eu tivesse um barco fazia piqueniques no alto-mar. Ia até ao Ilhéu das Cabras, ver a desova dos ratões, e depois deitava-me a ler, à deriva, fora do alcance dos telemóveis.
Se eu tivesse um barco fazia corridas com os roazes. Vestia uma roupa de marinheiro, às riscas azuis, e punha-me a fazer corridas com eles.
Se eu tivesse um barco usava a boina do Corvo que a Catarina me tricotou. Bebia uísque de uma garrafinha metálica, trazida no bolso do blazer, e atracava num café de Rabo de Peixe, a dizer palavrões e a armar confusão.
Se eu tivesse um barco chamava-lhe Lobo das Estepes.
Se eu tivesse um barco ia a São Jorge ver as fajãs, ao Pico ver as baleias e ao Faial ver as raparigas. Se eu tivesse um barco ia à Graciosa comer uma caldeirada, e essa era a primeira coisa que eu fazia.
Se eu tivesse um barco levava o meu pai a passear.
Se eu tivesse um barco ia apanhar lapas, pela maré baixa. Pescava serras e bonitos e mergulhava na baía de Angra, à procura de naus, galeões e caravelas.
E tesouros.
Se eu tivesse um barco comprava um monte de apetrechos, um transístor, uma geleira, uma gaita de beiços. Ensinava o Melville a nadar e depois púnhamo-nos a ouvir o relato.
Se eu tivesse um barco aprendia a cozinhar com água salgada e cerveja, como os brutamontes sentimentais. Atrelava o barco ao carro, para me fazer mania, e vinha para casa cozinhar com água salgada e cerveja.
Se eu tivesse um barco parava a meio-canal e fazia da Catarina a minha Kate Winslet.
Se eu tivesse um barco não tardava a naufragar. Atolei carros nas neves da Noruega, jipes nos desertos de Cabo Verde – naufragar um barco seria a coisa mais fácil.
Mas haveria de naufragar em estilo, com a minha roupa de marinheiro e a minha boina do Corvo.
* Diário de Notícias, Março 2015
March 9, 2015
São Mateus
Sentamo-nos antes da uma e já vem saindo gente. Almoça-se muito cedo, aqui. A certa altura, uma senhora comenta para outra: “Credo, com este vento...” Acha-nos malucos. Mas nós estamos confiantes: ao final de uma semana de trabalho, a ordem cósmica vai encarregar-se de fazer o vento rodar para Norte, deixando-nos protegidos sob os toldos.
Mandamos vir um Frei Gigante e uma travessa de lapas grelhadas. A Catarina gosta das bravas e eu gosto das mansas, o que talvez pudesse dizer tudo sobre nós mas não diz. Estas foram apanhadas há algumas horas, aqui mesmo ao lado, e o modo como recebem a manteiga, o alho e a massa de malagueta prova que foi para isto que nasceram.
Limitamo-nos a fazer parte de uma cadeia. Estamos aqui para servir.
Comemos uma sopa de marisco, apresentada dentro de um pão, e mandamos vir o peixe. Se for Inverno, talvez cherne. Se for Verão, lírio de certeza.
Ou então uma mista, daquelas que o Fernando costuma sugerir. O espadarte, dispensamos. Se não há lírio, então uma garoupa ou um boca negra, mais uma posta de cântaro e outra de xaréu.
Lá de trás, da igreja com as grandes portas vermelhas, toca o sino. De vez em quanto chega uma embarcação, que o guindaste iça para terra, enquanto um senhor com uma prancheta manda pesar as safatas. Passam crianças correndo atrás de uma bola.
Um rapaz com ar de cobói.
Uma motorizada.
E nós ali, a fumar, satisfeitos porque o vento mudou para Norte, ou então é do Frei Gigante – sonhando comprar uma chata com motor fora de borda, para passear aos sábados.
Os restaurantes tornaram-se o nosso grande luxo burguês. Perdemos o gosto das boutiques e dos stands, e o cinema anda impossível de se ver. Aos restaurantes, ainda vamos.
