Roberto Denser's Blog, page 3
June 2, 2020
Já visto
Hoje é um desses dias, mas eu me comprometi a escrever crônicas diárias então cá estou: deitado, derretido na cama, procurando um tema. E é óbvio que o tema seria algo transitando entre a obrigação autoimposta, o cansaço, o processo criativo, minha incompetência como cronista et cetera.Mas não vou me render ao óbvio. Escreverei sobre déjà vu. Não é possível que eu não tenha algo a dizer sobre déjà vu.
E tenho: a primeira vez que ouvi essa expressão foi numa sessão espírita, em meados de 2004. Lembro de todos os detalhes: Marcos, nosso anfitrião, infelizmente já falecido (ele iria preferir o termo “desencarnado”), e seu irmão Pádua, uma enciclopédia viva, além de brilhante matemático, estavam discutindo sobre eventuais lembranças de vidas passadas, quando alguém ao meu lado esticou o braço e jogou a questão em cima da mesa:
“E o déjà vu?”
Eu conhecia a sensação a qual o termo se referia (todo mundo conhece), mas por desconhecer o termo em si me limitei a franzir o cenho e olhar para Pádua. Ele não decepcionou:
“Déjà vu é uma expressão francesa que significa, literalmente, já visto. Refere-se à sensação de...”
E começou a discorrer brilhantemente sobre a questão, deixando bem claro que tal fenômeno talâmico era apenas mais uma das milhares, milhões de evidências das nossas reencarnações passadas.
Saí daquela reunião pensando em Nietzsche e no eterno retorno do mesmo, que me parecia, e ainda me parece, bem mais convincente — e nem sei se Nietzsche já escreveu uma vírgula sobre déjà vu.Mas o que eu queria mesmo dizer é isso: a sensação de “já visto” se tornou muito familiar para mim. Tenho dezenas de “já vistos” por semana, centenas por mês, milhares por ano. Estou tendo um agora, inclusive. Imagine só como eu me sinto ao ler o jornal pela manhã “para começar o dia bem informado”: é já visto atrás de já visto. Ao navegar na internet: já visto atrás de já visto. E entre um já visto e outro vou vivendo meus dias com a sensação terrível de que já vi o suficiente.
June 1, 2020
A República dos Ruminantes
Um aviso aos leitores do futuro: é o ano de 2020 e tem muita coisa acontecendo. No momento em que escrevo, por exemplo, er... bem, estamos em meio a uma pandemia global de uma nova espécie de coronavírus, e o mundo inteiro protesta enfurecido contra o racismo (sim, é verdade o que seus professores disseram, nós ainda discutíamos o racismo em 2020). Para piorar, veja bem, o presidente do Brasil, ele, bom, você também deve ter estudado sobre isso. Juro que é tudo verdade. E sim, foi bem pior do que vocês imaginam.
Voltando. Não fosse no Brasil, ninguém acreditaria. “Como assim reabrir as lojas de material de pesca? Como assim reabrir as boates?!” Mas é no Brasil, a República dos Ruminantes, e aqui, meus amigos, o absurdo caminha do avesso.
E brasileiro velho de guerra que sou, calejado que estou de tanta brasilidade, a verdade é que não me surpreendo. Sou brasileiro, e nada do que é brasileiro me é estranho... Quer dizer, exceto, talvez, nossos risos. Juro: houve um tempo em que, intrigado com tantas gargalhadas, me convenci de que o brasileiro ria, na verdade, de desespero. Mas isso passou, admito a derrota da razão: o brasileiro ri mais do que qualquer outro povo, e isso não se explica.
Outro aviso aos leitores do futuro: em 2020 ainda insistimos, cada vez mais desesperançados, que o Brasil é o país do futuro, então caso ainda não o sejamos aí no presente de vocês, façam o favor de desistir de uma vez por todas dessa sandice. Foi loucura do Stefan Zweig, ele até se matou por causa disso. Um dia viu pessoas acreditando nessa história, foi pra casa e se entupiu de soporíferos. Ele e a esposa, ambos convencidos de que ninguém nesse país é capaz de entender uma boa piada.
