Roberto Denser's Blog, page 2
June 14, 2020
Os mortos de Romero estão vivos (mais uma vez)
Agora que estavam mortos, os mortos de George Romero não sabiam o que fazer da vida, então foram pro shopping, naturalmente. Porque é isso que você faz quando você está morto e não sabe o que fazer com sua vida: você vai ao shopping.
Bater pernas, vislumbrar a beleza estonteante das vitrines, cobiçar itens de valor inalcançável, eventualmente comprar algo de que no fundo você não precisa, ou simplesmente encher o saco dos lojistas perguntando sobre produtos que você não vai comprar. Talvez se valer de sua condição de “cliente” para se sentir importante, superior, ser bem tratado, — como você acha que merece — ou mesmo “jogar conversa fora”, visto que sai mais barato do que a terapia que você não quer pagar não por que não pode ou não precisa, mas porque acha que fazer terapia é coisa de gente maluca.
E, é claro, também há registro de quem precise ir ao shopping única e exclusivamente para “ver gente bonita e bem vestida”, uma declaração da qual sou testemunha auditiva.
Voltemos a Romero: você já deve ter visto essa história, está em um filme de 1978, e em um remake de 2004. Vi o primeiro em VHS alugado lá na locadora do Crê, e o segundo nos cinemas, com meu amigo Cristiano. Lembro de ter gostado. E lembro de ter saído do cinema, que ficava, surpresa!, num shopping, com a impressão de que havia alguma ironia muito mais sutil do que aquela que a princípio se mostrava tão óbvia: Okay, Romerão, eles morreram e continuaram indo ao shopping. É um automatismo, certo? Não sabem exatamente o que procuram, mas precisam comer, alguns buscam dolorosamente um céééérebro, supostamente para alimentar aquele estômago vazio, que na verdade deve ser alguma metáfora de outro tipo de vazio, o existencial. Os mortos, portanto, querem entrar no shopping. Aglomeram-se diante dele por todos os lados. Uma multidão boquiaberta e cambaleante, a baba escorrendo pelo canto da boca. Do lado de dentro, um pequeno grupo de vivos quer, opa, sair. Eles foram para o shopping convencidos pela propaganda de que se tratava de um lugar seguro, opa, e que ali encontrariam tudo de que precisavam, mas perceberam que 1. Não era bem assim e 2. O shopping só atendia suas ânsias e necessidades até certo ponto. Precisam, portanto, sair, e estão dispostos a sacrificar até mesmo a vida que ainda têm para se libertar daquilo que se apresentou como segurança e conforto, mas que se tornou, para eles, uma prisão perigosa.
Sábio e malandro Romerão. Qualquer dia vou rever os seus filmes. Enquanto não o faço, me distraio observando basbaque os mortos da ‘vida-imitando-a-arte’ que, enquanto o mundo enfrenta a pior crise sanitária dos últimos cem anos (no momento estamos a poucos dias de ultrapassar a marca dos 50 mil óbitos só no Brasil) precisam, URGENTEMENTE e a qualquer custo, comprar, como bem pontuou um internauta, “aquela almofada de lantejoulas da Riachuelo”. Os mais vulneráveis que se danem, que se danem os lojistas e suas famílias: o shopping tem que continuar.
June 13, 2020
Bigodes
Bigode é uma palavra que vem do inglês Be God, e originalmente significava Ser Deus. Com o tempo, passou a designar os pelos da barba que crescem acima do lábio superior dos homens e, excepcionalmente, de algumas mulheres. Sobre elas, há inclusive um dito popular que ainda mantém relação com a etimologia original: “Mulher de bigode nem o diabo pode.”, uma clara alusão ao fato de que para vencer o diabo é preciso be god.
