Izzy Nobre's Blog, page 27
March 31, 2015
O dia em que um bully me mandou pro IML
Eu queria usar uma imagem do IML de Fortaleza, onde a história realmente se passou, só que o prédio pelo jeito mudou TANTO de 1995 pra cá (ou talvez agora é outro prédio totalmente diferente) que não há benefício de verossimilidade em usa-lo.
Foi o seguinte. Em 1995, eu cursava a quinta série numa escola chamada Colégio Evangélico. A escola pertencia à Igreja Betesda, uma congregação em que naquele mesmo ano meu pai se tornaria pastor. A escola ficava nos fundos da igreja.
Essa era a Igreja Betesda. Tá vendo ali na esquerda?
Hoje aparentemente funciona ali a Coordenadoria de Vigilância em Saúde; nos anos 90, descendo essa rampa você chegava nas instalações do Colégio Evangélico. Ficava, tecnicamente, no “porão” da igreja.
Então. Nessa época, estudávamos eu e meu irmão nessa escola — eu na quinta série, ele na terceira. E meu irmão estudava com um garoto chamado Samuel.
O Samuel era aquele bully estereotípico. Com um físico desproporcional ao resto da molecada de sua sala e não muito inteligente — um explicava o outro; ele havia repetido dois anos, daí o constrate com a pirralhada –, Samuel rondava os corredores do colégio impondo uma lei talibanesca de terror e opressão. Em uma ocasião ele bateu num garoto da sexta férie, uma bizarríssima inversão das leis naturais do universo. Como podia um moleque da terceira série bater em alguém da sexta?!
Aliás, eu não lembro de ver o Samuel interagindo tanto com a gurizada de sua sala. Sua turma mesmo, me parecia, era a galera da MINHA sala. Isso ficou mais claro quando descobri que ele era repetente, e que aquele pessoal que estudava comigo havia sido de fato a turma dele anos antes.
Pois bem. O Samuel estabelecia sua dominância na escola distribuindo porrada em volumes cavalares na pivetada. Não havia um método muito claro no seu método de bullying; às vezes ele chegava no garoto, agarrava o pirralho pelo pescoço sem qualquer provocação, e empurrava o moleque na parede. Em outras ocasiões ele abaixava as calças da criança, de preferência em um momento que o pivete estivesse falando com os coleguinhas.
Seu MO mais frequente era pegar um maluco pelos braços, rodopiar até os pés da vítima descolarem do chão, e finalmente soltar a criança e deixar que a força centrífuga* resolvesse a situação.
Fui vítima de todas essas “brincadeiras” repetidamente.
Ocasionalmente (na real, um pouco raramente), o Samuel protegia suas vítimas de avanços de outros bullies. Lembro de uma situação específica em que ele se colocou entre eu e um moleque mais velho que queria me bater por um motivo qualquer. Samuel, que pelo que posso concluir era um psicopata mirim, alternava entre o papel de algoz e herói pura e exclusivamente para abaixar as defesas psicológicas de suas vítimas. No dia seguinte ele estava lá chutando a molecada novamente.
Então. Este episódio em particular aconteceu no pátio da escola após o término das aulas. Nessa época eu fazia algo chamado “tempo integral”, uma modalidade de ensino que nem sei se ainda existe mais.
Durante a manhã, rolava o período didático tradicional — matemática, português, geografia, etc. Ao meio dia metade da escola ia pra casa, enquanto a outra metade ia para os chuveiros tomar banho e tirar o uniforme. Agora à paisana, os alunos dirigiam-se ao refeitório da escola, onde eram servidos o almoço.
Depois do almoço, a pirralhada se recolhia a “salas de descanso”, que nada eram senão salas comuns em que o espaço previamente ocupado por mesas e cadeiras havia sido substituído por colchonetes. Rolava aula de música (foi nessa época que aprendi o obrigatório Asa Branca numa flauta doce), um reforço escolar, e o dia terminava com um filme na biblioteca.
Então. Eu e o Samuel fazíamos o tal tempo integral, e frequentemente seus ataques aconteciam durante esse período (talvez porque a opção de vítimas era limitada). Num desses dias, o maluco chegou por trás de mim enquanto eu conversava com um coleguinha e me deu um safanão no braço, seguido de um soco nas costas.
Caí no chão na hora. Eu nunca havia entendido a expressão “ficar sem fôlego” até aquele dia. Pra terminar de me zoar, o Samuel tirou meus sapatos (????) e jogou pro outro lado do pátio. Tive que de certa forma admirar a criatividade do bully.
Demorei alguns segundos pra recuperar o fôlego; foi uma experiência desesperadora. Quando os amiguinhos vieram acudir, percebeu-se que havia ficado um hematoma nas minhas costas.
Quando meu pai apareceu na escola pra me pegar, contei o acontecido, e mostrei o hematoma, ele ficou colérico. O garoto não estava mais nas redondezas da escola, e ao contrário da outra ocasião em que meu pai teve que resolver uma situação de bullying, dessa vez ele foi um pouco mais comedido — meu velho decidiu que a decisão correta seria registrar o ocorrido e buscar uma solução por meios legais apropriados.
Fomos para o IML de Fortaleza fazer um exame de corpo de delito. Chegando no prédio, a primeira coisa que reparei foi o estado de total abandono do local — alguns pontos no forro haviam caído, deixando buracos no teto. Havia marcas de infiltração por toda parte, e uma boa parcela das lâmpadas estavam queimadas. Foi uma visão que eu convencionei a associar com a infraestutura pública; os anos que passei estudando em instituições públicas solidificaram essa imagem.
Após algum tempo esperando no saguão, o médico legista de plantão passou pelo corredor. Meu pai se levantou pra falar com o cara, e ele continuou em sua trajetória sem sequer olhar pro meu pai e entrou num dos escritórios. Meu pai voltou-se pra pedir ajuda à garota da recepção, mas ela só falou algo como “poisé o Doutor Fulano é ocupado mesmo, não sei quando ele vai poder atender vocês”.
Alguns minutos mais tarde, o médico saiu do escritório e foi em direção a um corredor. Meu pai levantou da cadeira mais uma vez pra tentar falar com o médico, e ele novamente sequer olhou na nossa direção. Sentamos novamente.
Acho que uma hora se passou antes que meu pai tentasse pedir ajuda à recepcionista novamente, e a resposta foi algo como “senhor, eu já lhe falei que o doutor está bastante ocupado” repleto de desdém, somado aquele tom que deixa claro o prazer da pessoa em te “corrigir”.
Frustrado com a situação de tentar resolver um problema da forma correta e se foder, meu pai perdeu a paciência e discutiu com a recepcionista, que daquela forma característica a funcionários públicos se recusava a fornecer muita ajuda ao mesmo tempo que lidava com qualquer pedido como se atender o cidadão pagador de impostos fosse um imenso favor de sua parte e não a descrição da sua função.
Nesse momento a frustração levou meu pai à ebulição. Revoltado de uma forma que eu nunca o vi antes, ele protestou que é um absurdo um cidadão receber tão péssimo tratamento num serviço que só existe por causa dos abusivos impostos que ele tem que pagar. E virou-se pra sair.
O médico aparentemente ouviu a explosão do meu pai e apareceu na porta de seu escritório pra ver do que se tratava a coisa. Os dois começaram a discutir; não lembro mais o que foi dito, mas o ponto principal era uma expressão de frustração com a falta de qualidade e o abandono do serviço público quando se mais precisa dele. O tom foi ficando cada vez mais alto; foi talvez a primeira vez (única, também…?) que lembro de ter visto meu pai ativamente brigando com alguém.
Meu pai encheu-se da discussão, me pegou pelo braço e virou-se pra sair, não sem antes falar algo em relação à mitológica vagabundagem do funcionarismo público. Nisso o médico avançou pra cima do meu pai, que já estava de costas. “Quem que é vagabundo aqui, seu filho de uma puta?“, berrava o médico completamente descontrolado. Uma coisa que lembro claramente é que ele NÃO tinha sotaque cearense; seria impossível confundir isso porque o sotaque cearense num momento de uma discussão como essas é inconfundível.
Ainda lembro daquela pergunta retórica sendo repetida, em tom cada vez mais agressivo, enquanto o médico se aproximava do meu pai pisando firme no chão.
Meu pai virou-se pro médico e perguntou algo como “você que realmente fazer um negócio desse na frente do meu filho aqui?“. Acredito que o médico nem ouviu, ele continuou berrando na cara do meu pai, o xingando. “Me chama de vagabundo de novo seu viado” ou algo assim.
Estávamos quase chegando no carro, enquanto o médico continuava nos seguindo e berrando. Queria MUITO lembrar o que diabos ele estava gritando, exatamente. Lembro vagamente de xingamentos, e de um repetitivo “me chama de vagabundo de novo! Quem que é vagabundo aqui?“. Comecei a pensar que os dois vão se quebrar na porrada ali mesmo.