Voltando a 2020: vocês viram que o Namorado-da-Mãe-do-Neymar (é este o nome do garoto, por isso as maiúsculas) sofreu um acidente? Pois é, deu até ambulância.
Leitores do futuro: é que somos muito apegados aos nossos heróis nacionais e o mundo que os cerca em 2020. Peço desculpas.
Entre a biblioteca universitária e o Bar do Péla
O tédio era tão grande que minha pressão baixava. E foi após uma aula de Linguística particularmente chata que Humberto, o poeta louco, me resgatou. Ele fazia História, era veterano, e pareceu distinguir nos meus olhos um mudo e desesperado pedido de socorro.
“Vamos pro Bar do Péla?”
Não titubeei.
“Vamos.”
E foi a primeira de muitas, cotidianas idas. Bar do Péla era um nome apócrifo. Apenas os estudantes o chamavam assim. Ficava a cerca de três quilômetros da faculdade e caminhávamos até lá salivando por uma cerveja gelada. Era, basicamente, um pé sujo de beira de estrada freqüentado por universitários, onde de vez em quando algum trabalhador parava pra beber uma meiota ou entornar uma lapadinha. Na frente do bar, apenas duas mesas de cimento pegajosas e uma infinidade de moscas. Moscas de todas as cores, tipos e tamanhos. Era como se fosse a Convenção Internacional das Muscidae. Não importava o que passássemos na mesa para expulsá-las, aquelas moscas estavam acostumadas a tudo. Com o tempo, nós é que tivemos que nos adaptar, aprender a dividir nossa bebida, nosso tira-gosto e nossas conversas com elas.
Bebíamos principalmente cerveja e vinho barato. Um vinho horroroso cujo nome me escapa, mas que vinha numa garrafa de plástico e deixava a língua azul. Pra comer, por algum motivo incognoscível lembro principalmente das codornas: crocantes e arreganhadas, pareciam mais com rãs do que com qualquer outra coisa, e as devorávamos, vorazes, com farofa e limão. A despeito da higiene precária e do cardápio limitado, o Bar do Péla era a verdadeira Universidade daquela região. Era ali, em debates acalorados e multidisciplinares, que discutíamos todas as questões verdadeiramente importantes como, por exemplo, a ética kantiana, o niilismo, o eterno retorno, o ser e o tempo. Foi ali, naquelas mesas imundas, que questionamos e discutimos toda e qualquer autoridade, que rompemos muitas de nossas barreiras morais e intelectuais, e que tocamos e cantamos a plenos pulmões todas as boas músicas do nosso rock e da nossa MPB.
Meu segundo refúgio favorito — ou primeiro, a depender do meu humor — era a Biblioteca Universitária. Eu a conhecia melhor do que a minha própria casa. Passava horas ali, livro por livro, prateleira por prateleira, estante por estante. Ainda sou capaz de citar alguns dos livros que peguei emprestado: O livro dos insultos, de Mencken; Os Best-sellers proibidos, do Darnton; Asfalto Selvagem, Cem anos de solidão. A cada quinze dias eu renovava a tríade de livros que levava pra casa: Clarice Lispector, Virginia Woolf, qualquer coisa que me despertasse a curiosidade ou o interesse. Cheguei até mesmo a ler um livro sobre os árabes, sabe deus por quê.
E foi assim, entre o Bar do Péla e a Biblioteca Universitária, que passei meus poucos semestres como estudante de Letras antes de me entediar ao ponto de decidir chutar o balde. Não era pra mim. A faculdade, quero dizer. Bares e Bibliotecas de algum modo sempre cruzaram meu caminho.
May 31, 2020
Viver e não ter a vergonha de ser infeliz
O que significa, é óbvio, que nem só de males do corpo sofre o homem. E falar de frutos é atravessar sem mapas a fronteira do subjetivo: para alguns são seus bens, para outros seus filhos e daí por diante. Há até quem abra a boca e diga “minha arte”, veja só... De qualquer modo, esta crônica não é sobre isso. Esta crônica é sobre os males do espírito.