Nietzsche, que era um filólogo alemão, sabia bem disso. Por isso deixou crescer o bigode tão logo concebeu o conceito de ubermensch (além-do-homem, ou seja, deus, be god) e nunca mais o raspou. Era, segundo ele, o símbolo definitivo de hombridade, virilidade, moral superior e vontade de potência. Houvesse por parte dos filósofos que o sucederam algum conhecimento filológico, não teriam feito nenhuma confusão acerca do termo além-do-homem, e teriam publicado menos livros sobre isso. Nos primórdios da popularização do pensamento nietzscheano, contudo, Elizabeth Nietzsche (irmã do filólogo) sabia da relação, e foi ela quem sugeriu a Hitler que deixasse crescer um bigode. “Ninguém seguirá um líder sem bigode”, disse ela, “então trate de fazer um bastante característico.” Ele, que de burro não tinha nada, aceitou a sugestão e hoje, em qualquer lugar do mundo, se você deixar um pequeno bigode em formato quadrado (seja no rosto, seja na depilação íntima), irão relacioná-lo a Hitler, inevitavelmente. Stálin também conhecia o segredo do bigode, diga-se a título de nota explicativa aos leitores de esquerda, mas não fez uso dele tão bem quanto Hitler.
No início desta quarentena, a primeira coisa que fiz ao me isolar foi deixar crescer o bigode. Não foi algo deliberado, portanto não saberei lhes dizer o motivo: eu, que nunca fui um embigodado, simplesmente cheguei em casa, peguei a máquina e raspei toda a barba, com exceção do bigode — que cultivo desde então. Conforme o tempo passou, percebi através das redes sociais que vários amigos, colegas e conhecidos, muitos dos quais não conheciam uns aos outros, também começaram a cultivar um portentoso bigode. Intrigado, percebi que era um comportamento padrão não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro, levando até algumas revistas famosas a escrever a respeito. Permaneço intrigado, daí a razão desta crônica: o que nos levou a deixar crescer o bigode? Não tem jeito, sou um homem que se intriga com muita facilidade. Mais uma vez, Freud não explicará. Jung, por outro lado, talvez tenha uma resposta mais aceitável: algo a ver com o tal do inconsciente coletivo, lembranças ancestrais de tempos difíceis, alquimia de sobrevivência.
Minha hipótese é bem mais simplória: deixamos crescer o bigode para tentar enganar o vírus.
June 12, 2020
Tudo é lindo em nome do dinheiro
Os Beatles já diziam: all you need is money, money is all you need. Por isso que a volta do funcionamento dos shoppings na cidade maravilhosa foi adiantada de modo a viabilizar as vendas especiais para o dia de hoje. É que é dia dos namorados e o dinheiro, assim como o coronavírus, está no ar.
Imagino a reunião sobre a reabertura:
“Reabriremos os shoppings dia dezessete, ok? É mais seguro.”
“Dia dezessete? E vamos perder as vendas do dia dos namorados?”
“Ops. Não tinha pensado nisso.”
“Pois é bom pensar. Já perdemos o dia das mães.”
“Senhores, com sua permissão. O relatório técnico salienta que uma reabertura em curva ascendente é um tanto precoce e pode resultar em...”
“Cale a boca. Ninguém pediu sua opinião.”
“... é que...”
“Solicite um novo relatório.”
“Perdão?”
“Um relatório que diga que é seguro abrir no dia dos namorados.”
“Mas já foi difícil conseguir um que falasse no dia dezessete!”
“Dobre a oferta.”
“Mas.”
“Triplique a oferta, ora pombas! Não podemos perder as vendas do dia dos namorados! Em nenhuma outra data é possível vender um cartão de dia dos namorados dois mil e vinte. É como calendário: se não vender, encalha.”
“Sim, senhor.”
Minutos após a saída do pobre Sensato (cargo comissionado, desnecessário dizer), os dois restantes se encaram silenciosamente. Até que:
“Acho que os cartões são datados manualmente.”
“Quê? Que cartões?”
“Acho que escrevem as datas à mão. Não perdem validade.”
