[ Todo Dia Tem Um Textão ] “Turbante não é moda”
Há algum tempo eu venho dizendo que a máxima “Todo Dia Tem Uma Merda” (o título do meu livro e um ditado popular que prega que ninguém escapa um dia inteiro sem alguma pedra no meio do caminho) precisa ser adaptada para a era do ativismo online. Com tanta gente “conscientizada” hoje em dia, estamos presenciando o fenômeno da proliferação dos chamados “textões de Facebook” — isso é, mini teses de conclusão de curso que almejam educar o cego e ignorante populacho sobre alguma grande injustiça ocorrendo diante de seus olhos.
E assim como Todo Dia Tem Uma Merda, está provando-se igualmente inevitável que Todo Dia Tem Um Textão.
Nesta nova coluna, proponho debater o textão du jour que circula nos nossos Facebooks.

Eu teria levado o argumento um POUCO mais a sério se a ilustração não tivesse sido feita no Paint.
O textão a seguir veio até nós por cortesia da página Mulher Negra – Voz, um grupo relativo pequeno com apenas 225 membros. Neste caso em particular, a baixa taxa de adesão do grupo não pode ser usado para argumentar que o textão vem de um núcleo marginalizado dentro do ativismo online: já vi argumentos semelhantes, senão idênticos, sendo usados pelos segmentos mais mainstream da luta virtual.
Segue o textão:
Precisamos falar sobre algo urgente – Apropriação Cultural 2!
Turbante não é moda!
O uso do turbante é bem mais que simples pano enrolado na cabeça, é resistência, é luta e consciência da nossa ancestralidade e identidade negra.
No período da escravidão o turbante era usado para diferenciar os grupos africanos, de onde vieram, não só pelo o enrolar do turbante, mas toda a vestimenta. Entre as nagôs, o ojá era amarrado com várias voltas ao redor da cabeça, usavam também para amarrar bebês na cintura, nas costas cabelos e no busto para roupa de algum orixá.
Os negros dobravam o tecido em formato triangular, com a ponta para trás, esmerava os mais belos bordados e muitas anáguas. Além disso, tinha como objetivo de proteger a filha de santo que terminava sua iniciação que normalmente estava com a cabeça raspada.
Se a Europa tem sua cota de participação no figurino dos descendentes de africanos no Brasil, também é grande a herança árabe-islâmica. “O turbante é reconhecidamente de influência mulçumana, que chegou ao Brasil provavelmente através dos escravos islamizados, durante o Ciclo da Baía do Benin no século XIX, e também pelos portugueses”, afirmam as pesquisadoras Juliana Monteiro e Luzia Gomes Ferreira.
Após esse período o uso do turbante continuou ativo, os negros usam na contemporaneidade não só como símbolo ou memoria, mas como resistência, identidade e religião (Candomblé).
Atualmente podemos notar que o turbante está bem popularizado entre nós irmãos e irmãs de cor e isso é algo que devemos comemorar e muito, pois é sinal de que cada vez mais nós estamos afirmando nossas raízes e nos colocando pra sociedade quanto negros e negras que sabem de sua história e que exigem respeito!
Que respeitem nossa cor, nossos valores, nossa cultura!
Herdamos o não calar de nossos e nossas ancestrais que nunca ficaram caladxs diante da opressão que sofreram. É motivo de felicidade nos vermos por aí, por todos os cantos com nossos turbantes pois nosso corpo todo fala, inclusive nossa cabeça, o turbante é mais uma maneira de gritar contra o racismo sistemático, estrutural e institucional que sofremos. Nosso turbante é sinal de empoderamento, de termos ciência de que não podemos em nenhum momento baixar a cabeça pra essa sociedade capitalista que nos oprime de tantas e tantas maneiras.
Até então falamos de nós usarmos nosso turbantes o que como já disse é algo de encher o coração e a alma de esperança, sinal de que a luta de nossos ancestrais não foi em vão, pois nós continuamos na resistência!
Mas é preciso lembrar que uso do turbante não é algo estético pra gente, é luta!
É extremamente ofensivo a nossa história se você, brancx usa turbante. É interessante que vocês se reconheçam quanto seres privilegiados, vocês não sofrem com o preconceito e o racismo.
É apropriação cultural quando a mídia, esta mídia Brasileira que é controlada por apenas 6 grandes famílias elitistas que disseminam racismo em todos os horários de todos os programas de sua programação e coloca diversas atrizes brancas para posarem usando turbante como se fosse algo que está na moda, precisamos democratizar essa mídia!
É apropriação cultural quando você companheira ou companheiro que é branco usa turbante e não sabe a história que ele carrega, o que ele representa pra nós e ainda por cima segue reproduzindo racismo por aí… usando uma de nossas armas contra o mesmo!
É apropriação cultural quando você brancx usa turbante, pois tudo historicamente nessa sociedade se torna mais aceito, mais bonito, tudo se torna bom…Quando é embranquecido!