Males do espírito. Em algum momento começamos a perceber que vivemos como uma entidade autônoma, e já então estamos maculados até o fim de nossos dias. Foi o “não” de mamãe que nos malucou. O “estou ocupado” de papai. Ou mesmo o eventual silêncio de ambos. O tapinha irritado, a bronca, o castigo, a vontade insatisfeita, até mesmo a lei da gravidade, tudo nos machuca permanentemente, e quase tudo nos frustra. Eis a alvenaria com que somos edificados.
É que nascemos moles, esponjosos, e somos condicionados por natureza a absorver e endurecer, pouco a pouco. Nascemos esponja, e se vivermos o suficiente morreremos pedra. Alguns morrem esponja e nisso há sempre algo de trágico.
Uma vez vivos, nossa principal condição é pulsar, pulsamos e vibramos de modo violento. Tudo, tudo em nossa carne vibra e pulsa. Somos vermelhos por dentro. O que entra às vezes nos relaxa, noutras nos inflama, e é no fluxo que irriga cada poro que o corpo se impõe tudo o que nos entra até chegar ao que em nós já não é matéria. É ali que se imortaliza.
Nossa natureza sabe que a felicidade que experimentaremos em vida são apenas vírgulas em um fluxo interminável de consciência. Sua missão é nos esconder isso, criar a ilusão de que a felicidade “tá bem na nossa cara”, de modo que continuamos seguindo em frente, como um jumento diante de uma cenoura presa numa vara de pesca, para no fim perceber que a vida não era bem o que esperávamos.
Por isso é preciso que alguém te esbofeteie o quanto antes: acorda. Não há cenoura alguma. Há no máximo um rabanete sujo de terra caído no meio do caminho. Acorda. Seguir em frente um pouco mais consciente te dará a oportunidade de ver coisas que ninguém mais vê. Enquanto eles babam por suas cenouras inexistentes, você poderá assistir a esse grotesco espetáculo espumante de babas, e também as estrelas. Sim, as estrelas. Por mais que não tenham quem as admire, elas continuarão brilhando. Mas brilharão mais belo a olhos atentos.
Ninguém chegará imaculado ao fim da jornada em direção ao estado de pedra. Ninguém. E a estrada é mais fácil pra quem não enxerga seus percalços. Tudo bem. Mas ei: já que caminhamos inevitavelmente em direção ao mesmo abismo, não é melhor ter consciência do caminho? Eu acredito que sim.
Ah!, aos que ficaram se perguntando “Tudo bem, mas e quais são os outros tipos de frutos que você falou no final do primeiro parágrafo?”, respondo: os que não dão frutos, meus amigos, os que não dão frutos.
May 30, 2020
Coronga
Mas respeitávamos, sim, a doença. Algumas, quando mencionadas, tinham o poder de silenciar debates, de arrancar chapéus das cabeças mais duras; e havia também “aquela doença”, é claro. Ninguém tinha câncer naquela época. As pessoas tinham “aquela doença”, e todo mundo sabia do que estavam falando.
É por isso que quando ouvi que a praga de nossa geração se chamaria Covid-19, pensei: “Meu deus, que horror. Ninguém a levará a sério.” E a ideia de uma Covid-19 também me fazia pensar que teríamos a versão 2020, 2021, 2022 e daí por diante, como um automóvel. Foi por isso que convoquei uma reunião familiar de emergência e impus: aqui nesta casa só se falará Coronga. Coronga sim é nome de doença.
“Soube de Fulano?”
“Que houve?”
“Morreu.”
“De quê?”, pergunta da qual já se conhece a resposta.
“Coronga.”
E o silêncio se impõe, e ninguém precisa falar mais nada. Como nos velhos tempos.
Ou ainda: “Venci a Coronga”, diria o sobrevivente, diante de um público cheio de admiração e respeito. Coronga. Se a Organização Mundial da Saúde lhe tivesse assim batizado, talvez não precisássemos fechar fronteiras. Ninguém se arriscaria a pegar a Coronga, a ficar corongado, seria uma doença terrível demais.
June 24, 2019
De volta ao Campo de Centeio

Tive a sorte de ler a mais famosa obra de Salinger no momento certo: quando eu era um adolescente solitário e entediado, um tanto angustiado com sei lá quê, e cheio de opiniões sobre qualquer coisa.
