Joel Neto's Blog, page 82
November 11, 2012
Terra Chã, 3 de Novembro de 2012
O Bulcão convida-me para ir à pesca, de barco, e a minha primeira preocupação é perguntar-lhe: “E o que é que eu levo? Com o que é que eu contribuo? O que é que me deixam pagar?” Ele olha-me com condescendência, sorri: “Pois claro, és da geração da retribuição…” Sim, sou. Mas, sobretudo, estou demasiado estragado por Lisboa. E uma das mais urgentes reaprendizagens é essa: a da generosidade gratuita. De saber dar sem receber em troca, de saber receber sem sentir-me obrigado a restituir. De saber dizer obrigado com os olhos. De saber agradecer simplesmente não esquecendo. De voltar a ser um homem inteiro.
Terra Chã, 2 de Novembro de 2012
Consta que demos – nós, portugueses; nós, terceirenses – uma bela imagem de nós próprios, anteontem à noite, no bairro americano das Lajes, a pretexto do Halloween. Segundo percebi, no ano passado as famílias dos militares estacionados na Base das Lajes reforçaram a sua disponibilidade para partilhar o “Trick or Treat” com a população local, oferecendo rebuçados às crianças portuguesas que lhes batessem à porta, mascaradas ou não. Pois, este ano, milhares de pessoas apareceram a pedir chocolates, com mochilas vazias às costas, preparadas para o saque.
Os relatos falam-me de dificuldades de trânsito logo à saída da via rápida, de gente pelas ruas como se estivéssemos nas Sanjoaninas e de americanos fechando as portas à pressa, duas horas antes do previsto, ao mesmo tempo sem mais o que oferecer e receosos da fúria açambarcatória dos visitantes.
Espero que haja nessa descrição algum exagero. De qualquer maneira, para a próxima, provavelmente, não há nada para ninguém. De resto, a história não resume este povo, cujos contrastes continuam o seu maior fascínio. Mas pode resumir um eleitorado. E isso não é menos preocupante porque, nesse caso, também resumirá boa parte do futuro.
Terra Chã, 1 de Novembro de 2012
Poucos miúdos, este ano, a pedir Pão Por Deus. Mas, ainda assim, um padrão: alguns (talvez uns trinta por cento) ainda dizem “Bom dia” ao chegar e “Obrigado” depois de lhes pormos os rebuçados na saca. Achei
Terra Chã, 31 de Outubro de 2012
Festa da Castanha no adro da igreja da Terra Chã. Tive de sair à francesa, caso contrário vinha de lá com duas grades de cerveja no estômago. E, no entanto, foi encantador como me acolheram, o Rómulo e o Viegas e a Maria de Belém e o José Luís e o Abelha e uma série de outros de cujos nomes já nem me lembrava (ou nunca chegara a conhecer): interessando-se, oferecendo, convidando. É bem verdade o que se diz: os terceirenses sabem receber como ninguém. Inclusive os seus.
Terra Chã, 30 de Outubro de 2012
[Entrada para ser lida apenas depois da minha morte.]
Terra Chã, 29 de Outubro de 2012
É agora muito claro para mim o lugar que devo ocupar. Dias de Melo, Fernando Aires, Cristóvão de Aguiar, Álamo Oliveira, Daniel de Sá, Emanuel Félix, Santos Barros, Pedro da Silveira, Norberto Ávila, Emanuel Jorge Botelho, Ivo Machado e, naturalmente, o maior de todos, João de Melo – e isto para falar apenas de alguns ficcionistas, poetas, dramaturgos e diaristas, porque os ensaístas são ainda mais, e aliás mais heterogéneos – retrataram um tempo, consolidaram um universo literário, criaram uma literatura. É dessa massa, em grande parte, que eu sou feito. É essa a minha herança. E o meu lugar, o lugar da minha literatura, situar-se-á inevitavelmente na extremidade dessa tradição, no seu espaço de diluição, no tempo em que essas referências se vão perdendo e, apesar disso, tentando resistir.
“Pós-literatura açoriana” – hão-de chamar-lhe assim, um dia, os críticos (se os tiver). Ou talvez “literatura pós-açoriana”, porque na verdade o desmoronamento desse universo literário é (como, aliás, deve ser) o espelho do desmoronamento de um momento histórico, do desmoronamento de uma organização social. É o espelho de um conjunto de obstáculos e de um grupo bastante concreto de ansiedades e de fugas. De um tempo que, como gostam de dizer os jornalistas e os intelectuais públicos, já nem é local, nem global: é pós-global. Ou “glocal”.
De qualquer maneira, começa aqui – sinto-o – a minha idade adulta. Escrito à procura da confluência entre uma certa ideia de literatura popular e um determinado género de literatura erudita, “Os Sítios Sem Resposta” provou porque tantos antes de mim haviam abandonado a obsessão da literatura popular de qualidade, posicionando-se em definitivo num dos dois campos a que os anglo-saxónicos chamam “literatura” e “ficção”. Não funciona, isso da literatura popular de qualidade: é demasiado rasteiro para os bons leitores e demasiado erudito para todos os restantes. E o fracasso comercial dó muito menos quando não se fazem concessões.
Terra Chã, 28 de Outubro de 2012
Queixamo-nos da infelicidade, mas tantas vezes é muito pior do que isso. A falta de intimidade, sim, é a suprema tragédia humana. A incapacidade de ser íntimo, o desespero de não encontrar intimidade nos amigos, nos familiares, às vezes até nos cônjuges – maior solidão não houve ou haverá. É ela, a falta de intimidade, o ser. A infelicidade é apenas um estar.
Tenho de parar com as filosofias de domingo de manhã.
Terra Chã, 27 de Outubro de 2012
Aviso já que, aqui nos Dois Caminhos, não há Halloween para ninguém. Quem quiser rebuçados pede Pão Por Deus que nem um lindo. Que diabo.
Terra Chã, 26 de Outubro de 2012
Para onde vai a dor? A dor, sim, a dor de alma e a própria dor física: para onde vai ela, o que dela resulta verdadeiramente, no que é que ela se transforma? Qual o seu préstimo, afinal? Teria Lavoisier uma explicação para isso, ou há leis universais tão atónitas perante a dor como nós?
November 4, 2012
Terra Chã, 25 de Outubro de 2012
Não ter medo de que a vida nos mostre que há plenitude para além do cinismo – eis o desafio. No fundo, também nesse aspecto estou em mudança. E todo o meu trabalho, em particular o da literatura, há-de ser a partir de agora reflexo do quão capaz eu for de contrariar a minha natureza.