Meu pai abre a porta do banco traseiro pra mim. O médico está cada vez mais próximo, colérico, e eu começo a me desesperar, porque o cara está MUITO perto agora, e vai atacar meu pai pelas costas. Nervoso, não olhei pra trás. Meu pai falou calmamente “entra no carro e fecha a porta“. Obedeci. Fiquei imaginando se daria tempo do meu pai entrar no carro, dar a partida e sair dali, ou se tal qual nos filmes de terror, o carro falharia num instante crucial.
Nisso meu pai abre a porta do lado do motorista e desaparece procurando algo embaixo do banco. Pela janela da porta do banco traseiro, vi o médico cada vez mais perto, ainda berrando… até o momento em que meu pai puxou uma imensa chave de fenda de cabo transparente levemente avermelhado debaixo do banco do motorista.
“Eu sei que chave é essa“, pensei distraidamente. “É aquela chave com a ponta magnética que meu pai usa pra catar parafusos que cairam no chão“.
A pose calma, que eu acho que meu pai estava mantendo por que eu estava ainda “em cena”, evaporou-se quando meu pai viu que eu estava no carro em segurança. Ele fechou a porta do motorista com uma porrada homérica, do tipo que me renderia bronca se EU fechasse daquela forma.
Meu pai virou na direção do médico, apontou a chave na direção dele, alertando-o que se ele desse mais um passo na nossa direção ele ia voltar pra dentro do IML, mas como “paciente”. O médico parou no ato, olhando pra chave, revezando entre olhar pra chave e olhar pro meu pai, e vi que inegavelmente a coragem de outrora havia sumido. O médico deu meia volta e voltou correndo pra dentro do prédio. Vi meu pai dar alguns passos indecisos na direção dele, certamente calculando se valia a pena perseguir o médico pra dar um susto nele.
Ele decidiu voltar pro carro. Jogou a chave de fenda no banco do passageiro e saímos de lá. Meu pai não falou nada sobre o incidente.
E o Samuel? Bem, o destino o levou para o IML de uma forma mais literal. Mais ou menos um ano após o ocorrido, numa viagem com seu pai pelo interior do Ceará, o carro acertou um caminhão que estava parado no meio da BR. O pai do garoto tentou desviar no último instante, mas no exercício acabou “focalizando” a porrada contra o parachoque traseiro do caminhão no lado do passageiro — onde o Samuel estava.
O choque OBLITEROU o moleque. Segundo as descrições que ouvi no funeral (o único em que fui na minha vida, aliás), a cabeça do moleque basicamente explodiu. No enterro, seu caixão estava fechado. Lembro de um dos presentes explicando, com tristeza, que “tentaram” deixar o garoto apresentável pro funeral, mas não deu.
Seu pai, por outro lado, “apenas” ficou em coma por alguns meses — e eu nunca soube se ele sobreviveu eventualmente, aliás.
Não foi meu único bully que acabou tendo final trágico, aliás. Um antigo amigo da quarta série que se juntou aos bullies no ano seguinte, o argentino Jean (ou era Gean?) Franco matou acidentalmente seu irmão J(G)ean Pietro durante treino de jiu jitsu. O moleque tinha uns 16 anos na época (1998 ou 1999), e lembro de ler notícias na época que falavam que o juiz absolveu o rapaz porque o intenso trauma psicológico de matar o próprio irmão acidentalmente já era punição o bastante.
*Sim, eu sei. Não precisa comentar. Eu cursei bacharelado em Física numa faculdade federal no Brasil, caraio.
March 28, 2015
[ A Hora da Justiça ] Valentão leva chutão de supetão e vai ao chão
Ahhh, a Hora da Justiça. Como senti sua falta!
O vídeo dessa semana é igual um Bis™: curtinho, mas delicioso.
Como é característico nessas filmagens, pegamos o conflito no meio do caminho, sem contexto que explique o que iniciou a animosidade entre os particpantes. Vemos um garoto de preto discutindo com um de boné. O rapaz de boné pode ter tomado a iniciativa de tirar satisfação do garoto de preto, mas foi este último que escalou a situação metendo um tabefe na cara do adversário.
É a deixa para que seu aparente capanga, ali do lado, começasse a desferir pontapés contra o De Boné. Ele consegue conectar um chute, e um soco, mas isso é tudo que ele conseguirá fazer hoje.
Isso é porque veloz como um tornado, aparece em cena o protetor da paz local — um sujeito de camiseta azul que pode ser algum parente do garoto que apanhava. Se não houver laços familiares, devo concluir que o cara de azul se materializou na cena pelo simples desejo de manter a ordem e a justiça no local.
Com um expert chute no tornozelo do agressor, o rapaz de azul altera completamente o centro de gravidade do bully. Num momento que certamente foi percebido pelo agressor como se estivesse acontecendo em câmera lenta, as leis newtonianas exerceram sua influência sobre seu corpo, trazendo em um rude encontro com o asfalto.
Pra não perder o combo, o Justiceiro Urbano de Camiseta Azul (o seja, o JUCA) ainda desfere um potente soco contra a cachola craniana do valentão, adicionando que “aqui não, rapaz” e “quer pegar, pega sozinho”.
Com berros do tipo que leões dão para confirmar sua autoridade sobre os outros animais da savana, o JUCA deixou claro que ninguém mais ia bater em ninguém ali.

Fig1: Um brigão oportunista executando uma aceleração de 10m/s^2 com direção ao centro magmático do nosso planeta. No lado direito, o momento exato em que o garoto de camisa preta percebe que entrou numa furada. Sua saída do vídeo ocorre por meios de teleporte, porque no outro frame ele já sumiu da região
A ordem foi estabelecida prontamente mediante à cirúrgica administração daquele chute e soco.
Escala Capitão América de Justiça: 9/10. O justiceiro anônimo chegou rápido, antes que a vítima pudesse ser mais agredida. Um chute potente desativou um dos agressores e fez com que o outro executasse um Hiraishin no Jutsu pra longe dali. A perda de um ponto se dá pelo soco quando o oponente estava caído, e vocês sabem que a agência reguladora que controla a ECA exige que o justiceiro exerça parcimônia em sua injeção de porrada para obter um 10/10 perfeito.
[ Joguinho Viciante da Semana ] Doctor Life, um simulador médico!
Doctor Life é um joguinho relativamente velho (lançado originalmente em fevereiro de 2014), mas como fui relapso o bastante para não recomendar naquela época, recomendo agora. E tendo finalmente terminado meu curso de paramedicina (com média geral de 84%, caraio!), é até bastante pertinente falar do jogo agora.
Em Doctor Life, você se torna um médico recém formado montando sua pequena clínica, que vai evoluindo e se transformando num enorme hospital. No começo, como a infraestrutura da sua clínica é simples, você só pode diagnosticar doenças simples, e medicar o paciente com remédios simples também. Ao construir novas instalações (como um laboratório, uma sala de raio X, um consultório oftalmológico), sintomas antes não identificáveis começam a ficar mais claros, e assim você vai podendo tratar uma gama maior de pacientes.
Como você pode ver no screens acima, embora seja um jogo com aparência bonitinha e certamente simplificado no que diz respeito à ciência médica, eles não cartunizaram a coisa ao nível de um Theme Hospital da vida, onde pacientes tinham “DNA alienígena”, “cabelite” ou “invisibilidade”. Em Doctor Life, você constrói um laboratório de urinálise, que te permite começar a detectar níveis de nitrito e células brancas no mijo dos pacientes — o que pode significar infecção urinária.
Antes de construir esse laboratório, esses sintomas apareceriam na ficha do paciente como vários pontos de interrogação, impossibilitando o diagnóstico.
O gameplay funciona da seguinte forma: a cada dia, você abre seu centro médico. Pacientes começam a perambular pelo local, com pequenos balões de fala indicando que tipo de moléstia os aflige — problemas de visão, ou musculatórios, ou das tripa, e por aí vai. Clique num deles, e abre um pequeno relatório como o que você vê acima. Aí é questão de identificar os sintomas e diagnosticar corretamente a doença.
Os sintomas correspondem — de forma simplificada, mas correspondem — com as doenças reais, então se você tem algum background médico, vai ter uma facilidade maior no processo de aprendizado de diagnóstico no Doctor Life. O jogo não te ensina nada; você vai diagnosticar alguns pacientes erroneamente no começo até aprender como algumas doenças se manifestam. Uma vez que você identificou corretamente a doença, você precisa então tratar o paciente.
Nessa etapa, novamente através de tentativa e erro, você vai aprendendo que medicamentos funcionam para quais doenças. Como no mundo real, há mais de uma forma de curar algumas doenças. E se você for como eu, que é burro e esquece de repor o estoque dos seus medicamentos antes de começar mais um dia, aparece um paciente com alguma infecção e você tá sem antibióticos, forçando você a indicar o doente a outro médico e perdendo aquela grana.