Lembro exatamente do meu primeiro contato com essa obra: numa livraria Siciliano, em João Pessoa, um livro que peguei por acaso, e que me pegou de volta já em seu primeiro parágrafo. Infelizmente, estava com o dinheiro contado para uma meia-entrada no cinema, uma pipoca média, e a passagem de ônibus de volta pra casa. Não pude levá-lo comigo naquele dia.
Dois ou três anos depois, por indicação de Francisco, um amigo de infância, aluguei uma fita cassete na Locadora Alexandra, em Tibiri, de um filme com Mel Gibson e Julia Roberts que, segundo ele, me daria muito o que pensar. O filme chamava-se Teoria da Conspiração, e o personagem de Gibson era obcecado por O apanhador no campo de centeio. Lembrei no mesmo instante: era aquele livro, putz, aquele livro...
Eu sei que pode soar inverossímil que eu me lembrasse de um livro que peguei por acaso numa livraria enquanto esperava uma sessão de cinema e do qual só lera os parágrafos iniciais, mas juro que é verdade. Creio que me lembrava sobretudo por causa do título, que havia me soado belo e um tanto misterioso, pois não dizia, por si só, absolutamente nada, mas também por causa do tom debochado do narrador, que diferia de tudo que eu havia lido até aquele momento.
Depois do filme — que, diga-se, gostei bastante —, prometi a mim mesmo que um dia leria aquele livro. Um dia, sim, pois na época não era tão simples: eu era pobre, provinciano, e livros no geral eram caros ou inacessíveis. E creio que se passaram mais uns dois anos até que uma cópia do livro me caiu em mãos. E li. Li, e o fiz de uma sentada. Quase sem parar pra respirar ao fim de cada parágrafo. Mais tarde, encantado pela obra, por um narrador com o qual me identificava tanto e querendo comentar, espalhar a palavra de Holden Caulfield, indiquei o livro a vários amigos, e consigo lembrar de pelo menos um que teve sua vida transformada pela obra. Era o mais Holden Caulfield de nós, e tornou-se o maior especialista em Salinger de nosso bairro. Com o tempo, foi ele quem conseguiu os livros mais difíceis, foi ele quem trouxe as informações mais inusitadas sobre o autor, e foi ele quem me falou de Seymour Glass pela primeira vez, e de Buddy e Zooey e Franny e de toda a família Glass, e do suicídio de Seymour numa pousada em A perfect day for bananafish. E era inacreditável e fascinante tudo o que envolvia não apenas a obra de Salinger, mas os mistérios e descaminhos de sua própria vida.
Mais tarde, li os outros livros dele. E quando me mandei para o Rio de Janeiro, já beirando os 30, foi uma edição importada de Catcher in the rye que levei comigo. Reli em inglês nos meus primeiros dias na Cidade Maravilhosa, e fiquei com a sensação de que a tradução que eu havia lido anos antes em muito perdia pro original. Pensava que a maior força de Salinger naquele livro, a voz narrativa que tanto individualizava Holden a ponto dele parecer vivo, se perdia e por vezes soava artificial. Salinger precisava de uma nova tradução, com um tradutor bom, que conseguisse reproduzir com perfeição a vivacidade do Holden original, e foi com imensa satisfação que soube que a Editora Todavia estava para lançar uma nova edição, com tradução do Caetano W. Galindo, que já atravessou, com brilhantismo, obras de Joyce e David Foster Wallace para a nossa língua.
Pois bem, recentemente recebi um exemplar da nova edição e a primeira coisa que fiz foi me deliciar com seu projeto gráfico, seu material (em tempo: os livros da Todavia têm a melhor “pegada” do mercado com esse papel munken print creammaravilhoso), e seu cheiro. No caminho de casa, comecei a ler. E, mais uma vez, li. De uma sentada, totalmente absorvido por um livro que, pasmem, lia pela terceira vez, mas que parecia ser a primeira. E que alívio, que alívio saber que finalmente, finalmente Holden estava vivo em nossa língua. Vivo, com todo o seu desdém, com todas as suas idiossincrasias, e com a estranha sensibilidade que lhe é tão característica. Obrigado, Todavia, Galindo, por me proporcionarem uma experiência que eu considerava impossível: a de reler um livro pela primeira vez. Certeza que, a seu modo, Salinger ficaria orgulhoso.