E se tem uma coisa que nós não deixaremos fazer, é que embranqueçam nossa história, embranqueçam nossa coroa de reis e rainhas sem súditos. De reis e rainhas que lutam pela liberdade no seu sentido transcendente.
Quando falamos que o turbante é uma arma de combate ao racismo entendamos que aqui no Brasil é impossível falarmos de racismo sem falarmos da questão de classes e vice e versa, logo tudo que trazemos é com o recorte de classe pois para nós negrxs pobres é mais difícil ainda lutarmos e exigirmos nossos direitos, e incomodamos muito quando estamos assim: EMPODERADXS.
Queríamos incomodar apenas aos nossos inimigos, mas infelizmente incomodamos também até mesmo os companheiros de militância que não entendem nossas armas de combate, que acabam reproduzindo falas e atitudes racistas…que acabam negligenciando o debate daquela coisa que vai nos matando, nos anulando, nos inferiorizado diariamente de diversas maneiras, essa coisa é a apropriação cultural!
Então dizemos a todas e todos em um papo bem direto e afim de despertar a elevação de consciência que o debate de apropriação cultural é tão urgente quanto o debate de classes (inclusive, os debates devem se entrelaçar e não serem segregados), quanto o debate de genocídio de nossa juventude… precisamos explanar e denunciar toda e qualquer forma de racismo.
Por fim companheiras e companheiros, a apropriação cultural começa quando sua desconstrução do racismo é feita apenas em falas nos espaços, plenárias e etc, entendamos que a apropriação cultural é uma das maneiras do racismo matar nossa identidade ‘’silenciosamente’’, logo PRECISAMOS falar e combater a apropriação cultural!
Por: Amanda Maia S, Jaqueline Santos, Lu Mota e Rebeca Azevedo, mulheres negras na luta pela emancipação humana e transformação da sociedade!
Vamos lá.
Antes de mais nada, eu preciso deixar claro que sou fundamentalmente contra a idéia de “apropriação cultural” conforme definida por alguns ativistas. A lógica é que usar um adereço étnico sem pertencer àquela etnia, ou sem compreender, reconhecer e apoiar suas lutas, significa um indiscutível desrespeito para com a herança histórica de um grupo ofendido e tal.
Os ativistas geralmente não elaboram o que exatamente seria o “compreender, reconhecer e apoiar suas lutas” que te daria passe livre a usar o turbante, no caso. Uma carteirinha emitida por alguma autoridade ativista, com os devidos carimbos em dia…? Talvez por essa impossibilidade de fiscalização é que alguns simplificam e dizem que por mais empatia que você tenha com a causa de uma etnia, se a sua foto do perfil do Facebook não bater com o que eles esperam ver, você não pode usar o turbante e acabou. Simplifica mais as coisas, e eu certamente consigo ver elegância numa metodologia simples.
O principal problema desse conceito de “apropriação cultural” é que ele almeja objetivos indistinguíveis daqueles defendidos pelo apartheid sulafricano, pela sociedade branca do Alabama nos anos 50, pelo Ku Klux Klan, ou por movimentos de nacionalismo branco. Primeiro, ele reforça a idéia de que há “coisas de brancos” e “coisas de negros” (duas construções sociais que vão a 100km/h na direção contrária à união racial).
Como se isso não fosse o bastante, esse ativismo prega que as tais “coisas de brancos” e “coisas de negros” não se devem se misturar. Parafraseando Jesus, “dai aos negros o que é dos negros e dai aos brancos o que é dos brancos” é basicamente o que está sendo defendido nesse textão.
Eu entendo que a intenção por trás desse discurso é certamente positiva. Eu estaria sendo absurdamente leviano, e maldoso, se estivesse de fato comparando as pessoas bem-intencionadas do Mulher Negra – Voz com membros do KKK. Esse tipo de demonização do “outro lado” é um recurso retórico infelizmente muito comum, e você não verá isso aqui.
Acontece que eu sou, acima de tudo, um pragmático. Suas intenções não são mais importantes que os seus resultados; e quando os resultados que você almeja se alinham com os de racistas declarados, talvez seja questão de perguntar a si mesmo: é isso mesmo que queremos alcançar? Algo que faria um neonazista dizer “É isso aí! Vamos parar com esse negócio de arianos usando itens étnicos africanos!”
Eu não estou dizendo que sua luta é inválida. Eu não estou dizendo que eu, um homem branco cis hétero, entendo mais da sua própria cultura do que você, ou que estou em posição de te dizer o que deve ou não deve te ofender. Eu certamente não estou dizendo que “hahah foda-se vou usar turbante só pra provocar então“. O que eu estou dizendo é que o que você defende como ideias de respeito racial serve mais pra nos separar, do que pra nos unir.
Há um motivo pelo qual grandes personalidades dos movimentos de direitos negros (Matin Luther King Jr, Malcolm X, Rosa Parks, entre outros) não estavam se preocupando em definir o que é apropriado para brancos e o que é apropriado para negros; muito pelo contrário.