“Ah, que se dane! Que se dane!”
E lá se vão abrindo todas as portas. Corrijo: portas específicas. O leitor, a depender de sua classe social, saberá quais permanecem fechadas. Afinal de contas, os empresários desse país precisam lucrar, e o dinheiro, assim como o coronavírus, precisa circular. Quer dizer: circular não é um bom verbo, pois o que circula, inevitavelmente volta. O dinheiro precisa... fluir. Acho que fluir é um verbo mais justo (pro dinheiro, pro coronavírus é circular mesmo).
June 11, 2020
Uma vez amei com pureza
Quando trabalhei com meu pai no açougue, uma das minhas funções era moer carne. É um serviço simples, e qualquer criança pode fazê-lo, desde que tome cuidado para não enfiar a mão no moedor.
A carne era quase sempre moída na hora, a pedido do freguês. Meu pai então cortava o peso em pedacinhos, e eu os recolhia numa bandeja, pegava um saco plástico e me dirigia ao moedor.
Era um procedimento rápido, mas que me fascinava. Na parte de trás da máquina havia uma chave alavanca duas posições on/off, que eu ligava com autoridade enquanto com a outra mão cobria o saco plástico no bocal de saída — aquele que termina num disco cheio de furinhos, um pesadelo para quem sofre de tripofobia.
Eu então ia colocando os pedacinhos de carne na boca de entrada e esperava a máquina fazer o seu trabalho. Ela girava suas engrenagens, a faca cruzeta dilacerava os pedaços de carne que eu depositava, e o bocal de saída os vomitava em tirinhas dentro do saco. Este era o meu serviço favorito na rotina do açougue.
Isso porque havia uma barraca em frente ao balcão lateral, onde ficava o moedor, e naquela barraca trabalhava uma garota da minha idade que foi, sem que jamais o soubesse e durante todo aquele tempo, o grande amor da minha infância.
Não foi o primeiro. A primeira vez que olhei para uma garota e senti um afeto atípico, uma vontade intempestiva de acolher, cuidar e proteger, foi na escolinha, e eu devia ter uns quatro anos. Tanto foi a primeira que jamais a esqueci: chamava-se Lucrécia, era loira, tinha franjas, e sempre levava os cabelos presos num caprichado rabo de cavalo. Também lembro do que motivou aquele carinho que perdurou um ano inteiro e que só lhe confessei uns quinze anos depois (falarei dessa confissão tardia em outra crônica): ela chorava desesperadamente por algum motivo que nunca descobri, e as tias da escolinha tentavam a todo custo consolá-la. Seu choro era tamanho que transbordava dela e me enchia inteiro. Ainda lembro daquelas lágrimas banhando aquelas bochechas rosadas, daquela fita branca enlaçando seu rabo de cavalo, de uma liga de saliva entre seus lábios. Por algum motivo, nunca esqueci daquela liga de saliva, talvez porque era a única coisa em seu choro que a humanizava. É que Lucrécia era um anjo loiro em nossa pequena comunidade de pardos.
Mas voltemos ao grande amor de minha infância. Dela, nunca soube nada além do que observava através da grade do nosso balcão lateral. Nada. Nem mesmo o nome. Gosto de pensar que se chamava Maria, como no poema de Nicanor Parra (“Não me recordo seu nome, mas morrerei chamando-a Maria”). É que tinha cara de Maria, olhos de Maria e até mesmo raros sorrisos de Maria. Mas acima de tudo: tinha a tristeza de Maria. Foi o que me convenceu a chamá-la assim.
Todos os dias eu a observava enquanto moía carne. Por poucos minutos, mas várias vezes ao dia. Sempre que meu pai me mandava fazer carne moída, eu voava exultante para o moedor. Exceto quando ela não ia — às vezes ia um de seus irmãos em seu lugar —, nesses dias eu passava a manhã inteira amuado. Acho que meu pai nunca descobriu o motivo.