A manha do jogo é curar o máximo possível de pacientes durante o horário de trabalho do seu hospital, que começa bem breve e vai aumentando à medida que você constrói instalações que permitam isso (por exemplo, o gerador adiciona 15 segundos a mais ou seu dia; uma galeria de arte faz com que os pacientes passem mais tempo dentro do hospital, antes de perderem a paciência e irem embora).
Ainda não apresentei o jogo pra alguém da área médica que não tenha gostado da mecânica do gameplay.
Vê o jogo funcionando aí:
Tem pra iPhone, Android e PC. No iPhone e PC, custa US$2.99. Android, US$3.33.
March 21, 2015
Porque as manifestações brasileiras podem acabar PIORANDO nosso país
Esse é possivelmente o meu post mais pessimista, e que mais provocará a ira de meus leitores e me renderá alcunhas políticas, mas vamo lá.
Não seria exagero dizer que uma das mais distintas características do povo brasileiro é uma histórica inércia que se manifesta num sentimento generalizado de “ah, relaxa, deixa do jeito que tá, tá tudo bem“.
Por tanto tempo estivemos entretidos com novelas e carnaval e Big Brother e Brasileirão (ou ao menos é a queixa que sempre ouvi dos intelectuais), que chega a ser surpreendente a recente mobilização política que estamos presenciando no país. Tenho apenas 30 anos, então evidentemente minha visão pessoal é limitada, mas arrisco dizer que nunca vi a população brasileira tão engajada em relação a política. Talvez seja porque a putaria parlamentar chegou a um nível impossível de ignorar, ou talvez porque essa nossa geração é mais acostumada a trocar idéias e se organizar usando métodos digitais, o resultado é o mesmo — atualmente, TODO MUNDO FALA DE POLÍTICA.
Até mesmo eu, um cara que escreveu um relato de como cagou no tapete do próprio banheiro.
Então. Por um lado, essa mobilização é um sinal de que pelo menos não estamos mais levando na bunda impassivelmente. Revoltar-se contra o governo — e mais importante, externalizar essa revolta — é o caminho para mudanças, não é? Não é?! Ficar quieto e deixar do jeito que está não resolverá nada. Certo?
Certamente, deixar tudo da forma que está fará com que as coisas apenas tendam a piorar. É impossível discordar disso; as coisas não vão simplesmente melhorar do nada sem a pressão popular.
O problema é que a defesa que me oferecem dessa súbita conscientização política (ou seria mais apropriado chamar de mobilização partidária…?) é a falsa dicotomia “se deixarmos como está, tudo piorará; logo, manifestação contra o status quo necessariamente melhorará tudo“.
E o problema é que isso não é necessariamente verdade. Enquanto inação certamente não muda a situação, as ações, motivações e o espírito errado podem piorar AINDA MAIS as coisas.
Deixa eu exemplificar pra você. Estão acontecendo manifestações generalizadas no Brasil (recebendo atenção internacional, a propósito) há mais ou menos dois anos. Nos últimos dois anos, eu não sou capaz de apontar nenhuma — NENHUMA — mudança positiva, por menor que seja.
Alguns falarão que dois anos é pouco tempo, evidentemente. Estou sendo “imediatista”, porque existe alguma regra universal que rege quanto tempo demora, exatamente, pra que uma manifestação popular comece a render frutos. Tem que ser pelo menos 400 dias úteis, valendo entre 9 da manhã e 5 da tarde, com os ajustes necessários do horário de verão!
Pra determinar que dois anos de protestos brasileiros é “muito pouco tempo”, precisamos ignorar que é perfeitamente possível que protestos mostram resultados com muito menos tempo que isso.
A Primavera Árabe derrubou ditadores em meses. Na Tunísia, o presidente pediu pra sair após menos de um mês de protestos. No Yemen, botaram o presidente pra correr em menos de um ano. Na Líbia, após oito meses escorraçaram um ditador que estava no poder por quatro décadas. E isso tudo, não esqueçamos, em protestos que o governo respondia na base de bala. Então calcule a disposição desses governantes a continuar no poder a qualquer custo, compreenda o quão impressionante é que tenham renunciado.
As estimativas são de que mais de 170 mil pessoas morreram nesses protestos.
E não precisamos nem ir tão longe. No nosso próprio Brasil, os Caras-Pintadas chutaram pra fora um presidente em pouco mais de um mês.
Então, não. Paremos com essa desculpa esfarrapada de “mas foi pouco tempo ainda!”. A história nos mostra que sim, é possível mudar a estrutura de poder de forma drástica em relativamente pouco tempo. Pra defender as manifestações, você terá que me dar uma justificativa melhor que essa. RESULTADOS seriam o melhor argumento, mas como não temos literalmente nenhum ainda…
A única “melhoria” que me ofereceram como resultado dos protestos é que a Dilma anunciou um pacote anti-corrupção. Aquele mesmo que o Lula ofereceu ao Congresso em 2005, lembra? Aquele que resolveu todos os problemas de Brasília!
Esse é resultado sendo celebrado. Não é só a inação brasileira que é já folclórica, é nossa memória curta também. Tão curta que parecemos esquecer que a mulher é aliada de paladinos da moral e honestidade política como Collor, Renan Calheiros e Sarney, mas ainda assim nos animamos por ouvir que ela ofereceu um pacote anti-corrupção.
Aliás, se você parar pra pensar de 2013 pra cá TUDO piorou. Quanto você pagava pra encher o tanque do seu carro naquela época? Quanto chegava a fatura do seu cartão após compras no eBay? Então. Eu não tenho como avaliar os protestos como benéficos baseando-se em resultados, e nem posso me satisfazer com “ahhh mas tem pouco tempo ainda” porque não existe uma data de corte pra que manifestações comecem a produzir efeito, e temos incontáveis exemplos de manifestações (tanto no nosso país como fora) que tiveram algo a mais pra mostrar em MUITO menos tempo.
Ok, então parece que até agora não temos tantos bons resultados dessas manifestações pra celebrar. Mas, seguindo a máxima que mencionei antes, melhor isso do que não fazer nada, não é mesmo? Se a alternativa é completa imobilização, é melhor sair na rua e protestar.
É aí que eu tenho que discordar novamente. Não, o protesto por si só não é inerentemente positivo para o futuro do Brasil — ESPECIALMENTE quando ele divide completamente a nossa nação.
Eu nunca vi o Brasil tão partidariamente dividido. Acompanhando as eleições presidenciais americanas de 2004, eu fiquei chocado com o nível inflamatório da retórica republicana versus democrata. O nome “Estados Unidos” pareceu mais irônico do que nunca para o país, considerando o veneno que um partido vertia em direção ao outro.
E isso me parece fichinha hoje considerando o cenário político brasileiro. Chegamos ao ponto de que o termo “petista” já virou de fato um xingamento, e os oponentes do partido em poder não são seres humanos com opiniões, sugestões ou posicionamentos — são COXINHAS.
Chegamos ao ponto de que existem vídeos no YouTube de manifestantes batendo uns nos outros por reação pavloviana ao ver alguém usando uma “camisa comunista”.
E vemos agressão vindo do outro lado, também:
Não bastasse essa “conscientização política” não estar nos dando resultados tangíveis, ela está alimentando uma histeria partidária sem igual no nosso país. O ódio não é mais nem contra um ou outro partido, é contra as próprias pessoas. Termos como “coxinha”, “reaça”, “petralha” e derivados acentuam a demonização, a despersonificação do debatedor. E o fato de que estas alcunhas são lugar comum no nosso país, sendo jogados como granadas ideológicas na cara uns dos outros, me preocupa pra caralho.
Sabe por que? Porque nesse ambiente de histeria ideológica é que as MAIORES MERDAS costumam acontecer. Essa guerra de classes, essa demonização do oponente ideológico/político, essa dogmatização cega de “todos os nossos problemas são por causa daquele grupo X ali, esses FILHOS DA PUTA!” são os mecanismos que possibilitam um Terceiro Reich, ou uma revolução soviética, ou os mujahideen afegãos.
Lembra da Primavera Árabe? Você talvez tenha pensado “mas que bom que o povo se levantou, né? Que solução perfeita, que coisa bonita. Tá vendo, a solução pra tudo é o levante popular mesmo!“. Exceto que no Egito, colocaram no poder Mohamed Morsi, um sujeito ainda pior que o primeiro ditador — e aí foi preciso quebrar pau por uma segunda vez pra tirar esse SEGUNDO maluco do poder. Ah, e no processo da eleição do cara, acabaram montando um cabinete presidencial com participação de representantes de um pseudo-partido político considerado por países da região como um grupo terrorista, um grupo do qual Morsi era um orgulhoso membro.