February 28, 2019
Trecho extraído do meu diário
Também não fomos educados para amar, mas para sermos amados. Sem motivos, como um deus. Fomos os deuses de nossos pais. E como não conhecemos limites, nos tornamos tiranos uns dos outros. E assim vivemos hoje, tiranos sem reino, desacostumados ao contraditório, ansiosos, depressivos, e frustrados com a percepção dolorosa e latejante de nossa própria banalidade.
January 18, 2019
A Biblioteca Essencial

Um dos meus sonhos mais antigos é ter uma biblioteca pessoal espaçosa e bem nutrida. Nela, passaria as melhores horas do meu dia, imerso nos livros que considerasse importantes, ou simplesmente de acordo com meu estado de espírito. Um bunker, misto de refúgio e fortaleza e, portanto, também um deus: esse objeto que, dizem, deve ser não somente alvo de devoção, mas também fonte de júbilo.
Sua decoração seria a mais clássica possível: pesadas estantes de madeira, volumes encadernados em couro e gravados em ouro, vitrine para os volumes raros, primeiras edições de clássicos autografados por seus autores, e edições centenárias de livros milenares.
Naturalmente, não vai acontecer. Mas me contento com um pequeno espaço dedicado aos livros, onde quer que eu me esconda. Quanto aos títulos, bom, devem ser muitos e tematicamente variados. É o que recomendo a pessoas como eu, cujo maior defeito é não ter uma única obsessão ou interesse. Sim, por isso a especialização em seja lá o que for, para mim, seria um pesadelo. Dependesse exclusivamente de vontade, conheceria tudo sobre todas as coisas; como tal não é possível, me contento com o tanto que me cabe. De modo que, sim, a biblioteca essencial é, antes, uma pequena fonte de tudo o que compõe meu leque de interesses. Por isso compro livros que sabe lá quando lerei, mas que lerei um dia. É o caso, por exemplo, dos Diários de Rosenberg e das Confissões de Rousseau, dos poemas de Adonis e Kaváfis, de A Crítica da Razão Cínica e de A mais breve história da Europa. Lerei. Sim, em algum momento da vida eu certamente estarei no estado de espírito apropriado, assim como há alguns meses eu estava no estado de espírito apropriado para ler sobre o cérebro humano e as mais novas descobertas da neurociência, assim como hoje estou num estado de espírito que clama por tudo o que diz respeito a sexo e sexualidade (e por extensão, visto que minha novela atual em certo aspecto trata disso, perversão).
Então é preciso, até certo ponto, se conhecer. Até certo ponto porque se conhecer por completo é impossível. Uma biblioteca bem abastecida ajuda, e tem me ajudado: por inúmeras vezes, após ler um livro marcante, me peguei passeando os olhos pelas prateleiras ou pilhas que me cercam e pensando “E agora? O que lerei agora?”. Nem sempre é óbvio, nem sempre é fácil. Já passei de um clássico difícil para um bobo romance policial, de um tratado filosófico para uma graphic novel, mas essa transição, no meu caso, está ligada quase que exclusivamente ao meu estado de espírito ou curiosidade (há, é claro, quem se ligue a um projeto individual de formação intelectual etc., o que é igualmente válido).
Assim, a biblioteca essencial tem os clássicos, mas também bons contemporâneos. Tem os relevantes da filosofia, mas também os da Ciência. Tem antropologia, mas também cinema e artes plásticas, teatro, música, crítica literária. Isso porque um interesse inevitavelmente seguirá a outro (creio valer pra todo mundo), e a ignorância é um abismo que jamais conseguiríamos nivelar, mas sobre o qual é possível construir uma ponte. Tento construir a minha bem sólida, pois tenho medo de altura.
December 27, 2018
Colecionando vidas
Sou um colecionador de vidas. Quando digo isso, as pessoas se surpreendem, não entendem o que quero dizer, acham que estou sendo leviano ou, pior, poético. Que fique claro: o que quero dizer é exatamente o que eu disse, nem uma vírgula a mais: sou um colecionador de vidas.