Era uma garota delicada, magra, gostava de azul. Atendia os seus clientes com objetividade, e no lanche normalmente comia uma coxinha com um café fumaçando num copo descartável. Uma de suas características mais marcantes era o seu silêncio. Nunca conheci ninguém mais silenciosa. Naquele ambiente de feira, era raro que as pessoas não se comunicassem aos berros, e ela, quando falava, falava tão baixo que nunca ouvi sua voz.
Várias vezes pensei em pegar algum dinheiro e comprar-lhe alguma bobagem para tentar me apresentar, puxar assunto. Infelizmente sua pequena barraca só vendia cacarecos esquisitos demais para uma criança, e meu pai certamente teria achado muito intrigante se eu comprasse um isqueiro ou uma chave para registro de botijão de gás. De modo que não, nunca trocamos palavras.
Mas sonhei, Maria, como eu sonhei. Em minhas idas e vindas do açougue, sujo de sangue bovino na linha Planalto, eu olhava o mundo através da janela do ônibus e sonhava com uma vida ao seu lado. Você, com seu silêncio; eu, com a minha introspecção. Seríamos o mais silencioso dos casais, um casal monástico. Eu te apresentaria os livros, e você me apresentaria as razões do seu silêncio. Teria dado certo. Pois te amei com a pureza de quem nunca amou na vida.
June 10, 2020
A breguice era o mais puro zeitgeist dos anos 80
Os anos 80 foram a década da esculhambação estética. Digo isso e tenho certeza que não exagero. Lembram do mullet? Pois bem. Até meu pai usou um. E não era só o mullet, os mais velhos vão lembrar de todos os collants, das ombreiras, das pochetes, dos raios laser, todo aquele excesso de... informação. Tudo sempre muito brilhante e colorido, vale dizer. As pessoas se vestiam como uma verdadeira colcha de retalhos. Nada naquelas vestimentas fazia algum sentido. Os cabelos femininos eram verdadeira arte moderna; os masculinos pareciam algo inacabado, frutos de alguma indecisão.
Mas de todas as breguices oitentistas, a que mais me incomoda — até hoje, visto que é eterna — é o uso de sintetizadores. O sintetizador foi o mullet da música nos anos 80. É que a breguice não atingiu apenas a moda, mas as artes em geral. E não apenas as artes em geral, mas também a política e a filosofia. O brega era o mais puro zeitgeist dos anos 80. Até desconfio que foi ali que começou essa mania nacional (nacional, sim, pois respondo apenas pelo Brasil) de sorrisos.
O sintetizador. Poucas coisas são tão irritantes na música. Às vezes estou numa dessas festas saudosistas e inevitavelmente começa um festival de sintetizadores. É um horror. Nessas horas sinto vontade de me recolher, mas, pelo bem de todos e felicidade geral da nação, fico. Mentira. Na verdade fico pela companhia e pela bebida.
E em algum momento da festa vou começar a dançar sem me importar com os sintetizadores. Asseguro: é um sinal infalível de que estou bêbado.
June 7, 2020
Aos trinta e dois anos vi a chuva pela primeira vez
Mas infelizmente não é o meu caso. Apesar de ser hiperculturêmico (autodiagnosticado, diga-se) desde pelo menos os três anos de idade, a beleza nunca me derrubou. É verdade que já passei mal, já fiquei sem fôlego, chorei, tremi, fiquei zonzo. Mas desmaiar, não, nunca aconteceu.
E é curioso: essa sensibilidade, que a meu ver não deixa de ter sua própria beleza, é vista por algumas pessoas como fraqueza, “coisa de viadinho”. Era assim nos anos 90, e continua sendo assim nos anos 20 do século XXI. É que o mundo continua sendo administrado pela turma do fundão, e a mediocridade enxerga o forte onde mora o brucutu.