Olha só que BELEZA.
A putaria foi tamanha que executaram inúmeros apoiadores do Morsi quando ele foi deposto pelos militares. Se arrepender de votar num presidente é uma coisa; imagina então ser executado quando tiram o cara do poder. Virou bagunça total.
E falando em bagunça, não esqueçamos do que tá rolando na Síria. Uma guerra civil estourou no país durante a Primavera Árabe, e que beleza, né? O povo protestando, clamando por direitos/mudança governamentais, sírios unidos jamais serão vencidos! Acontece que no meio dessa bagunça, um grupo oposto chamado ISIS cooptou a briga e o resultado disso você deve ter visto nos jornais. Uma boa fatia do país é agora controlada por terroristas cuja missão professa é matar ocidentais e expandir o governo totalitário muçulmano. Já morreram uns 200 mil nessa.
Meta uma coisa na sua cabeça — protestos, por si só (especialmente esses que fomentam esse tipo de divisão entre o povo) não são uma coisa boa para o país. Leia a frase anterior 3 vezes se for necessário.
Eu sei que você está achando bonito o povo engajado, e o quão melhor isso é do que a total paralisia, mas eu convido você a analisar cuidadosamente a verdade inconveniente de que às vezes, esse tipo de protesto sai pela culatra de forma catastrófica.
Estou sendo exagerado/catastrófico, né? Essa total insatisfação do povo — que aponta pros seus próprios compatriotas como a raiz de todo o mal — não iriam dar margem para a ascenção de figuras extremistas ou coisa do tipo, não é mesmo? Hitler, Lenin, esses caras que tomaram poder em situações similares são coisas do passado, não é mesmo?
Este é Jair Bolsonaro. O cara tá na vida pública desde os anos 80, mas atualmente goza de uma relevância política inédita — surfando a onda da insatisfação nacional com “esses petralhas filhos da puta”. Este homem defende a ditadura militar, acredita que um pai deve bater pra “curar” o filho homossexual, defende a tortura, fez comentários favoráveis à eugenia, argumenta que mulheres deveriam ser pagas um salário menor, acha que o povo indígena é “fedorento e não educado“, diz que preferia um filho morto a um filho homossexual (mas isso não se conserta batendo, de acordo com ele?), e diz que seu filho jamais se apaixonaria por uma negra porque “foi bem educado dentro de casa“.
E o que acontece quando esta ilustre figura (que foi um dos deputados mais votados no Brasil nas últimas eleições) com ideais tão idôneos aparece entre os manifestantes? Bom, taí o vídeo.
Então vamos recapitular. As manifestações até agora não afetaram positivamente o status quo político (pelo contrário, a Dilma aparece AO LADO DO SARNEY pra oferecer um pacote anti-corrupção requentado), está levando o nosso povo a uma histeria coletiva e uma divisão ideológica ímpar, e de quebra permite que figuras como o Bolsonaro não apenas se tornem um dos políticos mais relevantes do nosso país, mas ainda o dão inspirações presidenciais.
Eu te pergunto novamente: o que toda essa “conscientização política” nos trouxe de bom, exatamente, até agora?
Sim, protestar é preciso. Sim, ficar na mesma não melhorará as coisas. Eu sei disso.
Mas parem de ver protestos e “conscientização” como fins em vez de meios, como elementos inerentemente positivos sem qualquer potencial pra dar merda e que que não precisam ser criticados ou analisados. Recordem-se de momentos cruciais na história em que esse tipo de histeria e divisão popular deu merda ATÔMICA, atentem nas figuras que estão cooptando esse zeitgeist de raiva popular.
Antes que seja tarde demais. Afinal, até mesmo o melhor remédio ainda tem efeitos colaterais.
Ah, e uma última coisa que quase esqueci. Num desses protestos contra corrupção, uma padaria em Fortaleza teve mais de uma CENTENA de produtos furtados por manifestantes.
Me pergunto se, ao se revoltar e exigir mudança dos políticos vez de nós mesmos primeiros, estaríamos talvez tentando construir uma casa começando pelo telhado.
March 12, 2015
A amiga revoltada com os “médicos escrotos”
Você imaginaria que passar pelo treinamento pra me tornar um paramédico me faria mais confiante nos meus conhecimentos em relação a anatomia e fisiologia, mas eu tenho reparado um efeito contrário — quanto mais eu estudo, mais eu receio que o corpo humano está além da minha compreensão, talvez porque minha cabeça já tá muito lotada de conhecimento inútil e talvez eu não devia ter passado tanto tempo lendo trivias do IMDb e o TVTropes.
Eu tento compreender os mecanismos biológicos que regem nossa existência, mas essa porra é COMPLICADA e eu jamais me senti TÃO burro quanto quando tento entender a química de neurotransmissores e seus efeitos no corpo humano. Se tudo mais falhar eu largo tudo e vou vender CDs na praia em Fortaleza.

Eu espero que falar inglês me coloque numa boa posição na indústria de vendas de CDs piratas na praia
Talvez por esse reconhecimento de minha própria ignorância, eu respeito absurdamente os profissionais de saúde que já chegaram mais longe que eu academicamente. Se o cara conseguiu convencer uma universidade E o órgão regulador local que de fato manja dos paranauês da medicina, não sou eu quem duvidará de seu conhecimento.
Entretanto, existem alguns mais leigos que acham que de fato manjam mais que médicos. E foi o caso de uma amiga minha hoje no Facebook.
Em seu textão, a garota mandava uma hipotética carta aberta para todo o sistema público de saúde da região. Sua principal reclamação era a pergunta “há chance de que você esteja grávida?” que seu médico teria feito durante um exame para descobrir a origem de uma dor nas costas. De acordo com minha amiga, isso é desrepeitoso e machista, porque “o médico está fazendo perguntas completamente irrelevantes que me reduzem ao meu sexo!”
Ok, posso estar com uma dificuldade sobrecomum pra dominar a farmacodinâmica das drogas que damos aos nossos pacientes, mas se tem uma coisa que eu já tou manjando são os protocolos de diagnósticos. Tentei explicar pra minha amiga que existe um “script” de perguntas que fazemos pra pacientes, especialmente no caso dela (dor nas costas).
Pra eliminar algumas possibilidades, fazemos uma série de perguntas padronizadas — se o paciente tem alergia a alguma coisa, se toma algum remédio no momento, se já foi hospitalizado por algum momento, se notou alguma diferença recente nas fezes ou na frequência de evacuação… e uma dessas perguntas, feitas a qualquer paciente mulher entre 14 e 45 anos, é se existe a possibilidade de que ela esteja grávida.
Gravidez frequentemente é capaz de causar certos sintomas antes mesmo que a paciente descubra que está grávida — e de fato, muitas descobrem justamente ao ir num médico examinar tais sintomas. O médico não estava sendo machista nem coisa do tipo, ele estava usando uma série de perguntas pra eliminar possíveis causas da dor, e com isso bolar um tratamento. Por motivos óbvios, possível gravidez precisa ser confirmada, e o tratamento para uma gestante de 25 anos é diferente daquele recomendado a um homem de 50 anos, por exemplo. A gente precisa saber desses detalhes.
A garota continuou irredutível, dizendo que o médico estava “insinuando que ela seria promíscua” (sério, a menina realmente falou isso), que não tem nada a ver perguntar se ela estaria grávida “porque nem namorando eu estou”, e “se eu estivesse grávida, você não acha que eu já saberia e já teria mencionado? Não sou uma idiota”.
Eu continuei, pacientemente, tentando explicar pra garota que o seu médico não tentou insinuar nada sobre sua vida sexual ou coisa do tipo. Expliquei que ao contrário do que ela alegava, sim, às vezes o paciente pode sentir dor em um local além daquele que está realmente gerando a dor. Ela ignorou isso completamente e continuou usando como “prova” da má vontade/ignorância do médico o fato de que não faria sentido perguntar sobre gravidez se a dor nas costas “nada tem a ver com meus genitais”.

Fig1: Ignorância plena
Em um determinado momento eu cansei de tentar explicar o motivo pra pergunta (ela focou na teoria de que o médico estava insinuando que ela era uma “vagabunda qualquer”) e eu sugeri que ela expressasse seu incomodo ao próprio médico, e ela veria que a explicação dele seria a mesma que a minha.
Minhas explicações à garota começaram a acumular likes, o que ela deve ter percebido com um certo incômodo/vergonha. Nesse ponto a história mudou — o médico não perguntou se ela estaria possivelmente grávida, ele teria perguntado com desdém “tem certeza que não é só uma TPMzinha? rs” e se recusado a dar qualquer tratamento.