Mas a esplanada do Beira-Mar, num sábado de sol, não é restaurante: é milagre. Ademais se vista a partir de sexta-feira.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
March 6, 2015
Infância
Olho por esta janela e lembro-me do nosso clube de futebol. Chamava-se “FC Merdaleja” (porque gostávamos de Herman José), tinha um jornal que era o “Melmac” (porque gostávamos de Alf) e exibia-se num campo a que demos o nome de “Estádio de Alvaluz” (porque eu era do Sporting e os meus primos do Benfica).
Só jogava quem comprasse o jornal, a dez escudos a edição. Havia notícias do clube, do campeonato nacional e da fórmula 1. Fazíamo-lo numa máquina de escrever e quem o imprimia era o sr. Artur, numa fotocopiadora da Base. Às vezes tínhamos de esperar 15 dias, o que dificultava o acompanhamento da actualidade.
Para fazer o campo, destruímos um pomar inteiro. Pusemos salmoura junto às árvores, uma a uma, e esperámos. O meu avô ainda viveu uns anos, mas à condição. Não estou certo de que tenhamos escapado à delinquência por tanta margem quanto isso.
É por causa daquele campo de futebol que, hoje, eu não vejo um pomar desta janela.
Vinham amigos de freguesias vizinhas, para jogar connosco. Outras vezes andávamos nós por aí. Fazíamos corridas de bicicleta na Canada do Rolo. Jogávamos com os grandes no relvado da Universidade. Passávamos tardes inteiras a rematar contra um portão verde que havia aqui ao lado.
Quando passava um carro ou uma senhora, parávamos. Se fosse uma mota ou o Fernandinho, o jogo seguia.
O Jorge António dava biqueiras, mas nunca se partiu nenhum vidro.
Fomos felizes, e, quando eu hoje vejo as mães das freguesias irem buscar os garotos todos os dias à escola, amontoando-se nos passeios, torno a ter a certeza disso. Há demasiado trânsito. Tentações de droga. Pedofilia. Uma criança já nem pode partir os dentes em condições. Nem ir à Sociedade jogar matrecos. Nem esquecer-se de tomar a ritalina.
O mundo está todo pior. Não é só nas grandes cidades.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
March 5, 2015
A mãe
Algures no Inverno passado, o Melville fugiu-me para se pôr correr atrás de duas vacas. Tínhamos acabado de deixar a Canada da Serra em direcção aos pastos do Galão, por onde na altura fazíamos uma caminhada diária, e eu tirei-lhe a trela assim que saímos da estrada. Foi uns quinze metros cedo de mais: invadiu o primeiro cerrado, pôs-se a perseguir as bezerras que lá estavam e em poucos segundos, com o susto, elas tinham partido o fio electrificado que as circunscrevia.
Só depois, ao rever os acontecimentos desse dia, percebi o significado do que fiz a seguir. Antes mesmo de me informar sobre a quem oferecer-me para pagar os estragos, telefonei à minha mãe. No fundo, é sempre ela a parte ofendida em caso de desrespeito à terra. E, parecendo talvez que o que está por detrás disso é uma ordem matriarcal, mediterrânica e vagamente neurótica, o que na verdade está é um amor.
Escrevo pouco sobre a minha mãe. Somos demasiado parecidos. Apesar disso, é com ela que me sento a fazer listas de termos açorianos, personagens terceirenses e alcunhas da Terra Chã. Foi ela que, durante vinte anos, se empenhou em pôr-me a par dos mexericos e dos suicídios, das minudências e das tempestades. É com ela que falo do meu avô, é ela quem me cozinha ossos de suã e foi ela que me tornou um sentimental.
Se perco a paciência com a minha mãe, é comigo mesmo que perco a paciência. Se me ocorre enternecer-me comigo, é com ela que me enterneço. O nosso filtro sobre o mundo permanece o mesmo, apesar de eu ter feito missão de me livrar dele.