Lembro bem da época da escola: uma admiradora me enviava bilhetes anônimos questionando minha masculinidade pelo simples fato de eu gostar de poesia (ah, como eu me divertia com aqueles bilhetes gramaticamente hediondos!) e preferir passar os intervalos com a cara enfiada nos livros ao invés de correndo atrás de uma bola.
Mas voltemos à beleza. Qual foi a última coisa verdadeiramente bela que você viu, ouviu ou leu? Vou responder a minha. Gostaria de enfeitar esta crônica, inflar bem os pulmões e escrever: “Estava na basílica de Santa Croce deslumbrado pelos afrescos de Giotto quando fui invadido por súbita...”, mas seria mentira. A verdade é mais bruta, mais simples, mais mundana: foi a chuva. A mesma chuva que chove em qualquer lugar.
É que aos trinta e dois anos meu filho me fez ver a chuva pela primeira vez. Lembro bem: ele ainda engatinhava e chovia torrencialmente quando o peguei no colo e o levei na varanda. Era a primeira vez que chovia de verdade desde que ele ganhara alguma curiosidade sobre as coisas, e era a primeira vez, portanto, que ele a veria. E seu deslumbramento foi tal que também me deslumbrou: ele arregalou os olhos e a boca, me encarou com ceticismo, voltou a olhar para a chuva e, com o fascínio e a insegurança com que um adulto acariciaria o chifre de um unicórnio, ergueu a mão para tocá-la. Foi então que, com ele apertado em meu colo, o coraçãozinho batendo a toda velocidade, também arregalei os olhos e a boca, e também ergui a mão para tocá-la. Foi o mais próximo que já cheguei de um desmaio. Se não caí foi tão somente para protegê-lo. E também foi ali que descobri irremediavelmente que Dostoiévski tinha razão: a beleza salvará o mundo.
June 6, 2020
Mas é claro que sim
Por exemplo: você precisa ser um andróide para escrever sobre um personagem andróide; um cachorro para escrever sobre um personagem cachorro; um maneta para escrever sobre um personagem maneta; um maníaco sexual para escrever sobre um personagem maníaco sexual; e daí por diante. A lista de possibilidades é infinita, mas a de exemplos citados por nossa jovem escritora transita pelas chamadas minorias. Vocês conhecem o discurso. É inacreditável que uma escritora, mesmo jovem, dê voz a esses absurdos. Mas, de qualquer modo, vou registrar minha gratidão: me deu o mote para esta crônica e me fez considerar sobre o que estou legitimado a escrever, segundo sua lógica: aparentemente posso escrever sem problemas sobre homens pardos e heterossexuais que nasceram na região nordeste do Brasil no ano de 1985 de nosso senhor, e que são destros e ligeiramente calvos. Não é maravilhoso?
Ah, e só pra constar: Philip K. Dick não era andróide (pelo menos não segundo os documentos oficiais), a Virginia Woolf não era um cachorro (juro que não), J. M. Barrie não era maneta (nem criança, nem voava) e Nabokov, apesar de ser um chato de galochas, não era nenhum maníaco sexual.
June 5, 2020
Ateu, mas nem tanto
Mas na maior parte é indiferença mesmo. Prova disso é que se um deus, qualquer um, descesse das alturas numa carruagem de fogo ou algo que o valha, cercado por um coral de anjos, em meio à abertura das Olimpíadas, eu simplesmente assentiria e diria, reflexivo:
“Veja só, então esse negócio existe mesmo...”
E não perderia meu sono por isso.
O que mudou dos meus dezesseis anos pra cá, creio, foi que a maturidade me trouxe algum estoicismo. Algum, veja bem, apenas o suficiente para ignorar certas coisas, e aceitar outras. Aceito a vida, aceito a morte; ignoro certos debates, certas opiniões.