Nesse ponto eu vi que a garota não estava disposta a considerar que xingou seu médico publicamente na internet a troco de nada, por ignorância, e desativei as notificações do tópico. Esse textão dela combinou duas coisas que me incomodam muito — esse berro de “MACHISMO!!!” com tons de caça às bruxas/Medo Vermelho McCarthyísta (ou seja, uma acusação frequentemente vazia, movida por motivações dúbias, e da qual é muito difícil de se defender sem ser atacado por uma turba sanguinolenta), e gente ignorante que acha que sabe mais que profissionais de saúde.
Eu pelo menos admito abertamente minha burrice.
March 9, 2015
O dia em que eu mijei no meu gato
A infinita sapiência divina deve ter determinado que apenas homens explorariam os confins do cosmos, dividiriam o átomo, escreveriam sinfonias e jogariam Magic the Gathering. Talvez é por isso que gatos não tem polegares opositores. Se tivessem, sem dúvida os felinos seriam nossa principal competição nestas empreitadas científicas, porque o ímpeto principal para o ensejo da exploração do universo os gatos já tem: a curiosidade.
Acho que nenhum animal é tão curioso quanto um gato. Abro a geladeira? O Marshmallow vem VOANDO, mete a cabeça dentro e começa a investigar as minhas compras. Abro uma caixa qualquer, ele imediatamente mergulha nela, tomando-a para si próprio e explorando cada centímetro quadrado da área interna da caixa, cada aresta. Um simples cadarço, que pra eu ou você serve apenas pra manter o sapato no pé e olhe lá, é uma fonte inesgotável de fascínio para um gato.
Gatos são, à sua forma, cientistas. Por exemplo, o meu gato conduz há alguns meses um experimento cuja finalidade é testar os efeitos da gravidade em copos de vidro. E a despeito de já ter verificado pessoalmente (gatunamente?) que poucos copos em minha residência resistem à parada súbita após cair a 10m/s^2, Marshmallow prossegue diariamente os experimentos, imagino, porque só quer publicar seu paper quando testar a hipótese com todas as possíveis variáveis — copo comprido, copo curtinho, copo cheio de água, copo semi-cheio, copo com suco de laranja, copo com marca de batom. Recentemente, o Marshmallow deve ter recebido um bolsa de iniciação científica ou algo assim porque recentemente ele decidiu upgradear o experimento. Semana passada ele derramou um copo de 700ml de suco de uva em meu livro de trauma e anatomia que custa apenas 300 dólares.
Assim como o próprio ser humano, cuja irresistível curiosidade impulsionou em missões que arriscavam seu próprio bem estar — exploração marítima, e posteriormente espacial –, gatos também colocam a própria segurança em segundo plano quando estão engajados em explorar o mundo em seu redor.
E foi assim que eu mijei no Marshmallow.
Há alguns dias eu estava aqui assistindo House of Cards de boa quando os 2 ou 3 copos de água que eu bebi momentos antes começaram a se manifestar em minha bexiga. Eu estava sozinho em casa e, como rege a cartilha do Homem Casado, exerci toda a minha autonomia e poder indo dar aquela mijadinha aliviadora com a porta aberta.
Agora, eu estou ciente das aspirações científicas do Marshmallow. Sei que o ruído de mijo água caindo no vaso o faz espevitar a orelhinha e escanear o ambiente. Entretanto, há um respeito mútuo entre nós. Talvez porque ele interprete meu alívio renal como uma espécie de marcação de território, o gato geralmente CORRE pro banheiro e, ao me ver regando a porcelana, pensa “opa, aquilo ali é dele. Foi mal aí parceiro, desculpa qualquer coisa. Já que já estou aqui mesmo, a propósito, você viu aquele ponto vermelho que eu tava tentando pegar ontem? Estive procurando hoje e parece que sumiu”
(Aliás, me contaram há algum tempo que gatos fazem isso porque eles se amarram em água corrente, e por isso comprei uma pequena fonte pra substituir o pratinho de água estático e sem graça que ele tinha antes)
Então, considerando este contrato social inter-espécies, fui ao banheiro mijar aliviadamente.
Neste dia o Marshmallow me surpreendeu. Poucos segundos após vazar a urina, o gato se materializa no ar entre minha cearense piroca e a privada. Sei que gatos estão acostumados a quebrar leis da física, mas essa foi tão súbita, tão chocante, que mal tive o tempo de berrar de susto — mas berrei assim mesmo porque sempre fui um cara que sabe achar o tempo para funções necessárias.
Como num filme em câmera lenta, vi o gato singrando os ares, girando levemente num eixo imaginário que ia de sua cabeça ao rabo. O gato pulou intencionalmente no meio do meu jato de mijo, e eu mal consegui desviar — antes que eu pudesse reagir, sua cabeça e pescoço foram encharcados de mijo.
O meu instinto natural foi virar na posição oposta. O problema é que, se eu tivesse dedicado um segundo a mais pra calcular e antecipar a trajetória de vôo do Marshmallow, teria sido óbvio que ao tentar fugir pra direção OPOSTA, eu estaria apenas igualando sua direção, rotação e velocidade tal qual uma sonda que acopla na Estação Espacial trazendo mantimentos. Como resultado, eu acidentalmente mijei mais ainda no pobre gato.
Demorou menos de um segundo pra compreender a trajetória de colisão prolongada entre o gato e a torrente de xixi. Executei manobras evasivas (apontei a piroca pra cima) ao mesmo tempo que tentava expulsar o gato verbalmente do banheiro. No processo, mijei também a privada, o chão, um pouco da parede, a cortina do box, a lata de lixo e aquela escovinha de limpar a privada.
O gato foi saindo do banheiro se sacodindo e assim borrifando mijo nas superfícies em que eu ainda não havia mijado.
Só mijo de porta fechada agora.
February 26, 2015
Enquanto Whatsapp poderá ser bloqueado no Brasil, Viber e Telegram se estapeiam
Sim, eu sei que o HBD não tem sido atualizado com frequência. Estou em semana de provas fodidas (a nota de corte é 75% e as examinações práticas contém INÚMERAS questões cujo erro causa reprovação imediata, então imagine minha tensão aqui) e não era nem pra estar na frente do computador no momento, mas tá rolando algo tão peculiar que eu precisava reportar aqui. Acredite em mim, minha distância do HBD e do meu canal no YouTube dói mais em mim do que em você. No sábado estou de volta!
Pois bem. Como os senhores indubitavelmente já sabem a essa altura do campeonato, um juiz do Piauí decretou o bloqueamento nacional deste sucessor espiritual do Orkut. E sim, eu acho realmente interessante do ponto de vista sociocultural como o Whatsapp virou uma rede social no Brasil. Aqui fora, por outro lado, SMSs ainda são padrão.
O motivo é que rola uma investigação sobre a divulgação de um vídeo de cunho sexual que levou ao infeliz suicídio de uma garota do Piauí, e o Whatsapp foi convocado (em 2013) a liberar informações sobre usuários envolvidos na parada. Pela omissão em cooperar com a investigação, o juiz determinou que o serviço deveria ser tirado do ar em todo o país.
As empresas de telefonia estão lutando contra a decisão, o que me surpreendeu um pouco porque eu imaginei que forçar o país inteiro a abandonar sua predileção por apps de mensagem instantânea em prol das paleolíticas e onerosas SMSs faria os olhinhos dos executivos das operadoras cintilarem.
E aí chega a parte mais engraçada da notícia sem a qual eu não teria me dado ao trabalho de interromper minha memorização da farmacologia de nitroglicerina e sua aplicação para tratar dor cardíaca. A nitroglicerina, aliás, é contraindicada se o paciente consumiu Viagra nas últimas 24 horas, e sua ação se dá primariamente por relaxamento dos músculos vasculares, causando dilatação venoarterial, aliviando a dor coronária mas ao mesmo tempo baixando pressão como efeito colateral.

Disponível como spray (0.4mg), comprimido (0.3mg) ou adesivo cutâneo (0.6mg/hora). No cenário emergencial, só usamos os dois primeiros.
O brasileiro, já dependente de seu Zapzap, se desesperou ao saber que o brinquedo poderia ter sido tomado das suas mãos assim “do nada”. Com isso rolou um grande êxodo pra apps de serviços similares, como o Telegram ou Viber. Aliás, decida logo qual você vai preferir ouvir na rua daqui alguns meses, “Vi” ou “Telê”.

ME PASSA TEU TELÊ AÍ, GATA
O Telegram, que até hoje era uma espécie de Whatsapp hipster (trazendo de volta pra analogia de redes sociais, o Telê estava para o Whatsapp assim como o Facebook estava para o Orkut em meados de 2008 ou 2009), explodiu de popularidade da noite pro dia em solo tupiniquim. E assim como o seu crescimento súbito durante o período da puberdade, o Telegram está sofrendo perrengues nesse período de adaptação.

Mantendo a tradição áurea, a súbita entrada de brasileiros num serviço online esculhambou a parada pros usuários americanos.