Ao fim de vários textos sobre os homens por detrás destas crónicas, é tempo de escrever sobre as suas mulheres. A começar pela minha mãe. O meu pai deu-me a devoção ao trabalho e à liberdade. A minha mãe deu-me o amor à terra.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
March 4, 2015
Dia D
Estava cá a Vera, pelo que foi ainda mais difícil. Tínhamos acabado de discutir sobre a tourada à corda e eu perdera. Nem sequer tentara persuadi-la dos méritos da ritualização da morte: o facto é que não feríamos o animal. No fim, esbarrara sempre nos mesmos argumentos anti-tauromaquia, definitivos como tudo o que é argumento – e ainda por cima deixara-me crispar, o supremo lapso de um anfitrião.
Agora seguia atrás das duas, caminhando calado. Tinha a minha dignidade.
E, de repente, desatei a chorar. Estávamos no Alto das Covas e acabara de passar a marcha de abertura. Cheirava a enxofre e a algodão doce. Então, saíram os Coriscos, cantando Angra como há muito um micaelense não a cantava.
Havia nos seus rostos uma admiração genuína, libertada após demasiados anos de bairrismos. E havia alegria. Os homens cantavam num staccato, tentando projectar a voz por sobre a própria atmosfera terrestre. As mulheres faziam florzinhas com as mãos.
Inesperadamente, desprenderam-se-me lágrimas. E mais lágrimas ainda.
Senti vergonha e enfiei-me num café, escondido por detrás de uma cerveja fresca. Não resultou. Nem a seguinte, nem a outra ainda, nem nenhuma delas.
Agora estava bêbedo e a chorar convulsivamente. Não assistia às Sanjoaninas havia quase duas décadas, apesar dos frequentes regressos à ilha. Junho nunca me dava certo. E, de súbito, tinha quinze anos outra vez – estava na Rua da Sé, passava a marcha oficial, letra de Álamo Oliveira e música de Carlos Alberto Moniz, e tudo era ainda possível.
“Angra sabe a pão agora/ cheira a branco e cantaria/ maquilhada tão senhora/ Angra noiva de alegria.” Ainda conseguiria cantá-la de cor.
Isto foi em 2010. Naquela noite, tomei uma decisão: nunca mais faltaria a umas Sanjoaninas. A Catarina não disse, mas tomou outra: haveríamos de viver aqui ao menos um tempo da nossa vida.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
March 3, 2015
Sete-Estrelo
Quem me falava das estrelas era o meu avô. Punha-se no jardim, a dobrar o lenço-da-mão, e fazia o seu ar pesaroso. Falava-me de Cassiopeia, das Ursas, de Andrómeda. Eu só gostava do Sete-Estrelo.
Ele perguntava: “E aquela?” E eu: “Dragão.” “E aquela?” “Girafa.” De três em três, voltava à casa de partida, com um risinho: “E aquela?” E eu: “O Sete-Estrelo!” E prolongava a sílaba, com o meu ar suplicante.
As pessoas da Terceira, como eu, fazem um ar suplicante. As de São Jorge, como o meu avô, um ar pesaroso. Às vezes é como se lhes tivesse morrido a esperança. O que, no caso do meu avô, tinha algo de extraordinário, porque eu nunca conheci ninguém mais esperançado.
Não há dia em que eu saia à rua e não procure o Sete-Estrelo. Às vezes murmuro aquele fado que o Zeca Medeiros escreveu para a Mariana Abrunheiro. Outras fumo um cigarro.
Acho que me apaixonei pelo Sete-Estrelo por causa do seu aspecto módico, minúsculo, como se até eu, rapazinho, pudesse trazer uma constelação no bolso. Ou então o nome parecia-me simplesmente engraçado.
Em Lisboa era difícil ver as estrelas. Eu vinha à varanda com o gin na mão, para impressionar as raparigas, e não encontrava uma que fosse. Creio que foi aí que comecei a dividir as terras entre aquelas em que se pode ver as estrelas e aquelas em que não se pode.