Mas aqui vai uma confissão. Uma confissão sincera, à moda antiga: invejo os crédulos. De verdade. Tão verdade que vou repetir pra que não reste a mais liliputiana das dúvidas: invejo os crédulos. Sim, porque deve ser maravilhoso acreditar sinceramente, do fundo do coraçãozinho esquizofrênico, que um “papai” todo-poderoso, senhor de todas as coisas, está lá em cima, seja lá o que isso signifique, olhando por você. É magnífico, veja: um papai que pode tudo, que sabe tudo, que ouve suas preces e as atende, exceto quando entende que atendê-la não é o melhor pra você. Se você sofre, é porque é o melhor — papai quis assim —; se morre, é porque é o melhor — papai o quer junto de si; e daí por diante. Não tem como resultar em prejuízo emocional: afinal de contas papai está no comando, seja o que ele quiser. Ele é o diretor, eu sou apenas um peão. E ele não falha nunca. Tenho certeza que os crédulos dormem melhor do que eu. Por isso os invejo.
June 4, 2020
Freud não explica
Fecho os olhos. Lamento já não fumar, lamento não ter comprado uma garrafa de vinho tinto mais cedo — impossível conseguir agora —, lamento qualquer coisa indefinida — quero dizer, há uma sensação de lamento, mas não há um objeto lamentado. Gostaria que fizesse frio. Não faz. Aqui é o Rio de Janeiro, aqui nunca faz frio. Não de verdade.
Súbito lembro do mar. O mar, pelo amor de deus. Não vou escrever sobre o mar. Não cairei nessa armadilha. Mas caio: escreverei sobre o mar. Um mar específico. O mar dos meus sonhos recorrentes. É que sonhei com ele de novo semana passada, e agora que estou perto de dormir, ele me vem como quase sempre me vem. O mar: cinza, agressivo, espelho de um céu também cinza, também agressivo. Estou sentado na areia como sempre, abraço meus joelhos como sempre, sinto que devo sair dali o mais rápido possível porque algo muito ruim está prestes a acontecer. Como sempre.
Mas eu não saio. Não saio. Como sempre, espero. Espero até que seja tarde demais para simplesmente fugir: o mar cada vez mais cinza, cada vez mais agressivo e eu ali, esperando. De repente cai do céu uma tempestade aterrorizante. Cai não é bem a palavra. Desaba. De repente desaba do céu uma tempestade aterrorizante.
O mar, reflexo do céu, reage, se agita, começa a se jogar contra tudo o que pode se jogar, se despedaça e se joga de novo. Eu me levanto, o coração acelerado, limpando a areia da bunda, e penso: preciso sair daqui. E saio, mas não com a pressa necessária, não a tempo de me salvar. E o mar vem, se joga feito rede sobre mim, me arrasta feito pesca, me engole e me sufoca. É aqui que acordo: sem fôlego, afogado, (ou desafogado, visto que sonhei), estendendo as mãos para me agarrar em algo, coisas assim.
Deve fazer pelo menos uns vinte anos que tenho esse sonho. A frequência varia: uma vez por semana, por mês, por trimestre. Nunca demora mais que um trimestre pra ele voltar. Sempre volta. Como uma onda. Já Me perguntei mil vezes o que significa, já o interpretei de milhares de formas diferentes. Numa das minhas leituras, o mar é o mundo; noutras, minha aspiração literária. Já houve dias em que interpretei: é o Brasil. Mas confesso que não sei. Nunca saberei. Já consultei psicanalistas que me vieram com abobrinhas que eram verdadeiros abobrões. Teve até uma que me veio com um inusitado “complexo de Édipo”. Era o Godzilla das abobrinhas: para ela, o mar era meu pai, o céu minha mãe. Ou o contrário. Isso, o contrário: a captura era um chamado ao útero, sufocante proteção molhada et Cetera. Risquei seu número de minha agenda. Sigo à procura de uma interpretação que faça algum sentido.