E não ficou só nisso. Apesar das reclamações de falta de serviço dos users gringos, o competidor Viber viu o influxo de brasileiros como um sucesso comercial e pensou, porra, podia ser nóis nesse bem bom aí, parceiro!
Então, o Viber resolveu atrair atenção de usuários em potencial atacando a reputação dos competidores:
O Telê (já estou tentando te acostumar de antemão) não deixou barato:
Sendo estapeado na cara com tão flagrante “fica na tua aí broder porque senão vai dar ruim pra você”, o Viber respondeu com um meme pífio que na minha época de quarta série teria sido interpretado como uma arregada nervosa com tons de “era só brincadeira mano, calmaí!” na tentativa de evitar uma surra na saída.
Estaríamos presenciando o começo de uma GUERRA DE INSTANT MESSANGERS?
February 17, 2015
O asqueroso porém incrível mundo das lombrigas

A minha consideração com vocês é tanta que eu me dei ao trabalho de Paintizar essa imagem em vez de pôr aqui uma foto de uma lombriga real
Eu não sei se ainda rola isso, mas quando eu era pivete sempre tinha um capítulo no livro de ciências sobre o ciclo de vida de parasitas. Inevitavelmente tinha uma ilustração que explicava a perpetuação dos vermes no interior do Brasil: um capiau infectado cagava no mato bem do lado da lagoa onde pega água, ou perto de um poço. Os ovos dos parasitas em suas fezes iam correndo pra água, que então era bebida ou usada pra regar plantinhas, e começava tudo de novo.
Eu nunca entendi porque vermes eram um problema tão grave no Brasil. Se essa imagem era suficiente pra que até eu, um moleque de 10 ou 11 anos, entendesse que devemos cagar um pouco mais longe dos locais onde bebemos água, qual seria a dificuldade de tirar umas xerox daquela página e entregar na roça? “Seu José, eu entendo que aquele seu lugar de cagar é uma espécie de tradição familiar de várias gerações, mas se o senhor cagar uns 100 metros à esquerda a gente resolve esse problema” Bastava uma propaganda de 15 segundos no comercial da novela e levaríamos as lombrigas à extinção.
Como faziam uns 20 anos desde a última vez que li sobre as lombrigas naqueles livros lá, resolvi dar um pulinho na Wikipédia para bater um papo com essas velhas das aulas de biologia.
Uma parada que eu não sabia é que as lombrigas só infectam humanos. De toda a fauna terrestres, nós somos o único hospedeiro pra elas. Nascemos um para o outro.
Outro negócio que eu também não sabia é que as lombrigas não ficam apenas no intestino como as ilustrações dos meus livros explicavam. Imagino que os autores estavam nos salvando do real horror das lombrigas. Na real, esses parasitas passeiam por todo o seu corpo — ao chegar no intestino, eles vão de carona na corrente sanguínea até chegar ao seu fígado. Dão um rolê por lá, e aí sobem pro teu coração (mano, pare por um instante e calcule o absoluto terror de ter uma lombriga NO SEU CORAÇÃO.
Do coração, as lombrigas vão de mala e cuia pro teu pulmão, que é meio que a casa de praia delas. As lombrigas ficam de boa lá por um tempo, relaxando e roubando um pouquinho do seu oxigênio. Quando ficam muito grandes, é a hora de retornar pra casa — as tripas.
A comitiva de lombrigas (humanos infectados geralmente tem entre 5 ou 6) sobre pra faringe, que é perigosamente e nojentamente perto da sua boca. Dão uma meia volta na altura no esôfago, e prosseguem em direção ao intestino.

Fig. 1: Seu intestino
Eis um dos muitos problemas em ter seres vivos habitando o seu corpo. Algumas lombrigas às vezes erram o caminho e saem pela boca do vivente.
Imagina você de boa no colégio, ou na balada, e de repente, não mais que de repente, uma lombriguinha bota a cabeça pra fora da sua boca. E você, conversando enquanto isso acontece, acidentamente morde a cabeça da lombriga.
Isso se você tem sorte. Essas lombrigas errantes pode se entalar nos seus brônquios e causar morte por asfixia.
Que mundo é esse em que vivemos, mano.
A parte mais assustadora é o fato de que um quinto da humanidade está infectado por lombrigas — ou seja, se você tem uma família de 5 membros, aquela coceirinha que você sentiu na garganta hoje pode muito bem ser uma lombriga perdida. A incidência é alta no Brasil porque, de acordo com a Wikipédia,

Caralho! Quando vocês falaram que o Brasil piorou com a Dilma eu não levei a sério! Nossas crianças estão comendo TERRA agora?!
Poisé. A propósito, se você quiser ter mais pesadelos, fique sabendo que nesse translado as lombrigas às vezes se perdem HARDCOREMENTE e vão parar sabe onde?
No seu olhinho.

Pelo amor de deus
O que estou tentando dizer aqui é que existe uma chance razoável que você tem um pequeno time de lombrigas fazendo uma maratona dentro da suas cavidades.
No meu próximo post, explicarei o curioso fenômeno brasileiro das aranhas marrons fazendo “ninhos” dentro de colchões.
February 16, 2015
[ Todo Dia Tem Um Textão ] “Turbante não é moda”
Há algum tempo eu venho dizendo que a máxima “Todo Dia Tem Uma Merda” (o título do meu livro e um ditado popular que prega que ninguém escapa um dia inteiro sem alguma pedra no meio do caminho) precisa ser adaptada para a era do ativismo online. Com tanta gente “conscientizada” hoje em dia, estamos presenciando o fenômeno da proliferação dos chamados “textões de Facebook” — isso é, mini teses de conclusão de curso que almejam educar o cego e ignorante populacho sobre alguma grande injustiça ocorrendo diante de seus olhos.
E assim como Todo Dia Tem Uma Merda, está provando-se igualmente inevitável que Todo Dia Tem Um Textão.
Nesta nova coluna, proponho debater o textão du jour que circula nos nossos Facebooks.

Eu teria levado o argumento um POUCO mais a sério se a ilustração não tivesse sido feita no Paint.
O textão a seguir veio até nós por cortesia da página Mulher Negra – Voz, um grupo relativo pequeno com apenas 225 membros. Neste caso em particular, a baixa taxa de adesão do grupo não pode ser usado para argumentar que o textão vem de um núcleo marginalizado dentro do ativismo online: já vi argumentos semelhantes, senão idênticos, sendo usados pelos segmentos mais mainstream da luta virtual.
Segue o textão:
Precisamos falar sobre algo urgente – Apropriação Cultural 2!
Turbante não é moda!
O uso do turbante é bem mais que simples pano enrolado na cabeça, é resistência, é luta e consciência da nossa ancestralidade e identidade negra.
No período da escravidão o turbante era usado para diferenciar os grupos africanos, de onde vieram, não só pelo o enrolar do turbante, mas toda a vestimenta. Entre as nagôs, o ojá era amarrado com várias voltas ao redor da cabeça, usavam também para amarrar bebês na cintura, nas costas cabelos e no busto para roupa de algum orixá.
Os negros dobravam o tecido em formato triangular, com a ponta para trás, esmerava os mais belos bordados e muitas anáguas. Além disso, tinha como objetivo de proteger a filha de santo que terminava sua iniciação que normalmente estava com a cabeça raspada.
Se a Europa tem sua cota de participação no figurino dos descendentes de africanos no Brasil, também é grande a herança árabe-islâmica. “O turbante é reconhecidamente de influência mulçumana, que chegou ao Brasil provavelmente através dos escravos islamizados, durante o Ciclo da Baía do Benin no século XIX, e também pelos portugueses”, afirmam as pesquisadoras Juliana Monteiro e Luzia Gomes Ferreira.
Após esse período o uso do turbante continuou ativo, os negros usam na contemporaneidade não só como símbolo ou memoria, mas como resistência, identidade e religião (Candomblé).
Atualmente podemos notar que o turbante está bem popularizado entre nós irmãos e irmãs de cor e isso é algo que devemos comemorar e muito, pois é sinal de que cada vez mais nós estamos afirmando nossas raízes e nos colocando pra sociedade quanto negros e negras que sabem de sua história e que exigem respeito!
Que respeitem nossa cor, nossos valores, nossa cultura!
Herdamos o não calar de nossos e nossas ancestrais que nunca ficaram caladxs diante da opressão que sofreram. É motivo de felicidade nos vermos por aí, por todos os cantos com nossos turbantes pois nosso corpo todo fala, inclusive nossa cabeça, o turbante é mais uma maneira de gritar contra o racismo sistemático, estrutural e institucional que sofremos. Nosso turbante é sinal de empoderamento, de termos ciência de que não podemos em nenhum momento baixar a cabeça pra essa sociedade capitalista que nos oprime de tantas e tantas maneiras.