Aqui vêem-se muito bem as estrelas. Até numa noite de Inverno como esta, em que fumo um cigarro e penso no meu avô e no modo pesaroso como dobrava o seu lenço-da-mão, para disfarçar a esperança.
Quase sinto pena de ter descoberto, entretanto, que o Sete-Estrelo não é uma constelação, mas um simples aglomerado. No fundo, não me importo. As mentiras em que as pessoas sustentam a sua felicidade são tão válidas como as verdades.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
March 2, 2015
Castanheiro
Tivemos a sorte de crescer entre árvores. Subimos tangerineiras, nespereiras e ameixieiras. Fizemos cachimbos de brincar com bolotas de carvalho, arcos e flechas com ramos de amoreira, balizas de futebol com troncos de faia (com cujas folhas também fazíamos assobios).
Quando chegávamos ao castanheiro grande, detínhamo-nos.
Entre a mata do meu avô e a do meu pai, ligadas por detrás dos quintais de outros vizinhos, havia uns vinte castanheiros. Aliás, erguiam-se por aí acima mais árvores imponentes. Duas nogueiras lindas. Eucaliptos. Criptomérias.
Nenhuma como o castanheiro grande.
O castanheiro grande era o nosso lugar de reverência. Havia uma mata para cá do castanheiro grande e outra para lá dele. Almoçávamos sob a sua sombra, nos dias em apanhávamos o marrolho. Fazíamos tendas debaixo dele, durante o Verão, e nenhum outro foi tão generoso quando, adolescente já, o meu avô me deixou ser eu a tratar das castanhas, porque precisava de dinheiro para comprar uma máquina de escrever.
Um dia escrevo desse Outono em que fui vendedor de castanhas.
O castanheiro grande tombou no Outono de 2012, durante uma ventania menor. Eu tinha voltado há poucos meses. Olhei as suas raízes arrancadas da terra e, de repente, achei que havia uma hipótese de não ser feliz.
Fez-me lembrar aqueles versos do Ramos Rosa «O que tentam dizer as árvores/ no seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,/ o sentido que têm no lugar onde estão,/ a reverência, a ressonância, a transparência// (…) Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus ramos.» Usei-os uma vez, numa epígrafe, mas só agora os percebo por completo.
Há algo nas grandes árvores que se assemelha aos homens. Mas não são elas que são metáfora para nós: somos nós quem é metáfora para elas.
* Diário de Notícias, Fevereiro 2015
February 27, 2015
Jura
Eu venho a sair da garagem, com um cesto de lenha. O Poeira desce a Fonte Faneca, com um molho de plantio na mão – couve-todo-o-ano, se o diviso bem. Trocamos bons-dias e considerações sobre o estado do tempo. Afinal o Inverno sempre chegou, já fazia falta e etecetera e tal.
Viro-me para fechar a porta. E, então, sou como que apanhado por um cone de aspiração. Dou uma volta sobre mim próprio. Ouço um zumbido.
Levanto os olhos para o Poeira – está do outro lado da estrada, espalmado contra a esquina da Mercês, a couve dispersa pelo chão. Parece palpar-se, a conferir se vive. Lá em cima, desaparecendo ao cimo da lomba, levanta orvalho um desses carrinhos em que os garotos com carta de condução se fazem locomover.
Tem um motor ronronante e cores flamejantes a toda a volta, a não ser na metade da frente do capô, cinzenta das reparações em curso. Faltam-lhe o pára-choques traseiro, os quatro pratos e, provavelmente, o óleo de travões. Quase podemos ouvir o jovem homem: “Ah ah ah, tiveram medo!”
Trocamos um olhar de pena. Conhecemos a história daquele miúdo mesmo sem conhecermos o seu nome. Todos os dias o vemos passar, para cima e para baixo: ele como outros igualmente desesperados, tomados pelo ódio, a caminho de lado nenhum.
Sabemos o seu destino próximo, o dele como o do seu carrinho. Tanto quanto podemos prever, podem não passar da curva seguinte. De resto, não chega a ser o gangster que gostaria: é apenas um pobre assassino. Teve como único sonho de infância possuir um automóvel e, agora, precisa de uma audiência. Pode suportar tudo, menos o silêncio.