O Cristiano Mínelo é testemunha: sempre que passávamos de ônibus pelos arredores da Lagoa (Parque Sólon de Lucena), eu apontava para a multidão e declarava: “Só imagina se cada um deles, cada um a seu modo, mantivesse o hábito de escrever diários onde registrassem suas vidas, suas reflexões, pensamentos mais obscuros, encontros amorosos, opiniões sobre as coisas e as pessoas de seu convívio. Só imagina a riqueza de informação que teríamos acerca do espírito humano!”
Mínelo normalmente dava de ombros, às vezes observava: “Toda vez que passamos por aqui...”
Eu não conseguia evitar. Eu mesmo escrevi meus diários de forma obsessiva até mais ou menos os 21 anos. Depois juntei todos numa fogueira e fuuush, queimei tudo. Nunca mais consegui recuperar o hábito por completo. É verdade que voltei a escrever alguns meses (anos?) depois, mas normalmente penso que tudo não passa de uma bobagem inútil, que minha energia deveria ser dedicada quase que exclusivamente ao trabalho criativo, que deveria substituir esse registro autobiográfico por sessões semanais de análise (lacaniana, por favor). Esse tipo de coisa.
Mas o outro, ah, o outro. O outro acho interessantíssimo. Até trocaria minha individualidade ativa, autoconsciente, para ser um olho que a tudo observa, passivo, sem julgamentos ou conclusões: apenas um observador onisciente, que não se compraz, lamenta ou interfere, para o qual “não há frente nem costas” (ver Saramago), como um deus. É que conhecer o outro é um aprendizado sobre si. Impossível que não o seja. Minha convicção se assenta sobre um único fato: há sim uma natureza humana, humana e portanto animal. Animal e portanto natural.
Natureza.
Homo sum: nihil humani a me alienum puto.
Nada mesmo, mas sinto um prazer voyeurístico em ver, ouvir, conhecer. Dizem até que daria um bom psicólogo. Talvez tenham razão, vai saber. No momento, limito-me a colecionar vidas: ouço histórias de dor e esperança, ouço respostas a tudo, e me engrandeço sempre. Um dia, quem sabe, essas respostas e declarações provavelmente voltarão: numa frase, num personagem, num conflito.
Aqui uma delas:
Certa vez, uma mulher com cerca de 45 anos, casada desde os 16 com o mesmo homem, me levou à cama. Eu era então um jovem de 17 anos, e enquanto eu a penetrava, ela se dividia entre o choro e o riso. Chorava e me abraçava com tanta força que eu tinha a sensação de que queria me tornar parte de si. Às vezes fechava os olhos e sorria, um sorriso puro, sincero e um tanto sonhador. Quando terminamos, ela não quis me deixar ir embora, me beijava a todo instante, me abraçava, cheirava, perguntava quando eu voltaria. Nunca voltei. Tinha minha própria vida amorosa para dar conta e nunca voltei, mas também nunca esqueci o modo como fui amado durante aquelas poucas horas em sua cama.
A história aconteceu? Sim. Comigo? Talvez. Que importa? O que importa é que alguém viveu esse momento, e que hoje ele me serve. É aquilo que dizem: se um escritor se interessar por você, você jamais morrerá. Jamais.
Assim, sigo me interessando por tudo. Muitas vezes, em meio a uma conversa banal sobre um tema banal, algo me é dito e plim, a luzinha interior acende: temos algo ali. Chame de inspiração, se quiser, eu prefiro não dar nome algum, apenas seguir colecionando e me valendo disso quando achar necessário: sempre em favor da criação, nunca em prejuízo da vida que me foi, direta ou indiretamente, confiada.