Até então falamos de nós usarmos nosso turbantes o que como já disse é algo de encher o coração e a alma de esperança, sinal de que a luta de nossos ancestrais não foi em vão, pois nós continuamos na resistência!
Mas é preciso lembrar que uso do turbante não é algo estético pra gente, é luta!
É extremamente ofensivo a nossa história se você, brancx usa turbante. É interessante que vocês se reconheçam quanto seres privilegiados, vocês não sofrem com o preconceito e o racismo.
É apropriação cultural quando a mídia, esta mídia Brasileira que é controlada por apenas 6 grandes famílias elitistas que disseminam racismo em todos os horários de todos os programas de sua programação e coloca diversas atrizes brancas para posarem usando turbante como se fosse algo que está na moda, precisamos democratizar essa mídia!
É apropriação cultural quando você companheira ou companheiro que é branco usa turbante e não sabe a história que ele carrega, o que ele representa pra nós e ainda por cima segue reproduzindo racismo por aí… usando uma de nossas armas contra o mesmo!
É apropriação cultural quando você brancx usa turbante, pois tudo historicamente nessa sociedade se torna mais aceito, mais bonito, tudo se torna bom…Quando é embranquecido!
E se tem uma coisa que nós não deixaremos fazer, é que embranqueçam nossa história, embranqueçam nossa coroa de reis e rainhas sem súditos. De reis e rainhas que lutam pela liberdade no seu sentido transcendente.
Quando falamos que o turbante é uma arma de combate ao racismo entendamos que aqui no Brasil é impossível falarmos de racismo sem falarmos da questão de classes e vice e versa, logo tudo que trazemos é com o recorte de classe pois para nós negrxs pobres é mais difícil ainda lutarmos e exigirmos nossos direitos, e incomodamos muito quando estamos assim: EMPODERADXS.
Queríamos incomodar apenas aos nossos inimigos, mas infelizmente incomodamos também até mesmo os companheiros de militância que não entendem nossas armas de combate, que acabam reproduzindo falas e atitudes racistas…que acabam negligenciando o debate daquela coisa que vai nos matando, nos anulando, nos inferiorizado diariamente de diversas maneiras, essa coisa é a apropriação cultural!
Então dizemos a todas e todos em um papo bem direto e afim de despertar a elevação de consciência que o debate de apropriação cultural é tão urgente quanto o debate de classes (inclusive, os debates devem se entrelaçar e não serem segregados), quanto o debate de genocídio de nossa juventude… precisamos explanar e denunciar toda e qualquer forma de racismo.
Por fim companheiras e companheiros, a apropriação cultural começa quando sua desconstrução do racismo é feita apenas em falas nos espaços, plenárias e etc, entendamos que a apropriação cultural é uma das maneiras do racismo matar nossa identidade ‘’silenciosamente’’, logo PRECISAMOS falar e combater a apropriação cultural!
Por: Amanda Maia S, Jaqueline Santos, Lu Mota e Rebeca Azevedo, mulheres negras na luta pela emancipação humana e transformação da sociedade!
Vamos lá.
Antes de mais nada, eu preciso deixar claro que sou fundamentalmente contra a idéia de “apropriação cultural” conforme definida por alguns ativistas. A lógica é que usar um adereço étnico sem pertencer àquela etnia, ou sem compreender, reconhecer e apoiar suas lutas, significa um indiscutível desrespeito para com a herança histórica de um grupo ofendido e tal.
Os ativistas geralmente não elaboram o que exatamente seria o “compreender, reconhecer e apoiar suas lutas” que te daria passe livre a usar o turbante, no caso. Uma carteirinha emitida por alguma autoridade ativista, com os devidos carimbos em dia…? Talvez por essa impossibilidade de fiscalização é que alguns simplificam e dizem que por mais empatia que você tenha com a causa de uma etnia, se a sua foto do perfil do Facebook não bater com o que eles esperam ver, você não pode usar o turbante e acabou. Simplifica mais as coisas, e eu certamente consigo ver elegância numa metodologia simples.
O principal problema desse conceito de “apropriação cultural” é que ele almeja objetivos indistinguíveis daqueles defendidos pelo apartheid sulafricano, pela sociedade branca do Alabama nos anos 50, pelo Ku Klux Klan, ou por movimentos de nacionalismo branco. Primeiro, ele reforça a idéia de que há “coisas de brancos” e “coisas de negros” (duas construções sociais que vão a 100km/h na direção contrária à união racial).
Como se isso não fosse o bastante, esse ativismo prega que as tais “coisas de brancos” e “coisas de negros” não se devem se misturar. Parafraseando Jesus, “dai aos negros o que é dos negros e dai aos brancos o que é dos brancos” é basicamente o que está sendo defendido nesse textão.
Eu entendo que a intenção por trás desse discurso é certamente positiva. Eu estaria sendo absurdamente leviano, e maldoso, se estivesse de fato comparando as pessoas bem-intencionadas do Mulher Negra – Voz com membros do KKK. Esse tipo de demonização do “outro lado” é um recurso retórico infelizmente muito comum, e você não verá isso aqui.
Acontece que eu sou, acima de tudo, um pragmático. Suas intenções não são mais importantes que os seus resultados; e quando os resultados que você almeja se alinham com os de racistas declarados, talvez seja questão de perguntar a si mesmo: é isso mesmo que queremos alcançar? Algo que faria um neonazista dizer “É isso aí! Vamos parar com esse negócio de arianos usando itens étnicos africanos!”
Eu não estou dizendo que sua luta é inválida. Eu não estou dizendo que eu, um homem branco cis hétero, entendo mais da sua própria cultura do que você, ou que estou em posição de te dizer o que deve ou não deve te ofender. Eu certamente não estou dizendo que “hahah foda-se vou usar turbante só pra provocar então“. O que eu estou dizendo é que o que você defende como ideias de respeito racial serve mais pra nos separar, do que pra nos unir.
Há um motivo pelo qual grandes personalidades dos movimentos de direitos negros (Matin Luther King Jr, Malcolm X, Rosa Parks, entre outros) não estavam se preocupando em definir o que é apropriado para brancos e o que é apropriado para negros; muito pelo contrário.

Ela rejeitou TANTO a idéia de “coisa pra brancos” e “coisa pra negros” que estava disposta a ser presa por isso
Karl Marx famosamente disse que “o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções“. Isso significa que a melhor das intenções, por si só, não abona completamente um gesto ou uma ideologia — os resultados que ela causa são igualmente ou mais importante que as intenções. E o que estou questionando aqui não é a sua intenção, ativista negro contra a apropriação cultural, mas sim seus possíveis resultados.
Vou dar um exemplo prático. Eis um tópico do infame fórum racista Stormfront que debate se brancos deveriam ou não usar dreadlocks. Existem, como você pode imaginar, ativistas que se posicionam contra brancos usando dreadlocks. As intenções de ativistas são inequivocadamente mais benéficas, mas quando o resultado bate perfeitamente com o que turma do Stormfront também quer…
Se você conseguiu chegar até aqui controlando a vontade de pular pros comentários e dizer “mas você é branco e por isso não pode opinar”, eis a opinião de um negro sobre o assunto.
(Spoiler: eu e ele temos exatamente a mesma opinião)
É possível que você se sinta tentado(a) a dizer “mas você é homem branco hétero cis, é CLARO que vai chiar contra a tentativa de empoderamento de uma mulher negra oprimida”. Eu entendo o que você quer dizer, mas eu preciso te explicar que não é só porque eu nasci com um cromossomo Y que meu sangue está saturado de reacionalina. Pra que você entenda um pouco sobre mim (e não me ataque imediatamente por causa da minha cor, orientação sexual ou identidade de gênero), talvez seja necessário te dar um pouco de backstory.
Eu nasci em um lar cristão. Desde os meus 5 ou 6 anos de idade, eu frequentei escolas cristãs com foco declarado em ensino religioso. Uma dessas escolas se chamava literalmente COLÉGIO EVANGÉLICO, em Fortaleza. Aqui estou eu, com 6 anos, usando o uniforme do tal colégio:
A foto é meio borrada como quase todas as fotos daquela época (autofoco dos smartphones me deixaram muito mal acostumado…), mas repare a imagem na minha camiseta. Um bonequinho sendo tocado pelo “fogo do Espírito Santo” (um simbolismo clássico na cultura evangélica), diante de uma bíblia.
Essa era a minha realidade. Lia a bíblia em casa, na escola, na igreja (que eu, na adolescência, frequentava 3 vezes por semana). Orava constantemente, participava de eventos cristãos como retiros espirituais e confraternizações da igreja. Me rodeava apenas com pessoas que acreditavam no mesmo que eu. Toda a minha família acreditava no mesmo que eu.