June 3, 2020
Um conto de falhas
Era uma vez uma madame muito madamesca. Tão madamesca que como toda madame madamesca tinha: 1. Uma cadela poodle e 2. Necessidades urgentes e inadiáveis, como fazer as unhas, para citar um exemplo qualquer. Para estas últimas, contava com a ajuda de uma preta. Em tempo: ajuda é modo de dizer, e a cor de sua cútis, sua raça, deveriam ser informações irrelevantes — era uma empregada, mas infelizmente é preciso que se diga: preta. A relevância dessa informação reside no contexto em que este conto se passa: um país onde a cor de tua cútis, tua raça, define não apenas o teu destino, mas a forma como irás vivê-lo, morrê-lo e senti-lo, muitas vezes não só na pele.Voltemos ao conto.
Madame madamesca era tão madamesca que até seu nome deixava explícito sua ascendência madamística: tinha nome de roupa, sobrenome de morada de soberanos e conjunto de nobres, e moeda nacional. Juro: tinha sobrenome de moeda nacional. E era, evidentemente, branca (ver segundo parágrafo, a parte que fala sobre a relevância da cor da cútis nesse país imaginário). Como a maioria das madames madamescas desse país, nossa madame madamesca morava em bairro vertical (de edifícios, para os leigos) e nossa pobre empregada em bairro horizontal (de casas, por óbvio, já que em nosso país imaginário apenas dois grupos de pessoas moram em casas: os muito pobres, e os muito ricos — os que se encontram no largo espectro entre eles moram mesmo em edifícios).
A empregada de madame madamesca tinha um filho com nome de anjo, um lindo garotinho de cinco anos que sonhava ser policial ou jogador de futebol, e que ela chamava carinhosamente de “meu neguinho”. Certo dia, num momento delicado em que nosso país imaginário (podemos chamá-lo de Nova Tebas) enfrentava A Peste (trazida por inúmeras madames madamescas dos quatro cantos do país, bem como por seus patrocinadores) e O Tirano (que chegara ao poder graças a uma loucura generalizada), nossa empregada precisou levar o seu filho com nome de anjo para a casa de madame madamesca, cujas necessidades urgentes e vitais, como fazer as unhas, para citar um exemplo qualquer, não poderiam jamais ser flexibilizadas, mesmo em contexto de peste. Naquela manhã, madame madamesca acordou preparada para ter um dia agitado: a manicure, responsável por deixar as mãos inúteis de madame madamesca absolutamente lindas, chegou cedo, e a empregada foi levar a poodle pra passear, fazer cocô, fixar vitamina d (o leitor pode dar a poodle um nome cafona qualquer). Como é um tanto impraticável passear ao mesmo tempo com um poodle deslumbrado e um agitado garoto de cinco anos em um desses bairros povoados por carros temperamentais, nossa empregada deixou o seu filho com nome de anjo sob a guarda temporária de madame madamesca. Minutos depois, o garoto com nome de anjo quis ir atrás da mãe, e madame madamesca, com a paciência típica das madames madamescas, o enfiou sozinho no elevador e — sabe deus por que — apertou o botão de algum andar superior do enorme, gigantesco, duplamente fálico prédio onde morava.
Sozinho, o garoto com nome de anjo desceu no nono andar, e foi a última vez que o vimos. Alguns dizem tê-lo ouvido gritar “mamãe” pouco antes de cair daquela altura de trinta e cinco metros, e o delegado responsável pelo caso acredita que o garoto com nome de anjo avistou sua mãe antes de gritar por ela, e caiu ao tentar se colocar numa posição mais favorável a um novo grito.
Madame madamesca foi presa, mas no nosso país imaginário não há nada que não se resolva com poder e dinheiro — e madamesca tinha ambos —, portanto também foi solta logo em seguida para responder o processo em liberdade.
Nosso garoto com nome de anjo virou anjo de fato, e nossa empregada viveu infeliz para sempre.