Ela rejeitou TANTO a idéia de “coisa pra brancos” e “coisa pra negros” que estava disposta a ser presa por isso
Karl Marx famosamente disse que “o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções“. Isso significa que a melhor das intenções, por si só, não abona completamente um gesto ou uma ideologia — os resultados que ela causa são igualmente ou mais importante que as intenções. E o que estou questionando aqui não é a sua intenção, ativista negro contra a apropriação cultural, mas sim seus possíveis resultados.
Vou dar um exemplo prático. Eis um tópico do infame fórum racista Stormfront que debate se brancos deveriam ou não usar dreadlocks. Existem, como você pode imaginar, ativistas que se posicionam contra brancos usando dreadlocks. As intenções de ativistas são inequivocadamente mais benéficas, mas quando o resultado bate perfeitamente com o que turma do Stormfront também quer…
Se você conseguiu chegar até aqui controlando a vontade de pular pros comentários e dizer “mas você é branco e por isso não pode opinar”, eis a opinião de um negro sobre o assunto.
(Spoiler: eu e ele temos exatamente a mesma opinião)
É possível que você se sinta tentado(a) a dizer “mas você é homem branco hétero cis, é CLARO que vai chiar contra a tentativa de empoderamento de uma mulher negra oprimida”. Eu entendo o que você quer dizer, mas eu preciso te explicar que não é só porque eu nasci com um cromossomo Y que meu sangue está saturado de reacionalina. Pra que você entenda um pouco sobre mim (e não me ataque imediatamente por causa da minha cor, orientação sexual ou identidade de gênero), talvez seja necessário te dar um pouco de backstory.
Eu nasci em um lar cristão. Desde os meus 5 ou 6 anos de idade, eu frequentei escolas cristãs com foco declarado em ensino religioso. Uma dessas escolas se chamava literalmente COLÉGIO EVANGÉLICO, em Fortaleza. Aqui estou eu, com 6 anos, usando o uniforme do tal colégio:
A foto é meio borrada como quase todas as fotos daquela época (autofoco dos smartphones me deixaram muito mal acostumado…), mas repare a imagem na minha camiseta. Um bonequinho sendo tocado pelo “fogo do Espírito Santo” (um simbolismo clássico na cultura evangélica), diante de uma bíblia.
Essa era a minha realidade. Lia a bíblia em casa, na escola, na igreja (que eu, na adolescência, frequentava 3 vezes por semana). Orava constantemente, participava de eventos cristãos como retiros espirituais e confraternizações da igreja. Me rodeava apenas com pessoas que acreditavam no mesmo que eu. Toda a minha família acreditava no mesmo que eu.
Só que eu comecei um dia a não aceitar tudo aquilo. Os argumentos que eu ouvia não me convenciam, eu não me sentia mais tão à vontade naquele sistema de crença. Mesmo sabendo que a sentença para o questionamento da fé era literalmente a pior punição imaginável — uma eternidade no inferno do lado de Hitler e dessa galera que ouve funk no ônibus sem fone de ouvido — eu fui completamente incapaz de aceitar aquilo que me diziam pra aceitar porque “é o lado certo e pronto“.
Agora que você sabe um pouco melhor sobre quem eu sou, o que eu peço é que não desconsidere imediatemente o meu argumento com um “ahhhh, claro que ele não quer nos ouvir, ele é um homem branco cis hétero, ele jamais abriria mão de seus privilégios, ele é um reaça“. Essa é uma análise de MUITA má vontade para com alguém que você mal conhece.
Eu questiono porque é da minha natureza questionar, mesmo quando a punição para isso é severíssima; mesmo quando literalmente todo o pequeno universo ao meu redor (família, amigos, escola, igreja, líderes religiosos, namorada) estão me dizendo com plena convicção que X é o caminho correto e que eu sou uma pessoa má por discutir isso.
Nem AQUILO, uma pressão inimaginavelmente maior pra aceitar um ponto de vista/ideologia/sistema de crença, foi capaz de me manter calado e conivente e aceitar algo no qual eu não acreditava.
Não é então um um grupo de Facebook com 225 membros que vai conseguir.
Ah, e quase esqueço: o turbante sequer veio da África então todo o ponto do textão meio que vai por água abaixo.
E que fique claro: adoção de características raciais pra fins de paródia ou zuera (blackface e similares) são inegavelmente negativos, mesmo considerando que blackface não teve o mesmo histórico no Brasil que, digamos, nos EUA. Usar um turbante por gostar do visual, por outro lado, não é a mesma coisa que um branco pintar o rosto de tinta preta, colocar batom exagerado pra realçar os lábios, pra poder fazer o papel de negro em tom vexatório num palco em que um real negro não tinha o direito de subir.
E finalmente: se você, ativista negro(a), se incomoda com apropriação cultural E quer me oferecer seus um argumento melhor, sinta-se a vontade pra usar os comentários abaixo. Eu garanto a você que no espaço abaixo você não vai ser escrotizado.
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