Só que eu comecei um dia a não aceitar tudo aquilo. Os argumentos que eu ouvia não me convenciam, eu não me sentia mais tão à vontade naquele sistema de crença. Mesmo sabendo que a sentença para o questionamento da fé era literalmente a pior punição imaginável — uma eternidade no inferno do lado de Hitler e dessa galera que ouve funk no ônibus sem fone de ouvido — eu fui completamente incapaz de aceitar aquilo que me diziam pra aceitar porque “é o lado certo e pronto“.
Agora que você sabe um pouco melhor sobre quem eu sou, o que eu peço é que não desconsidere imediatemente o meu argumento com um “ahhhh, claro que ele não quer nos ouvir, ele é um homem branco cis hétero, ele jamais abriria mão de seus privilégios, ele é um reaça“. Essa é uma análise de MUITA má vontade para com alguém que você mal conhece.
Eu questiono porque é da minha natureza questionar, mesmo quando a punição para isso é severíssima; mesmo quando literalmente todo o pequeno universo ao meu redor (família, amigos, escola, igreja, líderes religiosos, namorada) estão me dizendo com plena convicção que X é o caminho correto e que eu sou uma pessoa má por discutir isso.
Nem AQUILO, uma pressão inimaginavelmente maior pra aceitar um ponto de vista/ideologia/sistema de crença, foi capaz de me manter calado e conivente e aceitar algo no qual eu não acreditava.
Não é então um um grupo de Facebook com 225 membros que vai conseguir.
Ah, e quase esqueço: o turbante sequer veio da África então todo o ponto do textão meio que vai por água abaixo.
E que fique claro: adoção de características raciais pra fins de paródia ou zuera (blackface e similares) são inegavelmente negativos, mesmo considerando que blackface não teve o mesmo histórico no Brasil que, digamos, nos EUA. Usar um turbante por gostar do visual, por outro lado, não é a mesma coisa que um branco pintar o rosto de tinta preta, colocar batom exagerado pra realçar os lábios, pra poder fazer o papel de negro em tom vexatório num palco em que um real negro não tinha o direito de subir.
E finalmente: se você, ativista negro(a), se incomoda com apropriação cultural E quer me oferecer seus um argumento melhor, sinta-se a vontade pra usar os comentários abaixo. Eu garanto a você que no espaço abaixo você não vai ser escrotizado.
February 12, 2015
O professor de religião
Eu não sei na escola de vocês, mas na minha havia havia uma claríssima hierarquia de professores.
No upper tier tínhamos os professores de matemática, física e química. Não bastasse as matérias serem universalmente desafiadoras (especialmente as duas primeiras, eu diria), os professores combinavam a dificuldade do material com uma atitude meio exigente. Às vezes dependentes de “favores” desses professores — aquele trabalhinho que rendia um ponto na prova, ou uma recuperação um pouco mais branda –, parecia que todo mundo tinha um misto de medo e respeito por estes mestres.
Aliás eu diria que 70% medo, 30% respeito. A zoeira MÁXIMA que a gente arriscava era a icônica e atemporal “mas professor quando é que eu vou usar isso na minha vida” durante uma aula sobre polinômios ou coisa assim. E em tom espirituoso, definitivamente sem intenção real de confronto, porque arriscava ouvir um “na sua próxima prova, porque ela vai ter SÓ POLINÔMIOS” pra aprender a deixar de ser otário.
Abaixo desses tínhamos os professores de português, geografia e biologia. Não que as matérias fossem exatamente fáceis, mas elas não eram as que nos davam mais medo — e por isso, não eram as aulas que requeriam prestar tooooda aquela atenção. Esses nossos professores adotavam aquele jeitão de “amigo da sala”. Contavam piadas, puniam alunos bagunceiros de forma não convencional (como jogar giz nos moleques; a proximidade dos alunos os faziam se dar a tais luxos sem medo de uma denúncia ao Conselho Tutelar), tornavam de uma maneira geral sua aula mais divertida.
Tive um professor de história que entrava nessa categoria, o Sampaio que dava aulas no falido e consequentemente extinto Colégio Evolutivo da Parangaba, em Fortaleza. Aliás RIP in piece Colégio Evolutivo, morreu TÃO bem morrido que nem foto no Google Imagens eu encontro.
Surpreendentemente, de acordo com o Google Street View a fachada continua lá a despeito da morte do colégio:

Expliquem-me isso, amigos de Fortaleza
Aliás, ao encontrar o colégio no Street View eu “atravessei a rua” virtualmente e me choquei ao ver que o que era outrora um terreno baldio desolado e habitado por mendigos e cheiradores de cola virou um impressionante shopping. Quando isso aconteceu?
Voltando à história. No mais baixo escalão dos professores tínhamos aqueles cujas matérias não apenas eram mais fáceis (sociologia, religião, educação física), mas também não metiam muita moral na sala. Talvez por serem novatos na profissão, ou por evitarem confronto, esses professores tinham pulso mole, e a sala inteira detectava isso MUITO rapidamente.
Professor molenga e aula fácil: era a combinação PERFEITA pra não levar aqueles 40-50 minutos a sério. E a história de hoje é sobre um desses professores.
Era o ano 2000 (meu deus como estou velho E PRÓXIMO DA MORTE, achei que seria jovem para sempre). Eu estava na Escola Dom Pedro II, praticamente uma instituição da classe média maranhense. Entra este nosso novo professor de religião, o… puta merda, eu realmente não lembro o nome real do cara. ACHO que começava com R. Embora seu nome de nascimento tenha sido esquecido pelas areias do tempo, a alcunha que ele ganhou entre a nossa turma viverá eternamente.
O tal professor R era gentil; talvez gentil demais. A galera sentiu no ar o cheiro da sua falta de disciplina para com a sala, e as conversas paralelas que são interrompidas momentaneamente quando o professor entrou na sala retomaram rumo. O volume das conversas paralelas, aliás, refletem o pulso fraco do instrutor — quanto mais bunda mole, menos cerimônia a gente fazia conversando no meio da aula dele.
Uma das poucas coisas que eu lembro sobre o professor R, além de suas pífias tentativas de salvar as almas daquele bando de filho da puta sem costume através de parábolas bíblias e momentos de oração pela desgraça africana du jour (um surto de malária, talvez?), é que ele tinha uma aparência meio indiana. Aqui no Canadá há muitos indianos, mas no Brasil (especialmente naquela época) era meio raro, então era algo bem notável na aparência do cara.
Pro seu azar, naquele mesmo período no Brasil esta música dominava as rádios:
Guarde isso na memória.
Então, como eu ia dizendo, as aulas do professor R mal podiam ser consideradas aulas. A galera era TÃO ousada em seu flagrante desinteresse pelo material que em uma ocasião uma turma literalmente virou as carteiras pra formar um pequeno círculo e jogaram dominó durante a aula toda. O R claramente viu este gritante desrespeito, esboçou uma leve melancolia, e continuou tentando nos ensinar sobre as parábolas de Cristo — e sem interromper o dominó, porque já mencionei que ele era totalmente frouxo? Poisé. Até eu fiquei constrangido pelo cara.
Numa aula seguinte o professor R pelo jeito resolveu exercer algum semblante de autoridade. Infelizmente, ele escolheu o pior alvo. Devia ter passado mais um tempinho examinando a fauna da nossa sala, pra que sua primeira tentativa de ganhar controle da classe fosse menos desperdiçado.
Um dos moleques mais zuões da sala estava fazendo sei lá o que, e o professor resolveu que era a hora de bater o pé no chão afinal porra, ele cursou quatro anos numa faculdade (eu acho. Sei lá se cobra-se isso de professor de religião)! Se ele merece uma cela especial, merecia também o respeito desse bando de adolescente feladaputa.
R chamou atenção do garoto, pedindo silêncio. O moleque mal educado respondeu tão rápido e sem titubeação (sem sequer a consideração de olhar na direção do professor) que imaginei que a réplica havia sido planejado a algum tempo:
“Peraí, KHALED”

Fig1: O cantor e multi-instrumentalista algeriano Khaled. Ou seria o professor R? Jamais saberemos.
Meu amigo, aqueles 1.7 segundos de silêncio enquanto a sala processava a nova e definitiva alcunha do professor pareceram intermináveis. A sala então explodiu em gargalhadas, e a falta de moral do professor estava cimentada com adamantium. O professor, um evangélico provavelmente bem reprimido em relação a “música secular” (qualquer tipo de música que não seja cantada em igreja, com a letra constando na Harpa Cristã), provavelmente não entendeu a referência ao cantor algeriano — mas certamente sabia que estava sendo a piada da galera.
Ninguém mais se referiu ao professor por NENHUM outro nome além de Khaled. Cês sabem como criança é com apelido, né.
Sinto vergonha alheia até hoje, 15 anos depois, quando lembro da cena da sala inteira se mijando de rir na cara do professor com total impunidade. Nem tentar parar as risadas ele tentou, tamanha foi a desmoralização do cara.
Coitado do Khaled, mano.
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