Sou sensível a isso. No dia em que faça mal a alguém aqui à volta, pessoa ou animal, senciente ou invertebrado, dar-lhe-ei de mão aberta, que sempre faz mais barulho.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
Quotidiano
No fim-de-semana comprei uma mangueira nova. Uma mangueira com destorcedor, braçadeiras de qualidade e uma pistola em condições pode mudar a vida de um homem.
Desatei logo no sábado a lavar o pátio e, no domingo de manhã, já me apetecia lavá-lo outra vez. Mesmo agora, que estou aqui a escrever, penso em como seria maravilhoso estar lá fora, a gozar o jorro vigoroso da minha nova mangueira, com o Melville tentando apanhar a água e os melros olhando-nos desconfiados a partir dos ramos do castanheiro.
Toda a vida tive caixas de ferramentas. Sempre me orgulhei delas. Abria-as e punha-me a olhar para aqueles objectos, como se fizessem de mim um super-herói. Se havia algum parafuso para apertar, sacava do jogo de chaves de fendas e demorava-me a escolher. Havendo um vizinho em apuros, atravessava o corredor e abria a caixa.
Manuseá-la era metade do prazer. Às vezes, o prazer todo. Só quando me mudei para o campo percebi que as caixas de ferramentas estão para o homem sem o que fazer com elas como as revistas de viagens estão para o viajante sem tempo, dinheiro ou até vontade de viajar: são um substituto.
Hoje não tenho caixa de ferramentas. Tenho ferramentas por todo o lado. Quando cheguei, fiz um expositor na garagem e pendurei-as todas direitinhas. Agora andam pelas gavetas, dispersas pela despensa e pelo quarto de hóspedes, em recantos do jardim. Servem-me a toda a hora. Servem-me todos os dias, várias vezes. Depois ficam à espera.
As minhas ferramentas deixaram de ser um psiquiatra para passarem a ser aquilo que devem ser: ferramentas. Tirando esta semana, que foram anjo vingador: como melhorou a minha vida, com uma mangueira nova.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
February 26, 2015
Barulhinho bom
Conheço muitos lugares no mundo com orgulho nas suas tradições. Nenhum como este. Na Terceira cultua-se o Divino, nas oito semanas que antecedem o Pentecostes, com a mesma devoção com que se cultuou nos últimos 500 anos. As touradas à corda continuam a reunir milhares de pessoas em centenas de exibições concentradas em cinco meses e meio. As Sanjoaninas de Angra só encontram rival, em todo os Açores, nas Festas da Praia, do outro lado da ilha.
A gastronomia e os ofícios, a música e o folclore – não fica nada por preservar, quase sempre de um modo muito próprio. Todas as datas cristãs são festejadas e todas as datas pagãs, podendo sê-lo, o são também. E, entre estas, o Carnaval é de longe a mais exuberante, começando a celebrar-se quatro semanas antes e culminando nas danças e bailhinhos, que configuram uma tradição única no mundo.
Apesar disso, chega-se a esta altura e os supermercados passam samba. Uma pessoa estica a mão para a prateleira do pão de milho, toda bucólica, e parece que a escola do Salgueiro vem a dançar atrás dela, pronta a atropelá-la. Abre o armário das pizas congeladas, a ver se ninguém repara no seu crime, e aparece-lhe por cima uma sambista aos berros: “Num adianta você tá disfarçando, que todo o mundo vai sabê, iê iê iê.”
A história da ruralidade é hoje a história de uma tensão entre o que nela existe de autêntico e o que de fora vem de artificial. Muitas vezes o artificial já vem de dentro, num esforço de integração. Outras o autêntico já vem de fora, como um suborno. No fim, resta-nos o exotismo possível. A realidade não passa de um sucedâneo, e a estética da bruma já aí anda há anos para prová-lo.
O samba deixa-me mesmo deprimido.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015