May 10, 2018
Correções
Se eu pudesse entrar numa máquina do tempo e voltar ao passado, iria até o final do ano de 1984, encontraria meu pai em algum bar de Santa Rita e lhe pagaria uma bebida. Diria: “Roberto, a Ninha está grávida, e em 2 de julho de 1985 serás pai. Teu filho terá uma saúde frágil, talvez em virtude da imaturidade do útero no qual germina, e uma tendência inata à introspecção. Em algum momento de sua vida descobrirá os livros, e decidirá ser escritor. Isso acontecerá de qualquer forma, não temos como evitar. Já tentei, dentro do que o paradoxo temporal mo permite, mas mesmo crescendo onde cresceu e nas circunstâncias em que cresceu, em algum momento um livro sempre lhe cai em mãos, e ele sempre decide ser escritor. Quanto a isso, repito, nada pode ser feito. Infelizmente, isso não é vantagem. Não conto como algo positivo. O amor aos livros e à Literatura pode destruir a vida de um homem. Melhor seria se teu filho se apaixonasse pelo dinheiro (melhor para ele, quero dizer), mas isso por algum motivo que nunca entendi muito bem nunca chega a acontecer. Não que ele não goste de dinheiro, isso seria hipocrisia, apenas que ele nunca terá o dinheiro como vetor de qualquer decisão.
Contudo, querido Roberto, há um conselho que posso te dar — na verdade, conhecendo o futuro como eu conheço, há vários, mas vou me limitar a dois que trarão resultados melhores do que os encontrados naquele que é o teu futuro atual, e o meu presente. Bom, em primeiro lugar, cuide de sua saúde. Por cuidar, quero dizer exatamente isso: cuide-se, esteja atento aos sinais do seu corpo e preserve-se na medida do possível. Você é uma dessas pessoas que nunca cai doente, e pessoas assim, quando caem, porque mesmo pessoas assim caem um dia, caem duma vez. Portanto, cuide-se. Não exagere nos prazeres nem creia-se imbatível. Lembre-se de Alexandre, o Grande.
A segunda é um conselho que dou em benefício de teu primogênito: ensine-lhe disciplina. Não estou dizendo para que sejas violento, longe disso, mas para que te imponhas com a autoridade a que tens direito: diga não quando tiver que dizer não, e suporte com resignação os gritos de protesto. Só não volte atrás, nunca, a não ser que estejas cometendo alguma injustiça. Crianças precisam aprender desde cedo a ouvir não. O “não”, nessa fase, é muito mais importante que o sim.
Um alerta: teu filho será teimoso, e terá desde cedo problemas com a autoridade. A boa notícia é que ele sempre se renderá a um argumento convincente. Então quando ele protestar, argumenta: diz que ele só terá a ganhar com a disciplina, enquanto pessoa e enquanto escritor. Que isso fará uma relevante diferença no caminho em direção ao êxito. Faz-lhe algum desafio — ele, como qualquer mula teimosa, adora se sentir desafiado — que prove, na prática, que a disciplina sempre traz os melhores resultados em qualquer empreendimento.
Por volta dos 11 anos, ele te dirá que é péssimo em matemática e está em vias de levar pau na escola. Esta será uma ótima oportunidade de fazê-lo entender o poder da disciplina, não deixe passar: senta com ele uma horinha durante alguns dias, pratica com ele as tais expressões numéricas cujas regras ele tem tanta dificuldade em entender. Se tudo der certo, talvez ele até largue essa obsessão pela Literatura e se apaixone pela Matemática mais cedo, quem sabe? Na linha do tempo a qual pertencemos, a Matemática será um amor tardio, mais pela compreensão de sua grandeza, e não terá nenhuma consequência prática em sua vida.
De todo modo, aproveita. Faz com que ele compreenda a causalidade entre disciplina e sucesso e ele se disciplinará sozinho. Do contrário, nada poderá ser feito: indisciplinado, transformará insetos em dragões. Problemas que nem mereciam ser assim considerados se transformarão em problemas monstruosos, insolúveis, e a luta em desigualdade contra a possibilidade de fracasso será uma constante. Também será impulsivo, tendente à dispersão e aos vícios, e terá uma autoestima oscilante e incompatível com a realidade.
É só o que te peço: disciplina, Roberto, disciplina. Ensine ao seu filho disciplina.”
E assim me despediria. De volta para o futuro. E ele, sem entender jamais a razão pela qual aquele desconhecido insistia tanto nessa história de disciplina, não me deixaria pagar a conta.